mercredi 10 avril 2024

Teologia e Missões

                                                  Variáveis de uma discussão

Teologia e Missões


Existem abordagens inovadoras que vão eletrizar sua comunidade de fé, como por exemplo a assistência nas situações de catástrofes e combates às endemias, evangelismo urbano de comunidades socialmente excluídas, e ministério de apoio as populações em situações de guerra e risco.  


Mas por que isso? Por que fazer missões sob novo olhar? Porque é unânime entre os teólogos que a Europa e Estados Unidos deixaram de ser o centro de gravidade do cristianismo. Durante mais de um século, Europa e Estados Unidos foram os grandes impulsionadores do movimento missionário, mas no final do século XX deixaram de ser o centro de gravidade do cristianismo e foram substituídos por comunidades de fé de outras regiões, entre as quais as brasileiras, conforme entrevista do presidente da Aliança Reformada Mundial, Choan-Seng Song, em relatório que apresentou na 24ª Assembléia Geral da Aliança Reformada, que representa 75 milhões de fiéis em mais de 100 países.


Dos 2 bilhões de cristãos que há no mundo, 1,24 bilhão encontra-se na África, Ásia, Oceania e América Latina, e 821 milhões na Europa e na América do Norte”, contabilizou Song, baseando-se em informações divulgadas este ano pela Enciclopédia Britânica.


Para o pastor presbiteriano de Taiwan, essa proporcionalidade verifica-se também no campo das igrejas reformadas. Dois terços das igrejas membros da ARM estão fora da Europa e da América do Norte.


« As comunidades de fé, que nas décadas anteriores difundiram o cristianismo ao resto da Terra, parece que estancaram e perderam o vigor espiritual. Agora percebe-se uma maior influência das igrejas procedentes dos 'confins da terra', entre as quais as igrejas brasileiras, que mostram sinais de vigor e crescimento, de modo especial as igrejas carismáticas, mas também as igrejas herdeiras da Reforma", disse. 


Assim como o futuro da economia mundial vai depender mais dos países e povos do mundo em desenvolvimento, também as comunidades de fé e os cristãos dos 'confins da terra’ desempenharão uma função decisiva no futuro do cristianismo, prognosticou Song. 


Essa situação introduz muitos desafios e responsabilidades. Do ponto de vista cultural e religioso, o mundo em que as igrejas e os cristãos vivem é plural. As missões cristãs trataram de convertê-lo num mundo monolítico, dominado pelo cristianismo, mas isso não funcionou, ao contrário, gerou conflitos. 


Assim, temos que impedir que se exija deste mundo de Deus que se adapte à fé e à teologia idealizadas pelas igrejas do passado e ao mundo centralizado na Europa e nos Estados Unidos. Temos de remodelar nossa fé, nossa teologia e nossa maneira de fazer missões à luz do mundo plural de Deus. 


A reconstrução da comunidade de fé é outro desafio que a Aliança Reformada Mundial deve encarar, disse o professor Song. “Nos últimos anos testemunhamos a forma como a comunidade humana manchou-se de sangue e foi assolada por conflitos ocasionados não somente por forças políticas e econômicas, mas por forças religiosas. É curioso que as religiões que professam a paz, o amor e a salvação provoquem temor, ódio e destruição no mundo”, declarou. 


A preocupação do pastor Choan-Seng Song está relacionada com a luta cristã da busca do sentido pleno da vida. E leva a uma reflexão sobre o distanciamento, a separação, o caminhar no rumo contrário ao bom, justo e verdadeiro sentido da vida, que podemos chamar de alienação.


A vida, enquanto processo, tem um sentido de realização, e apresenta as qualidades necessárias para que possamos construir esses caminhos. O ser humano é um momento da existência e tem possibilidades abertas diante de si. Essas possibilidades podem ser chamadas de liberdade dentro da própria existência. Mas tais possibilidades são desafios à condição humana, por isso quando analisamos a vida, nos vemos obrigados a discutir o distanciamento, a separação, o caminhar no rumo contrário ao bom, justo e verdadeiro sentido da vida, ou seja, a falar da alienação.


A alienação antecede o exercício da liberdade. A ideia é de que pertencemos àquilo de que estamos separados. O humano não está separado de seu ser, mas é julgado por ele, e mesmo quando este lhe é hostil não consegue separar-se dele. As possibilidades humanas estão, nesse sentido, mesmo enquanto construção, sob funções correlatas e paradoxais, como a alienação e a lei, a liberdade e a necessidade, que são realidades da existência.  


Se a alienação é uma ruptura com nossa essência, parto que produziu a consciência humana, ela nos remete tanto ao distanciamento como possibilita à reaproximação com o Eterno. Seria, então, uma disfunção que clama por travessia, ao apontar para as funções do humano, enquanto ser com possibilidades de realização somática, psíquica, cultural, ecológica e do pleno sentido da vida. 


Na tradição judaico-cristã essa relação entre alienação e liberdade foi um tema de importância. Dos textos judaicos resgatamos idéias como aliança, constância, fidelidade, que remetem à correlação alienação versus lei. E no testamento cristão a idéia de estar destinado traduziu a realidade da presença da alienação em seus dois vetores, distanciamento e aproximação.


As tensões ao redor da compreensão das ideias de alienação, que traduz funções e disfunções do humano, e graça, enquanto ação divina para a salvação, apontam para duas outras questões: história e liberdade. Essas duas questões formam a base do pensamento de que o ser humano por ser imagem do Eterno é um ser livre e, por extensão, faz história. Livre significa liberdade de julgamento e ação no âmbito da existência. Então, para que as pessoas sejam livres, o Eterno garante a liberdade delas. 


Na carta aos  Romanos (5.12), o apóstolo Paulo afirma que hamartia, a palavra grega para “errar o alvo”, entrou no mundo através do humano e com hamartia, a morte. Ora, hamartia ou peccatus é um fazer, uma consequência que nasce deste conceito militar dos gregos, ato do arqueiro errar o alvo, quer no treinamento, quer na batalha. O apóstolo Paulo utiliza a expressão no sentido de que a humanidade vive um fazer em que errar o alvo é a possibilidade crescente na existência, embora não seja um estado dela.  


Errar o alvo, ou, em hebraico moderno, errar o tiro, leva à conseqüências. Paulo privilegia uma delas, a consciência da morte. Para o apóstolo, hamartia ou peccatus produz uma consciência matricial, a consciência da morte. A partir da consciência da morte temos a consciência da eternidade, a consciência da diversidade, já que não somos animais sem razão e, por extensão, a consciência de que podemos escolher, e a consciência de que ações e coisas podem ser boas ou não. Dessa maneira, o alvo é o desafio de acertar, e estão diante do humano, de forma permanente, as necessidades diante da lei, daquilo que é ou está frente à existência, e possibilidades diante da liberdade, daquilo que não existe, mas pode ser criado.


Alvo implica, então, em necessidades e lei e possibilidades e liberdade, que não se excluem: estão correlacionadas na existência humana, fazem parte do desafio da existência.


Ora, a partir dessa primeira reflexão, podemos dizer que todos somos chamados à comunhão e que cada pessoa pode responder positivamente a esse chamado. Caso o ser humano responda positivamente ao chamado, vive o processo de libertação que leva à comunhão. A comunhão consiste, então, em metanóia, que é a volta ao estado de liberdade e a permanência na escolha. A partir desta resposta, o Eterno opera a salvação do ser humano. Por isso, podemos dizer que a vontade humana abre o caminho da libertação. A partir daí entendemos a graça universal, pois todos os seres humanos poderiam responder positivamente ao chamado à comunhão. Ou seja, a liberdade de julgamento no âmbito da existência leva a pessoa a escolher os caminhos de sua história.


As funções e disfunções existenciais do humano, ou seja, a alienação, fazem com que as ações humanas, a partir dos desejos – emoções e sentimentos – levem o ser humano à possibilidade de errar o alvo, lehatati em hebraico, hamartia, em grego, e peccatu, em latim. Dentro da tradição das escrituras hebraico-judaicas, lehatati é a violação da lei. Mas lehatati é sempre uma ação do coração e não um estado do ser. Já a alienação, esta sim, é um estado da existência e toda a humanidade se encontra nesse estado de disfunção, ou inclinação para fazer o mal, conforme vemos em Gênesis 8.21. Assim, lehatati traduz não somente falta moral, mas todas as violações da lei, quer conscientes ou não. E, segundo a tradição judaica, todo ser humano nasce sem lehatati, e a culpa de Adão recaiu sobre ele e sua família, mas não se estendeu à espécie humana. Apesar disso, todo ser humano é responsável pelo lehatati porque todos temos vontade livre, mas natureza alienada e, por isso, tendemos também para o mal. Por isso, o texto acima citado de Gênesis diz que o coração humano é mau desde a sua juventude. Mas o Eterno, através de sua misericórdia, possibilita ao ser humano a metanóia e o perdão. 


A libertação humana é um processo, por isso, a pessoa não é plenamente livre, porque depende dela permanecer ou não na opção escolhida. Se ela mantiver a escolha será plenamente livre, se abandonar a escolha retorna à alienação. Caso a pessoa livre se alienar, se não houver metanóia, se não voltar à comunhão, estará alienada.


Dessa maneira, na polaridade alienação versus comunhão dá-se a construção da história, ou seja, as pessoas e as comunidades humanas interagem, por opção ou por omissão, na construção de sua história. O Eterno é soberano porque criou e mantém o universo, sustentando-o na universalidade do Espírito, aqui entendido como o sentido pleno da vida. A soberania especial está sobre a comunidade que permanece na escolha. As outras comunidades estão fora desta soberania especial, da graça que gera comunhão plena, exatamente porque usaram a liberdade para escolher o lehatati. 


E quanto maior a alienação, mais o Eterno retrai sua soberania sobre tais pessoas e comunidades e, consequentemente, a graça que gera comunhão plena. O que explica o mal enquanto feituras pessoal e social. E para que o processo histórico se dê, o Eterno contrai espaço-temporalmente sua justiça executora. 


Por paixão ao ser humano, ele contrai a ação de seu conhecimento. Caso o Eterno, a partir de seu conhecimento, definisse todas as ações livres do ser humano, as pessoas e as sociedades poderiam fazer apenas aquilo que o Eterno, por conhecer, definisse, sem poderem tomar decisões alienadas, sem poderem se afastar dele. 


O Eterno dirige o seu fazer, mas interage com as pessoas e as comunidades humanas na produção da história, enquanto obra que nasce das correlações liberdade e comunhão e liberdade e alienação. A polaridade alienação versus comunhão não apresenta o ser humano como bom ou mal, mas como ser que age a partir dessa polaridade. Isso fica claro no diálogo que o Eterno teve com Caim, quando disse que ele estava inclinado para o mal, mas deveria dominá-lo. Essa conversa apresenta um padrão humano, a alienação. 


Podemos ler Gênesis 6.5, 8.21 e Deuteronômio 31.21 a partir da compressão do conceito de alienação. É interessante que nenhum desses textos fala do ser humano como essencialmente corrupto, mas alienado. A própria palavra hebraica yetzer vem da raiz yzr, utilizada quando as primeiras escrituras falam de inclinação maligna, significa moldar, propor-se. A idéia é que o ser humano é dirigido por suas imaginações, inclinações, sejam elas boas ou más. É yetzer que, combinado ao julgamento livre no âmbito da existência, possibilita a metanóia. Ou, conforme diz Deuteronômio, o Eterno coloca diante do ser humano a possibilidade do bem e a possibilidade do mal. Os seres humanos terão comunhão se obedecerem aos mandamentos do Eterno e errarão o alvo se desobedecerem aos mandamentos do Senhor (11.16-28). 


Assim, só o Eterno é capaz de fazer com que exista a liberdade humana e mantê-la.  Essa graça, oriunda do Eterno e derramada sobre a humanidade, possibilita a construção da história. Por isso, o apóstolo Paulo diz que o Eterno fica de humor transverso com a alienação que distancia, mas segura as pontas com calma, por saber que a alienação é fruto da sua valência e, diante da alienação que aproxima, também obra sua, Ele expressa alegria. (Romanos 9.22-23).


Essa leitura da liberdade entregue ao ser humano é importante, pois ao dizer que as pessoas e as comunidades humanas podem agir à margem daquilo que o Eterno desejaria para a humanidade, apresenta os genocídios, as guerras e todo tipo de violência como frutos da opção e ação humanas. Entendemos, então, porque os profetas clamavam e apontavam às sociedades o caminho do Reino, embora estas pudessem escolher os seus próprios caminhos. O campo de concretação de Auschwitz, sob o nazismo, e os genocídios contemporâneos são, então, passíveis de estudo. Mas a nossa leitura coloca, também, para as comunidades de fé, o clamor profético e o desafio de expandir o Reino.


Em relação à alienação, o ser humano herdou de Adão a inclinação para o mal e, como consequência, a possibilidade crescente de errar o alvo, mas não a culpa. Os seres humanos são alienados porque separaram razão e coração e erram o alvo porque estão alienados. E em relação ao processo de libertação, a morte do Cristo abre as portas da comunhão, mas não assegura a libertação plena, pois esta só será definitiva se a pessoa não desistir da corrida.


Paralelo ao pensamento hebraico, a cultura grega apresentou uma rica leitura do conceito de estar sob um destino, que relaciona alienação e o ato de errar o alvo. O conceito de destino nasceu da reflexão de que, de um lado, os deuses eram imortais, e de outro, os seres humanos estavam situados entre a finitude existencial e a infinitude potencial. Para os gregos, o destino era finitude existencial, e esse é o tema da tragédia grega e da busca da superação filosófica, principalmente de estóicos e epicuristas. Era uma tentativa de colocar o ser humano acima do destino que o distanciava de seu ser, transformando-se em poder destrutivo. 


Um exemplo dessa leitura, que nos interessa para a construção de uma compreensão da alienação, seria o arrazoado que o apóstolo Pedro fez em sua segunda epístola, ao dizer que a graça não tem limites, pois o Eterno não retarda a sua promessa, como alguns afirmam, por julgá-la demorada, mas por ser paciente. Ele não escolheria a danação eterna de pessoas, ao contrário, desejaria que todos chegassem à metanóia, ou seja, fizessem o caminho de volta à liberdade e vivessem a comunhão. 


Dessa maneira, a graça tem eficácia ilimitada, mas há uma chave para que a função graça seja plenamente exercida. E essa chave é: chegar à metanóia. Dessa maneira, o sacrifício de Cristo, que é graça plena e universal, deve ser somado à metanóia, o abandono do rumo mau, injusto e mentiroso, que destrói o sentido da vida, para assim produzir a libertação. Ou seja, a graça plena mais metanóia é igual à libertação. E o sacrifício do Cristo sem a metanóia, produz justiça. Ou seja, o valor da cruz não é limitado, mas sim sua aplicação. E a preparação da pessoa e das comunidades humanas para a graça tem o julgamento livre no âmbito da existência como movimento e o chamado do Eterno como móvel. 


Essa preparação pode ser pensada como movimento que parte, enquanto universalidade, da liberdade humana em direção à especificidade que tem o Eterno como móvel e implica em graça determinada pelo Eterno, embora não seja proveniente da coação, mas do seu pleno conhecimento, porquanto a intenção do Eterno não pode deixar de ter efeito. 


Por isso, podemos falar da universalidade da graça, presente na comunidade humana, e na especificidade da graça, que infalível segue a boa vontade humana. Mas esse movimento é dialético, pois, quando olhamos da perspectiva do humano, ele parte da universalidade, mas se olharmos da perspectiva eterna parte da especificidade. Ou seja, universalidade e especificidade são termos relativos, que se complementam na plenitude da graça. Por isso, liberdade, eleição e graça fazem parte de uma dança permanente, onde cada conceito implica na existência do outro e nenhum tem existência independente, mas criam unidade e diversidade correlacional plena e necessária. 


Todas as pessoas e comunidades humanas realizam suas existências dentro desse processo, fazem parte dele, o que significa dizer que existência, liberdade e graça fazem parte da história humana. O Eterno mobiliza o processo em direção à especificidade, com base no seu conhecimento da fé e da perseverança de cada pessoa e das comunidades humanas, mas conhece e aceita o sentido da universalidade humana. Esta seria a leitura do texto de Pedro, quando disse que no meio do povo surgiram falsos profetas que introduziram doutrinas destruidoras, a ponto de renegarem o Eterno que os resgatou.


Enquanto diálogo das concepções do apóstolo com o mundo helênico, em sua carta aos Romanos, alienação e destino nos fala do tempo favorável que triunfa sobre o espaço. O caráter do tempo propício à liberdade substituiu o tempo cíclico, transitório e perecível do pensamento helênico. A partir dessa compreensão, estar sob destino traduz aproximação, e apresenta novas possibilidades de construção da liberdade no tempo e na história. 


Antes, a filosofia grega confrontava-se com a inspiração dos poetas, mas, a partir de Paulo, a revelação apodera-se da filosofia. Assim, o destino que distanciava foi questionado pelo pensamento paulino: “aquele que não era meu povo será chamado de meu povo, e aquela que não era amada passou a ser amada”. (Romanos 9.25). O transitório e perecível perdeu importância e a idéia da construção da existência enquanto tempo favorável foi tomando forma. 


Mas voltemos um pouco atrás, para entendermos esse processo. Dentro da visão paulina, que traduz o pensamento cristão palestino, alienação e destino nos remetem a lei, da qual surge o conceito de liberdade. Alienação e destino correlacionam conceitos, porque a alienação está sujeita à liberdade; porque alienação significa que a liberdade também está sujeita à lei; e porque alienação significa que liberdade e lei são complementares e interdependentes.


Analisando o conceito cristão palestino de alienação e destino podemos dizer que a liberdade humana está ligada às leis universais, de tal forma que liberdade e leis se encontram entrelaçadas. Para o apóstolo Paulo, assim como para a tradição judaica, lei é imposição de limites. Por isso, a alienação é um estado que surge da correlação entre lei e vida, porque se o julgamento é inerente a tudo na existência, também o é a liberdade.


Assim, a certeza de que a correlação alienação e destino pode ser propícia e tem significado realizador e não destruidor, é a peça chave do pensamento de Paulo, que coloca o sentido da vida acima do destino. Ao fazer isso, Paulo está dizendo que a compreensão do destino não está ao alcance da razão humana, mas o sentido da vida traduz a imortalidade potencial do humano. 


Quando o ser humano faz a defesa do sentido incondicional da vida deixa de temer a ameaça da alienação/destino que distancia, e aceita o lugar que cabe à alienação enquanto estado da existência. Reconhecemos, então, que desde o princípio vivemos num estado de alienação e que sempre desejamos nos livrar dela, mas nunca conseguimos. Mas devemos relacionar sentido de vida e tempo. O sentido de vida deve envolver as leis universais, a plenitude do tempo e a própria existência. E quando o sentido de vida alcança a existência, penetra no tempo e faz da alienação, aproximação. 


É necessário, porém, entender que a consciência parte da alienação e que o reino da existência só é acessível ao conhecimento liberto da alienação que distancia. Dessa maneira, ao contrário do que pensavam os gregos, o ser humano possui potencialidade própria, enquanto ser, para realizar seu destino. Quanto maior a potencialidade humana – que cresce na medida da expansão do sentido da vida – maior será sua consciência de destino.


O destino humano, que nasce da alienação, aponta para o sentido da vida que emerge das crises e desafios. Quanto mais profundamente entendermos nosso destino, no sentido paulino, da palavra grega prokeimai, estar colocado, ser proposto, e o de nossas comunidades, tanto mais livres seremos. 


Vejamos uma estória. Turandot era uma princesa chinesa. Por causa da lembrança do estupro de outra princesa, decidiu jamais se casar. O violador era um príncipe dos tártaros, povo inimigo. Mas o imperador queria assegurar a permanência da dinastia. Obriga, então, Turandot a se casar. 


A princesa concorda, se o pretendente acertar três enigmas. Caso erre, morrerá. Surge então um príncipe, um tártaro, que se apresenta após a execução de um candidato que fracassou. E este príncipe acerta os três enigmas. Turandot apaixonada não assume o amor. O príncipe, também apaixonado, comove-se com a angústia de Turandot, e diz que deixará a princesa livre se ela descobrir qual é o nome dele antes do amanhecer.


Que ninguém durma é a ordem de Turandot aos seus súditos. Todos passarão a noite procurando descobrir o nome do príncipe. Calaf, o príncipe, canta, certo de que o esforço deles será em vão.


Nessun dorma! Nessun dorma! Tu pure, o, Principessa, nella tua fredda stanza, guardi le stelle che tremano d'amore e di speranza. (Giacomo Puccini, Nessun Dorma).


Ninguém durma! Ninguém durma! Tu também, ó princesa, na tua fria alcova olhas as estrelas que tremulam de amor e de esperança!

 

Ma il mio mistero e chiuso in me, il nome mio nessun saprá! No, no, sulla tua bocca lo diró  quando la luce splenderá!


Mas o meu mistério está fechado comigo! O meu nome ninguém saberá! Não, não, sobre a tua boca o direi, quando a luz resplandecer!


Bem, não esqueçamos que a alienação possibilita a travessia, que é sempre afetiva e seletiva. Na verdade, a travessia fala da vida, a partir de um processo muito peculiar: dá primeiro as dores maiores, os momentos onde vivemos situações-limite. Mas não pára aí. A travessia sempre faz uma leitura épica, onde, por pior que tenha sido o momento, nos coloca como heróis. É por isso que os velhos são bons contadores de história e são olhados pelos netos como cavaleiros andantes de tempos míticos. 


Por isso a travessia faz estória ao mostrar que o particular se projeta como universalidade, num um processo indutivo, que lhe dá grandeza. E a estória, inversamente, ao recorrer à travessia traz emoção e vida ao detalhe vivido. As nossas travessias não se entrelaçam apenas com a materialidade da vida, mas também com nossos pesadelos, com nossos sonhos, e transportam nossas memórias ao mundo da imaginação que, às vezes, é tão real quanto a estória contada.


Ed il mio bacio sciogliera il silenzio che ti fa mia! (Il nome suo nessun saprá... e noi dovrem, ahimé, morir!)


E o meu beijo destruirá o silêncio que te faz minha! (E o seu nome ninguém saberá... e nós deveremos, infelizmente, morrer!)


Dilegua, o notte! Tramontate, stelle! Tramontate, stelle! All'alba vinceró! vinceró, vinceró!


Parta, ó noite! Desapareçam, estrelas! Desapareçam, estrelas! Ao alvorecer eu vencerei! Vencerei, vencerei!


Assim, a liberdade humana se dá na existência, enquanto realidade condicionada pela materialidade. A liberdade entende-se como correlação entre lei e sentido de vida. Se por um lado a liberdade é a consciência da necessidade, por outro não podemos descartar a realização da liberdade. Liberdade é práxis. Ora, práxis é consciência da necessidade somada à ação transformadora. Ou seja, consciência da lei diante do estado de alienação que distancia deve levar à mudança radical, a ação transformadora da vida.


Lehatati, hamartia, peccatu é um fazer. Em relação ao imediato transforma-se em estado e no que se refere à espécie humana é um domínio. Lehatati, hamartia, peccatu acontece quando minha liberdade é desafiada, quando ela é chamada a surgir como feitura humana. Nesse sentido, lehatati, hamartia, peccatu não se apresenta sem agente moral, sem liberdade. Toda vez que realizo minha liberdade a lei está presente, pois lehatati, hamartia, peccatu é um contratipo da liberdade.


Por isso, só podemos responder à alienação que distancia reconhecendo que lehatati, hamartia, peccatu é feitura minha e de minha espécie, e que devo promover a ruptura desse fazer através da ação de expansão do sentido pleno da vida. Ao nível do pensamento, do sentimento, da vontade e da ação -- pois a alienação que distancia é o que não devia estar -- devemos exercer uma ética radical de defesa da vida e de seu sentido, de combate ao estado de alienação na vida de pessoas e comunidades.


Quando analisamos o caráter radical da liberdade vemos que a liberdade se dá como dor. E por que? Porque a liberdade parte da subjetividade e do distanciamento presente nessa subjetividade alienada, que deve ser atravessada para que o sentido da vida floresça. Aí, então, teremos o fim da não-essencialidade de pessoas alienadas e a inserção desas pessoas na totalidade objetiva. Mas isso não pode acontecer sem a transformação dessa realidade objetiva em realidade plena de vida, que sustenta o humano. Dessa maneira, o sentido da vida deve construir num nível superior o universo anteriormente negado.


Nesse sentido, cabe à comunidade de fé apresentar às pessoas a essência do humano. E essa apresentação da travessia realiza-se como interligação da liberdade como abolição da legalidade, ou seja, como correlação do momento subjetivo com o momento objetivo e como responsabilidade maior do ser humano. 


O ser humano é uma estrutura ontológica dual. Por isso, seguindo uma antiga tradição reformada, dizemos que a pessoa plena do sentido de vida é senhora de todas as coisas, não está submetida a ninguém e esse senhorio radical é produto da vida em plenitude. Sua liberdade transforma a subjetividade alienada em realidade objetiva. Nesse sentido, o caráter da liberdade do ser humano pleno do sentido de vida se dá como processo: morre o imediato, o alienado, e tem início a construção de uma segunda natureza. 


A liberdade surgem então, como deslocamento do humano alienado, como distanciamento crítico daquilo que foi naturalmente dado. O primeiro momento da liberdade parte de uma concepção trágica, porque o senhorio num primeiro momento implica em servidão, criando tensão e luta. Mas superada a tensão, temos a liberdade enquanto sentido pleno de vida, uma dimensão de combate. 


Nesta reflexão digo a você caro leitor: somos chamados a superar a alienação, ter a liberdade que vai além, a liberdade que é construída na expansão do sentido pleno da vida. E, assim como o apóstolo Paulo, estou convencido de que morte ou vida, anjos ou governos, coisas presentes ou futuras, poderes, altura ou profundidade, ou qualquer criatura não poderá me distanciar do amor do Eterno, que está no Novo Ser, o Senhor.



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