(Conheci, fui amigo e trabalhei com Jacob Gorender. Neste artigo ele nos conta um pouco do golpe de 1964. Vale a pena conhecer este momento da história do Brasil. JP).
A sociedade cindida
Jacob Gorender*
Este texto foi publicado na Revista Teoria e Debate nº 57 (mar/abr 2004)
Transcorre, neste ano, o quadragésimo aniversário do golpe militar de 1º de
abril de 1964. Uma data que não é para celebrar, tampouco para esquecer.
Sobretudo, com a distância do tempo, convém explorar seu significado
histórico e avaliar suas seqüelas. Em primeiro lugar, o generalizado emprego
da classificação do evento como golpe militar. Emprego no qual eu mesmo
tenho incidido. Faz-se necessário frisar que não se tratou de mera manobra
de cúpula, na qual apenas se teriam envolvido círculos políticos e militares
dirigentes, resultando na mera substituição de uma camarilha por outra.
A campanha pela deposição do presidente da República suscitou um grande
movimento de massas e foi, decisivamente, o resultado desse movimento.
Conforme veremos adiante, a participação maciça da classe média teve um
papel de grande peso. Podemos continuar a empregar a classificação de golpe
militar, levando em consideração tais ressalvas.
Circunstâncias da chegada ao poder
João Goulart (ou Jango, como será doravante chamado) chegou à Presidência da
República com a renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961, uma vez que
era o vice-presidente, como já o fora de Juscelino Kubitschek.
Jânio pretendeu conseguir do Congresso poderes excepcionais. Uma vez que não
lhe foram concedidos, acreditou que a renúncia suscitaria pressão popular
suficientemente forte para dobrar o Congresso. Errou no cálculo. Diante da
ausência da esperada pressão popular, ao invés de regressar a Brasília,
tomou o navio em Santos para um passeio na Europa.
Conterrâneo e discípulo de Getúlio Vargas, Jango não poderia deixar de ser
identificado como seu continuador. Ao ser eleito em 1950, retornando ao
Catete após a deposição em 1945, Getúlio veio com o propósito de aplicar um
programa nacionalista, criando, entre outras medidas, empresas estatais de
importância estratégica para o desenvolvimento econômico do país. Contava
com a ajuda dos Estados Unidos, de cujo governo obtivera créditos e
colaboração técnica em 1943 para erguer a usina siderúrgica de Volta
Redonda, em troca da permissão de instalação de bases militares
norte-americanas no Nordeste. Mas, em seu segundo mandato governamental,
perdeu a confiança dos Estados Unidos, que retiraram seus representantes da
comissão conjunta com o Brasil para financiamento de empreendimentos de
desenvolvimento econômico. Getúlio, não obstante, prosseguiu na execução do
programa previsto, contando apenas com recursos internos. Desta iniciativa
surgiram a Petrobras e a Eletrobrás.
O presidente Vargas viu-se acossado por uma campanha na mídia e no
Parlamento, capitaneada por Carlos Lacerda, governador do estado da
Guanabara (então, abrangente somente da cidade do Rio de Janeiro).
Nos princípios de agosto de 1954, pistoleiros da guarda presidencial tomaram
a iniciativa (ao que tudo indica, por conta própria), de eliminar Lacerda.
Quando este regressava a sua residência na Rua Tonelero, na Zona Sul do Rio
de Janeiro, alvejaram-no, porém só conseguiram feri-lo numa perna. Mas o
guarda-costas de Lacerda, o major Vaz, oficial da Aeronáutica, tombou morto
no atentado. O episódio desencadeou gravíssima crise política, que envolveu
as Forças Armadas. Getúlio havia declarado, em discurso na campanha
eleitoral, que não renunciaria uma segunda vez. A 24 de agosto suicidou-se
com um tiro no coração, em pleno Palácio do Catete.
Diante de tais precedentes, a posse de Jango, apesar de legal e legítima,
não poderia ser tranqüila. No momento da renúncia de Jânio, o
vice-presidente encontrava-se em visita à China. Os adversários - que
reuniam os representantes das forças mais reacionárias e pró-imperialistas -
pretenderam impedir que regressasse ao Brasil. Jango conseguiu retornar, em
meio ao clamor crescente contra sua posse no Palácio do Planalto. Uma vez
mais, vinha à frente das propostas anticonstitucionais Carlos Lacerda,
utilizando um virulento arsenal de insultos e calúnias.
Enquanto em Brasília a posse de Jango era contestada, Leonel Brizola, então
governador do Rio Grande do Sul, unia a população do estado e obtinha o
apoio do III Exército, ali sediado e comandado pelo general Jair Dantas
Ribeiro, para a luta em favor da posse. O recrudescimento da oposição entre
Brasília e Porto Alegre ameaçava jogar o país na guerra civil.
A fim de evitá-la, optou-se pela solução conciliatória do parlamentarismo,
por meio de emenda constitucional. Jango governaria com um
primeiro-ministro, submetido ao voto de confiança do Congresso. Estaria sob
controle suficiente - julgavam os adversários - para impedir iniciativas
nacionalistas e, sobretudo, obstar sua intenção, mais ou menos evidente, de
conseguir um segundo mandato presidencial.
A experiência parlamentarista
A república brasileira não tinha nenhuma tradição parlamentarista. A memória
histórica do parlamentarismo do Império, tutelado por D. Pedro II, não
inspirava simpatias.
Sob a presidência de Jango, a partir de 1961, sucederam-se três
primeiros-ministros no regime parlamentarista: Tancredo Neves, Brochado da
Rocha e Hermes Lima. Nenhum deles conseguiu enfrentar a situação econômica,
deteriorada pela inflação herdada do qüinqüênio de Juscelino, nem se haver
com os problemas políticos suscitados por sucessivas greves, reivindicações
dos mais variados setores e difíceis de atender e, principalmente, o assédio
incessante das forças conservadoras, aglutinadas em torno da UDN. Com a
deterioração política, que criava uma instabilidade julgada inconveniente e
ameaçadora pela própria classe dominante, a idéia do retorno ao regime
presidencialista ganhou crescente apoio político-popular.
A 14 de setembro de 1962, uma greve nacional, articulada com o apoio do
comandante do III Exército, general Jair Dantas Ribeiro, obrigou o Congresso
a aprovar a emenda Valadares, que determinou a antecipação para janeiro de
1963 da realização do plebiscito sobre o parlamentarismo, marcado para 1965.
Na ab-rogação do parlamentarismo estava interessado não somente Jango.
Pretendentes à Presidência, também Carlos Lacerda, Magalhães Pinto, Adhemar
de Barros e Juscelino Kubitschek apoiaram o movimento de retorno ao
presidencialismo, que já estaria vigente nas eleições de 1965. Em
conseqüência, o parlamentarismo foi rejeitado por mais de 10 milhões de
votos, na proporção de cinco votos contra um.
Jango pôde, então, passar a governar com as prerrogativas amplas do
presidencialismo brasileiro.
Novos atores, novo quadro político
Com vistas ao combate à inflação, Jango encarregou Celso Furtado, ministro
do Planejamento, de elaborar um plano antiinflacionário. Veio, assim, à luz,
uma semana antes do plebiscito de 6 de janeiro, o Plano Trienal preparado
pelo prestigioso economista. Consistia numa versão da clássica estabilização
financeira, temperada por uma dose de desenvolvimentismo. Entre as propostas
principais, figuravam a chamada "verdade cambial", ou seja, a desvalorização
do cruzeiro (moeda nacional na época), visando ao incremento das
exportações, o corte dos subsídios ao consumo do trigo e de derivados de
petróleo, a elevação das tarifas dos serviços públicos, a contenção do
crédito e das emissões de papel-moeda e a disciplina de salários e preços.
Prometia, simultaneamente, a recuperação de taxas elevadas de crescimento.
Assim que pôde ser analisado, o Plano Trienal foi criticado e rejeitado
pelas organizações operárias e esquerdistas em geral, particularmente o PCB.
Verificou-se, com pouco tempo, que era inoperante e inócuo.
Jango se viu no centro de uma cena política em que novos atores ganhavam
relevância. Precisava enfrentar um movimento popular diversificado e
fortemente reivindicativo.
No Nordeste, sob a liderança de Francisco Julião, surgiram as Ligas
Camponesas, que acentuaram as lutas na área rural. Tomou grande impulso a
sindicalização de trabalhadores rurais. Insignificantes até 1962, já eram
270 sindicatos rurais em dezembro de 1963 formalmente reconhecidos pelo
Ministério do Trabalho e 557 em fase de reconhecimento. Daí resultou a
estruturação da Confederação dos Trabalhadores da Agricultura (Contag). O
fortalecimento dos trabalhadores rurais recebeu, no Nordeste, contribuição
de grande importância da política aplicada por Miguel Arraes, governador de
Pernambuco, que impôs o pagamento rigoroso do salário mínimo na Zona da Mata
e incentivou iniciativas de educação e cultura popular, com a mobilização de
milhares de ativistas, particularmente estudantes. Com essas iniciativas,
Arraes se tornou um político de influência nacional.
A 19 de novembro de 1963, 200 mil cortadores de cana de Pernambuco e da
Paraíba realizaram uma greve vitoriosa, após três dias de duração. Era uma
ação totalmente inédita numa região onde costumava imperar a violência
impiedosa da classe dominante.
Acentuou-se o "grande medo" dos usineiros, latifundiários e empresários em
geral. Defrontavam-se com ações não rotinizadas, com as quais não sabiam
como lidar. Os usineiros e latifundiários plantadores de cana reagiram
comprando grandes quantidades de armas e apelando a reações violentas contra
as reivindicações dos assalariados.
O golpismo de direita, em franca evolução, atuava através de organizações
como o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), do Instituto de
Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes), dirigido pelo general Golbery do Couto e
Silva, da UDN e das pregações falsárias e antidemocráticas do deputado Bilac
Pinto.
Papel importantíssimo, na articulação e suporte das forças reacionárias e
pró-imperialistas, teve o embaixador Lincoln Gordon, representante dos
Estados Unidos no Brasil, de 1961 a 1966. Gordon não era diplomata
profissional, mas professor de economia da Universidade Harvard, tendo sido
escolhido para o cargo diplomático pelo próprio presidente Kennedy. Em 1963,
diante de informações alarmantes, Kennedy enviou, como reforço à Embaixada
americana no Brasil, o coronel Vernon Walters, especializado no serviço de
inteligência. Poliglota, Walters falava fluentemente o português. Durante a
Segunda Guerra Mundial, atuara na Itália como oficial de ligação entre a FEB
e o V Corpo do Exército dos Estados Unidos, ao qual os expedicionários
brasileiros estavam incorporados. Tal função lhe permitira estabelecer
relacionamento com vários oficiais brasileiros que iriam ter papel de relevo
no golpe de 64, a exemplo de Castelo Branco, Cordeiro de Farias e Syzeno
Sarmento. (Ver Elio Gaspari A Ditadura Envergonhada. São Paulo, Companhia
das Letras, 2002, p. 59-61).
Em sentido oposto, intensificou-se a atuação das forças operárias e
democráticas.
A inflação incontida suscitava greves sucessivas, sem que os trabalhadores
conseguissem resultados positivos duradouros. Impunha-se uma coordenação
mais eficiente. Sindicatos e federações se entenderam e criaram o Comando
Geral dos Trabalhadores (CGT), com abrangência nacional.
A novidade mais significativa veio, porém, dos subalternos das Forças
Armadas, marinheiros e sargentos. Até então, a tradição das ações rebeldes e
antilegalistas da oficialidade incluía sempre a colaboração submissa dos
subalternos. A única ação independente de subalternos, na história nacional,
remontava a 1910, quando ocorreu a célebre Revolta da Chibata, comandada
pelo marinheiro João Cândido. Em 1962, pela primeira vez na segunda metade
do século 20 e numa fase muito mais adiantada das lutas sociais, os
subalternos passam a tomar iniciativas por conta própria.
A 25 de março de 1962, surge, no Rio de Janeiro, a Associação dos
Marinheiros e Fuzileiros Navais, que chega a reunir milhares de adeptos.
Além de reivindicações profissionais, colocam em destaque a conquista de
direitos políticos, inclusive a elegibilidade para o Congresso. Enfrentando
a hostilidade do Ministério da Marinha, os marinheiros e fuzileiros navais
editam um periódico, a Tribuna do Mar, e mantêm uma escola de preparatórios
de exames de madureza, tendo como professores universitários da UNE. Sob a
direção da UNE, incrementa-se notavelmente a mobilização estudantil pelas
reformas de base.
Os sargentos das três forças militares passam também a agir com
independência. Manifestaram sobretudo a aspiração aos direitos cidadãos de
elegibilidade nas disputas eleitorais. Provocou revolta a sentença do
Supremo Tribunal Federal pela cassação do mandato do sargento Aimoré
Cavaleiro, eleito deputado estadual no Rio Grande do Sul. A sentença da
suprema corte ameaçava o mandato do sargento Antonio Garcia Filho, eleito
deputado federal. Em resposta, a 12 de setembro de 1963, algumas centenas de
sargentos da Aeronáutica e da Marinha, liderados pelo sargento Antonio
Prestes de Paula, se sublevaram em Brasília. Prenderam altas autoridades e
ocuparam a sede dos Ministérios da Marinha e da Aeronáutica, a Base Aérea, o
aeroporto e a central telefônica. O movimento era intempestivo e preparado
com precipitação. Dificilmente deixaria de fracassar. Os sublevados acabaram
presos, porque, ao invés de contar com o apoio de colegas do Exército,
tiveram de ceder diante das tropas que o ministro da Guerra sediou em
Brasília, as quais sufocaram a rebelião. A atitude preventiva do ministro
Jair Dantas Ribeiro, ciente do motim em preparação, resultou na prisão de
seiscentos sargentos, inutilizando importante contingente para as lutas
futuras, mais duras e decisivas e em acelerada aproximação.
Pré-revolução e contra-revolução preventiva
Recuperadas as prerrogativas próprias do regime presidencialista, Jango
passou a enfrentar as reivindicações de um vigoroso movimento popular em
favor das reformas de base.
No segundo pós-guerra, durante os governos Dutra (continuador do regime
repressivo do Estado Novo), Getúlio, Juscelino e Jânio, as forças
democráticas, da classe operária aos estudantes, profissionais liberais,
intelectuais em geral e parte dos empresários, ganharam um poder de
mobilização desconhecido na história nacional. Cresceu o vigor dos setores
que reivindicavam mudanças em profundidade na sociedade brasileira. Tais
mudanças receberam a denominação de reformas de base, dentre as quais tinham
prioridade a reforma agrária e a legislação nacionalista sobre o capital
estrangeiro.
A reforma agrária era praticamente impossibilitada pelo dispositivo
constitucional, que obrigava ao pagamento prévio e em dinheiro das
desapropriações de terras. Os projetos em favor da derrogação desse
dispositivo eram sistematicamente barrados pela maioria do Congresso.
Com relação ao capital estrangeiro, foi possível importante vitória ainda em
1962. Baseada em projeto do deputado Sérgio Magalhães, presidente da Frente
Parlamentar Nacionalista (FPN), foi aprovada no Congresso, a 3 de setembro,
a Lei 4.131 sobre as remessas de lucro do capital estrangeiro. Essas
remessas passavam a ter o teto de 10% sobre o capital efetivamente
ingressado no país, com exclusão, portanto, para cálculo do percentual, do
capital adicionado e originário dos lucros obtidos no Brasil. A aprovação da
lei foi possibilitada pela divisão das bancadas do PSD e da UDN. Provocou,
não obstante, reação contundente da grande imprensa e aberta condenação do
embaixador Gordon. Esquivando-se de sua responsabilidade como presidente,
Jango deixou escoar o prazo constitucional sem sancionar a lei. Coube ao
presidente do Senado fazê-lo. Mas a lei ficou engavetada, enquanto o
Executivo não procedia a sua regulamentação.
Diante do movimento em ascensão pelas reformas de base, Jango prolongava uma
atitude de indefinição, que não podia passar despercebida aos partidários
das mudanças progressistas. Não se tratava de reivindicações
revolucionárias. Poderiam, no entanto, preparar o caminho à transformação da
sociedade brasileira numa democracia avançada, com hegemonia dos
trabalhadores e de seus aliados do segmento de assalariados intelectuais.
Neste sentido, considero que o movimento pelas reformas de base criava uma
situação de pré-revolução.
Na conjuntura de 1963, algumas das lideranças mais destacadas radicalizaram
o comportamento, adotando linhas de atuação destituídas de suporte em forças
efetivas. Julião, que fez as Ligas Camponesas avançar enquanto as manteve no
terreno das reivindicações legais, retornou de uma visita a Cuba com a
cabeça feita pelo foquismo e pela idéia de uma reforma agrária coletivista.
Tal proposta e sua palavra de ordem "reforma agrária na lei ou na marra"
assustou não só os latifundiários, mas também os pequenos proprietários
rurais, jogando-os no campo dos adversários da reforma agrária. As Ligas
Camponesas enfraqueceram e se tornaram impotentes para agir em situações
decisivas. Antes avesso à atuação parlamentar, Julião se candidatou a
deputado federal e só com muita dificuldade conseguiu se eleger.
Da sua parte, Brizola não foi capaz de impedir que o governo do Rio Grande
do Sul caísse nas mãos de Ildo Meneghetti, que viria a apoiar o golpe em
1964. Em contrapartida, Brizola logrou eleger-se deputado federal pela
Guanabara, com votação elevada. Lançou o movimento pela formação dos Grupos
dos Onze, com estruturação e objetivos vagamente formulados, mas sugerindo
preparação para ações armadas.
Da sua parte, Jango prosseguia no jogo de atitudes contraditórias.
No dia 4 de abril, a Agência Nacional difundiu a convocação de um comício
para o Largo do Machado, no Rio de Janeiro. A convocação tinha caráter
claramente provocativo, prevendo o deslocamento da massa popular ao Palácio
Guanabara, sede do governo de Lacerda. O deslocamento justificaria a
intervenção de tropas federais e de ações contra o CGT e outras organizações
populares. O alerta oportuno do general Osvino Ferreira Alves, comandante do
I Exército, desfez a armadilha e frustrou a realização do comício.
Contudo, estranhamente, em sincronização com a convocação do comício, Jango
discursava em Marília, interior do estado de São Paulo, apresentando-se como
o mais credenciado dos anticomunistas. Reforçou a jogada direitista com
elogios ao governador Adhemar de Barros e ao falido Plano Trienal. Fazia-se
evidente que buscava uma recomposição com as forças conservadoras
direitistas.
Todavia, à noite da mesma data, o presidente discursou na Faculdade de
Direito do Largo de São Francisco, na capital paulista. Prudentemente deixou
de lado o anticomunismo e fez vagas alusões às reformas de base.
No dia 23 de agosto, à tardinha, realizou-se na Cinelândia, centro do Rio de
Janeiro, um comício em homenagem à memória de Getúlio Vargas. Jango
discursou perante 60 mil pessoas. Faixas estendidas diziam: "Jango, não
vacile", "Jango, chega de conciliação com os inimigos do povo. Reforma já!"
Diante das frases vazias do presidente, a massa o interrompeu com o grito
cadenciado: "De-fi-ni-ção!"
No dia 4 de outubro, Jango enviou ao Congresso um requerimento de decretação
do estado de sítio. As organizações agrupadas na Frente de Mobilização
Popular (FMP) manifestaram oposição. O mesmo fez o governador Miguel Arraes,
que não ignorava a intenção presidencial de alijá-lo junto com a deposição
de Lacerda. Ao constatar a falta de apoio parlamentar, o governo federal
retirou o requerimento no dia 7.
O crédito de Jango junto às forças conservadoras estava esgotado, uma vez
que não conseguira coibir o crescimento do movimento reformista nem deter a
inflação. O presidente decidiu-se, finalmente, por uma posição clara em
favor das reformas de base, sempre com a expectativa de que abrisse o
caminho para um segundo mandato, o que necessitaria de emenda
constitucional. Tomando o novo rumo, ordenou a regulamentação da lei sobre
remessa de lucros do capital estrangeiro e prestigiou a Superintendência de
Política Agrária (Supra), comparecendo a um ato de entrega de títulos de
propriedade da terra a lavradores do estado do Rio. Ao mesmo tempo,
encarregou San Tiago Dantas de articular uma Frente Ampla, que viabilizasse
a aprovação parlamentar das reformas de base.
A ambição continuísta do chefe da Nação era particularmente incentivada
pelos comunistas. Embora desprovidos de registro legal partidário no
Tribunal Eleitoral, os comunistas constituíam, então, uma corrente de
esquerda influente. Em repetidas manifestações, Luiz Carlos Prestes defendeu
o segundo mandato para Jango e propôs publicamente a iniciativa de emenda
constitucional que o permitisse. Semelhante proposta esquentava ainda mais a
temperatura já bastante acalorada do clima político.
No entanto, repetiam-se os incidentes conflituosos. Programadas para
discursar em faculdades e outros recintos, personalidades como Lacerda,
Brizola, Clemente Mariani e João Pinheiro Neto foram barradas pelos
adversários. Só com muita dificuldade e com a proteção da Polícia Militar,
conseguiu Arraes discursar em Juiz de Fora.
Na tarde de 13 de março de 1964, o comício na praça da Central do Brasil
reuniu meio milhão de pessoas. Após pronunciamentos de líderes políticos,
sindicais e estudantis, Jango valeu-se de dois trunfos no discurso de
encerramento do comício: o decreto de encampação das refinarias particulares
de derivados de petróleo e o decreto da Supra, que declarava sujeitas a
desapropriação as propriedades rurais superiores a 500 hectares marginais de
vias federais numa faixa de 10 quilômetros e as propriedades superiores a 30
hectares marginais de açudes e obras de irrigação com financiamento
governamental. A legislação que permitiria tais atos já se encontrava em
preparação para envio ao Congresso.
Enquanto o comício do dia 13 se realizava, os apartamentos na Zona Sul do
Rio de Janeiro mantinham as luzes acesas e exibiam lençóis brancos nas
janelas. Uma demonstração explícita de oposição da classe média carioca ao
comício da Central do Brasil.
No dia 19 de março, meio milhão de pessoas se reuniu, em São Paulo, na
primeira Marcha da Família com Deus pela Liberdade, desfilando da Praça da
República à Praça da Sé. Organizada por entidades da direita política e com
o apoio do clero católico, era uma clara manifestação antigovernamental da
classe média. A sociedade estava nitidamente cindida. Irritada pelas
numerosas greves, pela carestia, pelo desabastecimento de gêneros
alimentícios e pela inoperância oficial, a classe média se passou
maciçamente para o campo dos opositores do governo Jango.
Simultaneamente, o apoio do presidente aos marinheiros reunidos em
assembléia no Sindicato dos Metalúrgicos, no Rio de Janeiro, e sua aliança
com os sargentos nacionalistas jogaram a oficialidade em massa também na
oposição. A oficialidade sentia gravemente abalados os princípios da
hierarquia e da disciplina, fundamentais nas corporações militares.
Na noite de 30 de março, Jango discursou numa solenidade promovida pela
Associação dos Sargentos e Suboficiais da Polícia Militar, no salão do
Automóvel Clube, no centro do Rio de Janeiro. Foi o que bastou para detonar
o golpe, já em franco andamento nos bastidores conspirativos.
No dia 31 de março, as tropas do Exército aquarteladas em Minas Gerais, sob
o comando do general Olympio Mourão Filho, com o apoio do governador
Magalhães Pinto, se insurgiram e marcharam em direção ao Rio de Janeiro. Um
após outro, os comandos militares, supostamente fiéis a Jango, mudaram de
posição e, sob a coordenação do general Odilo Denys, adotaram o rumo do
golpe. O dispositivo militar, garantido pelo general Assis Brasil, chefe do
Gabinete Militar, revelou extrema fragilidade.
Jango podia contar, no primeiro momento, com uma esquadrilha de oficiais
nacionalistas da Aeronáutica, que se dispunha a despejar bombas sobre a
coluna do general Mourão. Os fuzileiros navais, sob o comando do almirante
nacionalista Cândido Aragão, tinham a possibilidade, também no primeiro
momento, de assaltar o Palácio Guanabara e prender Lacerda, o que alcançaria
grande repercussão nacional em favor do governo.
Jango preferiu capitular. Desautorizou as ações dos oficiais da Aeronáutica
e dos fuzileiros navais. No dia 1º de abril, retirou-se do Palácio das
Laranjeiras, no Rio de Janeiro, e voou para Brasília. Dali, partiu depressa
para o Rio Grande do Sul, donde, finalmente, sairia do país.
Em Brasília, o senador Auro de Moura Andrade, presidente do Congresso,
declarou a Presidência da República vacante. No dia 9, o primeiro Ato
Institucional deu início às cassações de mandatos e direitos políticos. O
general Castelo Branco assumiu a chefia do governo, inaugurando a sucessão
de generais-presidentes, que se prolongaria por 21 anos.
No dia 3 de abril, 1 milhão de pessoas desfilou, no Rio de Janeiro, na
segunda Marcha da Família com Deus pela Liberdade. A sociedade estava
claramente cindida. De um lado, a favor do rumo progressista e democrático,
os trabalhadores. No lado contrário, a classe média em peso. O que chamamos
de golpe militar teve inequívoco e poderoso apoio social. Funcionou como
contra-revolução preventiva.
Trabalhadores e classe média iriam fazer a amarga experiência de dois
decênios ditatoriais. Ao contrário de muitos países latino-americanos, era a
primeira vez, em sua história, que o povo brasileiro se via sob o jugo de
uma ditadura militar. Dessa experiência, que custou tantos sacrifícios aos
melhores patriotas, surgiu finalmente a democracia difícil, que hoje molda a
vida política nacional.
*Jacob Gorender era historiador, autor de Combate nas Trevas (Ática) e outros.