Faculdade Teológica Batista de São Paulo
Filosofia e teologia
aproximações e distanciamento
Prof. Dr. Jorge Pinheiro
A teologia cristã e a filosofia são duas construções da civilização
ocidental. Pensar a relação entre as duas é um desafio necessário, porque há um
desejo de compreender os fatores estruturantes do desenvolvimento da filosofia
no Ocidente, entre os quais se encontra a teologia, e, por
outro lado, há o desejo de compreender porque ela, a teologia, continua a
exercer um fascínio crescente. Ambos são motivos da vontade filosófica de
compreensão, mas esta vontade é dimensão indissociável da experiência religiosa
na sua integralidade.
Compreender a influência estruturante do cristianismo no desenvolvimento da
filosofia ocidental exige a consideração da interação histórica entre teologia
e filosofia. Compreender a força que o cristianismo continua a suscitar exige uma
permamente reflexão da presença filosófica nesta construção religiosa. Donde o
esforço por encontrar o essencial do cristianismo. Mas haverá uma essência do
cristianismo, separável da sua história? Muitas têm sido as interpretações da
teologia que valorizam ou desvalorizam a relação com a sua história. Não cabe
eliminar interpretações, mas elaborar uma compreensão que responda aos
questionamentos colocados pela alta Modernidade. Partimos do fato de que
existiu uma correlação de aspectos da história da teologia com a tradição
filosófica ocidental. Deste modo, a filosofia, enquanto fator de apreensão do
essencial do cristianismo, pode ajudar na busca de sua essencialidade.
Por isso, começamos com a questão da teologia enquanto filosofia para chegar
à questão do essencial do cristianismo. Entre as duas questões cabe, então, a
reflexão sobre a interação histórica entre teologia e filosofia. Não se trata
de retrospectiva histórica dessa interação, mas de realçar dados e analisar referências,
como os testemunhos da influência do cristianismo na história da filosofia e,
também, da filosofia na história da teologia.
A teologia como filosofia cristã
Ao pensar a relação entre teologia e filosofia ocidental nos colocamos
diante de uma questão: é de fato o cristianismo uma filosofia? Esta é uma
questão que ressurgiu nos anos 1930 e envolveu dois historiadores da filosofia,
Émile Bréhier e Étienne Gilson. Bréhier negava a marca filosófica do
cristianismo, Gilson, ao contrário, defendia o caráter filosófico do
cristianismo. A controvérsia repercutiu entre pensadores cristãos, que
acrescentaram versões do que se poderia ser entendido como filosofia cristã.
Essa agregou duas linhas de interpretação: uma de que a filosofia cristã é uma
concepção do universo elaborada com base nos textos bíblicos; a outra identificou
a filosofia cristã com uma filosofia que parte dos seus próprios recursos e
atinge resultados afins ao cristianismo. Na primeira linha de interpretação,
uma filosofia é cristã por ter nas Escrituras o seu fundamento, enquanto, na
segunda linha de interpretação, uma filosofia é cristã no fim do processo de
construção de suas teses. No entanto, estas duas linhas de compreensão do
conceito de filosofia cristã não são novas. Ambas encontram correspondentes em
referências dos primeiros séculos do cristianismo. A admissão de que o
cristianismo comporta uma filosofia foi partilhada por autores como Justino de
Roma, Clemente de Alexandria, Orígenes e Agostinho de Hipona. Ao lado dessa
admissão, outra corrente dizia que a tradição filosófica oferecia filosofias,
umas mais próximas do cristianismo, outras menos, tendo sido as filosofias de origem
platônica, aquelas que foram escolhidas pelos primeiros filósofos cristãos como
as mais compatíveis com o cristianismo.
Haverá, então, alguma diferença entre a contemporaneidade e o passado
quanto à defesa da noção de filosofia cristã? Os autores contemporâneos defendem
a noção de filosofia cristã num contexto de separação crítica entre filosofia e
religião, Já os autores do passado defenderam uma noção afim de filosofia
cristã num contexto de proximidade entre filosofia e religião. Este contraste
de ordem contextual não é, porém, exterior à concepção da natureza da filosofia
e da religião, antes comporta uma alteração susbstancial relativamente à índole
de ambas, pelo que não é possível abstrair dele. Alteração essa, que se
repercute significativamente, em especial, na relação entre filosofia e
cristianismo. Se filosofia e religião são incomunicáveis entre si por natureza,
qualquer determinação da filosofia pela religião, ou da religião pela
filosofia, tornar‑se‑á forçada e abusiva. Se, em contrapartida, filosofia e
religião são de natureza semelhante, ou partilham aspectos respectivamente
essenciais, resulta natural e plausível a interação de ambas.
Na civilização
helenística, que se estendia pelas regiões da bacia do Mediterrâneo, nos primeiros
séculos da nossa era, filosofia e religião não eram domínios entre si
incomunicáveis. Daí que a conversão de filósofos ao cristianismo não implicasse
ruptura com a filosofia, antes proporcionasse a elaboração de um sentido de
continuidade entre filosofia e cristianismo. É esse o caso de Justino, uma das
mais antigas e ilustrativas referências da história cruzada do cristianismo e
da filosofia. Na tradição do cristianismo, Justino é mencionado como um dos
primeiros apologistas. Mas, ao fazer apologia do cristianismo, Justino fez
também apologia do cristianismo como filosofia. No início do seu Diálogo com
Trifão, Justino narra simbolicamente a sua conversão ao cristianismo, como
resultante do encontro com um ancião, que lhe dá a conhecer uma nova filosofia.
Antes desse encontro, Justino tinha já um percurso de busca em filosofia, visto
que tentara freqüentar diversas escolas filosóficas. A filosofia de que Justino
parece ter conhecimento mais desenvolvido e assumido, por ocasião do seu
encontro com o ancião, é uma filosofia de linhagem platônica. São lugares
comuns dessa filosofia, como a natureza divina e transmigratória da alma ou a
contemplação puramente inteligível do divino, que o ancião contesta, no seu
diálogo com Justino platônico. Essa contestação, que conduz Justino a
questionar o seu platonismo, faz parte do seu processo de conversão ao
cristianismo. Outra parte desse processo é a contraposição de novas teses, em
alternativa às teses rejeitadas do platonismo: à natureza divina e
transmigratória da alma, o ancião contrapõe a natureza mortal da alma criada; à
contemplação inteligível do divino, o ancião contrapõe a possibilidade de um
conhecimento apenas mediato e indireto de Deus. Estas teses, que o ancião
contrapõe ao platonismo de Justino, são teses de uma nova filosofia: o
cristianismo. O ponto de vista crítico do cristianismo sobre o platonismo, no
texto de Justino, mostra que não foi sem reservas que a tradição do
cristianismo veio a adotar a tese platônica da imortalidade da alma, bem como a
possibilidade de uma visão direta de Deus. Nestas matérias, o cristianismo
surge filosoficamente mais céptico do que o platonismo. De qualquer modo, é na
relação com o platonismo que, segundo Justino, o cristianismo afirma a sua
diferença, como filosofia.
Terá sido, então, o encontro entre Justino platónico e o ancião cristão que
originou a adesão de Justino a uma nova filosofia. Através desse simbólico
encontro, Justino sugere‑nos que ele próprio assumia a sua adesão ao
cristianismo como uma conversão filosófica, o que não afectava de
superficialidade, o sentido da conversão religiosa, uma vez que filosofia e
religião não eram de natureza díspar. Os dois domínios cruzavam‑se em áreas de
interesse comum, como as da reflexão teológica e ética. Questões pertinentes da
filosofia sobre a divindade eram, segundo Justino, a questão da unicidade ou da
multiplicidade divina, bem como a questão da extensão da providência divina ao
particular. Justino considera, porém, que a tradição da filosofia grega não foi
muito longe no aprofundamento destas questões, e não é sem argumentação que ele
indica as suas decisões no âmbito das mesmas questões. Com respeito à primeira,
a filosofia do cristianismo pronuncia‑se, pela voz do ancião, a favor da
unicidade divina, argumentando por redução ao absurdo, ou seja, denunciando as
dificuldades racionais de uma investigação das causas para as diferenças a
supor entre múltiplos hipotéticos incriados. Este procedimento ilustra bem que,
a propósito de uma das questões basilares de teologia filosófica, o
cristianismo de Justino está ainda longe de se assemelhar a uma teologia
dogmática, comportando‑se de facto como uma filosofia que assume o ónus da
prova. Com respeito à segunda questão teológica mencionada, a questão relativa
à extensão da providência divina, Justino preconiza a extensão da providência
divina ao indivíduo, e fá‑lo, não por razões de ordem teológica, mas em razão
da ética: se Deus não se interessasse pelos indivíduos, de forma a premiá‑los
pelos actos bons e a puni‑los pelos maus actos, tornar‑se‑ia indiferente, para
o destino humano, agir bem ou mal, e, por conseguinte, perderia sentido e
eficácia qualquer exigência de ordem ética. Nós podemos decerto contra‑argumentar,
advertindo de que a extensão individual da providência divina, assim
preconizada por Justino, condicionaria a ética pelo interesse nos seus frutos,
tornando‑a interesseira. Justino não dá resposta explícita a esta objecção, mas
talvez nos respondesse que a ética não é auto‑sustentável para o ser humano,
requerendo, por isso, uma ordem de sustentação teológica. De qualquer modo,
teologia e ética são domínios próprios e essenciais da filosofia, para Justino.
A rectidão de vida não é uma preocupação opcional do filósofo, mas é a sua
indeclinável prioridade. Ao afirmar que santos são os filósofos, Justino faz
coincidir a noção de santidade com a exigência filosófica de rectidão. De
acordo com essa afirmação, o estatuto de filosofia não diminuía, ao olhar de
Justino, a grandeza do cristianismo. Caso contrário, ele não teria tentado
criar uma escola de filosofia cristã em Roma, conforme reza a tradição.
Mas o que é que permitia essa tão estreita comunicação, senão mesmo
coincidência, entre filosofia e religião, que se verifica na concepção
justiniana do cristianismo como filosofia? A consideração de uma fonte comum de
sabedoria. Mas era possível que a filosofia e o cristianismo partilhassem a
mesma fonte de sabedoria? Os primeiros filósofos do cristianismo admitiram que
sim: o cristianismo não veio senão manifestar plenamente a mesma fonte que
havia alimentado a tradição da filosofia grega. Nesta tradição, a fonte de
sabedoria, que era princípio de inteligibilidade do universo, recebera por
vezes o nome de «Logos», como no caso do estoicismo. A tradição do cristianismo
podia adoptar esse mesmo nome, no seguimento de um dos textos mais célebres e,
filosoficamente, mais interpelativos do Novo Testamento: o Prólogo do Evangelho
de João. Este texto começa dizendo: «No princípio era o Logos, e o Logos estava
com Deus e o Logos era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Tudo foi feito
por ele, e sem ele nada foi feito» (Jo. 1, 1‑3). Este enigmático início do
Evangelho joanino permite conceber um Logos primordial e divino, que está na
origem de todas as coisas. Assim concebido, o Logos divino podia agir, desde o
princípio, em todas as coisas, no ser humano inclusive. O Prólogo joanino
elege, aliás, o ser humano como destinatário privilegiado da actividade do
Logos. Por um lado, «o Logos era a luz verdadeira, que ilumina todo o ser
humano» (Jo. 1, 9). Em virtude desta acção iluminadora, o Logos podia ser
identificado com a fonte universal de sabedoria no ser humano. Assim o
entenderam os primeiros filósofos cristãos, como Justino, através da sua noção
de Logos seminal; como Clemente, através das múltiplas revelações do Logos, na
filosofia, na profecia e na poesia; ou como em Agostinho, através da sua noção
de Mestre interior ou de Verdade iluminadora. Por outro lado, «o Logos fez‑se
carne e habitou entre nós» (Jo. 1, 14). Em virtude desta incarnação do Logos,
ele deu‑se a conhecer em pessoa, e, desse modo, manifestou‑se totalmente. Daí a
noção de Logos total, em Justino, para quem a religião de Cristo era a
filosofia do Logos total, e, por isso, a mais verdadeira filosofia.
Os antigos defensores do cristianismo como filosofia, ou em estreita
conexão com a filosofia, entenderam‑no com uma vocação comunicante e inclusiva,
capaz de assumir a confluência de, pelo menos, duas tradições distintas, a
filosofia grega e a profecia judaica, a partir de uma fonte comum de sabedoria.
Quanto aos recentes defensores da noção de filosofia cristã, poderiam eles
conceber essa noção à luz de uma fonte de sabedoria, comum à filosofia e ao
cristianismo? Não, eles não ousariam já reclamar um laço tão profundo.
Aqueles que admitiram que a filosofia pode apurar conteúdos compatíveis com
o cristianismo, procuraram decerto restabelecer alguma continuidade entre a
filosofia e o cristianismo, mas a noção de filosofia cristã daí resultante não
constitui senão uma semelhança acidental entre filosofia e cristianismo.
Aqueles que, por seu turno, admitiram que o cristianismo inclui uma
mundividência própria, capaz de constituir uma filosofia diferente, procuraram
decerto restabelecer relações entre o cristianismo e outras mundividências, mas
a noção de filosofia cristã, assim concebida, não é senão uma diferença
acidentalmente resultante da análise comparativa de conteúdos.
Neste âmbito, é apreciável o contributo de C. Tresmontant, que, nos anos 1960
do séc. 20, elaborou uma noção de metafísica do cristianismo, cuja parte
fundamental é a metafísica judaico‑cristã da criação, que ele demonstrou ser
irredutivelmente diferente do sentido da génese da realidade quer na filosofia
neoplatónica quer na gnose quer nos Upanishades. É certo que este género de
análise comparativa corre sempre o risco de sacrificar a compreensão em
profundidade de cada uma das tradições em confronto, justapondo e nivelando o
que nem sempre deve ser reduzido ao mesmo nível, como bem o fez notar Carlos
Silva. Todavia, a análise de Tresmontant tem, para nós, o grande mérito de
recolocar a questão do que seja mais próprio do cristianismo, após quase dois
milénios de história, sem recusar o diálogo com outras tradições antigas de
sabedoria, susceptíveis não só de fazer sobressair como de diluir o sentido
desse próprio.
Outrora, também Orígenes partilhou a busca da filosofia própria do
cristianismo. Ele considerou com justeza que a Bíblia não demitia a filosofia,
antes a solicitava, porque, para além do que ela diz explicitamente, há também
o que ela diz implicitamente e aquilo que ela permite dizer; à filosofia, cabia
tornar explícito o implícito e discernir os possíveis que a letra dos textos
bíblicos autoriza. A filosofia do cristianismo era, para Orígenes, um
desenvolvimento natural da exegese bíblica. E que filosofia do cristianismo
veio ele a apurar? Uma mundividência que incluía uma criação eterna, em virtude
da eternidade do atributo divino de criador, e os seres humanos, como seres
espirituais criados, que, por negligência na contemplação do eterno, caíram em
corpos do mundo material, destinado a acolhê‑los. Estes indícios convêm mais a
uma filosofia própria do cristianismo ou a uma forma derivada de platonismo? A
análise comparativa de conteúdos permite discernir melhor em questões como
esta.
A consideração dos conteúdos tornou‑se a mediação possível no
restabelecimento da relação entre filosofia e cristianismo, para os defensores
da noção de filosofia cristã, no passado recente. Eles já não podiam fazer
apelo a uma fonte comum de sabedoria; eles tornaram‑se inelutavelmente reféns
de uma separação extremada entre filosofia e religião. A relação crítica entre
filosofia e cristianismo, em particular, tendeu a confinar‑se habitualmente à
dualidade entre razão e fé, como se a razão fosse isenta de crenças e a fé
fosse desprovida de razões. A dualidade de razão e fé procede da distinção
escolástica entre ambas, que promovia a aplicação da razão à fé; na medida em
que essa aplicação se foi transformando numa instrumentalização, ela
desencadeou um processo de emancipação da razão, que parece ter conduzido a
dissociá‑la irremediavelmente da fé. Essa dualidade tornou‑se de certo modo
intransponível: se nos perguntarem pela fé, não nos pedem razões; se nos perguntarem
pela razão, não nos pedem crenças ou convicções. Essa dualidade tornou‑se de
certo modo opaca: se não nos perguntarem o que é a fé, nós julgamos saber do
que se trata, mas, se nos perguntarem, nós teremos grande dificuldade em
explicar; e a razão, saberemos nós explicar melhor o que seja? Numa fase pós‑kantiana
da filosofia, já não podemos, através da razão, nem participar numa fonte
superior de sabedoria nem intuir inteligíveis, resta‑nos analisar conceitos.
Neste contexto, dificilmente poderia vingar alguma noção de filosofia
determinada pela religião. De facto, a controvérsia recente em torno da noção
de filosofia cristã passou à história e os esforços de implementar essa noção
não tiveram continuidade. A noção de filosofia do cristianismo tornou‑se
demasiado híbrida, para poder ser consistente.
A teologia e a tradição filosófica: influências recíprocas
Importa, no entanto, reconhecer que a controvérsia recente, sobre a questão
do cristianismo como filosofia, não foi totalmente inconsequente. Se ela não
chegou a causar o renascimento do cristianismo como filosofia, ela foi
responsável pelo relançar de renovado olhar e interesse sobre a história
interactiva da filosofia e do cristianismo no Ocidente. Como parte relevante
desta história se dá ao longo da Idade Média, aquela controvérsia acabou por
dar um enorme incremento aos estudos medievalistas, no âmbito dos quais, Gilson
se tornou mestre incontestado. Um dos principais motivos da sua obra, tanto em
estudos de síntese como de especialidade, foi defender que o cristianismo
exerceu uma influência decisiva na história da filosofia da Idade Média e que
essa influência foi um fator de diferenciação específica da filosofia medieval.
Também por obra do ilustre medievalista, tornou‑se impossível contornar a
filosofia da Idade Média, como se de uma excrescência obscura e inconsequente
se tratasse, sem repercussão na história posterior da filosofia. O
reconhecimento de linhas de continuidade entre o pensamento medieval e o
moderno, na tradição da filosofia ocidental, é hoje um dado adquirido e
incontroverso nos meios informados.
Não é, pois, nosso intuito aqui reavivar uma controvérsia, que julgamos
ultrapassada. Pretendemos, sim, evidenciar que o cristianismo exerceu, de
diversos modos, uma influência de fundo e de longa duração no desenvolvimento
da filosofia ocidental, isto é, uma influência que não se esgotou nas épocas em
que se fez sentir mais explicitamente, como na Patrística e na Idade Média. A
fim de fazer sobressair essa influência de longo curso, convocaremos
esporadicamente uma ou outra referência patrística ou medieval, a título
meramente exemplificativo acerca de possibilidades que se expandem muito para
além delas.
Dado, porém, que a filosofia era já uma tradição multissecular, quando do advento
do cristianismo, não é de estranhar que o legado da filosofia clássica tenha
exercido, por sua vez, uma apreciável influência na história ocidental do
cristianismo, sobretudo, ao nível da elaboração teológica. Tal não é de
estranhar, atendendo ao próprio facto de muitos dos primeiros teólogos cristãos
terem sido filósofos convertidos ao cristianismo. Eles são, pois, capazes de
dar testumunho de influências recíprocas, não só do cristianismo na filosofia
como da filosofia no cristianismo. Não descuraremos esta reciprocidade de
influências.
A antropologia teológica
Um dos aspectos mais relevantes da influência do cristianismo na filosofia
parece‑nos ser a determinação de certas dominâncias temáticas, como sejam as
dominâncias correlativas do tema de Deus e do tema do ser humano. A filosofia,
sob influência da teologia, tendeu a centrar‑se quer em Deus quer no Ser
humano, oscilando pendularmente entre o teocentrismo e o antropocentrismo. Se
quisermos sintetizar, numa só palavra, esta dupla preferência temática, diremos
que a filosofia de influência cristã é teoantropocêntrica, e não poderia deixar
de o ser. Objectar‑nos‑ão, porventura, que isso não é uma novidade ou uma
diferença significativa, porquanto a tradição da filosofia grega não era alheia
nem ao divino nem ao humano. Sem dúvida que não, mas, na antiga filosofia
grega, o divino era necessário, sobretudo, à explicação da ordem do universo,
não correspondia directamente às solicitações humanas. Daí a crítica dos
primeiros filósofos do cristianismo aos limites, senão mesmo à ausência do
sentido de providência na antiga teologia filosófica grega, crítica
especialmente dirigida a Aristóteles e a Epicuro. A relação entre o humano e o
divino só poderia dar‑se por via das mediações necessárias do processo de
conhecimento. Em contrapartida, o cristianismo transmite o sentido de uma
solicitude directa do divino para com o humano. É verdade que, por um lado, o
cristianismo não poderia deixar de estimular o teocentrismo, pois no princípio
era Deus. Mas Deus não ficou apenas no princípio, ele continuou velando
providentemente por toda a realidade decorrente, em especial, pelo ser humano,
cujas dimensões interior e histórica elegeu como domínios privilegiados de
intervenção e manifestação. Por essa razão, a teologia cristã não poderia
deixar de estimular, por outro lado, o antropocentrismo.
Entretanto, como se verifica, na filosofia marcada por assumida influência
do cristianismo, esse duplo centrismo que damos pelo nome de
teoantropocentrismo? Verifica‑se na correlação entre a compreensibilidade de
Deus e a do Ser humano: Deus é pensável através da compreensão do Ser humano e
o Ser humano é compreensível através do que sobre Deus é possível pensar. Esta
correlação era autorizada pela afirmação bíblica de que o Ser humano fora feito
à imagem e semelhança de Deus (Gn. 1, 26‑27), embora a afirmação da semelhança
entre o humano e o divino não seja um legado exclusivo da tradição judaico‑cristã.
Sob influência desta tradição, aquela afirmação obteve, porém, relevância
especial e apreciável elaboração filosófica.
Agostinho de Hipona foi um dos filósofos que melhor soube explorar
filosoficamente o sentido da relação de imagem e semelhança entre Deus e Ser
humano. Num extenso tratado, intitulado De Trinitate, Agostinho tenta
compreender como é possível pensar a unitrindade divina, ou seja, como é
possível pensar que Deus, sendo uno e único, seja concomitantemente a Trindade
constituída pelo Pai, o Filho e o Espírito Santo, postulada a partir da menção
destes três nomes divinos nos textos do Novo Testamento. Pensar a unitrindade
divina desde cedo revelou ser um dos maiores desafios teológicos do
cristianismo. Agostinho procurou responder a esse desafio, recorrendo à
compreensão do Ser humano, posto que fora feito à imagem e semelhança de Deus.
Apreendendo no ser humano uma ordem de trindades com distintos graus de
semelhança à Trindade divina, Agostinho construíu um processo de mediações para
pensá‑la; discernindo diversos níveis de vida trinitária no ser humano exterior
e, sobretudo, na unidade essencial do ser humano interior, Agostinho tornou
analogicamente pensável a unitrindade divina. Deste modo, Deus tornava‑se
pensável através da compreensão do Ser humano.
Pensar Deus interessava, por sua vez, também ao aprofundamento da
compreensão do Ser humano. A reflexão sobre o sentido da liberdade humana, por
Anselmo de Cantuária, é ilustrativa a esse propósito. Insatisfeito com a
acepção de uma liberdade igualmente disponível para o bem e para o mal, Anselmo
empenhou‑se em elaborar o sentido de uma liberdade reclamada como capacidade de
resistir ao mal. Esta liberdade define‑se, em De libertate arbitrii, como o
poder de guardar a rectitude da vontade pela própria rectitude. Assim definida,
a liberdade confina com a fidelidade desinteressada à rectitude. Todavia, esta
liberdade, ou esta fidelidade, é apenas um poder, por si só, insuficiente para
realizar a sua finalidade; para se exercer, esse poder supõe a satisfação de
algumas condições, como seja uma orientação prévia da vontade para a própria
rectitude. Quer isso dizer que o poder de resistir ao mal não se exerce sem uma
vontade previamente orientada para o bem. Insatisfeito com a sua própria
acepção de liberdade, como capacidade condicionada de resistir ao mal, Anselmo
prossegue a sua reflexão, tentando pensar, no anjo, uma liberdade mais eficaz:
a perseverança. Todavia, nem a liberdade humana, reunidas todas as condições
para o seu exercício, nem a perseverança angélica provaram ser infalíveis. O
grande desafio de compreensão da liberdade, para Anselmo, era perceber como é
que tanto a liberdade humana quanto a perseverança angélica experimentaram a
falibilidade. Ambas tinham condições para serem infalíveis como Deus. Anselmo
não encontra razão ou explicação para a queda quer humana quer angélica. A
incompreensibilidade do mal pela liberdade acusa que a medida da liberdade,
para Anselmo, não era humana, mas divina. Deste modo, a compreensão da
liberdade humana aprofunda‑se através daquela que é pensável em Deus.
A liberdade era, aliás, um atributo cuja extensão divina, o cristianismo
não poderia deixar de favorecer. Uma das teses maiores da filosofia da criação,
elaborada por influência da tradição judaico‑cristã, é a afirmação de um
criador livre: Deus não criou por necessidade, mas por livre vontade. Deus
torna‑se, então, pensável independentemente do mundo da criação. A concepção de
uma criação livre permite pensar Deus absolutamente, isto é, abstraindo da
relação com a criação. Esta foi uma possibilidade desenvolvida pela teologia
negativa, que preconiza serem mais adequadas a Deus as negações do que as
afirmações dos atributos construídos por analogia com o mundo da criação, com o
ser humano inclusiva e privilegiadamente. É certo que esta linha teológica não
se alimenta apenas na tradição judaico‑cristã, mas também na filosofia
neoplatónica, como se faz notar em Dionísio, o Pseudo‑Areopagita, um dos seus
mais influentes representantes.
Contudo, os teólogos de confissão cristã, que elaboraram abundantemente
teologia afirmativa, sentiram por vezes a necessidade de relativizá‑la através
das negações. Porquê? Porventura, porque pensar Deus, sobretudo, pela sua
solicitude para com o Ser humano e por via de analogias com o ser humano,
conduzia a conceber um Deus para o Ser humano e à medida do Ser humano. Pensar
Deus, sobretudo, em relação com o Ser humano, conduzia a instrumentalizar Deus
ao serviço dessa relação, e, desse modo, a diminuí‑lo. Daí a necessidade de
abstrair da relação privilegiada com o Ser humano, para pensar Deus absolutamente,
de modo conforme com a sua originária liberdade criadora. Esta necessidade de
aprofundamento do pensar teológico não deixou de ter, a nosso ver,
significativas repercussões filosóficas de longo prazo. A possibilidade de
pensar Deus fora da relação com o Ser humano, a fim de libertá‑lo de uma
concepção excessivamente condicionada por essa relação, terá dado lugar, de
forma mediata, à possibilidade simétrica: a de pensar o Ser humano fora da
relação com Deus, a fim de libertá‑lo de uma concepção excessivamente
condicionada por essa relação. Se não é necessário pensar Deus em relação com o
Ser humano, também se pode tornar desnecessário pensar o Ser humano em relação
com Deus. Deste modo, o cristianismo terá proporcionado, através da influência
que exerceu na filosofia por via da teologia, a experiência da morte de Deus na
história recente da filosofia ocidental. As modernas negações de Deus seriam,
para nós, incompreensíveis sem a influência directa e indirectamente exercida
pelo cristianismo na filosofia.
O lugar do mundo
Oportuno se torna perguntar, neste momento, que lugar pode ocupar o mundo,
no âmbito do duplo centrismo divino e humano, que caracteriza a filosofia
marcada pela influência do cristianismo? Uma vez que a tradição da filosofia de
influência cristã dá prioridade a uma teovidência, ou a uma antropovidência,
relativamente a uma mundividência propriamente dita, que lugar fica reservado a
esta última? Esta é uma questão inevitavelmente decorrente do
teoantropocentrismo, tal como acabámos de caracterizá‑lo. A questão do lugar do
mundo é, assim, uma questão pendente e em aberto, no âmbito da dupla tendência
teoantropocêntrica, que o cristianismo estimulou no pensamento filosófico. Não
estando o mundo no centro, ele dispõe‑se a ser tomado, quer em função da
relação com Deus, quer em função da relação com o Ser humano, quer em função da
relação entre o Ser humano e Deus.
Considerado em função da relação com Deus, o mundo surge como criação
divina, que o próprio criador se comprazeu em contemplar, ao concluí‑la (Gn 1.31).
À imagem e semelhança da contemplação divina da obra da criação, torna‑se
plausível também uma contemplação humana do mundo criado, através do
conhecimento. Deste modo, o cristianismo é capaz de estimular o conhecimento do
mundo, e da sua ordem própria, como obra inteligível da vontade de um criador
inteligente. Mas, não obstante assumir uma narrativa cosmogónica, como a do
Génesis, o cristianismo não é uma teoria sobre o mundo, pelo que a sua a
influência dificilmente poderia bastar‑se na determinação de uma mundiviência
filosófica. Em matéria de cosmologia, a influência do cristianismo solicitava
uma relação de complementaridade com outras heranças de saber. Essa relação,
todavia, nem sempre se processou sem dificuldades, como ilustram a suspeição e
as reacções suscitadas, nos sécs. XII e XIII, pelo renascimento filosófico de
Aristóteles, a cuja mundividência eram estranhas as relações directas de
criação e de providência entre Deus e o mundo. O desenvolvimento da cosmologia
científica veio, posteriormente, a ocasionar novas dificuldades, senão mesmo
uma história de relacionamento conflituoso entre a religião e a ciência. O
conflito eclode sempre que a ciência ou prescinde de Deus ou descentra o Ser
humano ou prepara a superação deste, isto é, sempre que a ciência contraria o
teoantropocentrismo que o cristianismo comporta. Com efeito, num mundo sem Deus
e depois do Ser humano, que sentido poderá ainda ter o cristianismo?
A consideração do mundo em função, especialmente, da relação com o Ser
humano, não é, por seu turno, difícil de pensar no horizonte de influência do
cristianismo. Tanto a concepção bíblica da criação quanto o entendimento do
cristianismo como religião salvífica concorrem para uma mundividência
antropocêntrica.
É célebre, por um lado, o passo da narrativa do Génesis, que coloca sob o
domínio do Ser humano, todo o reino animal e vegetal da criação (Gn. 1.26‑30).
Assim submetido ao domínio do Ser humano, o mundo natural é um mundo para o Ser
humano. O domínio do Ser humano sobre o mundo natural pode, no entanto, receber
duas interpretações díspares entre si: pode ser um poder arbitrário, mas pode
ser também um cuidado responsável. O mundo terá sido sujeito ao arbítrio do Ser
humano ou entregue à sua responsabilidade? A constituição e o desenvolvimento
da ciência tecnológica, na civilização ocidental, têm‑se feito acompanhar de um
exercício nem sempre responsável do poder humano sobre a natureza, o que acusa
alguma preponderância da primeira sobre a segunda interpretação. Esse género de
ciência, porém, com todos os benefícios e malefícios, que traz consigo, com
todos os anseios e receios, que desperta, dificilmente teria cabimento fora de
uma mundivência antropocêntrica. Esta continua, aliás, presente em grande parte
do pensamento ecologicamente empenhado da actualidade, na medida em que aposta
na salvação do mundo para o Ser humano. Será, sem dúvida, excessivo imputar
exclusivamente à influência do cristianismo a visão antropcêntrica do mundo,
que acalenta a dimensão tecnológica da civilização ocidental, embora não nos
pareça possível compreender a génese desta dimensão abstraindo totalmente
daquela influência.
Importa reconhecer, entretanto, que uma tendência dominante não elimina os
contra‑exemplos. Se o cristianismo favorece uma visão antropocêntrica da
criação, ele não exclui perspectivas de moderação desse antropocentrismo. Uma
delas é‑nos legada por uma das figuras mais apelativas da história do
cristianismo, Francisco de Assis. À semelhança de Jesus Cristo, cuja condição
divina não o impede de chamar irmãos aos homens, a condição humana de Francisco
não o impede de considerar irmãos os outros animais e demais elementos do mundo
natural.
É certo, por outro lado, que o entendimento do cristianismo como religião salvífica
veio reforçar o antropocentrismo da criação. Jesus Cristo veio ao mundo por
causa do Ser humano, e, conforme tem vindo a ser dominantemente entendido ao
longo dos tempos, ele veio para redimir e salvar o Ser humano, através do
sacrifício da sua paixão e morte na cruz. Nessa medida, o fim da salvação do
Ser humano tende a absorver o próprio sentido da criação. Diante do fim da
salvação do Ser humano, o da conservação do mundo torna‑se um fim menor,
passível de ser neglicenciado ou, então, instrumentalizado ao serviço daquele.
Contudo, também a interpretação dominantemente soteriológica do
cristianismo, contribuindo para uma mundividência antropocêntrica, não exclui
perspectivas de correcção do antropocentrismo. Uma dessas perspectivas é a de
Anselmo de Cantuária, um dos grandes teólogos do cristianismo, como religião
salvífica e, concomitantemente, um vigilante crítico do antropocentrismo na sua
própria teologia. Essa vigilância crítica favorece antes de mais o
teocentrismo: não é a necessidade humana de salvação que obriga Deus a salvar o
Ser humano, mas, sim, a própria finalidade divina de conduzir a obra da criação
à sua perfeição máxima e última. Nessa perfeição final, há lugar para o mundo
natural. Apesar dos homens estarem destinados a co‑habitar com os anjos na
cidade celeste, o mundo natural não fica por isso condenado a perecer; está,
também ele, destinado a renovar‑se e a persistir nesse estado renovado. Anselmo
não especula muito sobre esse estado final e renovado da natureza sensível,
mas, ao admiti‑lo, sugere que o mundo merece existir, mesmo que o Ser humano já
não necessite dele para existir. Deste modo, o cristianismo é também capaz de
integrar o sentido da existência do mundo por si.
Esta perspectiva é, todavia, muito mais um contra‑exemplo do que um exemplo
típico da influência do cristianismo na visão do mundo. Essa influência
fomenta, sobretudo, mundividências ou mais teocêntricas ou mais
antropocêntricas. Tendo em conta este duplo centrismo, resta considerar ainda o
sentido do mundo em função da relação entre o Ser humano e Deus. Esta relação
também pode inspirar atitudes distintas relativamente ao mundo: este pode ser
tomado quer por uma mediação, na relação entre o Ser humano e Deus, quer por
oposição a esta relação. O cristianismo foi capaz de propiciar estas duas
atitudes contrárias.
Por um lado, é verdade que se desenvolveu, sob a influência do
cristianismo, certo desprezo do mundo, atitude que encarava o mundo como
obstáculo à relação entre o Ser humano e Deus. Mas o que é que pode significar
esse desprezo do mundo? Ou que mundo era esse, hostil à aproximação humana de
Deus? É conhecido um episódio da vida de Cristo, que contribui para esclarecer
o sentido dessa atitude e desse mundo. Trata‑se do encontro de Jesus com um
jovem rico, que lhe pergunta o que fazer para obter a vida eterna. Depois de
propor‑lhe algumas condições principais, como sejam alguns dos mandamentos, que
o jovem assumia ter satisfeito, Jesus fez‑lhe uma proposta de mais radical
exigência, que era a de abandonar a sua fortuna material e segui‑lo. Incapaz de
o fazer, o jovem afasta‑se entristecido. Jesus, então, comenta dizendo que é
mais fácil a um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que a um rico entrar
no reino dos céus (Mt. 19, 16‑24). Entrar neste reino exige, pois, certo
abandono do mundo, não do mundo natural, mas do mundo secular, onde abundam os
motivos de todos os apegos e paixões humanas desordenadas. Desprezo do mundo
será, então, desprendimento ou desapego de todos os motivos menores da paixão
humana, susceptíveis de escravizar o Ser humano. Ao cultivar o desprendimento
dos motivos menores de paixão, o cristianismo não está só, antes se aproxima de
múltiplas outras tradições religiosas e sapienciais.
Na própria história do cristianismo, as interpretações gnósticas terão sido
aquelas que mais dilataram o sentido do desprezo do mundo, sublinhando
correlativamente a dimensão soteriológica do cristianismo. Com efeito, de
acordo com uma orientação comum a diversas correntes de cristianismo gnóstico,
a necessidade de salvação não decorre de uma queda humana avulsa, mas da
própria natureza da criação, que não é obra de um deus bom. As cosmogonias
gnósticas negam a bondade da criação e do deus criador, que pode ser um deus
menor, não o Deus supremo e bom. A este cabe intervir para a salvação, não para
a criação. A salvação impõe‑se porque há criação, a qual inclui uma malignidade
constitutiva. O desprezo do mundo da criação torna‑se, assim, um imperativo de
salvação. Toda a matéria e natureza sensível caem debaixo do âmbito do mesmo
desprezo. É verdade que a tradição católica do cristianismo sempre combateu com
veemência os movimentos gnósticos, defendendo a bondade da criação e acentuando
a responsabilidade humana pelo aparecimento do mal no mundo. A divergência
entre a tradição católica e os movimentos gnósticos é uma das divisões mais
profundas e irredutíveis que a história do cristianismo conheceu no Ocidente.
Por outro lado, o cristianismo foi também capaz de propiciar uma atitude de
valorização do mundo criado em função da relação entre o Ser humano e Deus.
Nesta relação, o mundo pode desempenhar um papel mediador. É certo que Jesus
Cristo é o mediador por excelência entre Deus e o cristão (Jo. 14, 6), mas,
assim como Deus acedeu vir ao mundo por causa do Ser humano, assim também por
via do mundo, não contra o mundo, poderá o Ser humano aceder a Deus. E por via
de que mundo? Antes de mais, o mundo das relações humanas, dado que Jesus não
só privilegiou os mandamentos do amor como colocou o amor ao próximo no caminho
do amor a Deus. Mas também o mundo das perfeições naturais, entre as quais
sobressai a própria natureza humana. Como? A mediação de Jesus Cristo, na
relação entre Deus e o Ser humano, provê a um conhecimento de Deus pela fé, não
a uma visão directa de Deus (2 Cor. 5, 6‑7). Não obstante as perspectivas
ontologistas que emergiram no âmbito da tradição do cristianismo, este promoveu
mais o cepticismo do que o optimismo a respeito da visão de Deus.
O tema da visão de Deus obtém especial pertinência ao nível quer da mística
quer da escatologia. Todavia, a união mística do Ser humano com Deus supõe a
cessação de todas as mediações e relações diferenciadas de conhecimento, mesmo
que se trate de uma mística que exige percorrê‑las todas ordenadamente e exauri‑las,
como a de Dionísio, o Pseudo‑Areopagita, um dos modelos mais influentes da
história da mística ocidental. É, aliás, questionável que uma mística de
inspiração cristã vise conduzir a uma união indiferenciada do Ser humano com
Deus. Com efeito, ao revelar Deus com a máxima solicitude para com o Ser
humano, o cristianismo não favorece a anulação do Ser humano na sua relação com
Deus, mesmo que seja no fim do caminho ascendente do Ser humano para Deus.
O cristianismo é muito mais fortemente motivador de uma relação
diferenciada entre Deus e o Ser humano do que de uma união indiferenciada, que
implique a anulação de um dos termos da relação. Tal é o que nos sugerem,
particularmente, as palavras do apóstolo Paulo, que fazem esperar uma visão directa
de Deus, como uma visão face a face (1 Cor. 13, 12), isto é, sem anulação de
uma das faces, portanto, no âmbito de uma relação diferenciada, que não exclui
a componente do conhecimento. Como no mundo que conhecemos, nós não podemos ver
senão indirectamente a Deus, como num espelho e em enigma, segundo as palavras
do mesmo apóstolo (ibid.), a possibilidade de uma visão face a face de Deus
tende a ficar diferida para o destino último do Ser humano. A escatologia é o
domínio onde se torna mais pertinente o tema da visão face a face de Deus,
sobretudo, na medida em que se desenvolve também escatologicamente o tema da
cidade celeste, que não é concebível sem relações diferenciadas.
Entretanto, o cristianismo provê, como dissemos, a um conhecimento de Deus
pela fé. Ora, o que é que pode constituir um conhecimento pela fé? Um
conhecimento por testemunho: pelo testemunho da vida de Cristo, e dos escritos
que a narram; e também pelo testemunho de toda a obra divina da criação, na
qual sobressai a perfeição da natureza humana. A influência do cristianismo na
filosofia assim nos permite pensar, conduzindo a valorizar o mundo como
testemunho da sua origem divina, e a natureza humana, como testemunho de maior
perfeição da obra divina. Deste modo, o conhecimento do mundo e do Ser humano é
mediação plausível do conhecimento indirecto de Deus. Retomando as palavras do
apóstolo, o mundo pode ser o enigma e o Ser humano pode ser o espelho, nos
quais Deus se adivinha.
Daí que a filosofia ocidental se tenha empenhado, sob influência do
cristianismo, em construir argumentos a favor da existência de Deus a partir da
ordem causal do mundo, e em inferir os atributos divinos por analogia com as
melhores faculdades humanas. Propiciando a consideração do mundo e do Ser
humano em função do conhecimento indirecto da existência e da essência de Deus,
o cristianismo não só influenciou como estimulou o desenvolvimento da
filosofia. De facto, os mais elaborados exercícios especulativos da filosofia
ocidental têm sido motivados por esse propósito, entre os quais destacamos os
múltiplos argumentos de vária índole a favor da existência de Deus. Mesmo que
outro alcance não tenham, esses argumentos têm pelo menos o mérito de nos fazer
pensar ao ponto de experimentarmos os limites do próprio pensar. Deste modo,
tais argumentos constituem momentos altos da especulação filosófica, que não
podem deixar de influir de forma ponderosa numa avaliação de qualidade e de
grau relativamente ao desenvolvimento da filosofia no Ocidente.
Novos modelos de inteligibilidade
Mas, não só através do aprofundamento da reflexão sobre Deus e do
reconhecimento do Ser humano como mediação privilegiada da relação com Deus, o
cristianismo exerceu influência na filosofia. Essa influência fez‑se sentir
também de outro modo, a saber, através do provimento de novos modelos de
inteligibilidade, constituídos pelo esforço de elaboração teológica, que a
evolução cultural do próprio cristianismo suscitou. Esses modelos são, na
realidade, temas teológicos que se projectam como formas de organização de
outras matérias temáticas. Esses modelos são, por isso, formas de origem
teológica para a inteligibilidade de conteúdos não teológicos.
Ora, há dois temas nucleares da teologia tradicional do cristianismo que se
constituíram como modelos para a inteligibilidade de outros temas da
compreensão filosófica: a Trindade e a Incarnação. A conversão destes dois
temas teológicos em modelos de inteligibilidade de outros temas filosóficos
deixa‑se verificar muito expressivamente no pensamento de Agostinho de Hipona.
Com este filósofo, o tema da Trindade tornou‑se modelo de inteligibilidade de
um dos temas clássicos da filosofia grega: a alma. Concomitantemente, o tema da
Incarnação tornou‑se modelo de inteligibilidade de um tema incontornável para o
antigo retórico: a linguagem. Pertinente se torna, para nós, apreciar o alcance
dessa aplicação dos modelos teológicos da Trindade e da Incarnação à
compreensão, respectivamente, dos temas filosóficos da alma e da linguagem.
De acordo com a teologia augustiniana da Trindade, elaborada ao longo dos
primeiros sete livros da obra De Trinitate, cerca de três quartos de século
volvidos sobre o Concílio de Niceia (325), a unitrindade divina deixa‑se
traduzir conceptualmente do seguinte modo: a unidade divina pode ser tomada por
uma unidade de substância, ou de essência; a trindade pessoal corresponde, por
sua vez, a uma pluralidade de relações no interior de uma só substância ou
essência. Esta tradução conceptual da unitrindade divina, longe de esclarecer o
mistério da Trindade, conduziu Agostinho a procurar nas naturezas criadas
analogias possíveis com a unitrindade divina, a fim de aprofundar o grau de
compreensão da sua fé em Deus uno e trino. Entre as naturezas criadas,
Agostinho elegeu a alma humana, como lugar das melhores analogias com a
unitrindade divina. Ao fazê‑lo, Agostinho converteu a formulação conceptual da
unitrindade divina em modelo de inteligibilidade da alma humana: à luz do
modelo divino, constituído por uma substância e três relações, a alma humana
individual é substancialmente una e relacionalmente trina, ou seja, é uma só
substância, composta por três partes funcionalmente inter‑relativas e
interactivas. Trata‑se da trindade de faculdades comum aos níveis superiores de
conhecimento, a memória, a inteligência e vontade, que é a trindade da mente ou
do ser humano interior.
Todavia, esta trindade não significa tanto uma redução simplificadora do
número de faculdades da alma quanto uma afirmação da necessidade de inter‑relação
de, pelo menos, três faculdades, na constituição dos nossos actos mentais. É
isso mesmo que se pode comprovar através da análise augustiniana dos diversos
níveis de experiência trinitária da alma. E que níveis de experiência são
esses? São os níveis da experiência cognitiva, como a percepção sensitiva, a
lembrança, a consciência de si, a crença, o conhecimento racional e
intelectivo. Em qualquer destes níveis de conhecimento, há uma experiência
trinitária: na percepção sensitiva, há a forma da realidade sensível, a apreensão
sensitiva, e a vontade, que une o sentido àquela forma; na lembrança, há a
imagem guardada na memória, a visão interior, e a vontade, que une esta visão
àquela imagem; na consciência de si, há a presença imediata da mente a si
mesma, o olhar interior da mente, e a vontade, que une o olhar da mente à sua
própria presença; na crença, há a memória e o pensamento acerca do credível,
unidos pela vontade; no conhecimento racional, há a memória e a razão acerca do
mutável, unidas pela mesma vontade; no conhecimento intelectivo, há a memória e
a inteligência do imutável, unidas de novo pela vontade.
A intervenção da vontade em todos os níveis da experiência cognitiva
assegura, por um lado, a intencionalidade de todo o acto de conhecimento, sem a
qual não pode a haver apreensão a nível algum, bem como a presença do mesmo
suporte anímico em todos eles, e, desse modo, a unidade da alma, que constitui
o sujeito de conhecimento. A constância de uma trindade funcional em todos os
níveis analisados da experiência cognitiva impede, por outro lado, a
simplificação, ou a redução do processo de conhecimento a uma relação bipolar,
como a relação entre sujeito e objecto. A teoria augustiniana da alma
trinitária vislumbra assim a complexidade dos processos mentais do conhecimento.
Acrescente‑se que, apesar de Agostinho aplicar o modelo trinitário,
especialmente, à experiência cognitiva, a sua teoria revela‑se versátil, não se
esgotando na explicação do conhecimento e adivinhando‑se aplicável a múltiplos
outros processos mentais, como as emoções e os sentimentos, que não dispensam
conhecimento, mas que têm outras tónicas. Virtualidades e vantagens, como estas
não têm sido suficientemente reconhecidas à teoria augustiniana da alma
trinitária, porventura devido à assumida dependência do modelo teológico.
O mesmo modelo trinitário estende‑se à filosofia augustiniana da linguagem,
no que concerne à noção de verbo mental, elaborada também em De Trinitate. Tal
noção de verbo é ainda uma parte componente da teoria da alma trinitária. De
que modo? Como expressão directa de conhecimento adquirido, que é, conforme
acabámos de descrever, um processo trinitário. Não é, entretanto,
arbtrariamente que a noção de verbo mental vem sancionar tão estreita relação
entre linguagem e conhecimento. No diálogo De Magistro, anterior àquele tratado
teológico, o autor efectua algumas finas análises da nossa experiência de
comunicação verbal, e, com base nelas, defende que o conhecimento é um fator
constituinte e condicionante da linguagem.
Ora, o modelo trinitário da alma permite dar conta deste estreito vínculo
da linguagem ao conhecimento: tal como, na Trindade modelar, é gerado o Verbo,
que exprime constitutivamente a sabedoria divina, assim também, na alma
trinitária, é gerado um verbo, que exprime inerentemente o conhecimento
adquirido, seja a que nível for. Tal é o verbo mental, que se define, antes de
mais, pelo seu conteúdo cognitivo. Sendo um verbo cognitivo, quanto ao
conteúdo, o verbo mental é também um verbo cogitativo, quanto à sua índole ou
natureza. Quer isso dizer que o verbo mental é feito de cogitação, ou
pensamento. Exprimir mentalmente dado conhecimento é, então, o mesmo que pensá‑lo.
Assim entendida, a noção augustiniana de verbo mental permite conceber o
pensamento como uma linguagem interior da mente, mas não a torna comunicante,
isto é, sensivelmente perceptível aos outros.
Para esse efeito, Agostinho convoca outro modelo teológico, intimamente
conexo com o da Trindade, que é o da Incarnação: tal como o Verbo se fez carne
(Jo. 1, 14), e nela se manifestou sensivelmente ao Ser humano, assim também o
verbo mental se fez voz, para que nela se manifestasse aos sentidos humanos. A
fala é, portanto, a incarnação do verbo mental. Cabe, então, perguntar: que
vantagens e virtualidades deste modelo incarnacional, para a filosofia da
linguagem? Por um lado, este modelo realça o papel do conhecimento na origem da
fala e, desse modo, permite aprofundar a questão clássica da origem da
linguagem verbal. Esta questão era tradicionalmente debatida entre duas
possibilidades opostas: a hipótese naturalista, segundo a qual as palavras são
constituídas por semelhança com a natureza das coisas; e a hipótese
convencionalista, segundo a qual as palavras não procedem senão de convenções
humanas.
Agostinho dá indícios de não prescindir, pelo menos em parte, de qualquer
destas duas hipóteses extremas. Todavia, a aplicação do modelo incarnacional à
fala obriga a considerar a mediação do conhecimento na mente, quer entre as
palavras e as coisas quer entre as palavras e as convenções: as palavras não
são sinais imediatos das coisas, mas sinais mediatos das coisas que são
conhecidas; as palavras não resultam de convenções arbitrárias, mas de
convenções fundamentadas no conhecimento da realidade. Por outro lado, o modelo
incarnacional da fala sublinha um aspecto da linguagem, que é porventura uma
das principais razões do seu valor: a capacidade de mediar entre o ser humano
interior e o mundo exterior, entre a mente invisível e a realidade sensível.
Sem esta capacidade, a linguagem verbal não poderia desempenhar a função de
meio de comunicação entre os homens. Por conseguinte, o modelo teológico da
Incarnação contribui significativamente para discernir as componentes do
processo de constituição da linguagem verbal. A proposta augustiniana de
aplicação do modelo incarnacional à fala não é, pois, desprovida de razões de
pertinência filosófica.
Bem mais próximo de nós do que Agostinho de Hipona, mas de assumida
influência augustiniana, Joaquim Cerqueira Gonçalves reabilita, hoje, os
modelos trinitário e incarnacional em filosofia, especialmente, em filosofia da
cultura, área privilegiada pela sua reflexão. Partindo de uma acepção larga e
funda de cultura, não adstrita à produção intelectual do saber, mas incluindo
todos os fatores da construção civilizacional, Cerqueira Gonçalves questiona‑se
sobre o sentido profundo da vida da cultura. A sua interpretação das principais
linhas orientadoras da cultura ocidental, no seu percurso histórico, oferece
uma hipótese de resposta no debate desta questão: a hipótese soteriológica,
segundo a qual toda a vida da cultura obedece a um propósito de salvação.
Cerqueira Gonçalves não se conforma com esta hipótese, que ele atribui a uma
inspiração gnóstica prevalecente sobre a influência cristã na história da
cultura ocidental.
Não obstante a irrupção de movimentos gnósticos na história ocidental do
cristianismo, as fontes da gnose excedem o horizonte da influência cristã. A
fim de encontrar e propor alternativa à resposta gnóstica no âmbito da questão
do sentido da vida da cultura, Cerqueira Gonçalves retoma, ora explícita ora
implicitamente, os modelos teológicos da Incarnação e da Trindade. O modelo
incarnacional para a vida da cultura permite, antes de mais, descentrar o
propósito de salvação, pois, a Incarnação é manifestação de Deus
independentemente de assumir ou não uma missão salvífica. O modelo trinitário,
por seu turno, permite antepor à necessidade de salvação o desejo de comunhão,
posto que, na Trindade, haverá comunhão, fora de toda e qualquer necessidade de
salvação. A própria concepção cerqueiriana da vida da cultura, como um duplo
processo de unificação e de diferenciação, deixa adivinhar o seu modelo
trinitário, pois não é fácil encontrar outro modelo que melhor compossibilite
aqueles dois processos.
Considerando as várias aplicações exemplificativas dos modelos trinitário e
incarnacional, podemos observar que esses modelos são particularmente eficazes
na superação de dualismos redutores em qualquer das áreas visadas, seja em filosofia
da mente, da linguagem, ou da cultura. Admitindo que a compreensão filosófica
aspira a essa eficácia, a adopção de modelos teológicos, que a optimizem, pode
ser um dos benefícios da interdisciplinaridade, com a qual a filosofia nada tem
a perder.
A força do Iluminismo
Houve um momento da história humana onde o mundo
vivia ao redor da religião. O mundo conhecido e desenvolvido era cristianizado.
Deus era o centro, ou pelo menos, considerado o centro do conhecimento humano.
Esse momento da história é conhecido como Idade Média. Descartes negou tudo
isso, ao afirmar que qualquer pensamento que não tenha base científica, não
merece confiança. Toda filosofia e teologia anteriores, a Escolástica[1], assim
como o pensamento de Tomás de Aquino são negadas por Descartes (1596-1650).
Nega porque não tendo base científica, não pode levar a uma certeza absoluta.
Descartes escreveu um trabalho intitulado Discurso do
Método, onde traça o caminho para se chegar à certeza absoluta. Com Descartes
há um retorno a maneira de pensar dos gregos. O pensamento grego negava a
revelação de Deus e investigava a realidade do mundo à luz da razão. Dessa
maneira, a partir de Descartes, a filosofia substitui o tema Deus, invertendo a
preocupação central da filosofia medieval e conseqüentemente a teologia tomista
ou escolástica.
Ele baseia seus estudos no pensamento rebelde e
criativo de cientistas que entraram em choque com a igreja católica, em
especial no polonês Nicolau Copérnico (1473-1543), no alemão Johann Kepler
(1571-1630) e no italiano Galilei Galileu (1564-1642), que eram astrônomos e
matemáticos. Esses homens entraram em choque com a igreja acerca de questões
sobre a Terra ser redonda, o movimento dos corpos no espaço, o Sol como centro
do sistema solar, etc. Eles mostraram que tudo em que se acreditava antes
estava errado. Deus, então, vai ser substituído pela razão.
Para fazer essa transição, Descartes faz uma reflexão
sobre a existência de Deus, sobre a relação entre filosofia, teologia e
ciência. Escreveu Regras para a direção do espírito coma finalidade de
evidenciar a única certeza absoluta que o homem pode ter: a certeza matemática.
No seu Discurso do Método encontra-se sua famosa frase: “Penso logo existo”.
Disse assim que a única certeza que alguém pode ter, de fato, é o próprio
pensar.
“Notei que,
enquanto assim queria pensar que tudo era
falso, era necessário que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E notando
que esta verdade, penso, logo sou, era tão firme e tão segura que as mais
extravagantes suposições dos céticos não podiam abalá-la, julgava que podia
aceitá-la, sem escrúpulo, como primeiro princípio da filosofia que buscava”.[2]
O primeiro princípio da filosofia de Descartes é: “eu penso”. Quando se está pensando,
agora, e tudo isso necessariamente não é verdade, ao menos o pensamento sobre
isso é. Partindo de uma desconfiança universal, transformou-a em dúvida
metódica. Ele não aceitava nada que não oferecesse garantia absoluta de
verdade. Definiu quatro regras:
1.
O critério geral da verdade.
Tem de ter duas condições: a clareza e a distinção.
2.
A regra de análise. Para se
analisar alguma coisa, qualquer que seja, é preciso dividir cada uma das
dificuldades em tantas parcelas quanto possíveis e necessárias forem.
Soluciona-se um problema, qualquer que seja, aos poucos e por partes.
3.
A regra de síntese. O
pensamento deve ser ordenado pelo mais simples e mais fácil de se conhecer, e
subir aos poucos, como que por degraus até o conhecimento dos compostos, até a
ordem daqueles que não precedem naturalmente uns aos outros. Por exemplo: H2O
é a síntese, mas a análise diz H H O.
4.
A regra de comprovação. Fazer
enumerações tão completas e revisões tão gerais até ter a certeza de não há
erro. Todo o processo deve ser revisto e enumerado.
Descartes definiu um método para chegar a verdade
natural. Isso para a Matemática. E Deus e a fé, onde ficam? Para encontrar
Deus, ele não parte do mundo, mas de si mesmo, parte da revelação geral no
próprio homem. O penso logo existo, tem um ponto de apoio: Deus. Ele é a causa
de toda a perfeição, é uma idéia inata ao homem. Ele não descarta Deus,
coloca-o como início do processo. Para Descartes, a fé é a exceção das regras
gerais e evidentes, apresenta a certeza maior, não é fruto do intelecto que
conhece, mas da vontade. Por isso, para ele a fé deve levar a ética.
O surgimento do pensamento científico vai influenciar
os teólogos do século 19. Descartes é o início do período chamado Iluminismo.
Ou seja, tem começo uma época que iluminará o mundo, antes imerso nas trevas da
Idade Média. O Iluminismo vai abrir o longo período de modernidade, que deságua
nas teologias dos séculos 19 e 20.
A revolução kantiana
Immanuel Kant, filho de pais pietistas, transformou
os avanços da astronomia de Copérnico em teoria do conhecimento. A partir de Kant,
o conhecimento não está preso aos objetos, mas os objetos acontecem dentro do
processo de conhecimento.
Na sua época, a filosofia estava dividida entre
racionalistas, cuja única fonte de conhecimento é a razão (Descartes), e
empiristas, cuja fonte de conhecimento é a experiência (os ingleses que
desencadearam a chamada Revolução Industrial). A palavra chave na filosofia de
Kant será transcendental. Ele diz:
“Chamo transcendental a todo o conhecimento que em
geral se ocupa menos dos objetos, que de nosso modo de os conhecer, enquanto
este deve ser a priori”.[3]
Transcendente é todo o conhecimento que se ocupa
pouco do objeto. O objeto não é a fonte do conhecimento humano, mas está dentro
dele. O conhecimento é transcendente em relação ao objeto. Transcendente
refere-se aquilo que foi descoberto. Kant vai trabalhar com lógica, matemática
e analítica.
Traduzindo Kant para nossa linguagem, podemos dizer
que, pensar transcendentemente significa mostrar como os objetos percebidos
pelos sentidos são transformados mediante a razão em objetos do conhecimento.
Por exemplo, ao falarmos mesa, não estamos falando de uma mesa específica, mas
de um conhecimento transcendente que inclui todas as mesas.
Ou seja, mesa não é apenas uma representação ou
reprodução mental de algo que está no exterior, mas uma produção da razão
humana. Há uma produção racional na atividade criadora do homem que transforma
mesa em conhecimento universal. Quando se fala mesa, nessa transcendência, são
mesas de todos os tipos, formas e modelos.
Para Kant, o fundamento do conhecimento humano é a
relação sujeito/objeto. Caminha-se através de juízos e imprimem-se categorias
aos objetos. Sua abordagem é crítica porque questiona perspectivas
racionalistas e empiristas existentes até aquele momento. Sua teoria do
conhecimento parte de quatro perguntas:
O que posso conhecer?
O que devo fazer?
O que posso esperar?
Quem é o ser humano?
O que podemos conhecer? Podemos conhecer tudo? Deus?
O juízo pode ser analítico ou sintético. É analítico quando o predicado parte
do sujeito. Por exemplo: o triângulo tem três ângulos. Diante de qualquer
análise está implícito no sujeito, o predicado. O predicado é ângulo e é
impossível falar triângulo sem este predicado.
É sintético quando o predicado não está implícito.
Por exemplo: o calor dilata os corpos. Temos aqui uma síntese. Podemos ter
calor e corpos, mas quando dizemos, o calor dilata os corpos, unimos os dois
através do conceito de dilatação.
Kant está descobrindo como a cabeça do ser humano
funciona, fornecendo maneiras de chegar ao conhecimento comprovável. Ele
descarta o racional porque trabalha somente com a razão, esquecendo a realidade
da existência de objetos. Descarta o empírico porque só produzindo experiência
não se transcende. Qual a importância desses conceitos e dessa epistemologia
para a vida humana?
Em primeiro lugar, Kant nos mostra, sempre partindo
da razão, que os juízos analíticos não tem por base a experiência, são
independentes e por isso só podem ser pensados. Faz uma crítica aos racionalistas,
no sentido que Descartes despreza os objetos. O homem pensa e existe, mas mesmo
que não existisse, o mundo existe. O mundo não existe porque o homem pensa.
Em segundo lugar, os juízos sintéticos baseiam-se na
percepção sensível, na experiência. Ou seja, o calor dilata os corpos, mas foi
necessário uma experiência para chegar à essa conclusão. Daí, Kant conclui: é
impossível fazer ciência a partir de juízos analíticos (a priori). A ciência
não pode ser apriorística.
Trabalhar apenas com os elementos que a razão pode
fornecer produz uma estagnação. Os juízos sintéticos não levam ao conhecimento
porque são particulares e contingentes. Não é possível fazer ciência usando só
juízos analíticos ou só juízos sintéticos. A ciência, na verdade, é constituída
por juízos sintéticos a priori. Kant está tentando resolver o grande problema
medieval.
Os juízos sintéticos a priori são aqueles que tem por
base a experiência, só que esta é a priori. Ou seja, são universais e
necessários aos quais se chega pela intuição evidente. Um exemplo matemático: a
linha reta é distância mais curta entre dois pontos.
Kant está dizendo que o cientista chega a experiência
porque já teve uma intuição antes. Assim, o conhecimento não é fruto nem do
sujeito, nem do objeto, mas é a síntese da ação combinada entre os dois. O
sujeito dá a forma e o objeto dá a matéria. O conhecimento é resultado de um
elemento a priori, o sujeito, e outro a posteriori, o objeto. Ou seja, o
conhecimento é uma relação entre sujeito e objeto.
Para Kant, é impossível haver uma ciência de Deus ou
uma ciência das realidades metafísicas. Ele traça como caminho alternativo a
razão prática que leva à consciência moral. Ele tira Deus do objeto do
conhecimento. Pela razão pura conhece-se o que é, e pela razão prática o que
deve ser. Moralmente é necessário aceitar a existência de Deus. Assim, o que
não se pode provar pela razão pura torna-se um postulado da razão prática.
Depois de eliminar Deus da ordem do pensamento e da
realidade, postula a existência de um Deus justo que fundamenta a relação entre
a virtude e a felicidade. A verdadeira religião é a moral. A religião revelada
é imposta e servil. Deus é a razão da moral prática. O cristianismo para Kant
identifica-se com a consciência, sem necessidade do conceito de Deus. Kant
aprofunda o ceticismo aberto por Descartes, que marcará o pensamento moderno.
Durante a modernidade, a ciência se desenvolve,
produzindo frutos comprováveis, o que fará com que a teologia do século 18
fique estagnada. No século 19, os teólogos entram de cabeça no estudo dos
filósofos modernos e vão pesquisar história de Israel, arqueologia, etc., a fim
de conseguir produzir uma teologia a partir de objetos comprováveis. A teologia
absorve o ceticismo.
A base da teologia é a cristologia, esse é nosso
fundamento teológico. Temos o Cristo da fé e o Jesus histórico. A base da
teologia cristã sempre foi uma cristologia correta, que entende a encarnação
como Deus e homem juntos, uma só pessoa e duas naturezas. A cristologia correta
é saber que o Jesus histórico e o Cristo da fé não podem ser separados.
Isso ficou claramente definido nos concílios Nicéia e
Calcedônia. O que acontece no século 19 é que o Cristo da fé será bombardeado.
Jesus não era um mito porque de fato existiu, mas não era Deus. Ele era o
carpinteiro, o profeta, mas não o Cristo da fé. Por causa do ceticismo, a
cristologia se divide. Indo mais além, o ceticismo acaba por colocar em xeque
até o Jesus histórico. O que sobra é a moral e a fé. Só que a fé cristã está
baseada na integridade do Jesus histórico, que ressuscitou. O apóstolo Paulo
diz: “E, se Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé, e ainda permaneceis nos vossos
pecados”. I Coríntios 15.17.
O século 20 vai produzir grandes teólogos que vão
defender a fé, dizendo que tudo isso é ideologia, e que a fé é fundamental para
o conhecimento de Deus. Por exemplo, Karl Barth defende o Jesus histórico
defendendo o texto. O que Barth faz é retornar ao texto e o faz de forma
genial. O texto é a revelação quando eu abro a Bíblia. É uma relação
sujeito/objeto, conforme Kant, que produz conhecimento. Se o texto estiver
fechado não há revelação.
Análise do Projeto Iluminista
Base filosófica > fornecida por Descartes.
Certeza absoluta ou dúvida crítica e metódica?
1. A existência do ser que pensa > a primeira verdade que não
pode ser negada pela dúvida.
2. Natureza humana > a substância que pensa.
3. O ser humano > sujeito racional e autônomo.
Base científica > fornecida por Newton.
O mundo físico é uma máquina.
As leis e regularidades do mundo físico podem ser apreendidas pela
mente humana.
Método > mediação entre o sujeito e a natureza.
É objetivo > demonstra a correção das doutrinas científicas,
morais e filosóficas.
Coloca a realidade sob o exame da razão > avalia a realidade com
base nesse critério.
O método é racional e lógico.
Objetivo
Revelar os segredos do universo.
Pôr a natureza a serviço do homem...
Criar um mundo melhor.
O que produziu
Um desenvolvimento espantoso das ciências objetivas.
Elaborou bases universais de moralidade e de lei.
Criou uma arte autônoma, dependente apenas de sua lógica interna.
O conhecimento é
Exato.
Racional.
Objetivo.
Bom.
Declaração de fé iluminista
O desenvolvimento das artes e das ciências leva
Ao controle das forças da natureza.
À compreensão do ser e do mundo.
Ao progresso moral e à justiça nas instituições sociais.
À felicidade humana.
O projeto iluminista é otimista. Trabalha dentro de um ciclo:
ciência > educação > progresso. Com uma finalidade: o fim de toda
escravidão social e da vulnerabilidade à natureza.
Problemas
Descartes e Newton provocam uma separação entre Deus e o mundo
físico > alma e corpo.
Isso produziu ceticismo (dúvida) em relação a Deus e à alma e, a
partir da revolução industrial, uma cosmovisão ateísta/materialista.
Exemplo de argumento clássico do pensamento moderno: a alma = mente
> epifenômeno ou subproduto do cérebro > não existe nenhum espírito (algo
desprovido de substância) dentro da máquina > c.q.d. não há alma.
Projeto iluminista e teologia
A teologia reformada é filha da primeira fase da modernidade.
Defende
O pensamento científico.
A abordagem empírica.
O senso comum.
Hoje vivemos uma transição da modernidade em direção à alta modernidade.
O desafio feito à fé cristã é:
Não dá para voltar à modernidade primitiva.
A alta modernidade apresenta avanços em relação à modernidade, mas
também perigos. É preciso conhecê-lo.
Devemos
assumir a teologia segundo critérios compreensíveis às novas gerações da alta modernidade.
A
proposição fundamental da teologia, numa leitura a partir da filosofia
A Filosofia cristã estabelece uma
proposição fundamental: um princípio atemporal e não espacial, onipresente,
eterno, sem limites e imutável, sobre o qual qualquer especulação é impossível,
uma vez que transcende o poder da concepção humana e seria diminuído por
qualquer expressão humana ou similitude. Está além do âmbito e alcance do
pensamento e da razão, é impensável e impronunciável.
Para tornar essas idéias mais
claras, pode-se partir do postulado de que há uma realidade absoluta que
antecede todo ser manifestado. Esta causa infinita e eterna – na psicologia
moderna formulada como inconsciente - é a raiz sem raiz de tudo que foi e é.
Despido de atributos não tem, essencialmente, nenhuma relação com o ser finito,
condicionado. É “o que é” e está além de todo pensamento ou especulação.
Este "o que é" é
simbolizado, na Filosofia cristã, sob dois aspectos: por um lado, é o
anti-espaço absoluto que representa a subjetividade, aquilo que nenhuma mente
humana pode excluir de nenhuma concepção ou conceber por si mesma. Por outro
lado, é movimento eterno absoluto, que na psicologia seria a consciência
incondicionada. Mas a consciência é inconcebível se a separamos da mudança, e o
movimento é o que melhor simboliza a mudança, sendo esta a sua característica
essencial. Este último aspecto da realidade una, na linguagem hegeliana, também
é simbolizado pela expressão "o primeiro sopro", um símbolo gráfico.
Este primeiro axioma fundamental da Filosofia cristã – “o que é” –, metafísico,
remete àquilo que a inteligência finita simboliza com a Trindade teológica.
A natureza da primeira causa,
derivada da causa sem causa, do eterno e do incognoscível, aflora dento do
finito como consciência, realidade impessoal que permeia a natureza, enquanto
noumeno. Esta realidade una, o absoluto, é o campo da consciência absoluta,
essência que transcende toda relação com a existência condicionada e da qual a
existência consciente é um símbolo condicionado. Mas, ao atravessar pela negação
a dualidade, sobrevém o espírito/ consciência e a matéria/ sujeito e objeto.
O espírito/ consciência e a
matéria/ sujeito e objeto devem, portanto, ser considerados, não como
realidades independentes, mas como correlações do absoluto, que constituem a
base do ser condicionado subjetivo/ objetivo. Considerada esta tríade da
metafísica cristã como a raiz da qual procedem toda manifestação, o sopro
assume o caráter de ideação pré-natureza. Ele é a fons et origo da força de toda consciência individual e fornece
à inteligência guia no vasto esquema da natureza. Tal raiz pré-natureza é
aquele aspecto do absoluto que é a base de todos os planos objetivos do cosmos.
Tal ideação pré-natureza é também a raiz da consciência individual, já que a
substância pré-natureza é o substrato da matéria nos vários graus de sua
diferenciação.
A correlação desses dois aspectos do
absoluto é essencial para a existência do universo manifestado. A ideação da
natureza, separada de sua substância, não pode ainda se manifestar como
consciência individual, uma vez que é somente através de um veículo, a
alienação da ideação, que a consciência aflora como "eu sou eu", como
alienado que necessitou de base física para focar-se enquanto estágio da
complexidade. Da mesma forma, a substância da natureza, separada da ideação da
natureza, permaneceria como uma abstração vazia da qual a consciência não
poderia emergir. O universo manifestado, portanto, é permeado pela correlação
que é, por assim dizer, a própria essência de sua existência como manifestação.
Mas, assim como as correlações
sujeito/ objeto, espírito/ matéria são símbolos da realidade una, também no
universo manifestado se dão as correlações que possibilitam espírito e matéria,
sujeito e objeto. Essa correlação é a alienação existencial, é
a ponte através da qual as idéias são impressas enquanto substância da natureza
na forma de leis da natureza. A alienação, portanto, é dinâmica da ideação da
natureza, é meio inteligente que guia a manifestação. Assim, do espírito ou
ideação da natureza procede a consciência, e os meios que possibilitam à
consciência individualizar-se procedem da substância da natureza, chegando à
consciência reflexiva. A alienação em suas várias manifestações é o elo entre a
mente e matéria, o princípio que possibilita a vida.
Pesquisa
Sávio Laet de
Barros Campos, O Cristianismo e a
filosofia grega.
WEB
http://br.geocities.com/webfilosofante/files_pdf/cristianismo_versos_filosofia_grega.pdf.
Site: O mundo dos filósofos. WEB
http://www.mundodosfilosofos.com.br/pencristao.htm
[1] A Escolástica é a teologia e filosofia da Idade Média, a
partir do século 13, período que se abre com Tomás de Aquino (1225-1274).
[2] Cf. René Descartes in Discurso do Método, 4.
[3] Immanuel Kant, Crítica da Razão Pura, Lisboa, Fundação
Calouste Gulbenkian (s. d.), p. 53.