Jorge Pinheiro
O centro de Santiago se transformou num
parlamento. Não podíamos ouvir claramente as vozes porque estavam amordaçadas,
podíamos ouvir os pensamentos que se debatiam em meio aos clamores de justiça e liberdade.
Cada homem e mulher da Unidade Popular,
não importava o matiz político, tinha o coração partido e sentia-se abandonado
pelo destino. Ninguém falava, cada um olhava para o outro como se vivesse o
momento maior da traição. O terror foi tomando conta dos corpos e mentes.
Ali, no minicentro formado por Ahumada
com Huérfanos, convertido nos últimos dias na tribuna pública do medo e do
silêncio, podíamos ouvir os pensamentos da gente que lutara e morrera na
tragédia dos últimos dias.
O cenário
de todos esses dias era parecido. Jovens, homens adultos, velhos, desgrenhados,
ensangüentados, rasgados, mutilados vagueavam como cadáveres, procurando não
chamar a atenção. Ninguém falava alto, ninguém repartia panfletos ou jornais.
Não se viam grupos ou círculos. Ninguém escutava argumentos, ninguém polemizava.
Ninguém
era partidário. Éramos todos apolíticos, sombras que vagueavam pelo centro.
·
A poucos
metros de cada um de nós, sempre em grupos, piquetes de Carabineiros sob
comando de oficiais observavam se alguém traspassava a fronteira do bom senso e
abria a boca.
Pensamos.
Olhamos o companheiro que passava e pensamos. Ele entendia e nos respondia.
Todos falávamos, a comunicação era plena e solidária, apesar do medo. Sem som,
sem voz, nos comunicávamos.
Eis o
espelho do Chile, medo e esperança, dialogavam sem pedir permissão a ninguém, e
nós nos aproximamos de um desses grupos e escutamos com atenção.
Preste
você também a máxima atenção a esses corações e ouvirá o clamor que não é
audível para os assassinos da liberdade. Simplesmente preste atenção.
Ligue seu
gravador, de forma dissimulada, para evitar inibições. Venha para esse
parlamento de rua, o lugar natural da democracia.
Não se
preocupe com os nomes. Aqui ninguém tem títulos, somos todos passantes.
Cena Um
Diálogo Um
Jovem triste, sujo de
sangue, tem as mãos quebradas. Fala pausado como se estivesse no meio de um
sonho.
- No dia 11 de setembro
eu cumpria minhas funções como membro do dispositivo da segurança do presidente
Salvador Allende. Esse dia era muito importante para mim, porque era o dia do
meu casamento.
Homem baleado no peito à queima roupa. Tem a camisa
e a parca verde oliva queimadas.
- Nossos planos em caso
de golpe sempre levaram em conta duas variáveis: uma ruim e outra péssima. A
péssima era de que o grosso das forças armadas apoiasse o golpe. A ruim era de
que o povo tivesse armas e alguns regimentos permanecessem leais ao governo.
Senhora de
55 anos chora o filho desaparecido.
-Digam aos
militares que o povo não vive só de pão, queremos nossos filhos...
Moça
desgrenhada, enlameada, vestida de noiva, com um buquê na mão...
- Pão nós
temos... Eles não vieram para nos dar, mas para tirar o que temos...
Cena Um
Diálogo
Dois
Jovem triste...
- Estive de guarda do
lado de fora do quarto do Dr. Allende até as duas da manhã. Depois chegou
alguém para me render. Lembro-me, ao me deitar, que vi garrafas de Coca-Cola e
sanduíches guardados por meus companheiros para a minha despedida de solteiro.
Operário,
veste um macacão manchado de graxa e arrasta com dificuldade uma das pernas.
- Eles
estão falando em mudanças. Que tipo de mudanças? As poblaciones foram
invadidas, estão entrando em tudo que é casa. Prendendo pessoas, desaparecendo
com elas. Essa mudança nós não queremos.
Velho, de
óculos, é o único que esboça algo parecido com um sorriso.
- Não
percam a esperança, a coisa está começando. Muita água ainda vai rolar.
Partidários
da Unidade Popular em coro.
- É isso
mesmo. Está havendo resistência em tudo que é lado, principalmente nas poblaciones...
O que eles dizem não interessa, não podemos fazer o jogo deles.
Homem baleado no peito...
- Faço parte da direção
do Grupo de Amigos do Presidente - GAP e sempre defendi a idéia de que em caso
de golpe, o presidente deveria criar uma zona liberada, num dos subúrbios
operários da cidade. A partir daí, com uma equipe de rádio portátil, organizar
a resistência...
Cena Um
Diálogo
Três
Um homem
destoa do ambiente, está bem vestido e porta com elegância uma bengala
trabalhada.
- E se as
mudanças forem boas? E se houver mais empregos?
Velho, de
óculos...
- Os milicos
darem trabalho? Você está louco. Eles vão dar chumbo...
Jovem triste...
- A situação política e
militar estava se complicando e eu sabia que meu casamento tinha que acontecer
rápido, no máximo em meia hora...
Um homem
destoa do ambiente...
- Mas
porque o desemprego estava aumentando? Porque ninguém queria investir aqui?
Porque não tinha estabilidade. Quem sabe agora, pode haver alguma mudança e o
dinheiro de fora começa a entrar?
Velho, de
óculos...
- Diga-me
senhor, com toda a sinceridade. Quem produz o desemprego nesse país? É o
governo ou los momios, que fecharam fábricas, mandaram suas fortunas para a
Suíça e para Miami? A estabilidade que eles querem vai ser construída em cima
do seu cadáver.
Velho, de
óculos...
- O setor
privado chileno está de braço dado com os militares.
Homem baleado no peito...
- Allende preferiu ir
para o palácio La Moneda. Isso condicionou nossos planos.
Velho, de
óculos...
- E há
mais um detalhe. O investimento estrangeiro procura é mão de obra barata, não
quer fazer a felicidade de ninguém.
Cena Dois
Diálogo Um
Jovem triste...
- Fui despertado às cinco
e meia da manhã. Falam que a Marinha, em Valparaíso, estava rebelada. Preparei-me
para o combate e fomos para o Palácio La Moneda. A comitiva especial do GAP,
que normalmente era composta por quatro carros foi reforçada, com mais duas
camionetas de cabine dupla. Não havia nenhum movimento no centro da cidade.
Eram sete da manhã.
Velho, de
óculos...
- Minha
pergunta é, você é ou não é de esquerda?...
Um homem
destoa do ambiente...
- Vou
responder com toda a honestidade: não posso dizer que sou dessa esquerda que
está aí. Sempre votei nulo.
Velho, de
óculos...
- Então,
colega, chegou a hora de fazer alguma coisa...
Moça
desgrenhada
- As armas
falam mais alto que as urnas...
Homem baleado no peito...
- Temos 140 fuzis, com 120 tiros por fuzil. E
algumas bazucas, com seis projéteis por bazuca. Não dá para mais de um combate.
Cena Dois
Diálogo Dois
Índio
mapuche, forte, troncudo.
- Os
militares vão repetir a truculência de Custer e sua tropa. Vão exterminar os
mapuches. Para nós não há alternativa. É lutar ou ser escravizado.
Operário, veste um macacão
manchado de graxa...
- É, os mapuches não têm
opção.
Senhora de
55 anos...
- Temos
que pensar em função de nossas crianças. O que elas vão herdar.
Jovem triste...
- Eu e Isabel íamos nos
encontrar no cartório às nove e trinta.
Moça
desgrenhada...
- Mas o
que podemos herdar se anos de democracia, uma tradição chilena, foram queimados
com o La Moneda?
Um homem
destoa do ambiente...
- E de que
valeu votar na Unidade Popular?
Velho, de
óculos...
- Valeu
votar e eleger Allende. Era a exigência do momento. Não foi errado. Agora, é o
momento de usarmos outras armas...
Homem baleado no peito...
- Os trabalhadores estão na periferia da cidade,
nos cordões industriais e nas poblaciones. Temos
que cobrir Vicuña Mackenna, San Joaquín, Cerrillos, Pan-americana Norte... Conseguir mais munição e avançar
sobre o La Moneda.
Operário,
veste um macacão manchado de graxa...
-
Concordo, só não sei como... Está todo mundo preso. Quem vai liderar a
oposição?
Um homem
destoa do ambiente...
- Pior
ainda, tem gente fugindo como rato. As embaixadas estão cheias. Todos os
estrangeiros que estavam aqui para nos ajudar estão fugindo. Inclusive, muita
gente da UP...
Operário,
veste um macacão manchado de graxa...
- Se
ficarmos parados vai ser pior ainda. Eles vão atacar os mapuches, proibir os
partidos, fechar os sindicatos, os jornais. Só vai ficar quem disser sim.
Cena Dois
Diálogo Três
·
Homem baleado no peito...
- São seis e meia. Nossa central de rádio informa que está
havendo um levante militar.
Um homem
destoa do ambiente...
- Tudo
começou no governo de Frei. A democracia cristã fez o papel de Pilatos, lavou
as mãos e entregou a Unidade Popular aos seus algozes.
Índio
mapuche, forte, troncudo.
-
Companheiro, a luta de classes não começou com Frei. Allende fez o que pode.
Moça
desgrenhada...
- Os
governos democráticos sempre reprimiram os trabalhadores, mas esses militares
nem democráticos são...
Um homem
destoa do ambiente...
- É, mas,
em agosto a própria Câmara dos Deputados começou a sinalizar a favor de um
golpe de estado.
Índio
mapuche, forte, troncudo.
- Concordo
em parte. Não que a Câmara fosse confiável, mas o que ela estava dizendo é que
Allende estava implodindo o estado de direito...
Um homem
destoa do ambiente...
- É, a
Câmara dizia que Allende violou a garantia constitucional do direito de
propriedade, amparou invasões de fazendas, de indústrias, de comércios, e que
por essa via pretendia construir a nova área estatal da economia.
Operário,
veste um macacão manchado de graxa...
- Que isso
aconteceu é verdade, agora se foi da vontade de Allende eu não sei.
Senhora de
55 anos...
- Estou de
acordo. A esquerda tentou construir um Chile socialista. Ao menos tentou. Mas e
a direita, o que fez em toda a história da República?
Moça
desgrenhada...
- Não me
interessa o que fez a direita. Ela tem sido minha inimiga. A Unidade Popular
pode ser uma mierda, mas é o meu governo.
Homem baleado no peito...
- Eu estava em casa dormindo. Dei um longo abraço em minha
mulher. Ela foi para seu posto de combate, na central de comunicações do
partido socialista e eu para o meu.
Jovem triste...
- Tenho 23 anos e hoje é o dia do meu casamento.
Deveria ser o dia mais feliz e importante de minha vida. Estou todo molhado,
tive que ajudar a apagar o incêndio do palácio, depois do bombardeio.
Cena Três
Diálogo Um
Jovem triste...
- O primeiro som de combate foi impressionante. O martelar
de uma metralhadora pesada. Eu estava na rua Morandé, 80. Minha missão era
cuidar da porta. Quebramos os vidros e respondemos ao fogo. Vimos um tanque e a
tropa atrás. Os soldados não queriam avançar, mas os oficiais os obrigavam, sob
a ameaça das armas.
Moça
desgrenhada...
- Estão
falando em milhares de mortos. Em gente boiando no Mapocho?
Senhora de
55 anos...
- Será que
pode haver gente tão desalmada assim, a ponto de matar trabalhadores indefesos?
Moça
desgrenhada...
- Matam
sim e com apoio de gente de fora, com a participação descarada dos Estados
Unidos, do financiamento que deram aos camioneiros, aos comerciantes e agora
aos militares...
Homem baleado no peito...
- Recebi ordens de acompanhar o responsável pelo
armamento, para tirar e distribuir as armas que estavam num depósito perto do
parque Cormo.
Moça
desgrenhada...
- A
senhora tem alguma esperança em Pinochet?
Senhora de
55 anos...
- Não
falei de Pinochet, falei de gente desalmada...
Moça
desgrenhada...
- Mas e
Pinochet? Gosta ou não gosta?
Senhora de
55 anos...
- Você
está me provocando... Claro que não gosto.
Moça
desgrenhada...
- Senhora,
não estou lhe acusando. Mas ele assassinou meus sonhos...
Senhora de
55 anos...
- E os meus também...
Jovem triste...
- Só às duas e meia da tarde tomei consciência de
que estava vivendo um absurdo. Estava no meio de um combate aberto com os
militares, era bala para tudo quanto é lado, e foi aí que resolvi telefonar
para Isabel e dizer que nosso casamento deveria ser adiado. Mas que nos
veríamos à noite. Eu estava embaixo de uma escrivaninha, com um telefone de um
lado e o fuzil de outro.
Operário,
veste um macacão manchado de graxa...
- O que
você acha de Allende?
Um homem
destoa do ambiente...
- Eu que
pergunto: em que deu seu governo?
Operário,
veste um macacão manchado de graxa...
- Mas por
que vocês se juntaram à oposição e à direita?
Um homem
destoa do ambiente...
- Eu não
me juntei à direita, por isso tenho direito de perguntar: quem derrubou a
Unidade Popular? A intolerância dos militares ou Allende e a fome?
Operário,
veste um macacão manchado de graxa...
- Allende
ia colocar seu cargo a disposição do povo, ia chamar a um plebiscito e por isso
as forças armadas deram o golpe de Estado. Essa é a verdade.
Um homem
destoa do ambiente...
- Então
foram os militares, e eu não tenho nada com isso...
Operário,
veste um macacão manchado de graxa...
- Vocês se
aliaram à direita civil...
Um homem
destoa do ambiente...
- De
acordo com sua lógica quem não apóia a UP é de direita. Eu não apoiei a UP e
não sou de direita.
Operário,
veste um macacão manchado de graxa...
- O único
que a democracia cristã fez foi confundir as pessoas. E agora, com quem a
democracia cristã pretende governar? Ou vocês ficam com a democracia ou ficam
com a ditadura. Não dá para ser Pilatos a vida inteira.
Um homem
destoa do ambiente...
- Sabe de
uma coisa, o que passou, passou. Temos que construir um novo Chile.
Partidários da Unidade
Popular em coro.
-¡Se
siente, se siente, Allende está presente!
Jovem triste...
- Isabel mora perto dos Correios, em Puente, e
escutou as rajadas de metralhadoras. Sua primeira reação foi dizer que eu ia
morrer. Pedi então para falar com seu irmão, um companheiro, um amigo
extraordinário.
“Olha, estamos no meio do golpe”.
“Então estamos indo para
o La Moneda, com reforços”.
“Não sejam loucos. É
impossível, estamos isolados”.
Homem baleado no peito...
- Além das armas do parque Cormo, temos outros
depósitos, o mais importante deles está na rua Chile-Espanha, perto de
Irarrázaval.
Cena Três
Diálogo Dois
O jovem triste e o homem
baleado contam suas histórias. Todos ouvem em silêncio.
- Ele entendeu. Era uma
despedida. Senti novamente o sentido de missão que me levara ao GAP. O combate
é uma situação de violência física extrema, todos os sentidos estão dirigidos à
luta, você pode morrer a qualquer momento. Não há tempo para pensar no que foi
sua vida. Não há tempo.
- Estou no depósito da rua Chile-Espanha faz meia
hora. Algo está errado, ainda não chegou a unidade que deveria pegar as armas.
- Às quatro da tarde, subimos para o segundo andar
do palácio, porque o primeiro estava em chamas. Aí caímos todos. Quando eu ia
ser morto, um sargento disse que ia usar-me como escudo, porque dos prédios
muitos companheiros estavam resistindo.
- Resolvo eu mesmo carregar uma camioneta. Deixo a
casa e vou para Irarrázaval com o responsável pelo depósito. O trânsito está
pesado, todo mundo parece querer chegar em casa o mais rápido possível. Vejo
uma camioneta parada. Jogo o carro em cima dela, desço, ponho a mauser na
cabeça do condutor e dou ordem para que saia da camioneta.
- Eu e os companheiros, usados como escudos, fomos
obrigados a deitar na Morandé. Pensei que fossem nos esmagar com o tanque. Mas,
de repente, aparece um jovem oficial, de porte senhoril, de luvas de couro e
nos diz: “Senhores, vocês têm feridos? Mandei buscar uma ambulância para
retirar seus feridos”.
- Meu colega pegou a
camioneta e saiu cantando pneus.
- Logo chegou a
ambulância. E também um ônibus da Marinha, que nos levou ao regimento Tacna.
- Eu fiquei, no meio
daquele trânsito congestionado. Enfiei a mão no carro, peguei uma metralhadora
AKA e gritei: “Todo mundo no chão”. As pessoas obedeceram. Lançaram-se de cara
no chão. Eu estava louco. Usava uma parca verde oliva e estava completamente
despenteado.
- Quando desci do ônibus,
um oficial me apoiou, segurando meu braço. Depois pegou uma bandagem e vedou o
sangramento à bala no braço de um companheiro. Foi o único oficial que nos
permitiu ir ao banheiro à noite. Todos os outros nos torturaram.
- Depois de carregar a
camioneta, fomos para o segundo depósito, na avenida La Feria, perto de San
Miguel. Eu de carro, fazendo a escolta da camioneta.
- Fomos colocados em
galpões e cavalariças, junto com os membros da presidência da República. Nos
deixaram de pernas abertas, mãos na nuca e nos disseram que íamos ser fuzilados
à meia-noite. Depois às cinco da manhã.
- Às dez e meia, voltei
para nosso QG, com todas as armas de quatro depósitos.
- Havia mudança de guarda
a cada duas horas. E a cada duas horas éramos surrados.
- A comissão política ordenou que
déssemos início aos combates. São onze horas e somos 130 pessoas. Estamos
diante da alternativa péssima: todas as forças armadas apoiaram o golpe.
Um homem de quarenta anos
entra na conversa. Tem as mãos sujas de pólvora. Seu olhar está fixo, em alguma
coisa que a gente não vê.
- Eu também combati no
palácio La Moneda. Sou do GAP da Regional Santiago Centro.
Jovem triste...
- Eu não queria morrer
aos 23 anos. E o que mais me incomodava era que eu não tinha filhos. Nem um
menino, nem uma menina, que pudesse contar a minha história...
Partidários
da Unidade Popular em coro.
- Pinochet
assassino! Pinochet assassino!
Homem baleado no peito...
- Fomos para Indumet.
Juntos com a direção MIR começamos a programar um ataque conjunto. Chega,
então, outro companheiro da direção do GAP e informa que o La Moneda está
pedindo ajuda. Temos que romper o cerco do palácio.
Homem de quarenta anos...
- O presidente foi morto
por sete homens, um capitão, um tenente e cinco soldados. Recebeu seis tiros,
dois no pescoço e quatro no tórax. Tiros de metralhadora CIC 7.62, norte-americana.
Eram quase duas da tarde.
Homem baleado no peito...
- Carabineiros começam a
cercar Indumet. Rubém sai e atira nos carabineiros. Começa o tiroteio.
Homem de quarenta anos...
- Discutimos se devíamos
nos render ou não. Eu fiquei e com outros companheiros, pegamos o corpo do
presidente, colocamos a faixa presidencial, e ao lado do corpo deixamos o seu
fuzil AKM 7.62, presenteado por Fidel Castro.
Partidários
da Unidade Popular em coro.
- Pinochet
assassino! Pinochet assassino!
·
Cena Três
Diálogo Três
O homem que foi baleado no peito, à queima roupa, que tem
a camisa e a parca verde oliva queimadas, continua sua história. Todos ouvem em
silêncio.
A rua é sem saída e um
ônibus de carabineiros bloqueia a rua. Começam a chegar tanques. Vou tentar
romper o cerco pela retaguarda. Explodimos uma parede e saímos por trás.
Estamos em San Joaquín, em frente à Coca-Cola.
León é metralhado.
Companheiros o levam de volta para Indumet. Os carabineiros invadem Indumet e
fuzilam León e mais dois operários.
Cruzamos San Joaquín e
nos enfiamos por uma rua ao lado da Coca-Cola.
Nosso comando chegou a La Légua. Um caminhão de
carabineiros tentou nos interceptar, mas respondemos com tiros de bazuca. O
caminhão incendiou. Pegamos todas as armas deles e fizemos um pequeno discurso
exortando a que lutassem ao lado do povo e não contra ele.
Ocupamos a praça de La Légua. Tomamos um caminhão
de bombeiros, ligamos a sirene e passamos de población em población chamando a
população a resistir e a defender o governo.
Em La Légua deixamos uma companheira que estava ferida
no tornozelo. Ficou com alguns moradores de uma población e se salvou.
Chegamos a Sumar, que era um dos locais de
concentração, segundo nosso plano de resistência. Vários companheiros estavam
chegando de Tomás Moro. Um deles com uma camioneta cheia de armas.
O companheiro Lozada, da comissão política, dirigiu
nossa reorganização. Tínhamos 200 homens armados.
Somos então atacados por
um helicóptero Puma do Exército. Ele desce à altura das copas das árvores e
começa a nos metralhar. Uns cem companheiros respondem de imediato. O Puma é
atingido e afasta-se rapidamente, mortalmente ferido.
Tentei derrubá-lo com um
tiro de bazuca ou de M60, mas já não tínhamos essas armas à mão. No meio dessa
confusão, pensei na frase do Che: “Se a revolução é verdadeira, ou se vence ou
se morre”.
Para não sermos um alvo fácil e concentrado,
criamos um comando para juntar-se aos trabalhadores de Mademsa—Madeco. Eu fui
com esse comando.
No caminho, por La Légua,
fomos atacados por unidades de carabineiros. Como a ordem era chegar a
Mademsa—Madeco, um grupo ficou combatendo, enquanto outro, cerca de 50
companheiros, rompeu o cerco e seguiu seu caminho.
Chegamos a nosso destino
e aí criamos nossa segunda defesa perimetral, com carros, rádio e o controle de
vários quarteirões.
Às três da tarde tive uma reunião com o interventor
da fábrica, um companheiro socialista. Conseguimos pão e víveres para os
combatentes. Fui então informado pela central de rádio que até aquele momento
não havia nenhuma comunicação das regionais.
Os militares tinham ocupado todas as rádios.
O homem de quarenta anos,
que tem as mãos sujas de pólvora e o olhar fixo em alguma coisa que a gente não
vê, interrompe:
- Às quatro e vinte fugimos pela rua Teatinos.
O
operário, que veste um macacão manchado de graxa e arrasta com dificuldade uma
das pernas, completa:
- Eis um homem digno.
O homem que foi baleado no peito, à queima roupa, que tem
a camisa e a parca verde oliva queimadas, termina sua história. Volta-se a
fazer silêncio.
Às seis da tarde chega minha mulher. Que alegria vê-la
viva. Nos abraçamos, nos beijamos, e a coloco para combater ao meu lado.
Saímos com duas camionetas cheia de companheiros
para romper o cerco que havia em La Légua e também para aliviar a guerra que
acontecia dentro de meu peito. Nesse instante, aviões de reconhecimento voavam
baixo sobre La Légua. Fomos metralhados. Não havia como seguir.
Esperamos que chegasse a noite para saber o que
acontecia em Santiago e no resto do país. Fomos
informados que Allende morrera no La Moneda. Não acreditamos. Nossas informações vinham através
das rádios controladas pelos militares e não acreditávamos nessas informações.
Falamos por telefone com diferentes regiões de
Santiago para ver o que estava acontecendo. Soubemos que os companheiros de La
Légua enterraram suas armas e tentam voltar às suas casas. Vão para o sul de
Santiago sem armas...
Está confirmada a morte de Allende. Do comando que
partiu de Sumar restam poucos homens...
Partidários
da Unidade Popular em coro.
- Pinochet
assassino! Pinochet assassino!
A curta
distância, mas sem entrar no debate, um casal de jovens de Vitacura comenta em
voz baixa: “Deixa que gritem. Durante muito tempo fomos a maioria silenciosa,
mas o passado não voltará, caminhamos para o futuro”.
Meu olhar passeia triste pelo
microcentro de Santiago. Nem uma viva alma. É um espaço vazio habitado por
fantasmas...