Leitura obrigatória para meus alunos de Estudos Interreligiosos -- 1o. semestre 2014
Religião e Política na Fronteira:
A religião está de volta? Esta é uma pergunta
que desde os anos 1990 não se parou de fazer. Se a teoria da modernização dos
anos 1950/60 prescrevia a lenta erosão do sentimento e das instituições
religiosas como efeito inexorável do avanço da industrialização, da urbanização
e da individualização, os discursos críticos e pós-modernos dos anos 1970 e 80,
apesar de porem em questão a caracterização sociológico-política da
modernização, mantiveram silêncio sobre ou corroboraram a tese da
secularização. Da sociologia à política, a verificação empírica e conceitual da
referida tese foi posta em segundo plano, como se se tratasse de um datum. Outras coisas eram mais
importantes. Por exemplo, a crise econômica dos países periféricos, os
autoritarismos, os desafios da construção democrática, a pobreza e as desigualdades
sociais.[3]
Em todo o período reinou soberana uma
episteme liberal, fundada num dualismo entre espaço público e vida privada,
política e religião, profano e sagrado, objetivo e subjetivo. Mesmo entre
correntes de pensamento críticas do liberalismo, este dualismo se colocava com
força: estava reservado à religião um papel subordinado na configuração da
sociedade contemporânea. Em matéria de especificação deste papel no campo
político, a episteme liberal definia três grandes linhas normativas: (i)
primeiramente, a de que os assuntos e
convicções religiosas (ou a expressão de valores últimos) dizem respeito à
esfera privada dos grupos e indivíduos, mantendo aí sua legitimidade
ainda quando envolvendo práticas exóticas ou repulsivas a uma mentalidade
moderna e letrada. Em seguida, sendo a religião um assunto privado, e em vista
de assegurar a liberdade necessária para que decisões e ações de caráter
público sejam implementadas visando a justiça ou o bem estar do maior número,
duas outras linhas normativas são requeridas: (ii) a neutralidade do estado (tomado como sinônimo do espaço público)
diante das disputas pela verdade das questões religiosas e das demandas por
proteção ou favorecimento feitos por grupos e instituições religiosas ao
estado; e (iii) a separação entre
igreja e estado, no sentido da autonomia institucional de um domínio em
relação ao outro, sob o amparo de algumas garantias constitucionais como
liberdade de consciência e culto, e independência das autoridades civis e
políticas em relação à autoridade eclesiástica.
Este quadro se reproduziu amplamente onde
quer que o modelo ocidental de democracia e economia liberal seduziu elites
nacionais ciosas de alcançar a independência ou o desenvolvimento. Com ele
parecia estar tudo em seu devido lugar. Mas, aos poucos foi-se acumulando uma
evidência contrária às expectativas e à eficiência do marco conceitual e
institucional liberal. Da politização do catolicismo e do protestantismo
histórico latino-americanos nos anos 1970 e 80 ao crescimento vertiginoso dos
pentecostais e carismáticos e à explosão de particularismos étinico-religiosos
nos anos 1990, passando pela revolução iraniana; a resistência da Igreja
Católica na Polônia e de outros movimentos religiosos nos países do leste
europeu; e a disseminação de um misticismo cosmocêntrico oriental entre
inúmeros segmentos das camadas médias escolarizadas - tudo aponta para uma configuração
do religioso que opera segundo uma lógica de deslocamento de fronteiras e ressignificação ou redescrição de práticas.
O efeito contraditório mais marcante destes dois processos é o de que o
aprofundamento da experiência religiosa como algo pessoal, individual, íntimo
se dá ao par com uma desprivatização ou publicização do religioso.
Esta conjunção de aprofundamento da religião
como prática pessoal e desprivatização da religião como força social e política
é, a meu ver, muito mais frutífera como agenda para investigação do que a
discussão sobre o “retorno do sagrado” ou as querelas sobre a secularização,
notadamente se estamos pensando na questão da relação entre religião e
política. Se há alguma volta aqui, para efeito de nossa discussão, é a da
religião à esfera pública, uma penetração ou reabertura dos espaços públicos -
institucionalizados ou não - à ação organizada de grupos e organizações
religiosas, e não tanto um reavivamento da adesão religiosa, que teria quase
desaparecido e regressaria à esfera da cultura.
É com base nesta caracterização que proponho
enfocar tal relação no cenário contemporâneo. E isto será feito, de forma
breve, em cinco movimentos: primeiro, partindo-se do princípio de que não
estamos falando de uma deontologia
da relação religião/política, mas uma construção histórica de longa data da
qual a solução liberal é apenas um capítulo - ainda que de profundas
consequências. Segundo, diremos que mudanças históricas, ocorridas
particularmente a partir dos anos 80, contribuíram para redefinir a fronteira
público/privado de modo a alterar ou provocar um realinhamento na relação entre
religião e política. Terceiro, a redefinição das fronteiras dissolveu ou
deslocou o sentido do político e do religioso - fundamentalmente desterritorializando-os
e, em parte, desinstitucionalizando-os. Quarto, o avanço dos processos de
democratização, se levou, por um lado, à disseminação das instituições da
democracia liberal, provocou, por outro, a progressiva e conflitiva difusão de
uma lógica pluralista, cujo
efeito mais importante é abrir espaço para que a construção da diferença se dê
através da afirmação de identidades
(restando ver como estas se relacionam entre si e com o espaço público da
política). Por fim, estes processos recolocam o problema - ou a possibilidade -
do discurso político da religião e seu lugar numa ordem social pós-tradicional,
pós-secular e pós-moderna.
I
Comecemos a detalhar estes cinco pontos do
argumento. Nossa colocação inicial é a de que não se trata de discutir se há ou deve haver um vínculo entre religião e política.
Simplesmente, ele está historicamente construído e expressa-se seja na massiva
imbricação entre religião e cultura, da antigüidade à idade média, englobando
com o manto da religião a linguagem da vida cotidiana e das instituições
garantidoras da ordem social (cf. Moyser, 1991:12-13; Daniel e Durham,
1999:120) - o estado, a família/tribo/etnia -; seja na ordenação
teológico-política do estado absolutista; seja nas disputas, sob a égide do
iluminismo e do liberalismo, pela fixação das fronteiras entre os dois
domínios. Trata-se, então, de partir da construção histórica desta relação. O
que não resolve o problema, porém, pois a única consequência imediata que
podemos derivar desta postulação é que o vínculo entre religião e política nunca se rompeu, mas foi
construído de diferentes maneiras, sem obedecer a uma lógica linear ou ao
ditame de leis irresistíveis do desenvolvimento histórico.[4]
Se o vínculo entre religião e política é um
dado histórico, pode-se acrescentar que a questão colocada hoje é se o padrão
vigente no ocidente, marcado pelas três linhas normativas mencionadas anteriormente
- religião privada, neutralidade do estado e separação igreja/estado -,
consegue dar conta do deslocamento e da ressignificação da fronteira religiosa.
Como observa Ferrari, num trabalho recente
sobre as implicações legais da “volta do sagrado”, “o processo de
‘desprivatização’ mais uma vez questiona a posição do secularismo como conteúdo
exclusivo, ou pelo menos predominante, do estado e das estruturas sociais. A
idéia de que o espaço público deve estar totalmente destituído de conotações
religiosas (a ‘praça pública desnuda’, evocada por Neuhaus), como pré-requisito
para a igualdade e liberdade de seus cidadãos, parece mais frágil hoje do que
há alguns anos atrás” (1999:14).
A advertência aqui é que não é a necessidade de certo tipo de relação
ou vínculo ou a possibilidade de qualquer
vínculo que estão em discussão. É certo que a cena contemporânea tanto enseja
casos em que o enfraquecimento do modelo liberal leva a uma abertura do
político pela penetração de distintas lógicas do religioso, como tem permitido
a recolonização do político pelo religioso, notadamente onde a religião cumpriu
um papel de foco da resistência cultural e política a regimes ocidentalizantes.
Para complicar ainda mais, esses dois processos estão permanentemente em vias de
se transformarem um no outro. Há diferentes maneiras de reconfigurar o vínculo,
e poucas são realmente inovadoras. Mas o importante aqui é demarcar: 1) a
obsolescência do modelo europeu - liberal, secular e “neutro” - para dar conta
dos desenvolvimentos recentes; 2) a impropriedade de inverter a linha de força
dominante da política à religião. No novo contexto, mesmo que esta seja a
situação inicial, a inserção dos atores políticos e religiosos numa ordem em
acelerado processo de pluralização
– como nos casos europeu-ocidental, norte-americano e brasileiro – tem impedido
uma mera reocupação. Não é mais a mesma
religião de volta, não há mais uma só religião de massas em disputa, e a
religião não é o único espaço de produção simbólica no domínio social e político.
Uma deontologia da relação entre religião e política, portanto, somente
recolocaria a curto e longo prazo os impasses da fusão pré-moderna entre
religião e ordem socio-política ou da repartição moderna deste vínculo.
II
Meu segundo ponto procura dar substância ao
argumento desenvolvido até aqui, destacando que a retomada do vínculo -
falsificando a idéia de desaparecimento, perda de plausibilidade ou
privatização do religioso - está ancorada em mudanças históricas que vêm
desconstruindo a fronteira público/privado de forma a redefinir a relação entre
religião e política. Desconstrução entendida aqui em seus termos derridianos:
como uma interrupção da lógica binária, polarizadora, que implica numa condição
de indecidibilidade entre os dois campos ou conceitos em discussão, o que não
impede que um ou outro venham a predominar eventualmente, mas significa que
toda oscilação será resultado de decisões
ético-políticas, tomadas num terreno em que não há mais o fundamento
inapelável de um significado último, transcendental - seja ele a vontade
divina, a natureza, a história, a ciência ou o sujeito – e, portanto,
questionáveis desde diversas perspectivas e com diferentes consequências.
A desconstrução da fronteira público/privado
é o resultado de processos que em muitos casos não estavam previstos e nem
mesmo tinham como objetivo alcançá-la. Processos onde a resistência, a
insatisfação ou a frustração/desilusão face às formas concretas assumidas pela
modernização encontraram no espaço e na linguagem da religião uma de suas
superfícies de inscrição,[5] embora aqui seja
preciso especificar contextualmente qual (definição ou forma institucional de)
religião. Não há nem apagamento da fronteira nem uma mera inversão da posição
hegemônica. Há um deslocamento
da mesma, que se expressa numa série de indicadores. Apontemos três deles:
1) a crescente atividade reguladora do estado
passou a envolver áreas antes consideradas privadas, ou mesmo íntimas, na
tentativa de aprofundar a racionalização da provisão social ou de resolver
impasses que a ideologia do desenvolvimento identificava em sociedades em vias
de modernização. Do controle da natalidade à garantia de oportunidades iguais
para as mulheres, sem falar da intervenção em disputas étnicas ou das questões
éticas envolvidas na manipulação genética, o ativismo estatal, ao mesmo tempo
requerido e auto-justificado, implicou na penetração em áreas onde valores e
práticas privadas perderam sua invisibilidade e auto-referencialidade, passando
a ser alvo de legislação e políticas públicas, mas também introduzindo sua
lógica própria no espaço político;
2) a ampliação da oferta religiosa e a
competição entre as diferentes religiões - notadamente nos casos em que uma
religião estabelecida oficialmente ou de fato, mantinha um quase-monopólio da
adesão e procurava falar em nome da sociedade como um todo - gerou uma busca
por assegurar espaços de representação política por parte dos grupos religiosos
emergentes, traduzida quer em disputas eleitorais, quer no investimento de
recursos públicos em iniciativas educacionais, filantrópicas ou mesmo em
demandas internas das organizações religiosas (como, por exemplo, cessão de
terrenos para construção de templos). Outro aspecto deste processo foi a
escalada dos conflitos inter-religiosos, demandando do estado e dos outros
atores políticos tomadas de posição na arbitragem ou resolução dos mesmos;
3) os movimentos culturais e sociais do
pós-68 colocaram em xeque uma série de representações da política como espaço
estatal, neutro e alheio a questões particulares, reconstruindo posições
sociais e culturais antes ocultas na órbita do indivíduo, do pequeno grupo ou
dos valores, como posições de sujeito políticas - questões como gênero, raça,
meio ambiente, cultura e subjetividade assumiram, então, um caráter de problema político e mobilizaram formas
de ação coletiva em defesa de
reconhecimento, justiça e participação.
Esses indicadores apontam para uma crescente
oscilação e indecidibilidade da fronteira público/privado, que deixa à iniciativa política de atores
mobilizados em torno das questões mencionadas - ou seja, regulação estatal da
vida privada; demanda por representação ou por resolução de conflitos de base
religiosa; e politização de demandas particulares - o traçado da linha
divisória. Nas condições em que tais lutas ou mudanças têm se dado, trata-se
quase sempre de processos inconclusos, reversíveis e sujeitos a polêmicas que
se arrastam por anos a fio, mobilizando freqüentemente o sistema judiciário.
Igrejas ou organizações representativas
daquelas vão a público, mantêm interlocução com as autoridades civis e
políticas, publicam manifestos, apóiam abertamente candidatos a cargos
eletivos, organizam manifestações de rua. O Poder Executivo conclama organismos
religiosos a atuarem diretamente, de forma subsidiária ou substitutiva, na
implementação de programas sociais em áreas como educação, saúde, violência ou geração
de emprego e renda (em moldes que vão das parcerias às políticas de
desinvestimento estatal na área social, que transfere a organismos privados a
oferta e gestão de serviços de interesse público). Organizações da sociedade
civil crescentemente se auto-definem como um “terceiro setor”, público e
não-estatal, com pretensões de interferir diretamente nas decisões políticas e
nas práticas de mercado, e contam os organismos religiosos entre os que compõem
este setor.
Enfim, a linguagem religiosa reforça ou
exprime demandas por direitos humanos ou por identidade nacional em contextos
nos quais a linguagem da política ou da cultura secular são ainda muito frágeis
ou tornaram-se suspeitas de autoritarismo e indiferença à sorte de milhares de
pessoas. Em tudo isso, o que é público ou privado, propriamente político ou
propriamente religioso, já não pode ser definido de forma categórica e estável.[6]
III
Terceiro ponto, apenas uma advertência e uma
especificação do que acabamos de dizer. O vínculo entre religião e política, de
um lado, e o deslocamento da fronteira público/privado, de outro, não
significam necessariamente um “passo à frente”, algo que devemos acolher como
inequivocamente positivo. Em alguns casos, o processo tem dado lugar a
retrocessos, com o acirramento da intolerância e do que Freud chamou de
narcisismo das pequenas diferenças (cf. Freud, 1976:127-31; Birman, 1994:132-35),
bem como a perda ou estreitamento da liberdade de indivíduos e grupos
dissidentes ou marginais em relação à representação dominante da comunidade
cultural ou da tradição religiosa que ascendem politicamente. Em outros casos,
há visível cooptação e instrumentalização de organizações e movimentos
religiosos para políticas de governo. Mas um ponto a registrar é que mesmo
nestas situações, há um maior “pragmatismo” dos atores religiosos e políticos
no manejo de suas diferenças, que aponta para os limites da intransigência num
contexto pluralista. Voltaremos a isto mais adiante.
Uma especificação que a discussão anterior
pede se refere ao status do
político e do religioso. Pois é notório que para além das reafirmações
permitidas pela linguagem da “volta da religião” ou da “ampliação da esfera
pública ou política”, o que se passa é
uma mudança na definição do que seja política ou religião. De um lado,
os limites do político extrapolam o estado, o que atesta a insuficiência do
neutralismo e da separação entre igreja e estado para disciplinar a relação
religião/política. De outro lado, há uma visível desinstitucionalização da religião, que se traduz na proliferação
de igrejas, movimentos e grupos informais, que não mais se prendem aos
protocolos de autorização ou sanção eclesiástica, bem como na
difusão/disseminação do religioso para além das fronteiras reguladas pelas
instituições religiosas. Mais e menos do que política e do que religião está
implicado em suas múltiplas aparições[7] no mundo
contemporâneo. Isto porque o religioso emerge na esteira de um cansaço com a
política e a religião institucionalizadas, como vemos na utilização de uma
religiosidade mística ou difusa como terapia anti-stress nas empresas, ou
quando militantes políticos/sociais buscam o amparo ou consolo da religiosidade
para renovarem suas energias utópicas ou mesmo em substituição à atuação
política. Quanto ao político, este emerge como antagonismo em meio às mais
cândidas expressões de apoliticismo ou misticismo - como vemos nos choques de
rua entre monges budistas na Coréia do Sul pelo controle de seu órgão máximo de
representação, em 1999, ou na oposição entre evangélicos de centro e
evangélicos de direita no caso, respectivamente, da Associação Evangélica
Brasileira e do Conselho Nacional de Pastores do Brasil, pela legitimidade de
falar em nome dos evangélicos.
O religioso e o político se
desterritorializam - multiplicando-se suas instâncias e “flutuando” através das
fronteiras culturais, políticas e mesmo econômicas das muitas sociedades
contemporâneas. Não quer dizer que estejam em toda parte, nem que possam
investir igualmente qualquer espaço social.[8] Antes, a
desterritorizalização é relativa à definição que herdamos, tradicionalmente, do
modelo estatal e eclesiástico de política e de religião. Há migrações,
transversalidade e superposições parciais dos dois terrenos pelos espaços e
tempos das sociedades concretas em que vivemos.
IV
Apesar das enormes diferenças de escala que
guardam entre si as sociedades latino-americanas e as norte-americanas e
européias, todas elas experimentaram nos últimos trinta a quarenta anos
processos de construção ou aprofundamento da democratização que disseminaram a
forma liberal de democracia e provocaram um incremento da lógica pluralista (cf. Costa, 2000; Sorj,
2000; Burity, 1998; Baquero, 1994; Baquero, 1999; Arditti, 2000; Diamond, 1999;
Scholsberg, 1998; Mouffe, 1996:11-19). Como dissemos no início, o efeito mais
importante disso para nossa discussão é a afirmação de identidades religiosas a partir de reações,
respostas ou diálogos frente à cultura e a política seculares. Identidades
religiosas afirmadas como refúgio contra o abandono, a solidão, a incerteza ou
os efeitos das crises e reestruturações econômicas, das mudanças tecnológicas e
de globalização (cf. Touraine, 1997; Beyer, 1994; Martin, 1998; Haynes, 1998).
Identidades religiosas em discussão após décadas de repressão ou controle
estatal da prática religiosa, nos países do antigo bloco comunista (cf. Daniel
e Durham, 1999). Identidades religiosas dialogando assertivamente com os
poderes estabelecidos em defesa de valores comunitários e individuais - muitos
dos quais antigos e mesmo incompatíveis com a modernidade (cf. Kymlicka, 1996;
Modood, 1999; Bartolomei, 1995).
A conexão entre democracia, pluralismo e
identidade que propomos aqui segue de perto a formulação proposta por Chantal
Mouffe (1999), para quem a democracia moderna, como articulação entre o
liberalismo político (domínio da lei, separação de poderes e direitos
individuais) e a tradição democrática da soberania popular, distingue-se das
democracias liberais realmente existentes ou da democracia dos antigos pela
aceitação que faz do pluralismo. Não da mera existência de uma pluralidade de
concepções do que a boa sociedade, de uma mera diversidade de grupos. Mas de
uma mudança no plano simbólico, pela qual se dá a legitimação da divisão e do
conflito, permitindo “a emergência da liberdade individual e a asserção da
liberdade igual pra todos” (Mouffe, 1999:30).
Por meio do pluralismo emerge, assim, uma
tensão entre a lógica democrática da identidade e da equivalência, e a lógica
do pluralismo, que se baseia na diferença e na multiplicidade de visões do bem.
A rigor, e isoladamente, cada uma dessas lógicas tende a anular a outra, o que
leva à necessidade de uma constante rearticulação e renegociação, sem um ponto
de equilíbrio ou harmonia final. Isto significa, continua Mouffe, que não é
possível depender apenas de um acordo quanto a procedimentos. Tais acordos
sempre envolvem julgamentos quanto ao que é justo, razoável, aceitável, etc, os
quais por sua vez pressupõem “formas de vida” (Wittgenstein) e os embates entre
elas. Num contexto pluralista a diferença é que tais “formas de vida”,
expressas em paixões, valores, crenças e práticas conflitantes, têm acesso à
esfera pública, devendo ser aí “domadas”, isto é, transformadas de identidades
antagonísticas em identidades agonísticas.
O estado, neste caso, não pode ser neutro,
mas precisa definir os limites de sua tolerância - fundamentalmente em termos
da “gramática de conduta” que prescreve liberdade e igualdade para todos
(Idem:34 e 36). E a separação entre igreja e estado, fundamental para assegurar
o caráter político do
pluralismo, “não requer que a religião seja relegada à esfera privada e que os
símbolos religiosos devam ser excluídos da esfera pública. Como argumentou
recentemente Michael Walzer, o que está realmente em questão na separação entre
igreja e estado é a separação entre religião e poder estatal (Idem:36-37). E Mouffe arremata, “na medida em que
atuem nos limites constitucionais, não há nenhuma razão por que os grupos
religiosos não devam poder intervir na arena política para debaterem a favor de
ou contra certas causas” (Idem:37). E ainda: “certamente, em países onde a religião
é central na constituição das identidades pessoais, seria anti-democrático
proibir certas questões que são importantes para os crentes de entrarem na
agenda democrática” (Idem:38).
Naturalmente, a formulação de Mouffe não
resolve todos os problemas. A visibilidade pública da questão da identidade -
no nosso caso, das identidades religiosas - num contexto pluralista traz
consigo uma série de dificuldades a equacionar. Embora concordemos com ela que
a solução será política e,
portanto, pressuporá o conflito e manterá a divisão (isto é, a não-totalização
das soluções alcançadas em relação ao conjunto das demandas ou das formas de
identificação existentes na sociedade), os desafios concretos podem representar
enormes obstáculos para o avanço do pluralismo.
Menciono aqui, de passagem, alguns destes
desafios:
1) o avanço do estado na regulação de
assuntos privados e a desprivatização da religião, lançando demandas à esfera
política torna impossível definir áreas de competência exclusiva de cada um ou definir,
à parte de uma tomada de posição normativa (portanto, somente sustentável em
termos hegemônicos), quanto espaço será permitido à expressão da religião na
esfera pública e ao estado na esfera privada ou na emergente esfera da
sociedade civil;
2) os conflitos interreligiosos
contemporâneos podem se manter no nível da violência simbólica ou transbordarem
para a violência física; em ambos os casos, a maior presença estatal, chamada a
decidir entre partes litigantes com os instrumentos do monopólio da violência
legítima ou o poder regulatório da lei e das políticas públicas, nem sempre se
dá de forma satisfatória – por desconhecimento da lógica própria de
funcionamento das identidades em disputa; pela distância cultural possível
entre as elites estatais e certas comunidades religiosas; pela incongruência
entre os instrumentos de controle político e as práticas vigentes nas
comunidades implicadas;[9]
3) o problema do multiculturalismo, que tem
colocado uma série de desafios notadamente às esferas legal e governamental, no
que se refere à questão da tolerância e à do equilíbrio entre isonomia no
tratamento das diferenças e reconhecimento da especificidade delas (cf.
Kymlicka, 1996; Semprini, 1999; Touraine, 1997). O principal limite do
multiculturalismo está na tendência ao dogmatismo e ao essencialismo por parte
das identidades religiosas em disputa (entre si ou no caso de fusão entre
identidade religiosa e identidade política de um grupo ou etnia);
4) o pluralismo facilita o acesso à esfera
política e isto, em circunstâncias de forte peso da religião na vida cotidiana,
se expressa em termos de aumento na participação política (representação e
presença na tomada de decisões) por parte de indivíduos e grupos/movimentos
religiosos; tal participação, contudo, na medida em que incorpora atores com
pequena ou nenhuma experiência prévia de exposição à esfera política, corre
sempre o risco de importar para o campo político formas de intransigência e
imposição muito difundidas no campo religioso, ou de se perder no labirinto das
redes clientelistas ou corporativistas da política contemporânea.
V
Finalmente, o que dissemos a respeito das
dificuldades do pluralismo precisa ser complementado com uma referência à
configuração do discurso religioso como discurso político. Parte do tema é
captada nas discussões sobre a desprivatização da religião. Dissemos no início
que a reconfiguração do religioso opera de acordo com uma lógica do
deslocamento de fronteiras e de ressignificação de práticas. Rosenfeld aponta
duas consequências da desprivatização,[10] citando o estudo
de Casanova (1994) sobre as religiões públicas na política mundial:
“repolitização das esferas religiosa e moral privadas” e “renormativização das
esferas econômica e política públicas” (Rosenfeld, 1999:41). Ao que Rosenfeld
exemplifica: no primeiro caso, os esforços religiosos para criminalizar o
aborto e a homossexualidade; no segundo caso, a tentativa de coibir os excessos
da economia de mercado pelo recurso a uma concepção religiosa de
responsabilidade ou solidariedade social (Ibidem). E no final de seu artigo,
mencionando especificamente o Solidariedade polonês e a Igreja Popular
brasileira, o autor afirma que “se... a referência à moralidade religiosa serve
para avançar preocupações morais, sociais ou políticas amplas, que atravessam
um grande número de concepções do bem, englobando tanto perspectivas religiosas
como não-religiosas, então o pluralismo compreensivo pode muito bem aconselhar
aceitação e, possivelmente, mesmo apoio integral” (1999:64).[11]
Neste caso, podemos acrescentar, a relação
entre religião e política se torna indissociável, e implica dois processos
articulados. De um lado, uma redescrição
da tradição religiosa que põe em andamento o jogo das significações
entre as versões oficiais (ortodoxas) e marginais (heterodoxas) da tradição.
Conflito interno ao campo religioso. Cada tentativa de politizar o discurso religioso
envolve uma revisita à tradição, para reforçar o senso de pertencimento e para
melhor confrontar a ortodoxia – quer apontando desvios em relação à pureza das
origens, quer ressemantizando a atualidade de dissidentes e mártires no
interior da tradição, tomando-os como exemplos de antecipação visionária,
independência e compromisso.
É preciso acrescentar, porém, que esta volta
ao passado para reavivar sua atualidade e força ético-política precisa ser
duplamente qualificada: primeiro, os sentidos não estavam lá, meramente
esperando para serem recuperados pelos atores politizantes. Eles só cobram
força à luz de um acontecimento, de um desafio ou deslocamento postos pelo
presente e que são respondidos por uma visita à tradição. Segundo, o caráter
desta leitura heterodoxa pode ser conservadora ou progressista, dependendo do
contexto em que é articulada. A heterodoxia é uma posição relacional, que só se
define face a uma posição ortodoxa hegemônica, bem como face a um campo de
forças externo à religião. Na repolitização do discurso religioso podemos
encontrar do integrismo mais reacionário ao pluralismo mais radical, passando
por posições centristas e pragmáticas: da política dos aiatolás e da nova
direita religiosa norte-americana, à teologia da prosperidade e o projeto
político dos neopentecostais brasileiros[12] ou mexicanos,
passando pela teologia da libertação, o evangelicalismo latino-americano e as
políticas de promoção dos direitos humanos das igrejas européias (notadamente
através do movimento ecumênico).
O importante a destacar é que, no cenário
contemporâneo, há uma dissseminação/circulação do religioso em busca de eficácia
política, que gera condensações em discursos político-religiosos em contextos
nacionais. O rebaixamento das barreiras que o modelo iluminista de oposição
entre religião e política impunha, encontrou-se com um ativismo religioso
crescentemente mobilizado contra o secularismo ou as injustiças e
desigualdades, e isto tem permitido uma configuração múltipla das relações
entre religião e política. Não se trata de um retorno de algo que havia
morrido, nem de um reencantamento do mundo. Onde há retorno ou reencantamento,
nunca houve total desencantamento, razão pela qual a religião foi
suficientemente forte para se tornar uma força política – ou apenas se trata da
ascensão de uma diferente religião ou corrente religiosa dentre as existentes.
Tampouco a totalidade do arcabouço liberal cede lugar a algo inusitado. Antes,
é sobre as ruínas do liberalismo dos séculos XVII a XIX, mas usando seus cacos
ou restaurando seus “monumentos” institucionais meio abandonados, que se
reconstrói a relação entre religião e política. É certo que os novos arranjos
nem sempre guardam coerência com o liberalismo. Há elementos arcaicos,
pré-liberais, que voltam; há novos desenvolvimentos pós-liberais. Por exemplo,
a velha idéia da religião como “social
glue”, preservando uma identidade nacional da desintegração e
fragmentação, se junta à sua idealização como fonte de capital social para o incremento da cidadania, ou antigas formas
de retirada do mundo buscam justificar-se como crítica da corrupção e da
falsidade na política institucional.
Há, contudo, uma exuberância de casos e
tendências a analisar e comparar. O cientista social da religião está hoje numa
posição invejável para renovar o conhecimento do vínculo entre religião e
política, assim como, no início da era moderna o fizeram Hobbes, Maquiavel,
Locke ou Spinoza. Não fazê-lo é injustificável tanto quanto fazê-lo é
desafiador.
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NOTAS
[1] Versão revisada de
trabalho originalmente apresentado em workshop sobre religião e política, por
ocasião do VIII Congresso Latino-americano de Religião e Etnicidade, promovido
pela Associação Latino-americana para o Estudo das Religiões, em Pádua, Itália,
de 27/06 a 05/07/2000.
[2] Pesquisador do
Instituto de Pesquisas Sociais, Fundação Joaquim Nabuco; professor das
pós-graduações em Ciência Política e Sociologia, Universidade Federal de
Pernambuco. Agradeço aos colegas presentes preciosos comentários, que procurei
integrar a esta versão do texto. As lacunas que persistam são de minha
responsabilidade.
[3] Há hoje um grande corpo
de literatura crítica da teoria da secularização ou revisionista. Para alguns
exemplos mais recentes, cf. Beckford, 1989; Haynes, 1998: 214-20; Berger, 1999;
Vattimo, 1999; Taylor, 1998:1-6; Hervieu-Léger, 1997; Milbank, 1993;
Riesenbrodt, 2000. Entre os argumentos que chamo de “revisionistas” estão
aqueles favoráveis à tese da secularização, mas que a compreendem como processo
descontínuo e mesmo combinado de “secularização-com-intensificada-mobilização-religiosa” ou mesmo como elemento
desencadeador da explosão de formas não-tradicionais de religiosidade, “como
busca e, a um só tempo, garantia de
liberdade religiosa para todos” (Pierucci, 1997:112 e 115; cf. tb. 1998;
Wilson, Beckford e Dobbelaere, 1993).
[4] Para análises do caso
americano, cf. Jelen, 1995; Chandler, 1999; Carter, 1993. Interpretações mais
globais podem ser encontradas em Moyser, 1991; Haynes, 1998 e Lincoln, 1998;
Swatos Jr., 1989; Roof, 1991.
[5] Por “superfície de
inscrição” entendemos, com base em Laclau (cf. 1990:63, 168-69), uma formação
discursiva ou fragmento dela que se torna, sob determinadas condições,
“representante” de demandas ou interpretações do social que lhes eram
originalmente estranhas ou que não faziam parte de suas formas predominantes.
Subjacente a tal entendimento está a idéia de que isto é possível porque as
estruturas (discursivas) do social não estão inteiramente fixadas, nem
conseguem se manter impermeáveis a tentativas de “recrutá-las” ou mobilizá-las
para fins distintos dos que convencionalmente as caracteriza. Se o sentido de
um discurso - e este não pode ser entendido apenas num sentido linguístico, mas
como um sistema de relações que tanto são linguísticas como extra-linguísticas
- é dado por sua relação com outros, mais do que um sistema fechado, aquele pode
vir a ser investido (hegemonizado) de diferentes maneiras, podendo tornar-se um
espaço em que outros processos de significação vêm a operar.
[6] Para outros tratamentos
das implicações constitucionais e políticas do deslocamento da fronteira entre
público/estatal e privado/religioso, cf. Rosenfeld (1999); Casanova (1994),
Moyser (1991). Ver também o parágrafo IV a seguir.
[7] Gostaríamos de reter
deste termo sua dupla referência a “aparecimento” e a manifestações de
fantasmas (daquilo que se julgava morto e enterrado, mas que retorna como
“assombração”). No primeiro caso, salienta-se o elemento de novidade, enquanto
no segundo a insuficiência de uma concepção etapista, linear, de evolução
histórica, que veria na presença da religião ou determinadas formas de
manifestação política na sociedade contemporânea resquícios de irracionalidade
associados à ausência ou deficiências da modernização. Entretanto, parte do que
é novo na verdade é muito antigo, e parte do que se julgava morto na verdade
ronda como espectro ou se movimenta com vivacidade na cena social.
[8] Alguns autores tem
procurado explorar, por exemplo, a questão da busca por espaços ao abrigo da
política, isto é, da exposição ao escrutínio público e da mobilização coletiva
em função de direitos ou contra sua violação (cf. Melucci, 1996; Maffesoli,
1997; Cochran, 1990).
[9] Este é o caso dos
grupos ou instituições que reivindicam a atualidade de tradições culturais e
políticas pré-modernas, de base religiosa, para o enfrentamento autônomo de seus
problemas de ordem e desenvolvimento, contra os princípios do pluralismo
democrático - cf. Kymlicka e Norman, 1996; Kymlicka, 1996; Laclau, 1997.
[10] Segundo Haynes
(1998:2), tal processo de desprivatização da religião alcança mesmo sociedades
altamente secularizadas, como a Inglaterra.
[11] Para uma interpretação
abrangente, global da desprivatização, cf. Haynes, 1998:12-19.
[12] Uma interpretação
extremamente original vem sendo proposta, a propósito do movimento pentecostal
na América Latina (particularmente no Brasil), por André Corten (1996; 2000).
Segundo ele, a despeito do conservadorismo político deste movimento, sua
emergência tem colocado desafios para a “língua política” - sistema de
autorização do que é aceitável como discurso sobre o social e o político, num
dado momento - seja no campo da religião propriamente dito, seja no da cultura
e da política.