Brasil, teologia e política
O espectro do vermelho
Jorge Pinheiro
Introdução
Desde a primeira República com a chegada dos imigrantes europeus, em especial espanhóis e italianos, surgiram tentativas de construção de um partido operário que tivesse condições de ação político-eleitoral. Mas todas essas tentativas fracassaram. Até mesmo o Partido Comunista, fundado em 1922, por seu posicionamento ambíguo em relação à democracia e por traduzir, durante a longa presença de Josef Stálin na liderança da União Soviética, uma política ditada por interesses externos, mais precisamente do Cominter, não conseguiu ser este partido. Com o final do Estado Novo surgiu o Partido Trabalhista Brasileiro como organização populista, que combinava uma liderança burguesa e pelego-sindical com base eleitoral popular e de trabalhadores urbanos. Mas também não foi o partido operário sonhado pelos militantes socialistas da primeira República.
Outra experiência que vale a pena ressaltar foi a do Partido Socialista Brasileiro, fundado por intelectuais e políticos socialistas-democráticos em 1947. Tendo que enfrentar, à esquerda, o PCB, marxista-leninista, e à direita, o PTB, burguês, o PSB também não conseguiu construir o sonhado partido operário de massas, com inserção sindical e expressão político-eleitoral. Por esses motivos, quando no final dos anos 1970 surgiu o Partido dos Trabalhadores, que nucleou amplos setores sindicais e de trabalhadores fabris em todo o país, a esquerda brasileira, com raras exceções, começou a olhar tal fenômeno como algo novo na história brasileira. O sonho tornava-se realidade.
Passados anos da fundação do PT, algumas questões são levantadas, todas girando ao redor da pergunta: que partido é esse? É marxista-leninista? É social-democrata? E se é socialista, que socialismo é esse?
Ao se olhar com atenção para o fenômeno ficou claro que o PT rompia os padrões de um partido operário. Afinal, desde seu início teve uma forte presença cristã, que atuou nele através de organismos populares criados pela própria Igreja, como as Comunidades Eclesiais de Base. Mas não ficou aí a ruptura com o esquema clássico. Praticamente todas as correntes ideológicas do socialismo se fizeram presentes na formação do PT, indo do stalinismo, expresso nas correntes ligadas ao Partido Comunista do Brasil, PC do B, passando por seus opositores históricos, os trotskistas, até chegar aos social-democratas e socialistas lights, como foram chamados aqueles aparentemente não muito comprometidos com a idéia de revolução.
É interessante notar que no correr dos primeiros anos do PT essas correntes do marxismo-leninismo foram sendo depuradas, deglutidas ou expurgadas. Prevaleceu um núcleo sindical, sem definição ideológica, e uma ampla base sentimentalmente socialista que, no entanto, nunca definiu claramente que socialismo era esse. Agora pretendemos voltar à discussão sobre os socialismos petistas, sem deixar de fora a questão religiosa, pois vemos na construção do PT a presença, quer direta, quer invisível, do cristianismo. Nesse sentido, não negamos a existência de um pensamento socialista no PT, mas entendemos esse socialismo enquanto fenômeno que traduzia realidades plasmadas na sociedade brasileira e que afloraram enquanto mitos de origem da política.
Este livro cobre os primeiros anos da história do PT, e não pretende analisar os governos de Luís Inácio Lula da Silva ou mesmo o meio governo de Dilma Roussef. Mas passados quase meio século de sua fundação a pergunta inicial, que partido é esse, se amplia e somos obrigados a perguntar: é um partido trabalhista? Mas que tipo de trabalhismo? É hoje um partido burguês? Acreditamos que a abordagem realizada fornecerá elementos que permitirão entender o processo vivido pelo PT e para onde ele caminha. Nossa análise toma como ponto-de-partida os documentos e as resoluções de encontros e congressos acontecidos entre os anos de 1979 e 1999, assim como matérias jornalísticas, artigos, editoriais e entrevistas, publicadas pela imprensa do PT e pela imprensa não partidária, mas recorremos também a documentos da esquerda anteriores a esse período e também a documentos posteriores. Isto porque, fazemos sim uma análise histórica, mas não esquecemos a leitura sistemática do socialismo no PT. Embora o pensamento socialista no Partido dos Trabalhadores não possa ser compreendido apenas a partir da releitura das resoluções oficiais de encontros e congressos, por maior que seja sua importância, entende-se que será de relevância fazer a releitura desses documentos como ponto-de-partida para a compreensão do papel do cristianismo na construção do Partido dos Trabalhadores.
Dessa maneira, as apreciações e comentários sobre o Partido dos Trabalhadores, sua história e formação baseiam-se em documentação bibliográfica. É, ainda, nossa intenção apresentar memórias e testemunhos que corroborem a documentação bibliográfica, já que fizemos parte da direção de um grupo político, a Convergência Socialista, que teve participação na formação do Partido dos Trabalhadores. Muito do que expomos aqui foi pesquisado e desenvolvido em minha tese de doutorado Teologia e Política, Paul Tillich, Enrique Dussel e a Experiência brasileira, publicada em 2006.
O tema central de interesse é o socialismo em seus diversos matizes em sua correlação com o cristianismo e como ambas correntes de pensamento se aninharam no partido em formação, indo desde o socialismo de intelectuais que atuavam junto ao Movimento Democrático Brasileiro, como Fábio Munhoz, Francisco de Oliveira, Francisco Weffort, José Álvaro Moisés, Paul Singer, Roque Aparecido da Silva e Vinícius Caldeira Brant, aos agrupamentos da nova esquerda como Ação Popular, Convergência Socialista, Liberdade e Luta, Movimento pela Emancipação do Proletariado, Política Operária até as correntes representadas por lideranças religiosas de expressão nacional, como aquelas dos bispos católicos, Adriano Hipólito, Benedito Uchoa, Cândido Padim, Pedro Casaldáliga, dom Pelé, Tomás Balduíno, e outros que, diretamente ou indiretamente, influenciaram na construção do novo partido. Logicamente, tal questão nos leva a uma outra: como, a partir da luta entre as diversas correntes -- Democracia Radical, Articulação, Democracia Socialista, A Hora da Verdade, Vertente Socialista, Força Socialista, Brasil Socialista, O Trabalho, Movimento Tendência Marxista, e independentes -- deu-se um caldeamento que possibilitou a consolidação da opção socialista democrática. Ou, como afirmou Lince: o PT “teve que aprender, na prática e aceleradamente, o exercício da transposição de suas grandes bandeiras gerais em projetos políticos concretos, capazes de afirmar a sua vocação de instrumento de luta por uma nova hegemonia na sociedade brasileira” (LINCE, 1993, p.98).
Quando pensamos nos componentes religiosos presentes no socialismo do Partido dos Trabalhadores, três questões exigem uma reflexão mais profunda. A primeira delas é: podemos dizer que existe, de fato, uma relação histórica e convergente entre cristianismo e socialismo? E, se existe, como essa relação se deu na formação e desenvolvimento do pensamento socialista no Partido dos Trabalhadores? E a terceira questão que nos desafia é saber se este pensamento socialista, onde estão presentes componentes religiosos, e mais precisamente cristãos, leva a um tipo de socialismo diferente daquele proposto pelos partidos comunistas no século XX. Essas três questões definem o nosso trabalho neste livro.
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