Cara a cara com o diferente
Introdução
Como é que você encara uma
conversa com uma pessoa de religião diferente da sua? Quando se fala do estar
frente a frente com o outro diferente, estamos falando em começar uma conversa.
É um momento que não objetiva proferir uma palavra de confrontação, de marcar
posições a priori, mas objetivar um encontro que hoje deve estar voltado para a
dignificação do excluído.
Dentro desse espírito, você deve fazer, de
novo, a pergunta: como encaro uma conversa com um fiel do candomblé ou da
umbanda, ou com alguém que não é religioso? Quanto se pensa em promover a
justiça social sem discriminação, a pergunta que fizemos é norteadora.
Em 1982, seguindo preocupação semelhante, mas
procurando estabelecer um diálogo mais teológico, foi criado o Conselho
Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC) uma associação de “igrejas fraternas que
confessam o Senhor Jesus Cristo como Senhor e Salvador, segundo as
escrituras...”.
O estatuto do CONIC declarava que "o amor
de Deus, a confissão de fé comum e o compromisso com a missão impulsionam as
igrejas membros a uma comunhão mais profunda e a um testemunho comum do
Evangelho no Brasil, no exercício do amor e do serviço ao povo. Respeitadas as
diferenças eclesiológicas, as igrejas membros se conhecem convocadas por Cristo
à unidade de Sua Igreja, na certeza da atuação do mesmo Cristo e de Seu
espírito nelas e através delas".
Internacionalmente, uma das entidades mais
expressivas no diálogo entre práticas e vida cristã diferenciadas é o Conselho
Mundial de Igrejas (CMI). No Brasil, estão filiadas ao CMI, a Igreja Episcopal
Anglicana do Brasil, a Igreja Presbiteriana Unida, a Igreja Reformada na
América Latina, a Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil e a Igreja
Metodista do Brasil.
Outras organizações buscam também o estar frente a
frente com o outro diferente, como o Centro Ecumênico de Documentação e
Informação (CEDI) fundado em 1974, que tem como objetivo analisar a conjuntura
brasileira, fundamentando-se na reflexão teológica.
A Associação dos Seminários Teológicos Evangélicos
(ASTE), fundada em 1961, procura apoiar a formação de pastores e ministros de
forma contextualizada, buscando diminuir a dependência das teologias estrangeiras.
Temos ainda o Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (CEBI) e outros centros e
associações em caráter regional e nacional que buscam trabalhar a questão
pastoral, racial, de juventude, de mulheres...
Numa perspectiva prática, existem comissões
bilaterais de diálogo. Em São Paulo a Arquidiocese Católica criou em 1977 a
Comissão de Diálogo Inter-religioso (CEDRA).
A aproximação entre igrejas
protestantes, ao nível de cooperação em atividades sócio-políticas, tem
implicado em cooperação interconfessional de igrejas e pastores, que se unem
para patrocinar conferências nacionais e internacionais.
O estar frente a frente com o outro diferente no
Brasil tem particularidades, por conta da exclusividade da maioria das igrejas
protestantes históricas e por conta das dificuldades encontradas quando se
trata do relacionamento com a Igreja Católica Romana, especialmente nas
categorias mais baixas do presbitério brasileiro, agravando-se mais ainda
quando se chega ao laicato.
Diante desta realidade do estar frente a frente com o
outro diferente no Brasil constitui um desafio para os cristãos.
Porém não podemos deixar de considerar que a igreja cristã no Brasil nunca
falou e agiu tanto em termos de busca do diálogo, quanto se faz no momento.
Terra e justiça
social
Acreditamos que o estar frente a frente, conversando, no Brasil deve partir da defesa da vida de deserdados e excluídos, por isso propomos, como ação conjunta dos cristãos, a defesa de uma ética da responsabilidade social, que denuncie a exclusão e se mobilize pela transformação das estruturas sociais e políticas da sociedade brasileira que geram exclusão social.
Acreditamos que o estar frente a frente, conversando, no Brasil deve partir da defesa da vida de deserdados e excluídos, por isso propomos, como ação conjunta dos cristãos, a defesa de uma ética da responsabilidade social, que denuncie a exclusão e se mobilize pela transformação das estruturas sociais e políticas da sociedade brasileira que geram exclusão social.
Nossa
análise parte de uma visão reformada e acreditamos que assim fazendo oferecemos
ao conjunto dos cristãos brasileiros uma perspectiva que enriquece a discussão
no que se refere a proposição de ações conjuntas para a transformação solidária
de nosso país.
Em 1974, quatro mil delegados,
representando o cristianismo reformado de quase todos os países do mundo,
reuniram-se na cidade de Lausanne, na Suíça, no Congresso Internacional de
Evangelização Mundial. Desse conclave resultou uma série de documentos sobre a
evangelização do mundo no final de século, assim como de temas intrinsecamente
ligados a ela.
O congresso desmembrou-se, anos
mais tarde, em reuniões regionais, que analisaram e desenvolveram temas não
definidos no chamado Pacto de Lausanne. Para o cristianismo reformado a reunião
de Lausanne tem um significado normativo e prático, já que a partir de
definições teológicas abrangentes chegou-se a propostas objetivas para a
evangelização do mundo.
Passados mais de um quarto de
século da reunião de Lausanne, consideramos que suas preocupações continuam
vigentes como reflexão para a práxis cristã neste início de século. Assim,
partindo de documentos elaborados em Lausanne e nas consultas regionais
posteriores, fizemos uma releitura dessas reflexões visando elaborar um chamado
à ética cristã da responsabilidade social no Brasil.
Partimos então da atual realidade
brasileira, numa rápida e abrangente análise de conjuntura, detectando as três
grandes calamidades sociais que nosso país enfrenta: ainda temos miséria,
estrutura agrária opressora e injustiça social.
Sem dúvida, estamos arranhando
problemas que necessitam um pensar profundo e uma práxis transformadora
permanente. Mas, achamos por bem começar...
Pobres e miseráveis
Mais de um bilhão de pessoas em
todo o mundo vive abaixo do nível de pobreza. Ou seja, fora do mercado de
consumo, sem nenhuma forma de rendimento, desamparadas, sem as condições básicas
para sobreviver. E todos os dias milhares delas morrem de fome. Cerca de um vinte
por cento dos brasileiros, ou seja, 40 milhões de pessoas estão nestas
condições.
É importante aqui
separar dois fenômenos: um é que existem aqueles que não participam do mercado
de consumo e que nunca tiveram um emprego na vida, fato verificável
principalmente nas áreas rurais dos terceiro e quarto mundos; o outro, é o
desemprego, que se refere à perda do trabalho para aqueles que participavam do
mercado de consumo. Em todo o mundo, segundo dados do Fórum Econômico de Davos,
na Suíça, 800 milhões de pessoas estão nessas condições. E alerta: o aumento
da produtividade, o avanço tecnológico e a globalização da economia são algumas
das principais causas da redução do emprego no mundo. O Brasil, além de
enfrentar esse problema, precisa criar cerca de três milhões de empregos por
ano.
Quando falta trabalho, falta comida
O desemprego nos grandes centros
urbanos, principalmente no triângulo da produção brasileira, região
dinamizadora do parque industrial do país, formado pelos estados de São Paulo,
Minas Gerais e Rio de Janeiro, está intimamente ligado à abertura
indiscriminada às importações, e à inibição de investimentos em setores
estratégicos, como bens de capital, máquinas, equipamentos e energia.
Logicamente, tal
situação produz concentração de poder e renda, produzindo um nivelamento social
por baixo. É verdade que a corrupção é uma das alavancas desse processo.
Mas se esta é a realidade dos
grandes centros produtivos e das médias e pequenas cidades brasileiras, não
podemos nos esquecer de outra chaga social: a lastimável situação do campo brasileiro. Segundo o professor José Vicente Tavares dos Santos, pró-reitor da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em entrevista a revista Veja, o "problema
agrário no país está na concentração de terra, uma das mais altas do mundo, e
no latifúndio que nada produz", afirma o professor José Vicente Tavares
dos Santos, pró-reitor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Em
comparação com os vizinhos latino-americanos, o Brasil é um campeão em
concentração de terra. Não sai da liderança nem se comparado com países onde a
questão é explosiva, como Índia ou Paquistão. Juntando tanta terra na mão de
poucos e vastas extensões improdutivas, o Brasil montou o cenário próprio para
atear fogo ao campo. É aí que nascem os conflitos, que nos últimos vinte anos
fizeram centenas de mortos”.
Um ultimato
Como disse o teólogo
Howard Snyder, não somos os primeiros cristãos a viver os tempos apocalípticos
[Tive Fome, Um Desafio a Servir a Deus no Mundo, vários autores, Série
Lausanne, ABU Editora, São Paulo, 1986, in Prefácio, p.5]. A primeira
igreja viveu tempos terríveis. Mas agora, no início do terceiro milênio da
história cristã, somos mais uma vez desafiados. E tendemos a oscilar entre dois
perigos: perder a esperança e cruzar os braços ou acreditar num clímax iminente
da história humana. Em ambos os casos, caímos numa cilada, que é virar às
costas para a realidade social de milhões de pessoas.
É impressionante notar que o
Brasil é um dos três maiores países em população protestante em todo o mundo. E
se somamos a este número a população católica, muito possivelmente o segundo
maior país cristão do mundo. O que pode ter um significado estratégico para a
causa da justiça social não somente em nosso país, mas em todo o continente.
Mas para que isso aconteça é necessário uma compreensão da ética cristã em
relação próximo.
Apocalipticismo ou acomodação,
eis os dois inimigos que ameaçam o evangelho de Cristo no Brasil. O primeiro
deixa o amor ao próximo para depois, e o segundo está tão desesperançado que
nem o próximo consegue enxergar. Por isso, precisamos desenvolver uma ética que
norteie o diálogo inter-religioso, mostrando às confissões no Brasil que não
existe cristianismo sem compromisso social.
Evangelização e responsabilidade
social devem andar juntas. Na história do cristianismo reformado isso aconteceu
no grande despertamento na América do Norte, no movimento pietista na Alemanha
e no reavivamento na Inglaterra, durante o século XVIII. Essas atividades
geraram o surgimento de sociedades missionárias e fortes mobilizações pela
abolição da escravatura e por melhores condições de trabalho nas fábricas.
Responsabilidade cristã
A base dessa responsabilidade
social cristã parte de nossa compreensão de Deus. Ele é o Deus da justiça, é o
Deus da misericórdia. Há três mil anos, o salmista cantava: “Ele mantém para sempre a verdade, fazendo
justiça aos oprimidos, dando pão aos famintos; Iaveh liberta os prisioneiros,
Iaveh endireita os curvados, Iaveh protege o estrangeiro, sustenta o órfão e a
viúva; Iaveh ama os justos, mas transtorna o caminho dos ímpios” (Salmo
146. 6-9).
Os cristãos em comunidade formam
a igreja, e ela é o corpo de Cristo na terra. É através da comunidade cristã
que se dá o exercício terreno da graça de Deus. As oito frases de solidariedade
dos versículos 7 a 9 do salmo citado são para Jesus padrão da justiça divina,
conforme explica em Mateus 25:31-46. E lidas a partir do discurso de Tiago
contra a riqueza corrupta e opressora (Tiago 5:1-5), transformam-se na carta
magna da responsabilidade ética e social do cristão.
A seguir
transcrevemos o parágrafo cinco do Pacto de Lausanne 1974 (Congresso Internacional
de Evangelização Mundial), sobre Responsabilidade Social Cristã.
Afirmamos que
Deus é o Criador de todos os homens. Portanto, devemos partilhar o seu
interesse pela justiça e pela reconciliação em toda a sociedade humana, e pela
libertação dos homens de toda forma de opressão. Sendo o ser humano feito à
imagem de Deus, toda pessoa, sem distinção de raça, religião, cor, cultura,
classe social, sexo ou idade, possui uma dignidade intrínseca em razão da qual
deve ser respeitada e servida, e não explorada. Aqui também nos arrependemos de
nossa negligência e de termos, às vezes, considerado a evangelização e a ação
social mutuamente incompatíveis. Embora a reconciliação do homem com o homem
não seja reconciliação com Deus, nem ação social evangelização, nem a
libertação política salvação, afirmamos que a evangelização e o envolvimento
sócio-político são ambos partes do nosso dever cristão. Ambos são necessárias
expressões de nossas doutrinas acerca de Deus e do homem, do nosso amor para
com o próximo e da nossa obediência a Jesus Cristo. A mensagem da salvação
implica também uma mensagem de juízo sobre toda forma de alienação, de opressão
e de discriminação, e não devemos ter medo de denunciar o mal e a injustiça
onde quer que existam. Quando alguém recebe a Cristo, nasce de novo no seu
reino e, conseqüentemente, deve buscar não somente manifestar como também
divulgar a sua justiça em meio a um mundo ímpio. A salvação que alegamos
possuir deve transformar a totalidade de nossas responsabilidades pessoais e sociais.
A fé sem obras é morta.
[Evangelização e Responsabilidade Social, op. cit., p.16].
Definida a necessidade de uma
ética da responsabilidade social cristã, somos levados a estudar a viabilidade
da práxis dessa atividade sociopolítica. Partindo de nossa experiência
histórica podemos ver que ela se divide em dois grandes grupos: serviço social
e ação social.
Por serviço social entendemos uma
política para reparar situações: socorro do ser humano em suas necessidades
básicas e imediatas, atividades filantrópicas, obras de caridade.
Já a ação social nos leva a
procurar eliminar as causas dessas necessidades humanas, e traduz-se em
atividades políticas e econômicas, buscando a transformação das estruturas da
sociedade e a construção da justiça.
Logicamente, serviço e ação
sociais não são excludentes. Ao contrário, são complementares. Afinal, ao lado
de uma estratégia política para acabar com a miséria numa região de São Paulo,
tenho que ter táticas imediatas para evitar que pessoas moram de fome, hoje. Ninguém
pode esperar, sem comer, por uma política cujos frutos levam tempo para serem
colhidos.
É preciso, no entanto, esclarecer
que mesmo o serviço social pode ser desenvolvido sem um caráter paternalista. A
formação de agências de assistência social pode e deve ter base na própria
comunidade, de forma que as pessoas aprendam não somente a se ajudarem do ponto
de vista econômico, mas em todo o espectro da dignidade humana. Por isso, devem
ter como meta a capacitação de todos aqueles que buscam o auxílio dessas
agências, fugindo do reforço à dependência e à subserviência.
Já a ação social cristã não está
apenas preocupada com as pessoas, mas com as estruturas de determinada
sociedade. Procura a justiça social. Assim, não está preocupada com a
reabilitação dos presos (que é tarefa do serviço social), mas com a reforma do
sistema penitenciário. Não está preocupada com as melhorias dos salários e
condições de trabalho (que é uma atividade de serviço social ao nível do
sindicato e da fábrica), mas com a transformação do sistema econômico e
político, sejam eles quais forem.
Neste campo há um desafio
natural, necessário, para a prática do diálogo estar frente a frente com o
outro diferente no Brasil.
É importante ficar claro que
nossa responsabilidade social deve levar em conta dois princípios: a justiça e
a paz. Nos opomos de forma ativa à miséria e à injustiça social, mas nossa
atuação deve sempre se basear na obediência ativa, que, segundo Lourenço Stélio
Rega, é um sinônimo para desobediência civil, sempre e quando tiver por base
direitos de uma comunidade.
Essa ação política foi defendida
e utilizada por homens como Henry David Thoreau (1817-1862), John Ruskin
(1819-1900), León Tolstói (1828-1910), Mahatma Gandhi (1869-1948) e pelo pastor
batista Martin Luther King Jr. (1929-1968). Uma característica da obediência
ativa ou desobediência civil é realizar sua oposição de uma maneira digna,
afastando seus defensores da violência, através da ação não violenta.
Está claro que toda decisão a
favor da justiça exige não somente uma decisiva postura cristã, mas coragem.
Falando do momento presente, a comissão que redigiu o documento de Grand Rapids
sobre responsabilidade social, dirigida por John Stott, declarou: Há
ocasiões em que a igreja precisa tomar posição firme, em relação a um princípio
moral, custe o que custar, pois ela é a comunidade do Servo Sofredor, que é o
Senhor, e é chamada a servir e sofrer com ele. A marca autêntica da igreja não
é a popularidade, mas o sofrimento profético, e até mesmo o martírio. ‘Ora,
todos quantos querem viver piedosamente em Cristo Jesus serão perseguidos’ (2Timóteo
3:12).
Eis o desafio: sem ética de
compromisso social não há cristianismo transformador e, no Brasil, corta pela
raiz qualquer possibilidade prática do estar frente a frente com o outro
diferente.
Considerações finais
Posicionar-se no Brasil de hoje,
a partir de uma ética cristã de responsabilidade social, a favor do estar
frente a frente com o outro diferente implica em entender uma contradição
essencial, que muito possivelmente só poderá ser resolvida em longo prazo:
vivemos num país onde impera a desonestidade e a prepotência, uma a ética da casa
grande & senzala.
Como cristãos, entendemos que o
uso egoísta de bens e posses, a corrupção, a discriminação social e a
degradação humana só produzem miséria e sofrimentos. Não dizemos que o
brasileiro está impossibilitado de criar e produzir coisas boas e belas, mas
que sob tais condições, esta ação é efêmera.
Nossa atuação no campo social, a
partir do estar frente a frente com o outro diferente, implica em entendermos
esta realidade cultural brasileira e optarmos desde o primeiro momento por duas
ações evangelizadoras que nos é exigida por Jesus Cristo: a educação solidária
permanente e a formação de líderes conscientes de seu papel cristão e
histórico.
Só assim, a construção de uma ética
cristã de responsabilidade social no Brasil produzirá frutos permanentes e
eternos, que florescerão através dos anos para a honra e a glória do nosso
Senhor e Mestre. Por isso, não falamos de um momento, mas de um processo, que
crescerá conforme cresça também a consciência ética dos cristãos brasileiros,
de que fomos chamados pelo Senhor a desenvolver uma tarefa histórica, enquanto
igreja, que é a de juntos com os setores éticos da sociedade transformarmos o
Brasil num país onde todos tenham acesso a condições dignas de vida, à justiça
social e à paz.
Soli Deo gloria!