vendredi 24 février 2012

O quadrívio

Elementos para um discurso a partir do pensamento pré-tomista
QUATRO DESAFIOS HERMENÊUTICOS

"Ó Deus, oramos por tua Igreja, que está vivendo hoje em meio às perplexidades de constantes mudanças e se encontra diante de um novo e grande trabalho. Lembramo-nos com gratidão de como ela nos nutriu no começo de nossa vida espiritual, das tarefas que ela nos deu para que ficássemos mais fortes, da influência que recebemos das pessoas que ela reúne e do poder constante do bem que ela exerce. Quando a comparamos com todas as outras instituições, nós nos alegramos, porque não há nenhuma outra que se iguale a ela. Mas quando a julgamos com a mente de seu Mestre, nos curvamos com piedade e contrição. Batiza-a novamente no Espírito de Jesus! Permite que ela renasça, ainda que para isso tenha de passar pelas dores de parto do arrependimento e da humilhação. Dá-lhe sensibilidade maior para seus deveres, compaixão mais intensa pelo sofrimento e lealdade total para com a vontade de Deus. (...) Dá-lhe força para aceitar a causa do povo e para reconhecer nas suas mãos, que tateiam em busca da liberdade e da luz, as mãos feridas de Cristo. Ordena que ela pare de procurar sua própria vida, para que ela não a perca. Dá-lhe coragem para se dedicar à humanidade, e, como o Senhor crucificado, que ela possa andar pelo caminho da cruz em direção a uma glória mais alta".

(Oração Pela Igreja, do teólogo Walter Rauschenbusch)

1. Que desafios são esses?
Ao percorrer os caminhos da brasilidade, ao longo dos últimos cinco séculos, podemos encontrar as raízes que explicam a miséria da nação. As bandeiras da emancipação, da democracia e da justiça social continuam presentes hoje com tanta força como em épocas passadas. Essas bandeiras, sociais e políticas, traduzem a fragilidade do cristianismo no Brasil, que no correr das últimas décadas parece ter crescido muito, mas pouco tem feito em relação aos miseráveis e excluídos.

No entanto, essas bandeiras emancipatórias são indissociáveis do cristianismo e da ética do amor cristão. E precisam ser vividas, enquanto tradução do cristianismo que professamos.

Amor cristão e democracia não são excludentes. Ao contrário, se completam e precisam ser vividas na Igreja, se desejamos fazer a diferença, fazer com que o significado histórico do projeto protestante marque nossa presença no futuro da nação.

2. Uma parábola e seus desafios
Jesus respondeu: 
-- Um homem ia descendo de Jerusalém para Jericó. No caminho alguns ladrões o assaltaram, tiraram a sua roupa, bateram nele e o deixaram quase morto. Por acaso um sacerdote estava descendo por aquele mesmo caminho. Quando viu o homem, passou pelo outro lado da estrada. Também um levita passou por ali. Olhou e também foi embora pelo outro lado da estrada. Mas um samaritano estava viajando por aquele caminho e chegou até ali. Quando viu o homem, ficou com muita pena dele. Chegou perto e fez curativos, pondo azeite e vinho nas feridas. Depois disso, colocou o homem no seu próprio animal e o levou para uma pensão, onde cuidou dele. No dia seguinte, entregou duas moedas de prata ao dono da pensão, dizendo:
-- Tome conta dele. Na volta, quando eu passar por aqui, pagarei o que você gastar a mais com ele.
Então Jesus perguntou ao professor da Lei:
-- Na sua opinião, qual desses três foi o próximo do homem assaltado?
-- Aquele que o socorreu – respondeu o professor da Lei.
-- Pois vá e faça a mesma coisa – disse Jesus. (Lucas 10.30-37).

Dentro dos limites possíveis, vamos trabalhar com a teorização produzida a partir da hermenêutica patrística, que chegou ao seu momento mais alto com a lectio scolastica e lectio divina da escolástica de Tomás de Aquino. Essa hermenêutica que ficou conhecida como quadrivium, parte da compreensão de que o texto ensina os fatos, a alegoria projeta em direção à teologia, o sentido ético mostra o que se deve fazer e o sentido anagógico aponta para o que tende a ser.

Quadrivium é uma palavra latina derivada da junção de duas outras: quattuor, que significa quatro, e via, que quer dizer caminho. Temos assim, quatro vias, quatro sentidos, quatro caminhos. Quadrívio/quadrivium é então encruzilhada em forma de + e, por extensão, lugar freqüentado, praça pública. Mas quadrívio é também hermenêutica. 
O sentido primeiro ou sentido literal do quadrívio apresenta fatos e acontecimentos. O sentido simbólico traduz verdades teológicas do texto percebido primeiramente em seu sentido literal. O sentido ético diz respeito àquilo que o crente deve fazer. E por último, o sentido escatolõgico aponta para os fins últimos.

É claro que esses quatro sentidos formam um processo, que vão num crescendo, embora cada um dependa do outro. Assim, é preciso guardar-se da simplificação das categorias. Quando a exegese é fraca e desprezamos o sentido literal, o sentido simbólico que leva ao teológico, tende a descolar-se da realidade produzindo conclusões disparatadas. E se não entendermos o sentido teológico, da mesma maneira, o fazer ético deixa de ser objetivo e prático. Por fim, quando não vivemos o sentido ético, o escatológico passa a ser um sonho, ou um pesadelo, por não ter relação com a vida cristã.

Os caminhos do quadrívio
A tomada de decisão na vida pessoal e social é uma exigência constante. Vivemos sob um bombardeio de encruzilhadas. Quando possuímos desejo de mudança, advindo dos erros cometidos, postura e atos mudam a vida até aqui levada. Invertem-se então os papéis. De qualquer maneira, é incontestável o defrontar-se com a necessidade de solucionar difíceis questões no correr de nossa vida.

Nossas perplexidades diante das circunstâncias e do mundo têm sempre solução na encruzilhada da cruz, que nos apresentam caminhos novos a percorrer. Mas o sentido desse caminhar é desafiador.


A encruzilhada surge quando precisamos percorrer os quatro caminhos que nos levam à mudança: a escolha de opções, a renúncia da indiferença, a renúncia do status quo e a escolha da pessoa.

O primeiro caminho é o da opção ou a via das opções
É preciso ter em mente que a partir do momento em que tomamos esse caminho, temos as opções práticas de escolha para a decisão.

Quando estamos diante de um desafio, estamos também diante de alternativas de escolha, quer seja uma só ou várias. Toda opção exige liberdade de escolha, preferência, tomada de decisão. Por isso é tão difícil. Mas, diante da indecisão, temos de escolher dentre as opções a que melhor soluciona o desafio que se levanta diante de nós. Quando entendemos isso, já demos o primeiro passo no caminho das opções. E esse primeiro passo é um progresso.

Quando tomamos uma decisão é preciso refletir até que ponto ela é inquestionável. Quando descobrimos sua incontestabilidade as dificuldades tornam-se mais fáceis de serem resolvidas, porque temos a convicção de que a melhor opção já foi tomada. Mas ainda faltam caminhos a percorrer.

O segundo caminho é o da renúncia à indiferença
Renúncia a tomar posições é uma tentação presente em nossas vidas. É algo demoníaco e só se justifica em casos não vitais e passíveis de aprazamento. Muitas vezes, renunciamos à tomada de decisão quando ela nos parece traumática, não cabível ou impossível à primeira vista, assim protelamos porque nos traz um aparente conforto. Mas, na maioria dos casos, este é o pior caminho. Através dele ignoramos a decisão e optamos pela indiferença: fingimos que a decisão não se refere a nós e preferimos não enxergá-la.

Normalmente, quando ignorarmos a decisão, a situação tende a se complicar ainda mais. Além, é claro, da possibilidade de sermos considerados covardes e irresponsáveis por aqueles que nos observam.

Ao escolhermos a via da renúncia à indiferença, estaremos encarando teologicamente a questão, procuramos mudar o cenário da decisão a fim de mudar paralelamente as opções de escolha. Ao percebermos que as opções disponíveis não bastam ou não nos atende de maneira satisfatória, procuramos uma mudança nas premissas que estabeleceram a decisão. E é esta situação que nos leva ao terceiro caminho.

O terceiro caminho é o da renúncia ao status quo
Quando trilhamos o caminho das opções e avançamos através da renúncia à indiferença somos, muitas vezes, desafiados a fazer um terceiro caminho: percorrer a via da resignação da dignidade de posições aparentemente inquestionáveis. Renúncia aos privilégios do status quo é isso... sacrifício para que possamos superar circunstâncias e tomar decisões. E este é o caminho ético.

O quarto caminho é a escolha da pessoa
Quando nos deparamos com circunstâncias adversas, é fundamental que a escolha de opções e nossas renúncias nos levem à pessoa. É claro que os fatores externos precisam ser levados em conta, a mudança dos paradigmas pessoais é prioritária, mas se permanecermos neles como únicas bases para nossa escolha, o futuro será implacável. A criatura humana, imagem de Deus, ser consciente de si mesmo, senhor dos seus atos e, por isso, responsável por eles, é o quarto momento do quadrívio. Mas, esta pessoa é também unidade social que se expressa no agrupamento humano organizado. No caminhar, o caminhante faz o caminho. E esta é uma questão radical, que faz brilhar o futuro novo.

É isso que Jesus nos ensina nesta belíssima parábola do Bom Samaritano. E é por isso que ele finaliza a história dizendo:
-- Vá e faça a mesma coisa.

3. O amor cristão
O cristianismo é em sua essência uma experiência transcendente ao nível da materialidade humana, uma experiência que acontece em todos os tempos e em todas as situações e é em si mesma independente de formas sociais e econômicas. Nesse sentido, o cristianismo não pode ser identificado com um tipo determinado de organização social, em detrimento de seu caráter transcendente e universal.

Mas, ao mesmo tempo, o cristianismo é portador de poder e oferece à humanidade uma mensagem de vida, de conhecimento e de verdade, tanto para a pessoa como particularidade, como para a sociedade como um todo. Exatamente por isso, apresenta-se como capenga toda forma de cristianismo que se fecha na pura interioridade. Também não se pode dizer que o cristianismo é um movimento que mecanicamente parte da interioridade em direção à exterioridade, apropriando-se de formas culturais ou simplesmente passando ao largo delas. Na verdade, dá forma às expressões culturais e, concomitantemente, toma novas formas a partir delas.

O amor, translúcido no texto de Lucas 10.30-37, leva o cristianismo a ter uma postura crítica diante da ordem social que se apóia na opressão e na exclusão social. O amor cristão faz a crítica da ordem social que está erigida sobre o egoísmo político e econômico, e proclama a necessidade de uma nova postura, na qual o sentido de comunidade seja o fundamento da organização social.

Essa denuncia do egoísmo pessoal e social, assim como das estruturas que mantêm e favorecem esse egoísmo, em última instância levam à exclusão de grandes parcelas de pessoas em nosso estado e em nosso País. O amor, ao contrário, propõe uma parceria solidária onde a alegria não seja fruto do lucro, mas do próprio trabalho.

Da mesma maneira, o amor cristão condena o egoísmo de grupo, quando fechamos nossa igreja entre quatro paredes, para não ver, sentir e sofrer com a miséria e a exclusão de homens e mulheres, que para nós são apenas paisagens dos cenários urbano e rural. O amor cristão condena o egoísmo que justifica a violência e o abandono. E, ao contrário, prega a submissão à idéia do direito à cidadania, à vida e à construção de uma consciência comunitária.

Não somos os primeiros cristãos a viver tempos difíceis. A igreja no correr de sua história viveu tempos terríveis. Mas agora, no terceiro milênio da história cristã, somos mais uma vez desafiados. E tendemos a oscilar entre dois perigos: a desesperança, ou seja, viver como se Cristo nunca fosse voltar, ou esperar o clímax iminente da história humana. Em ambos os casos, caímos numa cilada, que é virar às costas para a realidade social.

É impressionante notar, que o Brasil ocupa um lugar de destaque em população cristã evangélica em todo o mundo. O que pode ter um significado estratégico para a causa da justiça social. Mas para que isso aconteça é necessário uma compreensão da ética cristã em relação próximo.

Omissão e indiferença, esses dois inimigos ameaçam o evangelho de Cristo. O primeiro deixa o amor ao próximo para depois, e o segundo está tão ausente que nem o próximo consegue enxergar. Por isso, precisamos desenvolver uma teologia que mostre às nossas igrejas que não existe cristianismo pleno sem compromisso social.

O amor cristão parte da compreensão de Deus. Ele é o Deus da justiça, é o Deus da misericórdia. Os cristãos em comunidade formam a igreja e ela é o corpo de Cristo na terra. É através da comunidade cristã que se dá o exercício terreno da graça de Deus.

Definida a necessidade de uma teologia do amor, somos levados a estudar a viabilidade da prática dessa atividade cristã. É importante ficar claro que nossa responsabilidade social deve levar em conta dois princípios: a justiça e a paz. Está claro que toda decisão a favor da justiça exige não somente uma decisiva postura cristã, mas coragem para renunciarmos ao status quo.

Posicionar-se no Brasil de hoje, a partir do amor, implica em entender uma contradição essencial, que muito possivelmente só poderá ser resolvida no longo prazo: vivemos num país onde imperam a herança do autoritarismo colonial escravista (a ética da casa grande & senzala) e uma moral da sensualidade absoluta (a moral do “não existe pecado do lado de baixo do Equador / vamos fazer um pecado rasgado, suado, a todo vapor”).

Do lado oposto, entendemos que o uso egoísta de bens e posses, a corrupção, a discriminação social e a depravação só produzem miséria e sofrimentos. Não dizemos que a pessoa brasileira está impossibilitada de criar e produzir coisas boas e belas, mas que esta ação é efêmera. Assim, temos um ser ambíguo (como o resto da humanidade), que produz uma cultura também ambígua, por vezes plena de beleza e criatividade, mas também maligna e destruidora.

Nossa atuação no campo social implica em entendermos a realidade cultural e optarmos por trilhar a via dolorosa das opções, das renúncias e do encontro com nosso próximo.

Só assim, a construção de uma práxis do amor produzirá frutos eternos, que florescerão através dos anos para a honra e a glória do nosso Senhor. Por isso, não falamos de um momento, mas de um processo, que crescerá conforme cresça também a consciência ética, de que fomos chamados pelo Cristo para desenvolver uma tarefa histórica, juntos com os setores éticos da sociedade, que é o de transformar o Brasil num país onde todos tenham acesso a cidadania, à justiça e às condições dignas de vida.

4. O encontro com a pessoa e sua espiritualidade
A cultura brasileira, fruto direto da escravidão, tem um caráter mágico, fortemente empapado no maravilhoso. Isto se dá porque o dia-a-dia da pessoa brasileira está ligado à busca da transcendência. Nesse sentido, o elemento que vai além e ultrapassa o concreto do dia-a-dia do brasileiro é o transcendente.

Essa presença do maravilhoso caldeia toda a malha relacional, indo do brasileiro simples e pobre ao sofisticado e rico. No entanto, é preciso entender que o maravilhoso relacional da cultura brasileira não nasceu de um processo pacífico, mas violento, do choque entre o universo transcendental de brancos e a matriz sacralizadora da natureza, de índios e negros. A contra-reforma católica produziu genocídio indígena e escravidão negra, macerando o universo religioso de povos e nacionalidades. Mas nós não ficamos longe disso, já que assimilamos e aceitamos como paisagem cultural a exclusão resultante da escravidão.

A recuperação da história dos povos indígenas e do povo negro realizada enquanto tradição e cultura ligam-se à necessidade de conscientização da identidade brasileira. Aquele que esquece nega o esquecido, reprimindo ou suprimindo. A identidade está imbricada à memória. Evocar a memória é convocar e provocar, é transformar.

Dessa maneira, conhecendo e reconhecendo o negativo da cultura relacional brasileira, que se traduz na tentativa de esconder as injustiças sociais, podemos resgatar o que ela construiu de positivo. Afirmar a cultura à qual pertencemos é o primeiro passo para construir uma teologia batista que responda às necessidades da pessoa brasileira, compreender a identidade desse povo e a sua busca de felicidade e transcendência.

Fruto dessa cultura relacional e da presença evangélica estamos presenciando em nosso País a descoberta da realidade da vida espiritual e da dimensão religiosa.
Diante disso, sugerimos a formulação de uma prática que deve partir de duas tarefas: uma de negação e outra de afirmação.

1. A negação consiste em realizar a crítica da tendência à privatização da igreja. O Iluminismo rompeu a unidade entre existência religiosa e existência social. Por isso, a igreja acabou por refugiar-se na esfera do privado. Privatizou a mensagem da salvação e reduziu o exercício da fé à pessoa separada da vida social e do mundo em que vive. Para a consciência batista, determinada por essa teologia, as realidades social e política têm apenas uma existência efêmera. As categorias que essa teologia utiliza para explicar a mensagem cristã são as categorias do íntimo, do privado, do não social, do não político.

2. A afirmação consiste em desenvolver as implicações sociais da mensagem cristã. Não se trata de dar as costas ao problema levantado pelo Iluminismo, mas em responder teologicamente aos desafios, assumindo a tarefa de desenvolver uma nova relação entre teoria e prática. A Igreja pode e deve fazê-lo, pois as promessas escatológicas da tradição bíblica, de liberdade, de paz, de justiça e de reconciliação, não constituem um horizonte vazio na expectativa cristã, mas têm uma dimensão política, que é preciso fazer valer na sua função crítica do processo histórico-social.

Assim, na elaboração de sua prática, à igreja cabe a tarefa de proclamar o evangelho da salvação, exercendo função crítica diante da sociedade. A igreja pode e deve assumir essa tarefa. Esta tarefa deve ser exercida na defesa da pessoa e de sua pessoalidade -- que não podem ser vistas como paisagens de um cenário -- e na mobilização do poder crítico do amor que está no centro da cruz.

A função crítica frente à miséria e exclusão produzirá repercussões na própria igreja: promoverá uma nova consciência no interior da igreja e criará uma transformação das relações da igreja com a sociedade.

Mas, se deve haver uma ação para fora, deve também haver uma ação para dentro. Isto porque, herdamos em nossas relações culturais, religiosas e sociais o padrão autoritário. Tal padrão nos leva a transformar, conscientes ou não, a democracia em discurso ideológico, sem tradução prática para o conjunto da igreja. Reproduzimos assim o padrão autoritário, impossibilitando que jovens participem dele, que a criatividade e gente melhor capacitada participem do processo democrático da gestão e governo da igreja e suas empresas.

Por isso, podemos dizer que amor, democracia e transparência não são excludentes. Ao contrário, se complementam e precisam ser vividas também nas igrejas, se desejamos fazer a diferença, fazer com que o significado histórico do projeto protestante marque presença no futuro da nação.

Afinal, quando nos deparamos com circunstâncias adversas, é fundamental que a escolha de opções e nossas renúncias nos levem à pessoa. É claro que os fatores externos precisam ser levados em conta, a mudança dos paradigmas pessoais é prioritária, mas se permanecermos neles como únicas bases para nossa escolha, o futuro será implacável. A criatura humana, imagem de Deus, ser consciente de si mesmo, senhor dos seus atos e, por isso, responsável por eles, é o momento especial do quadrívio. Mas, esta pessoa é também unidade social que se expressa no agrupamento humano, denominacional ou não. No caminhar, o caminhante faz o caminho. E esta é uma questão radical.


É isso que Jesus nos ensina na parábola do Bom Samaritano. E é isso que ele enfatiza ao dizer:
-- Vá e faça a mesma coisa.

São Paulo, 23 de julho de 2002.
Jorge Pinheiro


jeudi 23 février 2012

jorge pinheiro

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restaurante da dona maria

Já nas boas livrarias on-line

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Objetivos

Neste manual de Teologia Bíblica e Sistemática, o ultimato da práxis protestente, três preocupações atravessaram as minhas leituras sobre as teologias bíblicas e sistemáticas:

1. a relação dialógica entre professor, aluno e teologia; 
2. a vida como ferramenta hermenêutica; 
3. e a virtualidade como conceito teológico. 

Essa leitura dialógica nasceu da pedagogia do encontro, que segue a trilha aberta por Martim Buber, de que não há existência sem diálogo e nem conhecimento sem interação. Desde o início quis enriquecer as relações professor/aluno/teologia que, considero, apontam para as dimensões do diálogo teológico, e que podem ser traduzidas em outra tríade: nós/mundo/eternidade, ao abarcar a totalidade da existência. Nesse sentido, o humano surge enquanto relação plural com o mundo, ou seja, é uma construção dialógica.

A primeira preocupação, a da relação dialógica entre professor, aluno e teologia, ao propor uma pedagogia do diálogo, tem a vida como ferramenta hermenêutica porque significa estar presente diante do outro. Ora, se a relação dialógica acontece no encontro existencial, alteridade e singularidade implicam em reciprocidade e pluralidade. E por ser proximidade e mutualidade, a pedagogia do diálogo constrói humanidade para a vida, a partir da sala de aula. 

Essa pedagogia leva à teologia do diálogo, onde a vida torna-se naturalmente hermenêutica, porque o texto nasceu da vida e dialoga com a vida. Mas, a teologia do diálogo, por ser relação dialógica professor/aluno/teologia, leva à relação nós/mundo/eternidade, onde a primeira parte da premissa -- nós/mundo --, e eu retorno a Hegel, dirá que o que existe é real e necessário, mas a premissa inteira nós/mundo/eternidade afirmará que o que parece também existe, é virtual e necessário. 

Assim, realidade e virtualidade no texto têm veracidade teológica. 

Para todos e todas, um forte abraço, Jorge Pinheiro.

vendredi 17 février 2012

A saga anabatista

Thomas Münzer
                             
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A história anabatista é uma saga de sangue, perseguições e martírios, ao estilo do cristianismo antigo, anterior à estabilização imperial pós-Constantino, E os eventos notáveis e feitos heróicos do movimento anabatista até hoje repercutem no imaginário protestante, levando alguns historiadores e teólogos a exorcizarem o movimento e seus líderes.

Segundo Weber, o ascetismo laico do movimento anabatista, que ele chama de “movimento batista”, espraiou-se pela Europa Ocidental e Estados Unidos, nos séculos XVI e XVII, dando origem, quer diretamente, quer por adoção, a novas formas de pensamento religioso, como aqueles dos batistas, menonitas e quakers. Um processo semelhante se deu no Brasil, por isso, os evangélicos brasileiros não podem voltar as costas à história dos anabatistas. Afinal, as influências eclesiológicas e teológicas do anabatismo, herdadas pelos batistas, foram repassadas para as comunidades, igrejas e pensadores evangélicos brasileiros que, em algum momento de sua história, comungaram com o pensamento batista.

Por isso, fazemos uma abordagem das origens do anabatismo, principalmente daquele de forte conteúdo social, a partir da leitura histórica e do uso da sociologia da religião como ferramentas, com a intenção de demonstrar que em sua prática o anabatismo construiu uma eclesiologia que formatou uma teologia e não o contrário.

Mas como o nosso texto trabalha a relação entre a eclesiologia e a revolução camponesa e plebéia liderada pelos anabatistas, convém entender o que significa eclesiologia. Nós a consideramos o estudo teológico da realidade de comunidades de fé em seus aspectos estruturais: sua forma de se relacionar com o mundo, seu papel social e sua forma de governo. Por isso, vamos analisar o comunitarismo, que mais tarde foi caracterizado por Karl Marx e Friedrich Engels como socialismo utópico, enquanto construção político/religiosa marcante e central do movimento anabatista. 

Os anabatistas eram cristãos reformados que se levantaram contra a hegemonia da Igreja católica e dos príncipes alemães. A partir da frase do Evangelho de Marcos (16.16), “quem crer e for batizado será salvo, mas quem não crer será condenado”, deduziram que para quem não crê de nada adiantou o batismo que recebeu quando pequeno. Então, negaram valor ao batismo de crianças, afirmando que aquele sacramento católico e reformado, só deveria ser recebido quando a pessoa tivesse plena consciência do que estava a fazer. Por isso, aqueles que tinham sido batizados antes de terem consciência do bem e do mal deveriam ser batizados de novo.

O fato de levantarem a importância de escolha pessoal na opção pela caminhada cristã levou grupos e comunidades anabatistas a crescerem rapidamente. Mas, o crescimento dos anabatistas na Alemanha e na Europa central se tornou um problema para as autoridades eclesiásticas, afinal propunham às pessoas não batizar os filhos. Logicamente, os católicos e os reformados se colocaram em oposição direta a essa idéia. E como o poder eclesiástico estava ligado às forças do feudalismo ou às forças da burguesia emergente, ambos os lados optaram pelo extermínio dos anabatistas.

Thomas Münzer

Para Engels, a descentralização, a autonomia local e regional, a diversidade comercial e industrial das províncias alemães e a insuficiência das comunicações foram os fatores que explicam o agrupamento das classes sociais da Alemanha no início do século XVI em três campos: o feudal nucleado ao redor do catolicismo; o burguês reformista, ao qual se aliaram os luteranos; e o plebeu/camponês liderado pelos anabatistas.

É bom lembrar que na Alemanha medieval a Igreja católica tinha o monopólio da educação, o que fazia com que todo o ensino tivesse um caráter religioso. Nas mãos do clero católico estavam a política, a jurisprudência e o conhecimento, que era visto como extensão da teologia. E os dogmas do catolicismo, assim como a compreensão católica das Escrituras tinham força de lei em todos os tribunais. Dessa maneira, críticas ou ataques ao feudalismo traduziam-se em confronto com o catolicismo.

A oposição ao feudalismo, começou bem antes do século XVI, com os valdenses, albigenses, com as insurreições nos cantões suíços, e foi tomando conta da Alemanha com as reivindicações religiosas, sociais e políticas que tomaram corpo como pensamento divergente. Os plebeus e camponeses alemães queriam o estabelecimento da igualdade cristã, que devia se traduzir em igualdade civil e social. Ou seja, a nobreza devia colocar-se ao nível dos camponeses, e os patrícios e burgueses no mesmo nível dos plebeus. Ou seja, reivindicavam, pela primeira vez na história, direitos cidadãos universais. Além disso, exigiam o fim das leis feudais, tais como obrigatoriedade dos serviços pessoais, tributos, privilégios e nivelamento das escandalosas diferenças no que se referia à propriedade.

Dessa maneira, essas reivindicações democráticas levaram às reivindicações pelo estabelecimento de comunidades onde a propriedade e os bens fossem comunitários, o que era visto como a realização da promessa do Reino de Deus.

Até 1525-1526, o movimento protestante era mais ou menos informal na Alemanha. Mas, com as guerras camponesas, os conventos foram secularizados, o direito canônico abandonado e, com a recusa dos bispos de se associarem ao movimento pelas reformas, as autoridades civis foram empurradas a se tornar favoráveis às novas orientações e a se envolver na reorganização da igreja.

Estas ações se inspiraram nas antigas visitas pastorais efetuadas antes pelos bispos. Os príncipes passaram, então, a visitar as paróquias, com delegações compostas de juristas e teólogos. A partir de 1530, criaram instituições permanentes com superintendentes, levando as igrejas a ficarem dependentes do príncipe que, de fato, substituiu o bispo. Nasceu assim a igreja territorial reformada.

Em 1555, a Dieta de Augsbourg proclamou o princípio do cujus regio, ejus religion, segundo o qual o príncipe ou uma outra autoridade podia determinar a religião das pessoas. A legislação e o órgão jurisdicional, em especial matrimonial, passaram para o poder do príncipe, que o entregava a uma instância jurídica: e o príncipe ou o magistrado das cidades passaram a ser a autoridade última em matéria de liturgia, doutrina ou nomeação de sacerdotes. Os bens eclesiásticos secularizados foram incorporados às possessões dos príncipes, ou geridos por administradores autônomos, em especial as escolas. Dessa maneira, passou a existir um controle sobre o comportamento religioso, e o estado jurídico e financeiro das paróquias, bem como sobre a doutrina e a vida moral dos pastores.

Thomas Münzer e outros dissidentes do protestantismo reformado procuraram mobilizar seus pares e exigir das autoridades políticas liberdade de expressão e de ação religiosas e criaram comunas autônomas, proibindo os seus adeptos de exerceram funções políticas no Estado. Entre suas ações, Münzer suprimiu completamente o uso do latim, em 1522, antes de Lutero. Em Altstadt, nos cultos que dirigia, vinha gente de todas as partes para ouvi-lo. Seus ataques voltaram-se em especial contra o clero católico, chamando os príncipes e o povo à intervenção armada contra a Igreja católica.

“Não disse Cristo, vim trazer-vos não a paz, porém a espada? E que deveis fazer com ela? Nada, senão afastar a gente má que se opõe ao Evangelho. Cristo ordenou com grande severidade (Lucas 19.27): quanto, porém, a esses meus inimigos, que não quiseram que eu os governasse, trazei-os aqui e matai-os diante de mim... Não vos valhais do vão pretexto de que o braço de Deus deve fazê-lo sem ajuda da vossa espada que bem poderia enferrujar-se na bainha. Os que se oponham à revelação divina que sejam aniquilados sem piedade, como Ezequiel, Ciro, Josias, Daniel e Elias destruíram os pontífices de Baal; de outro modo a Igreja cristã não pode retornar à sua origem. Na época da vindima temos que arrancar a erva daninha das vinhas do Senhor. Deus disse (Deuteronômio 7.5): nem terás piedade dos idólatras;... deitarás abaixo seus altares... e queimarás a fogo as suas imagens de escultura... Porque tu és um povo santo e Jeová teu Deus...”

Münzer, segundo Tillich, foi o mais criativo dos evangélicos radicais e acreditava que o Espírito podia sempre falar por meio das pessoas. No entanto, para se receber o Espírito era preciso participar da cruz. “Lutero, dizia ele, prega um Cristo doce, um Cristo do perdão. Devemos também pregar o Cristo amargo, o Cristo que nos chama a carregar sua cruz.”.

Assim, os anabatistas atacavam a teologia de Lutero a respeito das Escrituras, porque consideravam que Deus não falara apenas no passado, tornando-se mudo no presente. Mas que sempre falou e fala nos corações ou nas profundezas de qualquer ser humano preparado para ouvi-lo por meio de sua própria cruz. O Espírito habita nas profundezas do coração. A cruz, explica Tillich, representava a situação limite, era externa e interna.

“Surpreendentemente, Münzer expressa esta idéia em termos existencialistas modernos. Quando percebemos a finidade humana, desgostamo-nos com a totalidade do mundo. E nos tornamos pobres de espírito. O homem é tomado pela ansiedade de sua existência de criatura e descobre que a coragem é impossível. Nesse momento Deus se manifesta e ele é transformado. Quando isso acontece, o homem pode receber revelações especiais. Pode ter visões pessoais não apenas a respeito de teologia como um todo, mas sobre assuntos de vida diária”.

Nessa conjuntura de choque, em Zurique, na Suíça, no meio dos seguidores do reformador Zwinglio, surgiu um grupo de cristãos que rejeitou o poder eclesiástico, fosse ele católico ou reformado, exigindo a autonomia das comunidades cristãs. Assim, os anabatistas fundaram sua primeira comunidade no dia 21 de janeiro de 1525. E eles próprios passaram a escolher seus pastores e a construir comunidades separadas do estado.

Mas, no sul da Alemanha, sem dúvida, foi Thomas Münzer quem se levantou como defensor de uma proposta de revolução social camponesa. Em 1521, liderou um grupo de anabatistas que se somaram aos camponeses sublevados ao redor da reivindicação de terra e liberdade. Münzer criou, assim, pela primeira vez na história um movimento de libertação camponês anabatista. Münzer não foi apenas um pensador, mas um militante que praticava a fé. Acreditava ser um profeta, chamado para implantar o Reino de Deus.

Considerava ser seu dever denunciar e executar as sentenças contra os governantes que exploravam o povo. Suas pregações estavam impregnadas de conteúdo social e político: o fim da velha Igreja deveria marcar o inicio de uma nova ordem social.

Engels, que junto com Marx foi um dos pais do socialismo científico, considerou as guerras camponesas lideradas pelos anabatistas como combates sociais. Afirmou que “se, em termos gerais, a burguesia podia arrogar-se o direito de representar, em suas lutas com a nobreza, além dos seus interesses, os das diferentes classes trabalhadoras da época, ao lado de todo grande movimento burguês que se desatava, eclodiam movimentos independentes daquela classe que era o precedente mais ou menos desenvolvido do proletariado moderno. Tal foi na época da Reforma e das guerras camponesas na Alemanha, a tendência dos anabatistas e de Thomas Münzer”.

Considerou que, apesar de terem uma face cristã reformada, as reivindicações anabatistas iam além da expressão religiosa que apresentavam. Para Engels, a política de Münzer nasceu de seu pensamento revolucionário, que caminhava adiante da situação social e política de sua época. Seu programa propunha o estabelecimento do Reino de Deus, com o milênio de justiça, paz e felicidade, com a supressão de todas as instituições que se encontravam em contradição com o mandamento do amor.

Para Münzer, o céu estava aqui no chão. E, por isso, o cristão deveria construí-lo na vida. A esse cristão anabatista cabia a missão de estabelecer o Reino de Deus sobre a terra. Seus sermões eram clamores políticos e estavam dirigidos a instaurar uma nova ordem social. A partir de Münzer, os anabatistas fizeram dos sermões proféticos, elaborados a partir da realidade social em que estavam inseridos, manifestos revolucionários, cujas propostas atemorizavam as autoridades, governantes eclesiásticos e príncipes de toda a Europa.

A crise econômica, fruto da exploração agrícola predatória e extensiva; a crise demográfica, por causa das epidemias e fome; a crise social gerada com o surgimento da burguesia e dos assalariados; a crise clerical, devido às contradições e o enfraquecimento da Igreja católica e a crise espiritual ocasionada pelo surgimento de novas leituras do cristianismo fizeram da baixa Idade Média um período de alta instabilidade e angústia coletiva.

Milhares de camponeses sem terra e plebeus desempregados vagavam pelos campos e cidades. Essa situação levou às propostas de construção de comunidades formadas por camponeses e plebeus, onde pudessem viver e trabalhar juntos, num sistema de vida em comum com os bens partilhados, disponíveis segundo as necessidades das pessoas e famílias. E, de fato, os anabatistas organizaram comunidades com este formato, organizações baseadas na propriedade social autônoma em relação ao Estado e aos poderes eclesiásticos e laicos da época, em primeiro lugar católico e depois reformado.

Dessa maneira, os anabatistas tiveram a compreensão de que o cristianismo era uma ferramenta para a mudança da condição social em que se encontravam os camponeses e deserdados da terra. Partiram de suas próprias experiências de vida e trabalho e quebraram o paradigma de que a fé devia estar alienada da vida social e política.

Mais tarde, em combate, e exército de Münzer foi derrotado e ele foi preso, torturado e executado. Mas a guerra camponesa na Alemanha se estendeu até 1525, quando os anabatistas revolucionários foram afogados em sangue. O conflito, que teve lugar nas áreas do sul, centro e oeste da Alemanha, também afetou regiões vizinhas na Suíça e Áustria, e envolveu no seu auge, no verão de 1525, cerca de 300 mil camponeses. Estimativas da época situaram o número de mortes em torno de 100 mil camponeses e plebeus.

O sonho anabatista, porém, não morreu aí, subsistiu no coração de milhares de cristãos. Vejamos alguns exemplos. Sete anos depois da morte de Münzer, em 1532, uma insurreição tomou conta da cidade de Münstzer. Ela foi iniciada por um ex-padre da Catedral de Münstzer, que se tornou luterano, Bernard Rothmann, e acabou sendo expulso da cidade. Dois anos depois, em 1534, o pastor anabatista Jan Matthys, junto com outros líderes, entre os quais Jan van Leiden e Gert Tom Kloster, declarou a cidade de Münstzer livre do domínio dos príncipes e do poder eclesiástico.

Matthys iniciou uma revolução social: os proprietários de terras foram expropriados e suas terras e bens distribuídos entre os camponeses. Dando seqüência à revolução, ele e um grupo de anabatistas atacaram a guarnição liderada pelo príncipe Franz von Waldeck, que era bispo de Münstzer e também chefe do exército. No confronto Matthys foi morto. Foi, então, sucedido por Jan van Leiden. Após um ano de resistência, Waldeck liderou um exército bem equipado e assaltou a cidade. Jan van Leiden e seus oficiais foram presos, torturados e executados. Os combatentes anabatistas foram lançados às prisões e, posteriormente, deportados para outras regiões da Alemanha e Suíça. 

Huteritas modernos

A partir desse momento as comunidades anabatistas passaram a viver umas isoladas das outras, de forma clandestina. Seus líderes eram leigos que pregavam em roupas civis. Adotaram uma disciplina e uma ética rígidas a fim de sobreviverem na clandestinidade. Essas pequenas comunidades se refugiaram no interior da Europa e se estruturaram de forma autônoma. Cada comunidade de fé sobrevivia do compromisso de serviço e financeiro de seus afiliados.

16/8/2008

Fonte: Jorge Pinheiro, extrato do artigo “A Saga Anabatista, eclesiologia e revolução”, in Theologando/ Eclesiologia, revista teológica, ano II, número 2, São Paulo, Fonte Editorial, 2008. 

jeudi 16 février 2012

André e Pablo em Les Cèdres



a cruz huguenote
Convergência para o apoio e o desenvolvimento de igrejas francesas e brasileiras

O projeto A Cruz Huguenote, neste primeiro semestre de 2012, visa apoiar pequenas igrejas batistas francesas que por diferentes motivos estão sem pastores ou necessitam de apoio ministerial e aceitam construir parcerias com igrejas batistas brasileiras. Essas parcerias partem do fato de que Deus mantem na França um remanescente da histórica tradição reformada, que deseja expandir o Reino, e aproveitar o renascimento evangélico que pode ser visto em diferente regiões do país.

A partir do exposto, neste primeiro semestre de 2012, A Cruz Huguenote propõe:

1. Parceria entre igrejas brasileiras e francesas, que desejam se conhecer e testemunhar juntas do amor de Cristo.
2. Promoção de acampamentos no Brasil e acampamentos de férias na França entre os jovens das igrejas solidárias com o Projeto A Cruz Huguenote.
3. Viagens de pequenos grupos para evangelizar na França e acolhida de pequenos grupos franceses no Brasil para treinamentos específicos.
4. Esportes e música – equipes esportivas e bandas que possam se apresentar em cidades franceses onde estão localizadas igrejas solidárias com o Projeto A Cruz Huguenote, sempre que possível com a presença de atletas de Cristo.
5. Ida de estudantes brasileiros, graduados em Teologia, para cursarem Mestrado em faculdades francesas, e de estudantes franceses para cursarem graduação ou Pós-Graduação na Faculdade Teológica Batista de São Paulo.
6. Presença de jovens pastores brasileiros, com domínio do idioma francês, para atuarem em igrejas francesas, quer como pastores titulares, quer em ministérios como os de crianças, jovens, música e outros. E da mesma forma, estágio de jovens pastores franceses no Brasil.

la croix huguenote*
Convergence pour l´appui et le développement des églises françaises et brésiliennes
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*A cruz huguenote foi criada em 1688 por um ourives da cidade de Nîmes. Passou a ser referência da fé reformada durante as perseguições dos séculos XVII e XVIII. Hoje é um símbolo do protestantismo francês. Os elementos presentes na cruz têm um claro significado espiritual, onde a pomba representa o Espírito Santo, expressão da relação do cristão com o Deus Eterno.

mercredi 15 février 2012

Perfil do trabalhador do ABCD paulista

Presença feminina veio para ficar

O perfil da indústria e dos trabalhadores no ABCD e nas cidades irmãs paulistas mudou. Em parte, essas alterações se deram a partir das reformas implementadas pelos governos petistas tanto nas áreas econômicas e sociais, como diretamente nas áreas trabalhistas e sindicais. A região, que conta com 259,7 mil trabalhadores nos diferentes setores da indústrias, teve um papel marcado na história do desenvolvimento de São Paulo e é fonte de identidade do trabalhador que desponta neste início de século nos pólos industriais.

As primeiras indústrias foram instaladas na região na década de 1930. Crises econômicas, mudanças de governo, moeda, alterações no sistema produtivo e nas relações trabalhistas e avanços tecnológicos contribuíram para uma mudança no perfil da classe operária. 

Atualmente, as fábricas são organizadas em produção em série, baseadas no modelo toyotista. Antigamente, você tinha mais pessoas trabalhando, porque precisava de um contingente maior. Hoje, também com as tecnologias e as privatizações, o número de trabalhadores diminuiu”, explicou Zeíra Camargo de Santana da subseção do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos -- DIEESE do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC.

De acordo com Santana, a classe operária na região era muito forte no período anterior a 1989, antes da abertura econômica, quando dos 602 mil empregos formais do ABC, 363 mil eram da indústria de transformação, representando 60% dos empregados. 

A crise durante o governo Collor, de 1989 a 1992, a alta inflacionária, também contribuiu para a queda do número de trabalhadores. “Em três anos, eram 113 mil trabalhadores com carteira assinada a menos, só aqui no ABC. Destes, 107 mil foram na indústria. Em 1999, estávamos com 188 mil empregos. O número caiu praticamente pela metade”, falou. 

Hoje, a região possui 259,7 mil trabalhadores na indústria, segundo o próprio Dieese.

É melhor ser sábio do que ser forte. O conhecimento é mais importante do que a força. E essa afirmação presente nas Escrituras judaicas (Provérbios 24.5) se transformou em realidade no ABCD.

Entre os altos e baixos no número de empregos na indústria, o perfil dos profissionais que atuam na área também foi alterado. Entre a década de 1960, quando as fábricas se firmaram no ABC, e hoje, os trabalhadores deixaram de representar as camadas mais baixas da sociedade. 

Um exemplo disso foi a melhora na formação profissional dos metalúrgicos do ABC. Dados divulgados pelo sindicato da categoria mostram que, em 1994, a classe era representada por 48% dos trabalhadores com ensino fundamental incompleto. Em 2009, a escolaridade melhorou, apenas 8% detinham o ensino fundamental incompleto, 42% tinham ensino médio concluído e 20% apresentavam ensino superior completo. 

Um estudo divulgado em 2010 pela Subseção Dieese mostra que o salário para quem trabalha na indústria tem um valor médio de R$ 2.500. A classe metalúrgica ganha cerca de R$ 3.500. O menor salário na região é o do setor de comércio, em média R$ 1.120. Nas metalúrgicas, a faixa etária acima de 40 anos representa 38,6% do total. Os jovens, até 24 anos, são apenas 14%.

A mulher trabalhadora é corajosa e enfrenta os desafios com energia. É isso que diz o livro de Provérbios no capítulo 31, a partir do verso 10. E ela faz parte do novo perfil da classe trabalhadora.

E as mulheres já são 20% dos trabalhadores da indústria, tendo conquistado definitivamente seu espaço no setor industrial. Em 2000, havia 10 mil mulheres só na classe metalúrgica. Em 2009, o número aumentou para 13,7 mil. Elas ficaram mais jovens e instruídas, chegando a superar os homens em nível de escolaridade. Ainda ganham um salário menor, mas no ABCD são melhor remuneradas do que outras da categoria, comparadas ao Estado de São Paulo e ao Brasil.

Para Cleide Tameirão, coordenadora do coletivo das mulheres da CUT ABC e diretora do Sindicato dos Rodoviários do ABC, esse destaque das mulheres pode ser o resultado da vontade de construir uma sociedade mais igualitária. 

A nossa luta é justamente essa, salário igual para trabalho igual. Mas ainda é um trabalho de formiguinha. A gente busca muito uma política afirmativa, promovendo ações, discussões. Em toda oportunidade, nós levantamos essa bandeira pela igualdade”, disse.

Ainda segundo a coordenadora, a diferença de salário, entre homens e mulheres, depende do setor. 

No transporte, por exemplo, onde é a minha base de sustentação, não tem essa diferença. O salário é o mesmo para homens e mulheres. Mas em outros ramos existe uma grande desigualdade. Quanto à questão educacional, as mulheres estão na frente”. 

Segundo dados do Dieese, 59,2% das mulheres possuem ensino superior completo nas montadoras de São Bernardo, enquanto os homens 20%. Nas empresas de base, com exceção das montadoras, o nível de instrução é semelhante para ambos. Entre 1994 e 2002, o saldo de empregos para mulheres metalúrgicas foi negativo, quase cinco mil demissões. Mas, entre 2002 e 2009, foram criados 3,1 mil novos postos de trabalho, um ganho de até 11 milhões na economia. 

E a expectativa pelo crescimento do espaço da mulher no mercado repousa agora sobre colo feminino.

A entrada de uma presidente mulher no governo foi uma alavancada para a sociedade. Isso vai nos ajudar muito, na valorização, na autoconfiança. Eu acredito que a presidente Dilma Rousseff vá fazer grandes políticas voltadas para mulheres”, afirmou Santana. 

Fonte
Texto a partir de reportagem de Amanda Sequin para o Rudge Ramos Jornal (29 abril 2011), que contou com a colaboração de alunos do curso de Jornalismo da Universidade Metodista de São Paulo.



samedi 11 février 2012

O jovem Hegel

A dialética do amor
Por Jorge Pinheiro 

São Paulo – Alguns companheiros, não-marxistas e marxistas, sempre me perguntam: Jorge explica esse seu movimento em direção ao cristianismo. Será que isso tem alguma lógica? Então, porque continuo militante, resolvi falar de alguns amigos que influenciaram esse meu encontro com a cultura ocidental cristã. E sou obrigado a começar por George Wilhelm Friedrich Hegel, hoje um velho companheiro que me foi apresentado por outro amigo, Karl Marx.

Bem, comecemos a leitura de Hegel com um texto do apóstolo Paulo: “Estou plenamente certo de que aquele que começou a boa obra em vós há de completá-la até ao dia de Cristo Jesus. E também faço esta oração: que o vosso amor aumente mais e mais em pleno conhecimento e toda a percepção”. (Filipenses 1.6,9). Aparentemente, o Espírito começou a boa obra. O Espírito estaria, então, presente no mundo para convencer o ser humano da justiça. E deve, também, terminar a obra. Há no texto uma promessa de que tal obra não ficará incompleta. E, por isso, a oração de Paulo pelos filipenses é para que cresçam mais no amor, no conhecimento e na percepção.

Há aqui uma imagem da trindade. Deus é a fonte do amor, o Logos é o conhecimento, e este conhecimento vem através da palavra. Ao falar de crescimento no amor e no conhecimento da palavra, Paulo fala de percepção, ou seja, de compreensão, de discernimento. O Espírito é quem dá a percepção e o discernimento, aquilo que está além do que o olho pode ver. Tudo isso vem através da vida. A pessoa cresce vivendo, não somente através de um processo intelectual, mas na comunhão com Deus e com a comunidade.

Hegel, quando jovem, escreveu sobre teologia e religião. Mas sua grande contribuição para a teoria do conhecimento, que até aquele momento partia de Aristóteles, foi a reconstrução da dialética. A lógica de Aristóteles que influenciou o mundo até Hegel era a lógica formal. A lógica é sempre uma relação entre o sujeito e o objeto do conhecimento. Aristóteles começou a trabalhar com a lógica a partir de formas. Dizia que ser é aquele que é, e não ser é aquele que não é. Ou seja, uma cadeira é uma cadeira e não mesa. Isso foi muito importante e o mundo aprendeu a pensar logicamente com Aristóteles. A metafísica de Tomás de Aquino utilizou a fundo a lógica aristotélica. Mas Hegel, antes de elaborar seus estudos sobre a lógica, tinha um problema: não conseguia pela lógica formal explicar os fenômenos que escapavam à matemática. Não conseguia explicar, por exemplo, a revolução francesa, nem determinados conceitos teológicos. Então, partindo da trindade,[1] criou outra lógica que recebeu o nome de dialética, porque trabalha com opostos.

Acontece que a dialética já existia entre os gregos, mas não da maneira que Hegel vai desenvolver. Hegel vê um Deus que é exclusivamente Espírito. Por ser puro Espírito não pode se revelar plenamente ao ser humano. Há, então, outra pessoa de Deus que se torna Deus/humano e se realiza como Deus e como ser humano. Cristo continua sendo Deus, mas é ser humano. Mas, isso ainda não resolve o problema. Cristo é Deus e é ser humano, mas não é Deus em toda a humanidade. Assim, se na dialética hegeliana, Deus é a tese e Jesus Cristo é antítese, o relacionamento dos dois deve gerar uma síntese: o Espírito, que vindo de parte do Pai e do Filho, se faz presente na humanidade. O que Hegel quer dizer na dialética não é o mesmo que Aristóteles. O filósofo grego disse que ser é aquele que é. Hegel vai dizer que ser é aquele que é e aquele que não é. E é exatamente isso que faz com que nada seja estático. Ele trabalha dois conceitos a partir dessa dialética: o conceito de estrutura e o conceito de gênese ou movimento. Ele conseguiu uma lógica que explica os processos sociais, assim como os processos de desenvolvimento dos organismos vivos. Uma semente de roseira é aquilo que ela é: semente, mas também é aquilo que não é: roseira e rosa. É esta a compreensão: uma estrutura num momento é apenas semente, mas passa a ter um movimento que a leva a ser alguma coisa que não é. E esse processo é permanente. Não se tem processo dialético estático, imóvel. Hegel faz a teoria do conhecimento dar um salto, pois a partir dele se pode definir para onde vai a realidade. Ele apresenta um modo de explicar o que vai acontecer desde que se conheçam as tendências do momento presente. Conhecendo-se isso, sabe-se para onde vai.

O amor e o caminho da dialética

A porta de entrada para o pensamento hegeliano é o amor,[2] já que é a partir daí que descobre o caráter dialético da realidade.

“A religião é um com o amor. O amado não é oposto a nós, é um com o nosso ser. Às vezes, vemos somente a nós mesmos, nele, e logo, de repente, é algo diferente de nós: um milagre que não podemos compreender”. [3]

O ponto de partida é a auto-alienação na realização do amor: o amor esquecendo-se de si próprio sai da existência amorosa e vive no outro. No amor há ainda o separado, não como separado, mas como unidade. Hegel estava olhando para a trindade. Como filósofo da religião considera que a antítese de Deus é Cristo e Cristo é o amor auto-alienado de Deus.

“No momento da universalidade, na esfera do pensamento puro, ou no elemento abstrato da essência, é, pois, o espírito absoluto que é inicialmente o que é pressuposto. Todavia, não permanece incluso em si, mas como poder (potência) substancial é, na determinação reflexiva da causalidade, o Criador do céu e da terra que, nessa esfera eterna engendra-se ele mesmo como seu próprio filho, e permanece numa identidade originária com essa diferença, enquanto essa determinação, de ser distinto da Essência universal”. [4]

Na dialética do amor realiza-se a vida. O amor é o movimento da vida. A vida em sua essência também é dialética. É una em sua essência, mas divide-se na multiplicidade dos seres para, finalmente, reencontrar-se na unidade. A comunidade de fé é o corpo de Cristo e quem a dirige é o Espírito. É uma volta à unidade, mas em um nível diferente em relação ao ponto de partida. Assim, Hegel viu a dialética: há estrutura e gênese, trabalha com opostos e cria um movimento permanente. Para Hegel, o divino é pura vida e por isso Deus também tem sua dialeticidade. Deus é uma totalidade e tudo o que existe está ligado a ele. Não se pode dizer que tudo está na totalidade divina, a não ser no panteísmo, mas sim na realidade. Nesse sentido, nada está fora de Deus. Ou, conforme argumentou Paulo com os atenienses, “nele vivemos, nos movemos e existimos” (Atos 17.28). Tudo está sob a unidade que é Deus. O Filho é humano, que se desenvolve em estado de separação no seu eu finito, no meio do mundo das determinações.

“Mas no momento da particularidade, do julgamento, a essência concreta eterna é pressuposto e seu movimento é a criação do fenômeno, a desagregação do momento eterno da mediação, do filho único, na oposição independente, de um lado, do céu e da terra, da natureza elementar e concreta, de outro, do espírito enquanto relação com eles, logo do espírito finito, o qual, extremo na negatividade em si”. [5]

E o Espírito traduz a condição do humano que superou o estado de alienação e fez o retorno consciente à realidade da redenção.

“E essa consciência imediatamente idêntica à essência, a esse filho do domínio eterno transferido na temporalidade, e no qual o mal é afastado em si, mas em seguida, apresenta-se essa exigência imediata e, portanto, sensível do concreto absoluto pondo-se na divisão (julgamento) e agozinando na dor da negatividade, na qual, subjetividade infinita, idêntica a si mesma, tornou-se, dela emergindo, retorno absoluto e unidade universal (individual) para si mesmo. É a idéia do espírito eterno, mas vivo e presente no mundo”. [6]

Daí surgem os três momentos de sua dialética: a concepção da realidade uma, as realidades separadas e a realidade outra vez unificada. Toda a realidade é somente uma, o mundo é somente um, a humanidade também. A realidade é uma, mas está separada: o que é e o que não é estão juntos, a realidade unificada. Para o jovem Hegel, a espiritualidade reconcilia a reflexão e o amor, unindo-os no pensamento. A vida espiritual, que é a vida do amor, realiza a exigência da filosofia cristã de reconciliar as oposições do finito e infinito. Ou seja, Hegel substitui espiritualidade por cristianismo. O cristianismo reconcilia a reflexão e o amor unindo-os no pensamento, ou na percepção, usando a linguagem de Paulo. O objetivo racional de Hegel é sempre a reconciliação dos contrários: o cristianismo privatizado e o cristianismo social, liberdade e necessidade, finito e infinito. Já maduro Hegel definiria a tarefa do conhecimento como a construção do absoluto pela consciência, que superando oposições produz o processo dialético.

O finito não pode ser pensado sem pensar o infinito, pois não é um conceito isolado e sem conteúdo próprio. O finito consiste em ser um momento do infinito. O finito é atingido pela negação, mas não é simples negação, uma vez que é limitado por outro que não é ele mesmo. O finito, portanto, é uma negação do infinito, no sentido que é uma particularidade, um momento, uma determinação. Sempre que se determina, se nega. Por exemplo, se numa sala de aula, um professor chama um aluno pelo nome, naquele momento ele está negando todos os demais alunos e determinando um único apenas. Por isso, devemos negar a negação e afirmar que o finito é mais que o finito, ou seja, que é o momento da vida do infinito.

O processo que resolve a oposição é o processo dialético: finito e infinito não são dois mundos separados. Sempre que se tem o final do processo se tem a identidade, porque contém todas as diferenças. O conhecimento para Hegel é um processo que nunca se dá no início, mas no final, por isso o conhecimento é sempre histórico. Como se conhece a roseira? Vendo-a crescer. Para Hegel, o conhecimento está a dar-se na vida.

Assim, podemos dizer que o tema da filosofia de Hegel é o infinito e suas relações com o finito, relação de unificação de ambos os termos no princípio absoluto. A identidade, contendo dentro de si as diferenças e a harmonia, acontece no fim do processo dialético. O absoluto é o pensamento que se pensa a si mesmo, o que equivale dizer que o absoluto é espírito, sujeito autoconsciente.

O amor e a trindade

Hegel considera que o próprio Deus ao se finitizar entra na história. No final do século vinte alguns filósofos disseram que a história tinha acabado, mas para Hegel a história não acaba, é permanente. Mesmo na plenitude do Reino, já que existirá a vida, existirá também a história e, por extensão, o conhecimento. Deus construiu o humano para relacionamentos em processos conscientes e livres. Homem e mulher têm liberdade de escolha e consciência para relacionar-se com Deus. Um dia toda a humanidade irá relacionar-se de forma plena com Deus e a partir de tal momento haverá um relacionamento novo, que Deus não tinha antes com os seres humanos. Isso é revelação, um dia Deus será compreensível, mas não totalmente, porque tal processo é permanente. E se a há conhecimento, há processo histórico. Hegel está tentando entender o processo dentro da trindade. Para ele, se esse processo é dialético, há um conhecimento dentro da Trindade, não necessariamente de forma, mas um conhecimento intrínseco.

Aqui a filosofia cristã se vê obrigada a levantar questões: quando Jesus pregado na cruz declarou “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”, aquele foi um momento de ruptura? Mas pode haver ruptura entre o Pai e o Filho? E como se dá a superação dessa relação dialética? Depois da ruptura, o amor é maior ou igual? Outra questão: tendo em vista que o Espírito é a pessoa da trindade presente na comunidade de fé, quando a história presente terminar, na plenitude do Reino, haverá na trindade um conhecimento maior sobre a experiência vivida pelo Espírito? A partir de Hegel, poderíamos dizer que a trindade se relaciona, mas não tem uma comunicação redundante: conversa de louco, onde se sabe de antemão o que será dito ou de coisas que não se entende. A base do conhecimento intratrinitário seria o amor e o amor cresceria à medida que as Pessoas se amam e vivem o amor. Esse seria o sentido do conhecimento na trindade. E esse amor, segundo Hegel, apontaria para o Reino de Deus.

No Reino de Deus o que é comum a todos é a vida em Deus. Este não é um caráter comum expresso em conceito, mas é amor, um viver que une os crentes, um sentimento no qual todas as oposições, quer inimizades, quer direitos, ou ainda aquelas unidades que subsistem como oposições, são anuladas. [7]

Hegel examina também o aspecto fenomênico do cristianismo: sentimento, intuição, representação. A primeira forma de espiritualidade seria sempre imediatização da relação Deus/ humano, própria do sentimento. O sentimento é individual, acidental e mutável. A intuição que se tem na arte é o momento mais elevado dessa imediatização. Há uma dualidade de contrários entre o sujeito intuinte e o objeto intuído, entre a unidade da consciência cristã e seu objeto. A contradição resolve-se à medida que o cristianismo se transforma em verdadeiro saber. E a este saber o ser humano só chega pela fé. Hegel considerava que o momento mais alto do conhecimento espiritual é o cristianismo e que a espiritualidade de Israel era uma imediatização da relação Deus/humano.

A espiritualidade, enquanto fé, sentimento e intuição ingênua, consiste no saber e consciência imediatos. Imediato, para Hegel é sempre o que não se conhece. Ao vermos uma pessoa temos uma percepção imediata, que é falsa. Quando a pessoa passa da primeira percepção e vive o cristianismo há um desenvolvimento da fé e o abandono do imediato. Ou seja, a primeira percepção é emocional, mas a última deve ser a fé, ou a percepção concreta da espiritualidade.

Que é a fé? É o momento em que não se precisa mais de elementos imediatos para a relação com Deus. Não se precisa de templo, sacerdócio, etc. Por isso, o cristianismo situa-se no nível pensante e não só do sentimento. Reduzir o conteúdo divino, a revelação de Deus, a relação ser humano com Deus, a existência de Deus para o ser humano a mero sentimento significaria limitar-se ao ponto de vista da subjetividade particular, ao arbítrio.

Hegel fez a crítica do cristianismo oficial e hegemônico, que em sua época, no mundo germânico, se expressava como catolicismo e luteranismo. Isto porque para ele a doutrina sobre Deus só poderia ser compreendida como doutrina sobre a espiritualidade cristã. Por espiritualidade entendia a relação do sujeito, da consciência subjetiva, com Deus. Assim, o cristianismo seria ação da consciência humana que brota da ação originária de Deus.

Donde, ação divina e ação humana encontram-se na redenção da espécie humana. Ou seja, o ser humano está condenado a produzir a sua essência no tempo, e é o único animal histórico porque é o único que, além de ser natureza, é consciência, a negação da natureza.[8] Antes de Hegel, movimentos cristãos radicais chegaram a conclusões semelhantes no que tange a relação entre soberania divina e liberdade humana, enquanto síntese do projeto divino de redenção dos seres humanos.

17/11/2009
Fonte: ViaPolítica/O autor

Notas:

[1] George Wilhelm Friedrich Hegel, “The Religious Teaching of Jesus”, in Early Theological Writings, G. W. F. Hegel, trad. T. M. Knox, com “Introdução e Fragmentos” de Richard Kroner, Philadelphia, University of Pennsylvania Press, 1981, p. 273.
[2] George Wilhelm Friedrich Hegel, “Love”, in Early Theological Writings, idem, op. cit., pp. 302-308.
[3] Georg Wilhelm Friedrich Hegel, “Esbozos sobre Religión y Amor”, in Hegel, Escritos de Juventud, México, Fondo de Cultura Econômica, 1998, p. 243.
[4] Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Epítome, Lisboa, Edições 70, 1988, vol. I, parágrafo 567.
[5] Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Epítome, idem, op. cit., parágrafo 568.
[6] Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Epítome, ibidem, op. cit., parágrafo 569.
[7] George Wilhelm Friedrich Hegel, “The Religious Teaching of Jesus”, in Early Theological Writings, idem, op. cit., p. 278.
[8] Roland Corbisier, Hegel, Textos Escolhidos, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1991, pp. 16-17.




vendredi 10 février 2012

Os corpos entendem de solidões


Um, dois, três...
Na contramão
com Aristófanes
.
Por Jorge Pinheiro, de São Paulo

Os corpos entendem as solidões, as loucuras dos desejos, os abismos do prazer. Se após a união dos corpos, a solidão é parceira, o corpo é este pedaço de mim nunca completado.

O texto hebraico das Origens conta que o Eterno disse não é bom que o cara viva sozinho, vou construir para ele alguém que o ajude a ir em frente. Isso a gente sabe, todos num estado de tranquilidade, e cientes dos desejos do coração, desejam amar e ser amado.

Ou seja, num momento de sinceridade, amamos ter alguém em quem confiar, e se possível a ponto de podermos revelar nosso lado íntimo. É, acho que gostaríamos muito poder confiar àqueles que gozam de nossa intimidade alguns dos sentimentos que guardamos lá dentro. Talvez, por isso, nos sentimos atraídos por grupos de relacionamentos como facebook, twitter e outros. É isso mesmo, no raso e no fundo, queremos amar e ser amados.

Às vezes no silêncio da noite/ Eu fico imaginando nós dois/ Eu fico ali sonhando acordado/ Juntando o antes, o agora e o depois (“Sozinho”, de Caetano Veloso e Peninha).

Por isso, a pergunta procede: o que nos impede de abrir o coração e amar? Tememos riscos? Que riscos?

Vamos pensar sobre isso com o poeta Aristófanes, lá no Banquetede Platão. Ele disse que antigamente a natureza não era como é hoje. Nossos ancestrais eram duplos, mas tinham uma unidade perfeita. Cada homem constituía um todo, de forma esférica, com costas e flancos arredondados. Tinham quatro mãos, o mesmo número de pernas, dois rostos idênticos num pescoço redondo, mas uma cabeça única para o conjunto desses dois rostos opostos um ao outro. Tinham quatro orelhas e dois órgãos sexuais.

Por que você me deixa tão solto?/ Por que você não cola em mim?/ Tô me sentindo muito sozinho

Essa dualidade genital explica por que não havia dois e sim três gêneros na espécie humana: os machos, que tinham dois sexos de homem, as fêmeas, que tinham dois sexos de mulher e os andróginos, que tinham ambos os sexos.

O macho, conta o poeta, era filho do Sol, a fêmea filha da Terra, a espécie mista da Lua, que participa do Sol e da Terra. Todos tinham uma força impressionante, e, por isso, tentaram escalar o céu e combater os deuses. Para puni-los, Zeus decidiu cortá-los em dois, de cima a baixo, como se corta uma laranja. Então se acabou a completitude, a unidade, a felicidade! A partir de então cada um é obrigado a buscar o outro pedaço.

Não sou nem quero ser o seu dono/ É que um carinho às vezes cai bem/ Eu tenho meus desejos e planos secretos/ Só abro pra você mais ninguém

Agora, estamos separados de nós mesmos. Esse desejo de busca é o que Aristófanes chamava amor, e, quando satisfeito, é a condição da felicidade. Somente o amor reconstrói a natureza, ao fundir dois seres num só. Por isso, para o poeta uma pessoa seria homoafetiva, heteroafetiva ou andrógina, conforme a unidade perdida.

Assim, a partir do mito, Aristófanes considera que quando uma pessoa -- tenha ela inclinação por homens ou mulheres – encontra a sua metade, transforma-se num prodígio de amor e ternura.

Por que você me esquece e some?/ E se eu me interessar por alguém?/ E se ela, de repente, me ganha? 

Essa é a definição do amor fusional de Aristófanes, que faria voltar à unidade da natureza primeira, que libertaria da solidão, e que seria, tanto nesta vida como na outra, a maior felicidade a ser alcançada.

Mas, por necessitar duas pessoas tal fusão, hoje, é sempre um momento e, por isso, longe de abolir a solidão, a confirma. Se as almas pudessem se fundir seria outra coisa, mas são os corpos que se fundem, por um momento.

Caetano nos dá a trilha 
http://www.youtube.com/watch?v=wb4RauhteFA

Daí o fracasso. Todos querem ser um só, mas eis todos mais do que nunca sendo dois, sempre. Por isso, os romanos diziam que post coitum omne animal triste. Mas se o amor não nasce dessa fusão de corpos, nasce o prazer. Ou, podemos dizer, os corpos entendem mais de Eros do que os especialistas. Os corpos entendem as solidões, as loucuras dos desejos, os abismos do prazer. Se após a união dos corpos, a solidão é parceira, o corpo é este pedaço de mim nunca completado.

Detalhe: Platão detestava Aristófanes. E o relato hebreu, que mergulha nas profundezas da existência, não deixa por menos, somos dois mesmos, sempre. E é do diferente, do divergente, que deve nascer a unidade. Ou como disse o homem de Nazaré, e ambos serão uma só carne. E se isso é bênção ou maldição, acho que depende de cada dois.

Ou você me engana/ Ou não está madura/ Onde está você agora? 
(“Sozinho”, de Caetano Veloso e Peninha).

6/11/2010

Fonte: ViaPolítica/O autor