jeudi 23 octobre 2008

Batista vai governar Salvador, cidade com 1.238 terreiros

As minorias e as religiosidades estiveram presentes nas eleições baianas. No que tange às minorias, Salvador elegeu Leo Kret do Brasil (PR), de 24 anos, o primeiro vereador travesti de uma capital brasileira. Leo Kret foi o quarto verador mais votado nessas eleições baianas.

No que se refere às religiosidades, Salvador teve no segundo turno dois batistas disputando a Prefeitura. Interessante é que um batista governará essa capital que tem 1.238 terreiros. E como lá os terreiros têm poder político, os dois batistas disputaram os votos das religiosidades afro-brasileiras num corpo a corpo com pais e mães de santo e seus fiéis.

O candidato petista, Walter Pinheiro, é batista. Mas, o atual prefeito, João Henrique Carneiro (PMDB) também é. Pinheiro escolheu uma vice católica, Lídice da Mata (PSB) que transitou com desenvoltura pelos terreiros. João Henrique optou por Edvaldo Brito, o primeiro prefeito negro da cidade, filho de Ogum e freqüentador do terreiro do Gantois, um dos mais tradicionais da Bahia. Ambos tiveram que enfrentar os constrangimentos provocados pela rivalidade existente entre os evangélicos e o candomblé.

Em busca de votos, Walter Pinheiro enfrentou as críticas de seus irmãos batistas, mas foi a um terreiro, no primeiro turno, fazer campanha. Constrangido durante a visita ao Maroió Lage, mais conhecido como Terreiro do Alaketo, tentou escapar das fotos dos jornais. E consciente ou não, foi ao terreiro com uma camisa pólo azul e preta, combinação de cores evitada pelos fiéis do candomblé por bloquear as energias dos orixás.

João Henrique evitou ir aos terreiros, mas passou por percalços ainda maiores que o seu irmão batista e adversário petista. Depois de uma batalha jurídica em torno do fim da isenção do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) para os terreiros, o prefeito mandou derrubar o terreiro Oyá Unipó Neto, por falta de pagamento do imposto.

Às vésperas da campanha, pediu desculpas à ialorixá Mãe Rosa, que comandava o terreiro posto ao chão, e mandou reconstruir tudo e ressarcir os objetos de culto destruídos no processo.

O certo é que essas eleições em Salvador nos ensinam algumas lições. No campo das expressões culturais e sociais, podemos dizer que as minorias chegaram para ficar e ocupar espaço político. E no campo das religiosidades vemos que elas não se expressam com uniformidade – é o caso dos evangélicos em Salvador – e fazem alianças com outras expressões religiosas antes consideradas, no mínimo, adversárias, entre as quais estão os católicos e fiéis do candomblé.

mercredi 15 octobre 2008

Perguntas e respostas sobre a crise financeira e a sua vida

UOL Economia
Da Redação em São Paulo.

Veja dicas de economistas sobre financiamentos, aplicações, dívidas, inflação, salário, emprego e outras dúvidas do mundo real:

Agora é um bom momento para comprar imóvel?
Não. A compra deve ser feita quando acabar a crise e os bancos voltarem a reduzir os juros dos financiamentos. Se a compra já estiver em andamento, a taxa de juros aceitável não deve ultrapassar 1% ao mês.

Como deve proceder quem pretende comprar um carro ou um bem mais caro?
Deve preferir pagar à vista e obter o maior desconto possível. Os juros desta modalidade são altos e tendem a subir mais rápido que na compra de imóveis. Se for financiar, a taxa não deve ser maior que 3% mensais.

Quais gastos e investimentos devem ser antecipados e/ou adiados?
Quem já está na Bolsa deve continuar para não tomar prejuízo. Sobre quem está fora da Bolsa, os economistas divergem. Alguns acham que só profissionais devem entrar nessa hora; outros acham que é possível arriscar com ações baratas. Quem não gosta de risco, não deve pôr dinheiro na Bolsa. Uma opção segura é investir em títulos do governo pós-fixados.
Se tiver dividas, deve antecipar o pagamento para reduzir os juros incidentes nas parcelas.

É melhor optar por financiamentos mais curtos ou o que faz a diferença é o juro?
A taxa de juros é a mais importante, mas o prazo deve ser analisado. Quem assume financiamento agora continuará pagando juros altos mesmo quando as taxas caírem.

Que taxa máxima de juros deve ser considerada adequada por mês? A partir de que taxa o consumidor deve evitar o financiamento?
3% ao mês. A partir deste patamar, a compra deve ser evitada. Essa taxa serve, segundo os economistas, para qualquer modalidade de financiamento, menos de imóveis, cujo índice máximo deve ser 1% ao mês.

O dólar vai subir ou cair?
A moeda deve ficar próxima de R$ 2 até o final do ano. Mas, para evitar a alta da inflação, o Banco Central deve manter os leilões de venda de dólares para fazer com que a taxa vá abaixo dos R$ 2 no início de 2009.

Quem vai viajar ou comprar produtos importados deve juntar dólares já? Qual é a melhor forma de comprar a moeda?
O dólar só deve ser adquirido neste momento se a viagem estiver muito próxima, caso contrário, o ideal é esperar a taxa ceder novamente. De qualquer forma, a moeda nunca deve ser adquirida em um único dia, já que a taxa oscila bastante e o comprador pode fazer um negócio melhor se dividir a operação.

Investir em dólares é uma boa idéia?
O investimento é arriscado e só deve ser feito para pagar dívidas na mesma moeda ou enviar dinheiro para algum familiar que resida no exterior.

Investir em ouro é boa idéia?
Não. No Brasil, o ouro não tem liquidez, portanto, é difícil para a pessoa vender. Além disso, as barras não vão para casa, ficam no banco. O investidor leva um certificado e paga a custódia ao banco, o que gera um custo para o detentor.

Como proteger minhas economias?
Evite fazer novas dívidas, e adie os planos de investimentos.
Quem tem menos de R$ 1.000 sobrando na conta corrente deve ficar com a poupança, que não cobra taxa de administração, nem imposto de renda.
Quem tem sobra de mais de R$ 1.000 deve aplicar em CDB.
Se tiver mais de R$ 5.000 sobrando e perfil agressivo, pode arriscar e comprar ações baratas. Para isso, é necessário consultar uma corretora para avaliar as pechinchas. Se quiser mais garantia, títulos do governo são a opção.

É seguro deixar o dinheiro em conta corrente? Os bancos brasileiros têm chances de quebrar?
Não há risco de quebra, segundo os analistas. O Fundo Garantidor de Crédito garante depósitos de cada cliente, em cada instituição, em até R$ 60 mil no máximo (considerando todas as contas e aplicações que ele tiver naquele banco).

Como o Brasil será afetado pela crise nos EUA?
Entra menos dinheiro no país, o que reduz a oferta de moeda estrangeira, fazendo com que a cotação do dólar suba em relação ao real. Produtos importados, como eletroeletrônicos, sobem de preço.
Caso entrem em recessão, os Estados Unidos vão consumir menos, afetando as exportações brasileiras para aquele país.
Os bancos emprestam menos, e as empresas ficam sem dinheiro para investir, cortando os investimentos e a produção, gerando desemprego e desaceleração econômica.
Com a produção reduzida, a oferta de produtos também deve cair e, com isso, os preços sobem, aumentando a inflação.

Por que setores que não têm relação com a Bolsa também são afetados por uma crise financeira?
Porque a economia é um sistema interligado. Se os EUA consumirem menos soja, por exemplo, os exportadores vão vender menos, os transportadores vão reduzir sua atividade e as fábricas de caminhões vão cortar a produção.

Há risco de demissões nas empresas?
No início, não. Mas se os produtores brasileiros começarem a exportar menos, por exemplo, as vendas e o faturamento vão cair, e, para equilibrar as finanças, podem demitir.

Os salários vão subir menos?
Se o nível de emprego cair, vai sobrar mão-de-obra. Portanto, a tendência não é de aumento de salários. A partir de 2009, os sindicatos não devem conseguir reajuste de salário acima da inflação.

A inflação pode disparar?
Não. As recentes elevações na taxa de juros no país devem surtir efeito e frear o consumo, o que impede a alta da inflação.

Só preços de produtos importados devem subir?
A alta do dólar deve encarecer alguns produtos importados como eletrônicos e fortalecer a indústria nacional. A crise deve reduzir o consumo nos Estados Unidos de commodities, reduzindo o preço desses produtos nos mercados internacionais.

Quanto tempo deve durar a crise?
Após a aprovação do pacote, deve demorar um ano para a economia dos EUA se restabelecer da crise e mais um ano para voltar a mostrar vigor econômico.

Fontes:
# José Carlos Luxo, professor de finanças da FIA (Fundação Instituto de Administração da USP).
# Liao Yu Chieh, professor de finanças do Ibmec São Paulo.
# Luiz Jurandir Simões de Araújo, consultor da Fipecafi (Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuariais e Financeiras da USP).
# Marcelo Ângulo, administrador e autor do livro "Suas finanças.com"
# Miguel José Ribeiro de Oliveira, presidente da Anefac (Associação Nacional dos Executivos de Finanças).
# Paulo Scarano, coordenador do curso de Economia da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

jeudi 9 octobre 2008

A ação política cristã

Prof. Dr. Jorge Pinheiro

Comunidad Civil y Comunidad Cristiana
Karl Barth, Montevidéu, Ediciones Tauro, 1973

Esta obra de Karl Barth discute as relações entre a Igreja e o Estado. Não enquanto problema jurídico de relações institucionais, mas encontro dialético entre comunidades que se sobrepõem, que têm um mesmo centro de autoridade. No texto sentimos como pano de fundo as reflexões do Agostinho de As Duas Cidades. Aqui, Barth apresenta seu pensamento social numa exposição teológica brilhante e faz um chamado à “presença da comunidade cristã no exercício de sua corresponsabilidade política”. Nesse momento de guerra, o texto de Barth é altamente inspirativo. Por isso, traduzimos e apresentamos na seqüência o capítulo XIV do livro Comunidade Civil e Comunidade Cristã.

Capítulo XIV
A orientação da ação política cristã, de uma ação que se compõe de discernimento, juízo e eleição de uma vontade e de um compromisso, está relacionada com o caráter duplo do Estado, que possui ao mesmo tempo a possibilidade de oferecer e a necessidade de receber a imagem analógica do Reino de Deus que a Igreja anuncia. Como já mostramos, o Estado não pode ser uma réplica da Igreja, nem uma antecipação do Reino de Deus. Em sua relação com a Igreja tem realidade própria e necessária e em sua relação com Deus representa – da mesma maneira que a Igreja – um fenômeno puramente humano, acompanhado de todas as características deste mundo temporal. Não se pode pensar em identificá-lo nem com a Igreja, nem com o Reino de Deus. Mas, por outra parte, desde o momento em que está fundado sobre uma disposição particular da vontade divina, e porque pertence na realidade ao Reino de Cristo, não se pode dizer que seja autônomo. Não poderia existir independentemente da Igreja e do Reino de Deus.

Por esta razão não se poderia falar de uma diferença absoluta entre a Cidade e a Igreja por um lado, e a Cidade e o Reino, por outro. Logo, fica uma possibilidade: desde o ponto de vista cristão, o Estado e sua justiça são uma parábola, uma analogia, uma correspondência do Reino de Deus que é o objeto da fé e da prédica da Igreja. Como a comunidade civil constitui o círculo exterior em cujo interior se inscreve a comunidade cristã, com o mistério da fé que ela confessa e proclama, as duas, tanto uma como outra têm o mesmo centro do qual resulta a primeira, distinta pelo princípio no qual está fundada e pela tarefa que lhe corresponde, se encontra forçosamente na relação analógica com a verdade e realidade da segunda; analogia no sentido de que a Cidade é capaz de refletir indiretamente, como por um espelho, a verdade e a realidade do Reino que a Igreja anuncia.

Mas como está condenado a continuar a ser o que é e a atuar dentro de seus próprios limites, o Estado, como reflexo da verdade e da realidade cristã não possui justiça e consequentemente não possui também existência intrínseca e definitiva. Ao contrário, sua justiça e sua existência estão sempre gravemente ameaçadas e sempre deve se perguntar se, e até que ponto, está cumprindo com suas tarefas de justiça. Para preservar a comunidade civil da decadência e da ruína é necessário recordá-la de quais são as exigências desta justiça que deve representar. A comunidade civil, pois, precisa desta analogia tanto quanto é capaz de criá-la. Por esta razão necessita uma e outra vez um quadro histórico cujo fim e conteúdo possam ajudá-la a chegar a ser uma analogia, uma parábola do Reino de Deus, permitindo a ela cumprir as tarefas da justiça civil. Mas, nesses assuntos, a iniciativa humana não pode orientar-se somente por si mesma. A comunidade civil, como tal, não conhece nem o mistério do Reino de Deus, nem o centro escondido do qual depende e diante do testemunho e mensagem da comunidade cristã é neutra. Por tanto, tem que se limitar a buscar sua água nas “cisternas rachadas” do chamado direito natural. Por si mesma não pode lembrar-se do critério verdadeiro de sua justiça, nem colocar-se em movimento para cumprir com as tarefas desta justiça. Justamente por esta razão é que precisa da presença às vezes incômoda e saudável da atividade que se desenvolve ao redor do centro comum dos dois domínios: a presença da comunidade cristã no exercício de sua corresponsabilidade política.

Sem ser o Reino de Deus, a comunidade cristã sabe algo dele, crê, espera e ora no nome de Jesus Cristo e anuncia a excelência deste nome sobre todos os outros. Nesse ponto não é nem neutra nem impotente. Quando passa ao plano político para tomar sua parte de responsabilidade não abandona sua atitude “comprometida”, esta atitude de fidelidade ao único Senhor.

Para a Igreja, aceitar a parte de responsabilidade que lhe corresponde significa uma única coisa: tomar uma iniciativa humana que a comunidade civil por sua parte não pode tomar, dar a comunidade civil um impulso que ela não pode dar a si própria, fazê-la lembrar das coisas que a comunidade civil não sabe lembrar por si mesma. Discernir, julgar, eleger no plano político implica sempre para a Igreja ter que aclarar as relações que existem entre a ordem política e a ordem da graça, para azar de todo aquele que possa obscurecer esta relação.

Entre as diversas possibilidades políticas do momento, os cristãos saberão discernir e eleger aquelas cuja realização leve a uma analogia, a um conteúdo de sua fé e de sua mensagem. Os cristãos se encontrarão ali onde a soberania de Jesus Cristo, acima de todas as coisas de ordem política ou de outras ordens, não é obscurecida, mas evidente. A comunidade cristã exige que a forma e substância do Estado, neste mundo caduco, orientem os homens em direção ao Reino de Deus e não os distanciem. Não pede que a política humana coincida com a de Deus, mas sim, que na imensa distância que a separa daquela, seja paralela. Pede que a graça de Deus, revelada de cima e atuando aqui em baixo, se reflita na totalidade das medidas exteriores, relativas e provisórias assumidas pela comunidade dentro dos limites das possibilidades que este mundo oferece.

É, pois, em primeiro e último lugar, diante de Deus – este Deus que em Jesus Cristo revelou sua misericórdia aos homens – que ela exerce sua responsabilidade política. Todas suas decisões políticas (discernir, eleger, julgar, querer) têm por isso valor como testemunho, que não é menos real por ser um testemunho implícito e indireto. Sua ação política é pois, também, uma forma de confessar sua fé. Exorta à comunidade civil para que saia de sua atitude de neutralidade, de ignorância espiritual, de seu paganismo natural, para comprometer-se junto com ela, diante de Deus, em uma política de responsabilidade compartida. Desencadeia, além disso, o movimento histórico cujo fim e conteúdo são fazer da cidade terrestre uma parábola, um sinal analógico do Reino de Deus, permitindo a esta cumprir com as tarefas da justiça civil.

lundi 6 octobre 2008

Revelação e Torá

Prof. Dr. Jorge Pinheiro

Quando se estuda a religião de Israel, questões referentes à revelação e ao surgimento de determinados conceitos teológicos vêm à tona. Duas fortes correntes teológicas tentaram nos últimos duzentos anos apresentar respostas para essas questões. Uma apriorística, colocando a ênfase na revelação, e outra empirista, vendo a religião de Israel como fruto da experiência cultural e religiosa dos povos vizinhos.

Essas duas correntes, embora tenham armazenado um arsenal considerável de informações, que não podem ser descartados, pecam ao nível da metodologia. Não levam em conta que todo conhecimento pressupõe uma elaboração nova, e exige do estudioso jamais esquecer as duas caras de qualquer processo social e histórico. A primeira dessas facetas está diretamente ligada ao ser humano, enquanto sujeito, se dá no terreno formal, e só se torna necessária depois de elaborada. A outra cara dessa moeda acontece ao nível do objeto, no terreno do real, e possibilita a conquista da objetividade.

Assim, o que precisamos entender é como se dá a origem de um conhecimento específico, ou de uma estrutura nova. Em primeiro lugar, seria um erro, afirmar que uma nova estrutura pode ser fruto único de um processo exclusivo, apriorístico, revelado ou inato. Ou, ao contrário, que repousa em características preexistentes do objeto. Em ambas os casos, o erro consiste em definir o conhecimento como predeterminado, quer por estruturas internas ao sujeito, quer por características preexistentes no objeto. Descarta-se, assim, o conhecimento enquanto construção efetiva e contínua.

O que acontece é que o conhecimento não começa com um sujeito plenamente consciente de seu ato histórico, nem de realidades definidas a priori. Resulta sim de interações que surgem da combinação de múltiplos fatores, que vão criando dependência e novas relações. Não é um intercâmbio entre formas diferentes, mas a construção de realidades com plasticidades novas.

A este processo de surgimento de novas estruturas chamamos revolução. Isto porque são novas construções de conhecimento e não evolução ou reforma de uma estrutura já conhecida. Aqui, temos crise e ruptura de estruturas e conhecimentos anteriores, gerando fatores que criam novas relações e novos equilíbrios. Nesse processo haverá sempre um ou vários desequilíbrios iniciais, uma crise epistemológica, que rompe esquemas definidos, gerando movimentos que parecem estar fora do controle do sujeito.
Em relação à religião de Israel assistimos a essa revolução epistemológica em seu próprio surgimento, ou seja, com a aliança abraâmica. Nesse momento, movimentos ao nível do indivíduo e sociais desencadearam processos diferentes que revolucionaram o próprio conceito de religião e, por extensão, mudaram a face da fé em todo o mundo.

A visão clássica da crítica bíblica, da qual J. Wellhausen é um dos expoentes, parte de postura empiricista e considera que a profecia clássica foi a fonte do monoteísmo israelita. Na verdade, para Wellhausen, os profetas literários criaram o monoteísmo ético, e a Torá é apenas a formulação sacerdotal-popular posterior do pensamento profético. É importante notar que a hermenêutica crítica vê a Bíblia como objeto histórico, fonte preservada de informações sobre a cultura e história dos hebreus. Assim, as bases de sua metodologia repousam sobre um arcabouço que combina racionalismo alemão, historicismo e idealismo filosófico.

O conhecimento que se origina na atividade reflexa do sujeito recebe com a revelação esta organização funcional, que o torna possível. Aqui, convém notar que para o conhecimento que tem por base o processo revelatório a organização funcional sempre se mantém invariável. Ou seja, essa organização funcional se mantém em equilíbrio, apesar dos processos vividos nas estruturas. E mais do que isso, se impõe a elas como necessárias.

A discussão em torno de um centro para a teologia de Gênesis é polêmica, pois o próprio conceito de centro, para muitos teólogos, seria uma limitação para um segundo conceito: o de revelação progressiva. Ora, dizem eles, se a revelação é progressiva toda definição de centro é descabida. Nesse sentido, hoje preferimos falar de rede, pois não podemos falar de um desenvolvimento linear em progressão, mas de uma expansão. Poderíamos pensar na rede da WEB, onde a expansão se dá, mas sem centro definido, a não ser aquele localizado pelo internauta.

A teologia de Gênesis tem por base o conceito da aliança, não como paradigma doutrinário gerador de dogmas, mas como descrição de um processo vivo, que tem origem em determinado momento histórico, numa relação entre Iavé e uma pessoa.

Ao entendermos o conceito de aliança como rede unificadora do livro de Gênesis e, por extensão, da Torá, a leitura do texto bíblico passa permite uma compreensão que cresce conforme a aliança se transforma em osso e carne, primeiramente, na vida dos patriarcas e, posteriormente, na formação da própria nação.

Os livros de Gênesis e Êxodo apresentam a fé israelita, enquanto construção, fundamentada em dois acontecimentos históricos. O primeiro, é a escolha de uma pessoa chamada Abrão, que foi tirado da cidade de Ur e levado para Canaã, uma terra prometida a ele e sua descendência (Gn 12.1-3; 13.14-17). Essa promessa foi selada com um pacto, uma aliança entre Iavé e Abraão, conforme Gênesis 15.5-10. E o segundo fato histórico é a libertação dos descendentes de Abraão da escravidão do Egito, através de Moisés, e sua entrada na terra prometida (Ex 3.6-10).

Esses dois acontecimentos expressam a materialidade da aliança, que se traduz como escolha de Iavé a favor de uma pessoa, geradora de um povo, para uma missão definida. Realidade esta que foi reafirmada, centenas de anos depois, pelo príncipe dos profetas israelitas:

“Ouvi-me, vós, que estais à procura da justiça, vós que buscais a Iavé. Olhai para a rocha da qual fostes talhados, para a cova de que fostes extraídos. Olhai para Abraão, vosso pai, e para Sara, aquela que vos deu à luz. Ele estava só quando o chamei, mas eu o abençoei e o multipliquei”. Isaías 51.1-2.

Aqui voltamos ao início da análise: por que o conceito de aliança fornece uma base para a compreensão do livro de Gênesis? Em primeiro lugar, porque o diálogo de Iavé com Adão e Eva em Gênesis 3.15 aponta para um salvador. E em Gênesis 15 temos a primeira realização dessa promessa através da aliança com Abraão, que produzirá descendência, com duas missões: ser testemunha entre as nações, e ser a nação separada, da qual nasceria o Messias prometido.

A aliança iniciou uma nova relação entre Iavé e Israel, uma relação imposta por Iavé, mas íntima. Embora, na tradição judaica, o livro de Êxodo seja o livro da aliança, o conceito está presente e é desenvolvido no primeiro livro da Torá.

Na aliança está embutida a idéia de salvação e de relacionamento pessoal com Iavé. Esta realidade nova dentro do plano de redenção do ser humano está implícita na declaração de Iavé a Abraão: “Estabelecerei uma aliança entre eu e você, e a sua raça depois de você, de geração em geração, uma aliança perpétua, para ser o seu Iavé e o da tua raça depois de você” Gn.17:7. E como todo pacto, além do “berit milah” (pacto da circuncisão), Abraão e seus descendentes são chamados à responsabilidade moral (v.1) e a uma adoração permanente (vv.7 e 19).

Elementos estes, que a partir de Moisés serão desenvolvidos, dando origem à religião de Israel, que tem por base, num primeiro momento histórico a primazia do culto e suas ordenanças e, num segundo momento, com o surgimento da profecia literária, da justiça social. Assim, é impossível fazer uma completa separação entre aliança e reino. Este último será uma construção que tem como primeiro tijolo a nova relação estabelecida por Iavé com pessoas.

Aqui somos obrigados a recorrer a alguns conceitos da epistemologia, para entendermos o papel da transmissão do conhecimento de Iavé e de sua vontade, realizado através da aliança, que Gênesis nos apresenta. Quando estudamos o desenvolvimento e a construção das estruturas de conhecimento, vemos que esta construção se dá através de uma dissociação de conteúdos e da elaboração de novas formas, mediante uma abstração reflexiva de conhecimentos anteriores.

Ora, a relevância da epistemologia está em que ela mostra que, por mais importantes que sejam as origens de dado conhecimento, o que determinará sua essência é seu movimento genético. Assim, quando temos a formalização desse processo temos de fato um conhecimento inteiramente novo, que extrapola os dados iniciais, transbordando o real.

Sabemos que a circuncisão na época de Abraão era um costume associado aos poderes da reprodução humana, que servia de distintivo tribal. Também sabemos que os pactos eram selados com sangue e o seu rompimento significava a morte do transgressor. Esses conteúdos faziam parte da cultura de Abraão e de seu clã. Da mesma forma, outros conteúdos, como adoração/ “edificar um altar” (Gn.12.8), obediência/ “foi habitar nos carvalhais de Manre” (13.17-18), entrega de bens e posses/ “e de tudo lhe deu o dízimo” (14.20), fidelidade/ “ele creu no Senhor” (15.6), e consciência da onipotência divina/ “não fará justiça o juiz de toda a terra?” (18.25) são conteúdos espirituais da fé de Abraão e das pessoas santas que o antecederam.

A questão não está centrada nas origens desses conteúdos que, sem dúvida, são históricos e refletem as culturas das civilizações mesopotâmicas e da bacia do Nilo, assim como a tradição monoteísta na época de Abraão. O fundamental aqui é entender que esses conteúdos se organizam em nova estrutura: a aliança abraâmica, que se constrói geneticamente, com história peculiar. Esta aliança, cuja gênese e história mostram uma elaboração sucessiva, que é a própria Torá, como síntese lingüística, não é pré-formada. Sua construção histórico-genética é autenticamente constitutiva e não se reduz a um mero conjunto de conteúdos acessíveis.

Mas há um bereshit, um fiat, um momento especial que dá origem à essa estrutura nascente: é a revelação. A partir da promessa de Gênesis 3.15 temos uma revelação. A aliança surge como revelação, como ruptura que dá vida a antigos conteúdos, colocando em movimento um processo histórico-genético que vai-se construir enquanto estrutura (povo escolhido/ terra prometida) e dar novo salto com a formalização maior realizada no Sinai.

Esta realidade leva a uma outra, que é o da linguagem da Torá, na seqüência da aliança. Considerando a moderna lingüística, do ponto de vista estrutural, vemos que a linguagem tem duas grandes características: por um lado é universal, enquanto estrutura geral, humana, e, por outro, é livre e não serve apenas à função comunicativa, mas é um instrumento para a livre expressão do pensamento e para a resposta às novas situações.

Isto é o que explica o fato das grandes revoluções do conhecimento serem sempre acompanhadas pelo surgimento de uma linguagem nova e de novas estruturas de pensamento. A aliança descrita em Gênesis 15 e 17 vai abrir um processo de revolução em relação ao conhecimento de Iavé e de sua vontade, e vai gerar uma nova linguagem.

De forma crescente vemos nos capítulos seguintes de Gênesis e dos demais livros da Torá essa nova linguagem ganhar forma e consolidar-se enquanto linguagem da teologia da aliança. Algumas palavras serão fundamentais nessa nova linguagem: acordo/ aliança/ pacto (berit, conforme Gn 12.2; 15.17; 17.7-8; 22.16-18); altar/ holocausto/ sacrifício (conforme Gn 12.7; 22.9; 35.1,7; Êx 17.5; 24.4; 27.1-8; 30.1-10; Lv 16.16-19); circuncisão (berit milah, conforme Gn. 17:9-14; Êx. 4:24-26; Dt. 10:16); justiça/ misericórdia (conforme Gn 15.6) e santidade (conforme Gn 17.1; Êx 19.6; Lv 20.6).

Na Torá, a aliança entre Iavé e Israel era a base de todo trato de Iavé com seu povo. O significado da aliança foi que Israel pertenceu a Iavé e Iavé pertenceu a Israel. A relação foi descrita com semelhante àquela entre pai e filho, ou como de marido e esposa. Donde a declaração de que Iavé é Iavé ciumento (Êx 20.5; 34.14; Dt 4.24). Através de Abraão, a aliança é em primeiro lugar pessoal, abrangendo um espectro cada vez maior: tribal, nacional, universal. Mas, quer no primeiro caso, pessoal, quer historicamente, como redenção, ela é sempre estrutural.

Mas, se aliança é eleição, escolha, implica em preferência por alguém, escolher por prazer ou por amor. E essa conceituação entre aliança e amor é enunciada em 1Reis 11.13, quando Iavé afirma que escolheu Jerusalém por amor. Assim, aliança e amor não podem ser separados, embora não sejam a mesma coisa. A aliança é o selo, o pacto. O amor, o motivo que leva à aliança. No livro de Gênesis vemos o amor de Iavé na criação, na conversa com Adão e Eva e na promessa de um salvador. Mas é na aliança que o amor pela pessoa caída torna-se material e compreensível. A saga dos patriarcas descendentes de Abraão, que se torna pai de muitos povos, mostra o caminho da concretização da aliança. Eis o tema central de Gênesis e da Torá: Iavé ama e casa-se com um povo, criado por ele, e comissionado por ele. O resto da história, nós conhecemos. E por amor estamos dentro da aliança abraâmica.

Fonte
Jorge Pinheiro, História e Religião de Israel, gênese e crise do pensamento judaico, São Paulo, Editora Vida, 2007.

vendredi 26 septembre 2008

JÜRGEN MOLTMANN, um roteiro de estudo

por Jorge Pinheiro

A teologia de Moltmann situa-se entre os campos da teologia dialética de Barth e a teologia existencial de Bultmann. E sua obra mestra será Teologia da Esperança, publicada em 1964. Para entender Moltmann devemos ver os princípios sobre os quais estão baseados sua teologia.

1. Primazia da esperança > A esperança é a esperança da fé. Estruturalmente primeiro vem a fé e depois a esperança, embora a fé possa desenvolver-se sem a esperança. Nesse sentido, a esperança é o “companheiro inseparável” da fé e entrega à fé o horizonte do futuro em Cristo.

Na vida cristã, a prioridade pertence à fé, mas o primado à esperança”. [Teologia della speranza, p.14]. Está é uma formulação dialética. A fé em Cristo, sem esperança, produz um conhecimento efêmero de Cristo. E a esperança, por sua vez, sem fé, transforma-se em utopia, perdendo sua dimensão teológica. Assim, a prioridade pertence à fé [a esperança é esperança de fé], mas o primado pertence à esperança, já que a fé se expande na esperança e é através da esperança que a fé atinge seu horizonte escatológico.

2. Cristologia escatológica > Para formular sua teologia da esperança, Moltmann parte do Antigo Testamento, mostrando que a religião de Israel era uma religião de promessa. Assim, a revelação no Antigo Testamento tem caráter promissório, que abrem novos horizontes históricos e escatológicos. Logicamente, nem toda promessa é escatológica. Ela se torna escatológica quando assume universalização e intensificação.

Escatológico em Moltmann é sinônimo de futuro universal e radical. Um futuro que inclui todos os povos e uma radicalidade que se estende para além do limite extremo da existência. Olhando sobre essa perspectiva o Novo Testamento ratifica as promessas, apontando para a realização do futuro escatológico. A ressurreição de Cristo é a confirmação das promessas ao mesmo tempo em que é promessa escatológica que se cumprirá com a ressurreição dos mortos e o surgimento de uma nova humanidade. As bases do futuro da humanidade estão na ressurreição de Cristo. Isto é Cristologia escatológica.

3. Eclesiologia messiânica > Para Moltmann a promessa leva à missão. Ou como ele diz: “A pro-missio do Reino é o fundamento da missio do amor pelo mundo” [Teologia della speranza, p. 229]. Considera, no entanto, que a igreja moderna está socialmente marginalizada e por isso refugiou-se em funções supletivas, que são traduzidas na privatização do culto.

Para Moltmann, a igreja tem uma função pública, que “está a serviço da adventícia salvação do mundo e é como flecha lançada no mundo para indicar o futuro” [Teologia della speranza, p. 320]. A missão da igreja, enquanto comunidade cristã, é tarefa de todos os cristãos e será desenvolvida por ele nos textos A experiência esperança (1974) e A Igreja na força do Espírito (1975).

Teologia da Esperança e marxismo

Depois de uma criativa ruptura com a modernidade, enquanto pensamento, tradição e história, é necessário sentir de novo a alegria da esperança escatológica, para compreender a natureza do terreno sobre o qual pisamos. Há um momento de cisão no qual modificou-se, de modo essencial, a concepção do que significa teologia. Esse momento foi assinalado a partir dos anos 60, com a teologia da esperança, de Jürgen Moltmann.

Trata-se de uma reflexão prodigiosamente profética, pois enuncia, não somente a queda do muro de Berlim, mas o processo de aglutinação vivido por alemães, em primeiro lugar, por europeus, na seqüência. É sem dúvida, uma das elaborações mais impressionantes, se entendermos sua abordagem epistemológica. Sugere um campo normativo, a ser percorrido pelos movimentos e comunidades que abririam aguerridamente, a golpes de machado, a senda pós-moderna.

A expressão abordagem epistemológica não é exagerada. Refere-se ao projeto teológico, herdadas das estruturas hegelianas e marxistas, relidas e traduzidas por ele e Ernest Bloch. É sobre a questão da identidade histórica, entendida como processo a realizar-se, que recai a crítica da teologia realizada por Moltmann. É justamente a experiência de viver, enquanto comunidade que se realiza no futuro, que é realçada por ele. No nível antropológico, trabalha os elementos dessa esperança, a partir da qual se produz saber e práxis cristã. Suas heranças são translúcidas:

Por meio de subverter e demolir todas as barreiras -- sejam da religião, da raça, da educação, ou da classe -- a comunidade dos cristãos comprova que é a comunidade de Cristo. Esta, na realidade, poderia tornar-se a nova marca identificadora da igreja no mundo, por ser composta, não de homens iguais e de mentalidade igual, mas, sim, de homens dessemelhantes, e, na realidade, daqueles que tinham sido inimigos. O caminho para este alvo de uma nova comunidade humanista que envolve todas as nações e línguas é, porém, um caminho revolucionário”.

Como num laboratório, o teólogo da esperança extrai o fato teológico de sua contingência histórica, tratada sob condições de extrema pureza escatológica. Muito claramente afirma a escatologia como essência da história da redenção e leva à conclusão de que essa mesma essência seja a expressão maior da ressurreição, enquanto metáfora da cruz de Cristo. Essa cruz repousa sobre o esvaziamento da desesperança, enquanto praesumptio e desperatio, na relação que mantém com o mundo.

A teologia, vida cristã em movimento, numa permanente autoformação, advém das pulsações criadoras da própria esperança, cujo sentido volta-se para ela própria. Essa construção, que se nos apresenta como caleidoscópio, belo, mas aparentemente ilógico, traz em si a força combinatória do devir cristão. Assim, a teologia de Moltmann quebra os grilhões do presente eterno da neo-ortodoxia, e nos oferece um conceito realista da história, que tem por base um futuro real, lançando dessa maneira as bases para uma teologia que responda às reais necessidades do homem pós-moderno.

A teologia de Moltmann nasce enquanto reação ao existencialismo e absorção do revisionismo de Bloch. A descontrução do marxismo, realizada por aquele filósofo, não agradou ao mundo comunista, mas estabeleceu uma ponte, diferente daquela da teologia da libertação, entre o hegelianismo de esquerda e o cristianismo. Substituiu a dialética pelo ainda-não, enquanto espaço que não está fechado diante de nós, e definiu uma antropologia que não mais está calcada no império dos fenômenos econômicos, mas na esperança.

Os escritos filosóficos do jovem Marx serviram de ponto de partida para o vôo de Bloch. A alienação do homem é um fato inquestionável, não como determinação econômica, mas enquanto determinação ontológica. Afinal, o universo em que vive é essencialmente incompleto. Mas a importância do incompleto é que é susceptível de complemento. Por isso, o possível, o ainda-não, o futuro traduz de fato a realidade.

Nesse processo estão presentes a subjetividade humana e sua potência inacabada e permanente em busca de solução e a mutabilidade do mundo no quadro de suas leis. Dessa maneira, o ainda-não do subjetivo e do objetivo é a matriz da esperança e da utopia. A esperança traduz a certeza da busca e a utopia nos dá as figuras concretas desse possível.

O homem é impelido, assim, ao esforço permanente de transcender a alienação presente, em busca de uma ‘pátria de identidade’. É no ‘vermelho quente’ do futuro que está a razão fundamental da existência humana.

Nenhum marxista chegou tão próximo da escatologia cristã!

Deus -- enquanto problema do radicalmente novo, do absoluto libertador, do fenômeno da nossa liberdade e do nosso verdadeiro conteúdo -- torna-se-nos presente somente como um evento opaco, não objetivo, somente como conjunto da obscuridade do momento vivido e do símbolo não acabado da questão suprema. O que significa que o Deus supremo, verdadeiro, desconhecido, superior a todas as outras divindades, revelador de todo o nosso ser, ‘vive’ desde já, embora ainda não coroado, ainda não objetivado. Aparece claro e seguro agora que a esperança é exatamente aquilo em que o elemento obscuro vem à luz. Ela também imerge no elemento obscuro e participa da sua invisibilidade. E como o obscuro e o misterioso estão sempre unidos, a esperança ameaça desaparecer quando alguém se avizinha muito dela ou põe em discussão, de modo muito presunçoso, este elemento obscuro”.

Bloch realiza uma penetrante releitura da cosmovisão judaico-cristã. Entende o clamor profético do mundo bíblico e da proclamação cristã não como alienação e ópio, mas como fermentos explosivos de esperança, protestos contra o presente em nome da realidade futuro, a utopia.

Talvez por isso possamos dizer que nos anos 60, os caminhos de Moltmann e Bloch não apenas cruzaram-se na Universidade de Tübingen, mas abriram espaço para o mais enriquecedor diálogo cristão-marxista que conhecemos. É interessante lembrar que em 1968, quando manifestações estudantis varriam Tübingen, Heldelberg, Münster e Berlim Ocidental, grande parte dos líderes estudantis eram oriundos das faculdades de teologia. Sua Theologie der Hoffnung, publicada no início da década na Alemanha, estava na oitava edição, e no ano seguinte, ele lançaria Religion, Revolution and the Future nos Estados Unidos.

Assim, em síntese, a Teologia da Esperança surgiu para revigorar, teológica, social e politicamente, a esperança cristã através de “projetos de esperança”, que levem a igreja a tornar-se responsável pelo futuro da humanidade. Esse futuro nos foi entregue por Deus, como promessa, mas é conhecido por antecipação no advento e ressurreição de Cristo. Nosso Cristo é o fim da utopia, é certeza escatológica amparada pela fé.

Notas

1Ao homem que se lamenta: ‘Não consigo ver significado na história, e portanto minha vida, entrelaçada com ela, também é destituída de significado’, respondemos: não fiques olhando ao redor de ti, para a história universal, mas olha para tua história pessoal. O sentido da história sempre está contigo no teu presente, e tu não podes vê-lo como mero espectador, mas somente em tuas decisões responsáveis. Em cada momento dorme a possibilidade de vir a ser o momento escatológico, Cabe a ti despertá-la”. R. Bultmann, Storia ed escatologia, Milão, Bompiani, 1962, p. 176.

2A universalização da promessa atinge seu escathon na promessa do senhorio de Iaveh sobre todos os povos. A intensificação da promessa encaminha-se para a realidade escatológica mediante a negação da morte”. J. Moltmann, Teologia della speranza, pp. 133-134.

3Os filósofos justamente conscientes do poder de coordenação das funções espirituais consideram suficiente uma mediação deste pensamento coordenado, sem se preocupar muito com o pluralismo e a variedade dos fatos (...). Não se é filósofo se não se tomar consciência, num determinado momento da reflexão, da coerência e da unidade do pensamento, se não se formularem as condições de síntese do saber. E é sempre em função desta unidade, desta síntese, que o filósofo coloca o problema geral do conhecimento”. G. Bachelard, Filosofia do Novo Espírito Científico, Lisboa, Presença, 1972, pp. 8-9.

4A história arqueológica nem é evolutiva, nem retrospectiva, nem mesmo recorrente; ela é epistêmica; nem postula a existência de um progresso contínuo, nem de um progresso descontínuo; pensa a descontinuidade neutralizando a questão do progresso, o que é possível na medida em que abole a atualidade da ciência como critério de um saber do passado”. Roberto Machado, Ciência e saber. A trajetória arqueológica de Foucault, Rio de Janeiro, Graal, 1982, p. 152.

5 Jürgen Moltmann, “God in Revolution”, em Religion, Revolution and the Future, Nova York, Scribner, 1969, p. 141.

6O passado e o futuro não estão dissolvidos num presente eterno. A realidade contém mais do que o presente. Ao desenvolver sua teologia futurista, Moltmann realmente tem o peso considerável da história bíblica do lado dele, e faz bom uso dela. (...) Ao enfatizar o futuro, desenvolveu um pensamento bíblico legítimo que jazia profundamente enterrado na teologia ética e existencial dos séculos XIX e XX”. Stanley Gundry, Teologia Contemporânea, São Paulo, Mundo Cristão, 1987, p.167.

7 Ernst Bloch, "Geist der Utopie", Franckfurt, 1964, p. 254 in Battista Mondin, Curso de Filosofia, São Paulo, Paulinas, 1987, vl. 3, pp. 246-7.

8 Jürgen Moltmann, Teologia della Speranza, Queriniana, Bréscia, 1969.

jeudi 11 septembre 2008

As lágrimas negadas

À maneira de Agostinho


Os dois rapazes, armados, trombaram a velhinha. Arrancaram a bolsa e começaram a tirar tudo que tinha lá dentro. Tiraram a Bíblia, revolveram tudo, mas não acharam o que queriam: dinheiro.

-- Diz velha, onde está o dinheiro? Diz logo, senão a gente te apaga.

-- Meninos, por que vocês fazem isso? Vocês são tão bonitos...

A velhinha -- tinha mais de 70 anos -- pegou a Bíblia que estava nas mãos de um deles e encostou-a no peito.

-- Jesus muda tudo, faz tudo novo... Qualquer vida...

-- Deixa essa velha pra lá. Vamos embora, ela parece minha mãe.

Maria chegou em casa e contou a história como se fosse a coisa mais normal do mundo. Depois disse:

-- Vou orar por eles. Deus pode mudar a vida daqueles meninos.

O pai era atacadista de café nos ricos anos 20 nas Minas Gerais. Mas cedo foi morar no Rio de Janeiro, em Copacabana. Estudou no Sacré Coeur de Marie. O grande amor de sua vida foi meu pai, jornalista e socialista.

Mas o mundo dá voltas e Maria ficou viúva com dois filhos, Jorge e Alex. E aos poucos a herança foi virando fumaça. E aquela mulher, educada para ser dondoca, de fina cultura, lutou, batalhou para criar os dois meninos. Enfrentou momentos difíceis, sofreu um forte stress e tentou o suicídio, cortando os pulsos. Foi internada. E, no meio do desespero, uma voz suave falou ao seu coração.

Dez anos depois na morte de meu pai, Maria conheceu o Salvador, aquele que dá sentido à vida. Maria me lembra outra mulher, Mônica, mãe de Agostinho.

É verdade que minha mãe, vivificada em Cristo, antes mesmo de ser livre dos laços da carne, viveu de tal modo, que Teu nome era louvado em sua fé e em seus costumes”. [Agostinho, Confissões, Livro Nono, Capítulo XIII, Preces pela mãe morta].

Foi com Maria que aprendi o doce dom do amor. Eu, com minha cabeça materialista, ficava chocado, quando ela alimentava famintos ou cuidava de mendigos. Eu, adolescente, brigava com ela, dizia que era piegas, que isso não adiantava nada e outras tantas coisas. E Maria, com paciência, me respondia:

-- Um dia você vai entender.

Não, de forma nenhuma foi perfeita. De novo, me lembro das palavras de Agostinho sobre Mônica.

Não me atrevo a dizer que desde que a regeneraste (...) não saiu de sua boca nenhuma palavra contrária a sua lei. Porque a Verdade, que é teu Filho, disse: ´Quem chamar a seu irmão de louco será réu do fogo da geena´. Ai da vida dos homens, por mais louvável que seja, se tu a julgares sem a tua misericórdia!”. [Agostinho, Confissões, Livro Nono, Capítulo XIII, Preces pela mãe morta].

Minha mãe, Maria, morreu aos 87 anos, na quinta-feira, dia 27 de novembro. Pode parecer estranho, mas apesar do profundo amor que sempre nutri por ela e de toda a saudade que ficou, não chorei. Ao menos até agora, doze horas depois do sepultamento. Mais uma vez recorro a Agostinho.

De fato, não julgávamos correto celebrar aquele funeral com lágrimas e choros, pois tais demonstrações deploravam geralmente o triste fim dos que morrem, ou sua total extinção. A morte de minha mãe não era uma desgraça, e ela não morria para sempre, e disto estávamos certos pelo testemunho de seus costumes. Por sua fé sincera e outras razões inequívocas”. [Agostinho, Confissões, Livro Nono, Capítulo XII, As lágrimas negadas].

Há promessas

Então vi um novo céu e uma nova terra. O primeiro céu e a primeira terra desapareceram, e o mar sumiu. E vi a Cidade Santa, a nova Jerusalém, que descia do céu. Ela vinha de Deus, enfeitada e preparada, vestida como uma noiva que vai se encontrar com o noivo. Ouvi uma voz forte que vinha do trono, a qual disse:

-- Agora a morada de Deus está entre os seres humanos! Deus vai morar com eles, e eles serão os povos dele. O próprio Deus estará com eles e será o Deus deles. Ele enxugará dos olhos deles todas as lágrimas. Não haverá mais morte, nem tristeza, nem choro, nem dor. As coisas velhas já passaram.

Aquele que estava sentado no trono disse:
-- Agora faço novas todas as coisas!


E também me disse:

-- Escreva isto, pois estas palavras são verdadeiras e merecem confiança.

E continuou:

-- Tudo está feito! Eu sou o Alfa e o Ômega, o Princípio e o Fim. A quem tem sede darei água para beber, de graça, da fonte da água da vida. Aqueles que conseguirem a vitória receberão de mim este presente: eu serei o Deus deles, e eles serão meus filhos.
[Apocalipse 21.1-7].

Eu creio nestas promessas! Até mais ver, querida mãe!

mardi 9 septembre 2008

Adoração, mas afinal o que é isso?

“No entanto, está chegando a hora, e de fato já chegou, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade. São estes os adoradores que o Pai procura. Deus é espírito e é necessário que os seus adoradores o adorem em espírito e em verdade”. João 4.23-24.

A adoração pode ser definida como veneração ou culto que se rende a alguém ou algo que se considera sobrenatural, divino e sagrado, bem como rituais e códigos morais que expressam a ação de adorar.

A palavra portuguesa adorar deriva do latim adoratìo, ónis. No mundo helênico, anterior ao nascimento do cristianismo, adoração referia-se a realização de um serviço sacerdotal, no grego leitourgeo. Mas, depois, no cristianismo passou a ser visto como um estilo de comportamento marcado pelo amor, veneração, ou mesmo idolatria por alguém ou alguma coisa que se considerava excepcional, singular. Donde adorar passou a ser entendido como uma forma de paixão.

A palavra adoração foi usada durante séculos no contexto cultural da Europa, marcado pela presença do cristianismo que se apropriou do termo latino. E tanto na antropologia, como na sociologia, foi compreendida como expressão de um tropismo humano em direção ao transcendente, ou seja, como expressão de espiritualidade.

Se tomarmos, por exemplo, o filme “A Paixão de Cristo”, de Mel Gibson, vemos que tanto os críticos como milhões de espectadores não notaram que o filme tratava de um dos temas centrais do cristianismo: a questão da espiritualidade cristã. E é esse tema que pretendo abordar, adoração/ espiritualidade, a partir de um texto clássico, o diálogo entre Jesus e a samaritana.

Para os povos semitas, o que nós hoje entendemos por adoração era traduzido nos gestos de curvar-se, prostrar-se, colocar a cabeça no chão, num ato de total submissão, de entrega, já que aquele diante de quem a pessoa se prostrava poderia decepar-lhe a cabeça. Mas havia um outro gesto, o do beijo, que significava o abrir-se ao espírito e ser por ele possuído. Assim, adorar foi entendido através desses gestuais como submissão e possessão.

Mas a adoração não é exclusiva dos povos semitas. Os hindus têm, por exemplo, o culto ao rio Ganges, pois acreditam que é mais antigo que a terra e que jorrou do céu e, por isso, pode libertar o homem de seus pecados em vidas anteriores, curar e purificar o corpo e a alma. E eles adoram o Ganges. A adoração é chamada puja e consiste de orações e oferendas. Assim, a idéia de adoração é enriquecida também pelo ato de entregar algo, algo vital, que pode ser alimento, bebida ou mesmo riquezas.

Entendidos esses três componentes do conceito adoração, vamos à discussão do texto onde Jesus conversa com a samaritana e trata da adoração/ espiritualidade cristã. E pensar os versículos 23 e 24. De forma abrangente podemos dizer que espiritualidade é aquela relação do ser com a transcendência, que dá sentido à vida. E exatamente por isso intercalo na nossa reflexão o belo poema de Ada Negri, Atto d´amore.

"Não sei dizer-te quanto te amo Deus/ no qual creio, Deus que é a vida/ vivente, aquela já vivida e aquela/ que é para ser vivida além dos confins/ do mundo e onde não existe o tempo."

O ser humano, unidade multiforme, tem em seu espírito não uma dimensão parcial da vida, mas irredutível, conforme afirma Lossky. Nesse sentido, o espírito é a totalidade da vida. Nas situações de perda, falta de sentido e de ameaça à vida há sempre experiência com a transcendência, pois mesmo na negação dela há um sentido transcendente.

Na reconstrução da Europa, depois da Segunda Guerra mundial, o teólogo teuto-americano Paul Tillich disse que a desintegração espiritual da sociedade ocidental já tinha sido prevista por teólogos e estudiosos, no século XIX, mas a necessidade de compreender este fenômeno exigia que nos aprofundássemos em seu estudo.

Assim, para Tillich, “se não houver espírito, as construções humanas não poderão produzi-lo. Ele, o espírito age ou não age nos indivíduos e nos grupos. E quando age cria seu próprio meio de comunicação. Assim, o espírito se manifesta por meio das palavras, das formas de vida, das instituições sociais e dos símbolos religiosos”.

A idéia espírito, de que nos fala Jesus, nos leva a uma compreensão abrangente de espiritualidade, que não pode ser entendida apenas como sinônimo de piedade ou como conhecimento dos princípios de que se compõe a piedade.

Partindo do senso comum da igreja brasileira, a espiritualidade pode ser vista como uma interpretação particular do ideal evangélico, mas se partimos do que Jesus nos transmite e da contextualização realizada por Tillich podemos dizer que há uma espiritualidade comum à espécie humana, que ela se expressa existencialmente por sermos todos imago Dei.

Quando multidões assistem a um filme como A Paixão de Cristo e são despertadas, cada qual a sua maneira, acerca da miserabilidade humana, constatamos que as pessoas têm atributos potenciais para a espiritualidade. Esses atributos, presentes na imagem de Deus que somos, e que chamo de tropismo à transcendência, nos leva à questão da adoração.

“Eu não soube; mas a Ti nada escondo / daquele que está no profundo. Cada ato/ da vida, em mim, foi amor. E eu acreditei/ que fosse pelo homem, ou a obra, ou a pátria/ terrena, ou nascido do meu próprio peso, / ou das flores, das plantas, das frutas que caem no chão, / da substância, alimento e luz/ mas foi o Teu amor, que em cada coisa/ e criatura estás presente. E agora/ que um a um caíram ao meu lado, / os companheiros de estrada, e submissas sopram as vozes da terra, a tua/ face refulge de esplendor mais forte/ e tua voz é cântico do gloria”.

A espiritualidade e o sagrado

Otto, um dos teóricos que se debruçou sobre esta questão, diz que a experiência humana diante do sagrado tem sempre algo intenso e profundo, que ele chama de mysterium tremendum, que traduz o numinoso, o que é transcendente para a realidade do crente, que diante daquilo que o esmaga desenvolve senso de temor. Esse temor é um medo qualitativo, motivo para reflexão e energia que transformado em poder faz dele um adorador.

Tais experiências com o sagrado encorajam e incorporam no adorador aquilo que lhe é distinto. Apesar dessa relação de aparente intimidade de relacionamento, permanece o abismo entre adorador e sagrado. Dessa maneira, este desejo de saltar sobre o abismo que separa humano e sagrado é em última instância o móvel que dará origem à espiritualidade.

Se por um lado a crise ocidental pode ser traduzida como uma crise espiritual, por outro essa busca frenética de bens materiais e de consumo aumenta o vazio humano e favorece a busca da espiritualidade como experiência de vida coerente e recomendável. Assim, vivemos numa sociedade em crise espiritual, que procura encontrar a espiritualidade perdida.

A espiritualidade cristã

A espiritualidade cristã foi construída ao redor da cruz. A paixão de Cristo sempre foi entendida por teólogos e crentes como o derramar do dom da vida de Deus sobre os seres humanos. E porque a morte de Jesus Cristo não é derrota, mas sacrifício livremente aceito, a espiritualidade cristã tem sempre dois movimentos:

1. Um movimento em relação ao outro, ao próximo, ao desvalido, àquele que sofre, que é um chamado ao compromisso. Este movimento da espiritualidade em relação ao próximo nós chamamos de serviço.

A partir desse momento em que a espiritualidade torna-se caminho para Deus através do serviço ao próximo, a espiritualidade tem algo a dizer a todos os nossos relacionamentos, tanto pessoais, como sociais e políticos.

Pode parecer desconcertante relacionar espiritualidade e relacionamentos pessoais, sociais e políticos, mas ao falar de espiritualidade estamos falando do exercício do amor e por relacionamentos pessoais, sociais e políticos entendemos a transformação da sociedade na direção do reino de Deus, para que se faça justiça aos excluídos de tal forma que encontrem vida e salvação. Nesse sentido, a espiritualidade dá sentido à vida pessoal, social e política e torna-se além de profética, transformadora.

2. Mas a espiritualidade tem um outro movimento, que se por um lado está ligado ao rigor da fé, como vemos na oração e nos momentos de contrição, ela se realiza existencialmente, enquanto encontro com Deus. Esse encontro, conforme no diz Jesus, é a adoração e está na raiz da conversão e de todo processo de santificação. É um processo místico, no sentido que mostra nossa miserabilidade diante do insondável mistério de Deus.

Por isso, a espiritualidade e, por extensão, a sua expressão de submissão, possessão e entrega, que é a adoração, é profética e transformadora no encontro com o outro, com o humano, e um ato místico de adoração diante da majestade de Deus.

Ou, conforme nos diz Galilea, a contemplação de Jesus Cristo no irmão que sofre e a contemplação de Deus no Cristo ressurreto são sempre frutos da ação do Espírito em nossas vidas. Esses dois encontros devem ser a base da espiritualidade cristã na alta modernidade e fundamentam todo ato de adoração daquele que crê.

“Ora, Deus que sempre amei – te amo sabendo/ amar-te; com a inefável certeza/ que tudo foi justiça, mesmo a dor, / tudo foi bem, mesmo o meu mal, tudo/ para mim Tu foste e sei, me faz temente/ de uma alegria maior que a morte. / Permanece comigo, pois a noite desce/ sobre minha casa com misericórdia/ de sombras e estrelas. Que Tu participas, à mesa/ humilde, o pouco pão e a água pura/ da minha pobreza. Permanece Tu apenas/ junto de mim a tua serva; e no silêncio/ dos seres, o meu coração te entende único”.

Notas
1. Ada Negri nasceu em Lodi, na Lombardia, em 1870, filha de camponeses. Seus primeiros livros refletiam uma consciência social que se opunha às tendências dominantes no fim do século. Mais tarde, a sua poesia incluiu uma afirmação de sexualidade feminina, diferente das tradicionais poesias de amor (Il Libro di Mara, 1919). Ada Negri faleceu em 1945.
2. Tradução do italiano para o português por Jorge Pinheiro.
3. Vadlimir Lossky, A l’image et la ressemblance de Dieu, Paris, 1967, p. 118.
4. Paul Tillich, A Era Protestante, São Paulo, Ciências da Religião, 1992, pp. 275-276.
5. Rudolf Otto, O Sagrado, Lisboa, Edições 70, 1992, pp. 21-22.

vendredi 22 août 2008

A Teologia da Libertação Negra ganha relevo na política americana

Fernando Lugo, Rafael Correa, e mesmo Lula, considerando-se a forte militância petista das pastorais sociais, ascenderam ao poder na América Latina inspirados pela Teologia da Libertação. Nos EUA, Barack Obama coloca em relevo a Teologia da Libertação Negra. O candidato democrata à presidência dos Estados Unidos foi formado pela Trinity United Church of Christ [Igreja Unida da Trindade de Cristo], a maior igreja dentro da denominação protestante de maioria branca United Church of Christ, conhecida por ser uma das mais liberais do país e inspirada na Teologia da Libertação Negra.

Recentemente, Obama rompeu com o reverendo Jeremiah Wright, considerado o seu mentor espiritual. Jeremiah Wright, recém-aposentado da Igreja, afirmou que os Estados Unidos foram alvo de terrorismo porque têm um governo terrorista. O pastor, em função de sua postura contundente, passou a criar problemas para Obama, e o candidato democrata preferiu se afastar.

Porém, Obama nunca negou a influência do reverendo negro em sua vida política. Em seu livro autobiográfico A origem dos meus sonhos (Editora Gente, 2008), Obama fala da influência em sua vida religiosa do pastor Jeremiah Wright, líder espiritual da Trinity United Church of Christ de Chicago: “Filho de um ministro batista [que] resistiu à vocação paterna no começo, se alistou nos marines ao sair do college, e flertou com a bebida, o islã e o nacionalismo negro nos anos 60 (...) onde aprendeu hebreu e grego, leu Tillich e Niebuhr e os teólogos da libertação negros”.

Num segundo livro, A audácia da esperança: reflexões sobre a reconquista do sonho americano (Editora Larousse do Brasil, 2007), livro mais recente e já rompido com o reverendo Jeremiah Wright, Obama reconhece que o título do livro é uma frase tirada de um dos sermões do pastor Jeremiah Wright e que o mesmo representa “o melhor do espírito americano”. Antes de cunhar seu Yes we can (Sim, nós podemos), o lema político de Obama era audacity of hope (audácia da esperança), algo semelhante ao ‘Sem medo de ser feliz’ da campanha de Lula de 1989.

Sobre a sua relação com Obama, o pastor Jeremiah Wright disse: “Os oponentes de Obama exploram trechos dos meus sermões como arma política para amedrontar eleitores contra a candidatura de um negro. Meus sermões fazem parte de uma longa tradição de pregadores da igreja negra nos EUA. A igreja negra americana surgiu da opressão da população negra escrava e por isto meus sermões refletem sobre os séculos de discriminação, falam da libertação negra, numa tradição política e religiosa que é muito distinta da tradição européia. Diferente, mas não inferior”.

O reverendo Jeremiah Wright, que inspirou Obama para o mundo da política, é um dos principais representantes da denominada teologia da libertação negra. O pastor costuma afirmar: “Venho de uma tradição religiosa onde gritamos na igreja e nos manifestamos no piquete de greve”.

Jeremiah Wright teve como um dos seus professores de teologia James Cone, considerado o principal teólogo da teologia da libertação negra. De acordo com o jornalista e escritor Eileen Markey, o reverendo James Cone foi o criador da teologia negra e seu primeiro proponente ao publicar a obra Black Theology and Black Power [Teologia negra e poder negro] em 1969. Considerado o pai da teologia da libertação negra, Cone é o professor de Teologia de Charles A. Briggs no Seminário de União Teológica em Nova York e ainda uma referência nessa teologia. Segundo, Eileen Markey “em seu segundo livro, A Black Theology of Libération [Uma teologia negra de libertação], ele escreveu que o Deus da Bíblia esteve bem mais preocupado com ‘a falta de justiça social, econômica e política para com aqueles que são pobres e indesejados na sociedade’. Cone argumentou que este Deus trabalha pela libertação dos negros oprimidos na América contemporânea. Porque Deus está ajudando os negros oprimidos e é identificado com eles, o próprio Deus é apresentado como negro”.

Eileen Markey destaca que “as origens da teologia da libertação negra são políticas e intensamente temporais, como a teologia da libertação de Gustavo Gutiérrez, a qual inspirou as comunidades cristãs de base da Guatemala e de El Salvador e condenou a opressão econômica e política do povo da América Latina. Ambas as teologias permitem que Cristo escape da segurança da igreja. Como no Novo Testamento, ele está profundamente preocupado com a justiça para com o oprimido”.

Na análise do jornalista Eileen Markey, M. Shawn Copeland, professor de teologia no Boston College, considera a teologia da libertação negra como uma das maiores teologias – ou formas de estudar Deus – que se desenvolveu ao longo dos movimentos sociais e políticos das últimas quatro décadas: “A teologia negra se desenvolveu a partir do fermento político dos movimentos de direitos civis e de poder negro. Ela responde ao colapso do pensamento desta época. As velhas concepções já não são mais adequadas à situação”.

A teologia negra da libertação ganha força na esteira dos assassinatos de Martin Luther King Jr. e Malcolm X: “As pessoas estavam em busca de uma forma de apelar para a Bíblia e tomar parte nas questões contemporâneas, como o Poder Negro e os direitos civis”, afirma o reverendo James Cone.

A teologia da libertação negra se expandiu como “uma crítica das dinâmicas, pelas quais as estruturas de raça, classe e gênero reduzem a plenitude da vida para aquelas pessoas que descobrem não fazerem parte da cultura dominante”, afirma Jamie Phelps, professor de teologia e diretor do Instituto de Estudos Católicos Negros na Universidade Xavier de Nova Orleans, citado na análise de Eileen Markey. Em outras palavras, “em face da extensão pela qual raça, classe e gênero agem para negar aos pobres, às mulheres e às pessoas de cor o pleno reconhecimento de sua identidade como seres humanos feitos à imagem e semelhança de Deus e para negar sua plena dignidade humana e participação, como sujeitos, dentro da sociedade e da igreja, portanto, em face desta extensão nós precisamos falar sobre libertação”, diz Jamie Phelps.

É dessa vertente religiosa que vem Barack Obama. A religião sempre fez parte da política americana, é comum os candidatos encerrarem os seus discursos políticos com um “Deus abençoe a América”. Ainda que conste da Constituição americana uma rigorosa separação entre o Estado e a Igreja, as religiões fazem parte do cotidiano da política americana. Bush construiu parte de sua base de poder explorando o “voto religioso” a partir de uma agenda neoconservadora.

Os norte-americanos podem imaginar um negro ou uma mulher como candidatos à Presidência do seu país, mas não um ateu”, afirma o jornalista Bernardo Carvalho acerca da importância da religião para os americanos. Em sua ascensão meteórica rumo ao centro da política americana Obama abandonou o seu passado agnóstico e associou-se à Trinity United Church of Christ. A Trinity, conhecida por pregar a teologia da libertação negra reivindica elementos das tradições africanas o que está em sintonia com a origem paterna de Obama, uma vez que seu pai nasceu no Quênia.

O jornalista Bernardo Carvalho relata a visita que fez à Igreja de Barack Obama: “São quase 11h e a Trinity United Church of Christ, no South Side de Chicago, está cercada por vans e câmeras das principais redes de TV americanas desde as 8h. É o primeiro domingo em que o novo pastor, o reverendo Otis Moss empossado em fevereiro, ocupará a cadeira antes reservada a Wright. No centro da igreja, vestido com túnica branca com pregas coloridas, que combinam com os motivos africanos dos trajes dos pastores associados ao redor, Moss finalmente se refere ao trauma, lendo uma Declaração de Interdependência, na qual presta homenagem ao pastor Wright, sem mencioná-lo pelo nome.

Nada é direto. Moss já não se refere à ‘crucificação do reverendo Wright’. O texto cita Entre Quatro Paredes, de Sartre, para falar da ‘estranha tragicomédia grega’ em que a comunidade da Trinity se viu envolvida nos últimos meses. ‘Somos um povo humilhado, e as feridas do nosso encontro com a história deixaram cicatrizes na nossa alma. A Bíblia é clara: somos pressionados por todos os lados, mas não fomos destruídos!’

É essa declaração de resistência e superação, ao mesmo tempo em que agradecem ao Senhor com uma celebração de êxtase coletivo, que dá o tom trágico, desesperado e heróico do culto. Aqui, Deus foi transformado em estratégia de luta e mobilização social. Enquanto as outras igrejas pregam a obediência, a Trinity aprendeu a fazer o elogio da rebeldia, em reação à segregação.

Daí a catástrofe de constatarem o óbvio e o irreversível: que Obama só tinha alguma chance de se eleger presidente de um país como os EUA depois de se desvencilhar do reverendo Wright e de sua igreja. A igreja inteira canta e dança sem parar, ao som de spirituals, freedom songs, folk e até jazz, por quase três horas seguidas. O mezanino sacode. A igreja parece vir abaixo, os pastores pingam de suor, as pessoas dançam, cantam e batem palmas. Mulheres tremem na platéia, numa espécie de transe, e são reconfortadas por vizinhos e vizinhas. Agradecem ao Senhor e choram.

A incorporação de formas do misticismo africano como modo de resgate cultural das origens é deliberada e bem-vinda, ao contrário das congregações negras mais conservadoras, como a evangélica The Potter's House, em Dallas, no Texas, a maior igreja negra dos EUA. No South Side de Chicago, o reverendo Moss termina seu sermão de domingo invocando grandes homens que permaneceram à sombra da história, às margens da grandeza, sempre fiéis a sua visão.

É difícil não ver aí uma referência à própria relação entre o reverendo Wright e Barack Obama. Uma referência que traduz a visão da igreja: a tragicomédia de um pai espiritual que, por sua radicalidade inconveniente, é obrigado a se recolher à sombra para que o filho possa vencer num mundo injusto”, conclui o relato Bernardo Carvalho.

O rompimento de Obama com o reverendo Jeremiah Wright é explicado por Dwight Hopkins, especialista em teologia negra e teologia da libertação negra da Universidade de Chicago. Segundo o teólogo, “a maior parte da mídia norte-americana não tem conhecimento suficiente sobre a igreja negra nos EUA e sua imbricação com a política”.

Dwight Hopkins, referindo-se a Obama e ao reverendo Dwight Hopkins, explica que o problema são as biografias: “Os dois homens têm duas histórias de vida, experiências e personalidades diferentes. O pai de Obama era da África, sua mãe, uma mulher branca de Kansas. Os dois se encontraram no Havaí, que é um dos lugares mais multiculturais, multiétnicos e multirreligiosos dos EUA. É nesse ambiente que Obama cresceu. Sua opinião sobre o que os americanos são é baseada em interações multiculturais, esperança de pessoas vivendo juntas. Já Wright é um pastor de terceira geração, que cresceu ouvindo falar de escravidão, dos 40 acres e uma mula que foram prometidos aos negros libertos. Cresceu na parte negra da Filadélfia na época do assassinato de Martin Luther King, da ascensão dos Panteras Negras, trabalhou na campanha pela eleição do primeiro prefeito negro de uma cidade grande nos EUA. Ele vê o país não pelo que o país pode ser, mas pelo que viveu. Eles vêem dois países diferentes”.

Segundo Dwight Hopkins, Obama representa uma nova geração de líderes negros, multiculturais e birraciais. “O DNA deles é diferente do dos líderes negros de velha guarda como Wright acha que todo negro que disputa um cargo público tem de basear seu programa na plataforma negra, enquanto Obama acha que o caminho é pensar nos problemas gerais da população americana, entre eles a desigualdade racial”.

Enfim, em plena contemporaneidade, quando se pensava que Deus estava morto, ou pelo menos, empurrado para o seu cantinho, ele ressuscita. Ressurreição de Deus é o título de uma grande reportagem publicada, recentemente, pelo jornal argentino Clarín. Por sua vez, o espanhol e secularizado jornal El País intitulava a reportagem sobre o 'boom' de livros religiosos na cada vez mais laica Espanha: "Somos secularizados mas nos interessamos por Deus".

Fonte
Conjuntura da Semana. Notícias do Dia do IHU de 13-19 de agosto de 2008.

mercredi 20 août 2008

China: o grande salto para frente

A Igreja chinesa se adapta aos novos tempos de prosperidade do país e consegue avanços.

Job e sua mulher converteram-se da mesma maneira que a maioria dos chineses que hoje conhecem a Cristo: uma amiga que visitava o casal compartilhou o Evangelho com eles. “Ela veio à nossa casa e, durante 20 horas a fio, pregou para nós”, lembra Job, referindo-se a uma noite inesquecível, ocorrida cinco anos atrás. Assim, de pessoa para pessoa, ao melhor estilo da Igreja Primitiva em pleno século 21, o Cristianismo se espalha na mais populosa nação do mundo. A opção não é apenas questão de preferência. Até recentemente, as igrejas não podiam realizar nenhum tipo de atividade evangelística pública, pois temiam que fosse interpretado pelas autoridades comunistas como ações perturbadoras da ordem. Como conseqüência deste cuidado, Job e sua mulher – ambos médicos e professores universitários –, enfrentaram uma curiosa dificuldade após renderem-se ao Senhor. Eles simplesmente não sabiam encontrar uma igreja onde pudessem congregar.

Hoje, os dois não têm nenhuma dificuldade para encontrar um dos diversos templos cristãos existentes em sua cidade, mas o panorama era outro há bem pouco tempo. Foi por esta razão que, seguindo o conselho da amiga que os evangelizou, Job decidiu iniciar um grupo de estudo bíblico em sua própria casa. Em apenas quatro meses, cerca de 100 pessoas participavam das reuniões domésticas com regularidade. Não seria hora de começar uma igreja? Para Job, trabalhar com oficiais do governo, agentes de segurança e outros tipos de pessoas influentes perante o regime era algo costumeiro. Como médico, costumava atender lideranças locais do Partido Comunista em sua cidade, onde vivem cerca de 8 milhões de pessoas. Esta convivência o levou a perceber que não seria necessário esconder sua igreja, ao contrário do que acontecia durante os tempos tenebrosos da Revolução Cultural, que massacrou os cristãos entre os anos 1960 e 70.

Ao invés disso, Job abraçou a estratégia de encontrar-se mensalmente com autoridades do partido para mantê-los informados acerca das atividades da igreja que mantinha em casa, chegando inclusive a fazer algo inimaginável durante os anos de chumbo – convidá-los para cultos especiais em ocasiões especiais do calendário cristão, como a Páscoa e o Natal. Atualmente, o grupo se reúne numa sala comercial alugada, cujas reuniões são públicas e abertas a quem quiser participar. “A relação do antigo movimento de igrejas domésticas com o governo era de confronto”, diz o médico. “Nós queremos coexistir de maneira pacífica. Se eles nos pedem alguma coisa, nós avaliamos com cuidado, e quando é apropriado, fazemos o máximo possível para colaborar”. E essa parceria não representa nenhum tipo de engajamento político, e sim, ações voltadas para a comunidade. No Natal do ano passado, por exemplo, igrejas domésticas urbanas de diferentes partes do país trabalharam com instituições oficiais para entregar donativos a famílias carentes. “A nossa aceitação por parte do governo depende de nossa contribuição a sociedade”, diz um pastor.

Mudança de atitude – A mudança de atitude dos crentes chineses já pode ser chamado de “grande salto para frente”, à semelhança do processo político encabeçado pelo líder Mao Tse Tung, protagonista da revolução comunista de 1949. Só que os objetivos são diametralmente opostos. O sucesso destas novas igrejas, que não se escondem para professar sua fé, está impactando as congregações domésticas tradicionais e clandestinas. “As igrejas estão cansadas de se esconder”, afirma John Davis, presbítero da Comunidade Cristã Internacional de Pequim, a principal igreja da capital do país voltada para estrangeiros que falam inglês. “Elas têm estado escondidas por tanto tempo que agora se sentem prontas para serem vistas, para serem sal e luz na sociedade”.

Em Wenzhou, cidade conhecida como a Jerusalém do Oriente, templos com arquitetura tipicamente urbana estão se multiplicando como brotos de bambu. Um pastor local, conhecido como Tio Daniel, foi transformando sua congregação rural em uma igreja moderna à medida que a região metropolitana se expandia em sua direção. Neste meio tempo, tornou-se um empresário bem-sucedido: agora, dirige um Audi e é proprietário de duas casas. “Estamos nos tornando espirituais e sofisticados de uma só vez”, brinca. Daniel é muito consciente da pobreza e perseguição do passado. Mas está atento às oportunidades criadas pelo espetacular crescimento econômico que o país tem experimentado nos últimos anos. Em virtude desta nova realidade econômica, política e social, cristãos chineses agora têm acesso à prosperidade. Eles estão aproveitando o momento singular para tornar a China um lugar mais acolhedor para aqueles que desejam viver e proclamar o Evangelho.

A crescente influência de cristãos na sociedade chinesa é resultante da cooperação com o governo outrora – e, às vezes, ainda hoje – repressor e violento. “Deus tem os seus olhos postos sobre a China”, declara Daniel. “Eu percebo esse fato na atual postura do governo, nas mudanças econômicas e políticas. Eu acredito que Deus permitirá que a China se torne poderosa não apenas por razões econômicas, mas, muito além disto, por causa do seu Reino.”

O impressionante crescimento do Cristianismo no Gigante Asiático teve seu início no fim da década de 1970, nos estertores da sangrenta Revolução Cultural. Durante aquele período, cerca de 7 milhões de pessoas morreram de fome ou vitimadas pela violência. Estimava-se, à época, que a China tivesse 3 milhões de católicos e protestantes, a maioria vivendo na clandestinidade. Trinta anos mais tarde, as estimativas variam amplamente, indo desde 54 milhões a 130 milhões. Se este último número estiver correto, a fé cristã terá crescido 43 vezes no período – um índice jamais visto em toda a história do Cristianismo.

Crente e comunista – Hsu, um ex-jornalista da rede de televisão estatal CCTV, é um bom exemplo de como um membro da elite educada da China se converte ao Cristianismo. Hsu contou sua história para Christianity Today durante almoço num dos restaurantes da rede americana KFC – que, por sinal, estava lotado. Tudo começou com sua busca pessoal e política pela liberdade. Nesta procura, interessou-se pela história da Europa o suficiente para saber que a propalada liberdade do Oeste pode ser relativa. “Os ocidentais não são mais interessados pela liberdade do que os demais”, acusa. Contudo, reconhece que nações como os Estados Unidos e a União Européia têm atingido e sustentado um grau de liberdade maior do que o existente em outros lugares. Para o ex-jornalista, o motivo é claro: “Antes de a liberdade chegar, é preciso ter uma fundação que possa garantir-lhe sustentabilidade. No Ocidente, esta fundação é o Cristianismo”.

Hoje, diz Hsu, a Igreja é uma incubadora para avanços semelhantes na China. “Depois de o país ter adotado a ciência e a filosofia ocidental, abriu-se um vazio de valores”, destaca. “O ocorrido na Praça Tiananmen roubou a esperança de muitos intelectuais que passaram a se fazer perguntas sobre o sentido da vida. Os chineses parecem ter perdido a fé na sabedoria humana”, comenta, referindo-se ao massacre de manifestantes pró-liberdade ocorrido em 1989. O episódio acabou sendo decisivo para as mudanças verificadas na China na virada do século. “A Revolução Cultural foi um desastre cujo resultado é este inesperado despertamento espiritual que temos experimentado”, avalia. Por sua vez, Hsu encontrou seu caminho na Palavra de Deus – através da Bíblia, aprendeu que a “fé em Deus é o princípio da liberdade”. Convicto, sugere que a esperança da Igreja chinesa não é a transformação política. “A essência do problema tem a ver com salvação”, sentencia.

De acordo com observadores, a China já está mudando sua postura em relação à religião. No último Congresso do Partido Comunista, que acontece a cada cinco anos, as principais autoridades da nação reuniram-se para planejar o futuro. Num discurso que durou aproximadamente duas horas e meia, o presidente Hu Jintao sinalizou que o governo pretende aproveitar o que os cristãos podem oferecer em termos de desenvolvimento econômico e social. Trata-se de um sinal dos tempos, já que, há cinco anos, a intenção dos mandatários chineses era simplesmente “encorajar a adequação das religiões aos moldes da sociedade socialista”.

O reconhecimento ao potencial da religião em favor da sociedade pode ser considerado um marco histórico nas conturbadas relações entre o Cristianismo e o comunismo na China. A presença de cristãos no Partido Comunista hoje em dia não é nenhuma novidade. Jesson Tian cresceu como adepto do confucionismo e antes de começar a faculdade filiou-se ao partido, seguindo o conselho do pai. Só que, nos anos de universidade, Tian converteu-se a Cristo. E ele não vê nenhuma contradição entre as duas coisas. “Sempre que compartilho o Evangelho com alguém, deixo claro que sou um membro do Partido Comunista. As pessoas se surpreendem, mas passam a confiar mais em mim”. Jesson Tian freqüenta as reuniões de uma igreja doméstica urbana e participa também da congregação Haidim, em Pequim, igreja oficial e devidamente registrada perante o governo chinês. Parte da verba para a construção de seu novo templo veio dos cofres oficiais. Para ele, esta proximidade não tem o poder de afetar a fé das pessoas: “O governo controla a Igreja legalizada, mas não para determinar o andamento das coisas”, resume.

Limbo – Pode ser, mas apesar dos avanços, a trajetória rumo à liberdade, ao que tudo indica, será longa. Em 2003, o lançamento do livro Jesus in Beijing (“Jesus em Pequim”) e de uma série de vídeos intitulada A cruz expôs demais o movimento da Igreja doméstica aos olhos da opinião pública e das autoridades – segmentos ainda aferrados à tradição atéia do regime comunista. O resultado foi uma série de ações repressivas ao seu livre funcionamento. Enquanto a reportagem de Christianity Today permaneceu no país, vários líderes e membros das igrejas urbanas manifestaram o desejo de falar à reportagem, mas diziam não poder fazê-lo por ainda operarem no contexto de uma certa clandestinidade. E mesmo os que atenderam ao repórter pediram que seus nomes fossem suprimidos ou reduzidos, de modo a impedir a identificação.

Embora um pastor da cidade de Guangzhou tenha dito que “muitos” dos 400 membros de sua igreja pertencem ao Partido Comunista, do ponto de vista da lei, as igrejas domésticas urbanas encontram-se numa espécie de limbo. É que muitas de suas atividades, sobretudo o proselitismo, ainda são consideradas ilegais, se bem que o governo – que parece estar abandonando a rigidez de outrora – esteja ciente das mesmas e pareça não se importar. Ninguém pode garantir, no entanto, se isso irá continuar da mesma maneira e por quanto tempo. O fantasma da perseguição religiosa ainda ronda os servos de Jesus na Terra dos Mandarins. Durante a apuração desta reportagem, um bem-sucedido advogado cristão, militante dos direitos humanos, foi espancado e preso e líderes da igreja que ele freqüentava foram levados para a cadeia. A China Aid Association, entidade não-governamental de orientação cristã, continua veiculando informes de crentes presos, submetidos a trabalhos forçados e mortos devido à sua fé. Pelo que se vê, ainda que muita coisa esteja mudando na China, algumas realidades parecem permanecer do mesmo jeito. Até quando, só o tempo dirá.

Uma Igreja com três faces
Para se entender o novo panorama religioso na China, é preciso entender que o Cristianismo no país pode ser dividido em três segmentos. O primeiro deles é composto pelas associações oficiais, que são igrejas católicas e protestantes registradas pelo governo, o qual aprova – ou não – as indicações para funções pastorais e de administração eclesiástica. O segundo é o tradicional movimento de igrejas domésticas clandestinas, que recusa submeter-se à ingerência oficial. É o grupo mais forte nas áreas rurais. Ele explodiu quando as autoridades comunistas reduziram as restrições religiosas e econômicas no fim da década de 1970. O outro grupo é a crescente Igreja urbana, que, embora não esteja formalmente ligado aos órgãos oficiais, não adota a postura de enfrentamento da tradicional Igreja clandestina. Atualmente, o avanço da fé cristã no mais populoso país do planeta está ligado justamente a este segmento nas grandes cidades.

Uma questão de valores
Em Abril de 2007, líderes do movimento de igrejas domésticas urbanas reuniram-se em Wenzhou para discutir sua identidade e seus desafios. Muitos destes novos dirigentes têm em comum o fato de terem sido formados por David Wang, ex-presidente da agência missionária Socorro para a Ásia, cuja sede está localizada em Hong Kong, ex-protetorado britânico reincorporado à China há dez anos.
No encontro do ano passado, sete valores fundamentais foram identificados:

• Praticar o princípio da supremacia do Reino de Deus. As igrejas domésticas urbanas reconhecem e cooperam com as outras igrejas espalhadas pelo país, sem distinções confessionais. Como a maioria dos crentes chineses, os adeptos do movimento cristão urbano são intencionalmente não-denominacionais
• Defender a centralidade bíblica. Teologicamente, as igrejas domésticas urbanas são conservadoras e evangelicais.
• Crer nos chamados cinco ministérios, reconhecendo as funções de apóstolos, profetas, evangelistas, pastores e mestres como descritas em Efésios 4.11
• Equipar os santos. Ao invés de se apoiarem em lideranças carismáticas, a ênfase é na mentoria cristã e no discipulado
• Receber a vida abundante. Embora a teologia da prosperidade seja descartada, as bênçãos materiais podem e devem ser buscadas, inclusive para sua utilização em favor do crescimento do Reino de Deus
• Evangelizar. A vocação missionária é alavancada pelas novas oportunidades de preparo e envio de obreiros locais e transculturais
• Socorrer o próximo. O compromisso social tem sido levado a sério como vocação da nova Igreja


Fonte: First published in Christianity Today, copyright © 2008. Used by permission, Christianity Today International. Tradução: Leandro Marques; adaptação: Carlos Fernandes.

mardi 12 août 2008

Do Logos de Heráclito ao análogo de Dussel

Professor Dr. Jorge Pinheiro


Logos, no grego 'palavra', foi entendido pelo filósofo grego Heráclito de Éfeso, como o princípio supremo de unificação, portador do ritmo, da justiça e da harmonia que regem o Universo. ["Bem dizia Heráclito: homens são deuses e deuses são homens, porque o Logos é um só" (Hipólito, Refutações, IX, 10,6)]. Assim, Heráclito diante da mobilidade de todas as coisas denominou fogo ao elemento primitivo, e viu este comandado por uma lei natural inteligente ou racional, o Logos. Considerou o Logos dotado de dois princípios internos contrários a operar, ditos por ele, antropomorficamente, guerra e paz (ou discórdia e concórdia). Estas duas forças contrárias transformavam o elemento primitivo, ora na direção da solidificação, ora de retorno ao estado móvel do fogo. Portanto, o Logos, concebido por Heráclito como uma lei natural ordenadora, a tudo comanda em forma dialética. E segundo Platão é o princípio de ordem, mediador entre o mundo sensível e o inteligível. Assim, para a filosofia grega, Logos era o princípio da inteligibilidade, a razão.

Mas, exatamente por ser razão e palavra, Logos mantém uma relação de complementação com sabedoria, e por isso é pensada por Heráclito como harmonia, o próprio nexo original entre Logos e physis. Todavia, para que, diante da ameaça do relativismo trazido pelas argumentações sofísticas, encontre-se melhor determinado o que se compreende por verdade, o pensamento de Sócrates e Platão vai formular explicitamente a questão: o que é? Esta questão busca definir isso que subjaz sempre idêntico a si mesmo, a substância ou essência, fundamento de +toda instabilidade acidental da existência aparente. O que em Heráclito se delimitava como o encontro da harmonia passa a ser, a partir do pensamento de Sócrates e Platão, uma procura: nasce, assim, a filosofia como um desejo de conhecimento. Aristóteles caracteriza expressamente esta transformação quando afirma em sua obra que "O que desde sempre, agora e para sempre, é constantemente procurado, porque sempre de novo a questão fracassa, é o problema: o que é o ser?". A filosofia constitui-se, a partir das concepções socrática, platônica, aristotélica, como o pensamento que investiga a questão do ser.

O conceito razão relaciona-se a três outros: essência, existência e essencialização. A essência não é apenas aquilo que uma coisa é, mas também aquilo que faz com que uma coisa possa ser. Nesse sentido, essência é potencialidade, o poder de ser e a fonte de existência: origem do ser. Mas também é o reino da cognição, do pensamento, impossível de penetrar. Pari passo à essência, o Logos correlaciona mente e realidade, tornando possível o conhecimento. Quando alguém compreende e fala sobre a realidade, faz juízos e define padrões, que são comuns aos outros seres humanos, se comunica. E quem possibilita a comunicação é o Logos. Assim, o Logos é a origem da razão e também do ser. Mas, origem do ser aqui não significa conhecimento a priori, é estar colocado à parte do reino da finitude e por isso a origem do ser só é conhecida por um ato de revelação.

A importância do logos

Dentre as inúmeras transformações que surgem com a pólis, a mais importante é a extraordinária preeminência da palavra sobre todos os outros instrumentos de poder.

A palavra deixa de ser o termo ritual e passa a ser a fonte para o debate, discussão e reflexão, sendo ela, ou melhor, o seu uso de forma mais persuasiva, que irá definir o orador vencedor dos embates dialéticos (dialética é compreendida como a arte real da discussão: as normas para uma discussão correta). Todas as questões de interesse geral passam a ser submetidas à arte da oratória e as decisões são as conclusões dos debates. A política se torna a arte do domínio da linguagem. Com a popularidade dos debates e das discussões, a polis se fundamenta na publicidade das manifestações sociais; se distinguem os interesses comuns dos privados, consolidam-se as práticas abertas e o domínio público, a base social da estrutura.

Porém, esse desenvolvimento traz uma profunda transformação, já que ao tornar comuns os elementos de uma cultura, levamos os mesmos à crítica e à controvérsia. Todos os elementos estão expostos a interpretações diversas e a debates apaixonados. Já não era possível se impor só por prestígio pessoal ou religioso... Devia haver o convencimento pela dialética.

A palavra constituiu-se no instrumento da vida política. Sua vertente escrita trouxe em si a possibilidade de uma completa divulgação do conhecimento. Neste momento, a escrita tornara-se pública, não mais estando presente apenas no palácio – como no período micênico. Neste contexto, o saber pode tornar-se igualmente público, deixando de estar restrito aos magistrados ou sacerdotes. Depois de divulgadas, as idéias deverão ser submetidas ao debate político e à aceitação popular.

A sabedoria e o logos

Com a consolidação da importância da palavra, o saber passa a ser um bem público. E a sabedoria, tão exaltada por filósofos como Platão, para o qual a sabedoria pertencia ao passado, ofereceu aos seus contemporâneos o amor à sabedoria, à filosofia. Assim, a sabedoria percorreu as veredas da linguagem, da palavra, do discurso, do logos, da dialética: este caminho tornou-se característico da cultura grega. Pode-se, em última instância, argumentar que a filosofia nasceu no momento em que se tentou recuperar algo perdido, a sabedoria, mesclada à dialética.

Não foi sem resistência que esse percurso foi seguido. A popularização do saber, antes inacessível, foi questionada. Havia uma articulação para que os mitos que chegassem à praça publica e fossem objeto de exame, mas não deixassem de ser um mistério. A sua reformulação produziu um salto no desenvolvimento humano, mantendo seus reflexos até hoje.

Na contemporaneidade latino-americana, partindo da dialética, Enrique Dussel propõe a dialética analógica da alteridade, a abertura da totalidade à alteridade, transcendendo o âmbito do logos. O logos permanece no mundo e não pode avançar mais além. O logos que transcende é análogos, mais além do logos, analogia que se articula na dialética da voz ouvida que leva a ouvir: ou seja, a ouvir a voz. Assim, o logos chega ao seu limite, e confia no que ouve do outro pela fé, pois sem a confiança no outro, não se pode escutar sua voz. Fé aqui significa ir mais além do horizonte da physis, ir mais além do horizonte da ontologia do mesmo, afirmando a ontologia da negatividade, isto é, já que o outro não se origina no idêntico, é diferente. Brota como ouvido, é âmbito ao qual a totalidade pode abrir-se, e ao abrir-se muda de estatuto, tornando-se ontologia negativa.

Em sua reflexão sobre a superação das totalidades ontológicas a partir da abertura à alteridade, Dussel afirma que tal superação se dá com a metafísica, entendida como além do fundamento. E se dá assim porque a metafísica não é somente ontológica, mas opera através da descoberta de um mais-além do mundo. E como em grego aná significa mais além, e logos significa palavra, análogos toma o sentido de palavra que irrompe no mundo desde um mais além do fundamento. O método ontológico-dialético chega até o fundamento do mundo desde um futuro, porém se detém diante do outro como um rosto de mistério e liberdade, de história distinta, mas não diferente. 1 Mas se o outro é distinto, não há diferença, nem retorno, embora haja história e crise. Por isso, para Dussel, se este logos irrompe enquanto interpelante indo mais além da compreensão, ele é análogo.

Essa interpretação de Dussel repousa na compreensão do Logos joanino, que repousa em Jesus, o Cristo, acima da tradição filosófica, quer de Heráclito, quer de Platão ou do neoplatonismo, e ainda da filosofia judaica expressa em Filón de Alexandria. Nesse sentido, se antes estávamos diante da personificação do Logos, ainda assim não há na tradição da filosofia grega ou judaica a idéia de encarnação do Logos. Esse Logos joanino, por isso, vai além de toda a tradição filosófica, embora João a utilize como ponte para falar à cultura de sua época.

Há ainda uma ponte com o pensamento judaico, principalmente no que se refere aos textos de Gênesis Um e de Provérbios 8.22-31. O primeiro ao utilizar a expressão “en arqué” e o segundo ao personalizar a sabedoria. Nesse sentido, o Logos de João se apresenta como análogo. Análogo a Deus, porque é pessoa divina, e análogo aos seres humanos, porque é pessoa humana.

Análogo significa que o Logos vem de mais-além, isto é, que há um primeiro momento no qual surge uma palavra interpelante, mais além do mundo, que é o ponto de apoio do método dialético porque passa da ordem antiga à ordem nova. Embora, este Logos eterno se reflita através de nossos pensamentos e por isso não possa existir um ato do pensamento sem a secreta premissa de sua verdade incondicional [Romanos 12.2 e 1Coríntios 2.16].

Mas a verdade incondicional não está ao nosso alcance. Em nós humanos há sempre um elemento de aventura e risco em cada enunciado da verdade. Mas mesmo assim, podemos e devemos correr este risco, sabendo que este é o único modo que a verdade pode ser revelada a seres finitos e históricos.

Quando mantemos relação com o Logos eterno e deixamos de temer a ameaça do destino demoníaco, aceitamos então o lugar que cabe ao destino em nosso pensamento. Podemos reconhecer que desde o princípio esteve submetido ao destino e que sempre desejou livrar-se dele, mas nunca conseguiu.

Tarefa teológica da maior importância, na análise cristã do destino é saber relacionar Logos e kairós. O Logos deve alcançar o kairós. O Logos deve envolver e dominar os valores universais, a plenitude do tempo, a verdade e o destino da existência. A separação entre Logos e existência chegou ao fim. O Logos alcançou a existência, penetrou no tempo e no destino. E isso aconteceu não como algo extrínseco a ele próprio, mas porque é a expressão de seu próprio caráter intrínseco, sua liberdade.

É necessário, porém, entender que tanto a existência como o conhecimento humano estão submetidos ao destino e que o imutável e eterno reino da verdade só é acessível ao conhecimento liberto do destino: a revelação. Dessa maneira, ao contrário do que pensavam os gregos, todo o ser humano possui uma potencialidade própria, enquanto ser, para realizar seu destino. Quanto maior a potencialidade do ser – que cresce à medida que é envolvido e dominado pelo Logos – mais profundamente está implicado seu conhecimento no destino.

Nosso destino, que aqui pode ser entendido como missão, é servir ao Logos num novo kairós, que emerge das crises e desafios de nossos dias. Quanto mais profundamente entendermos nosso destino [no sentido de prokeimai, estar colocado, ser proposto] e o de nossa sociedade, tanto mais livres seremos. Então, nosso trabalho será pleno de força e verdade.

Notas

1. Enrique Dussel, “El Método de Pensar Latinoamericano: la Analéctica como Ruptura Teórica”, conferência proferida em novembro de 1972, in Introduccion a Una Filosofia de la Liberación latinoamericana, México D.F., Ed. Extemporâneos, 1977, pp. 117 a 138.