dimanche 2 décembre 2018

Huguenotes e tupinambás

Huguenotes e Tupinambás - abordagem metodológica a partir da teologia da cultura

Pesquisador: Prof. Dr. Jorge Pinheiro dos Santos 
Faculdade Teológica Batista de São Paulo 
Departamento de graduação em Teologia 
Professor Pós-Doutor em Ciências da Religião 
Eixo temático: História e Teologia
Categoria: Mesa redonda 

INTRODUÇÃO 

Quando nos debruçados sobre a pesquisa dos encontros e desencontros do pensamento calvinista com a cultura tupi-guarani nas ilhas de Laje e Sirigipe, na baía de Guanabara, costa do Rio de Janeiro, entre os anos de 1555 e 1560, devemos levar em conta, numa leitura a partir da Teologia da Cultura, que protestantismo e política não são realidades estanques. Isto porque as raízes do pensamento protestante não são apenas pensamentos. Pensamento protestante é a expressão de seres políticos, de situações culturais, cuja eclosão situamos em 1517, com a exposição das 95 teses de Martinho Lutero. Não se pode entender o pensamento dos huguenotes quando se subestimam as realidades sociais que deram origem ao pensamento protestante. 

As raízes do pensamento religioso – e aqui devemos nos referir aos huguenotes e tupinambá -- não podem agir com uma força igual em todo momento e em todo grupo. Um ou outro pode predominar, depende da situação social, dos grupos ou formas de dominação presentes, pois se correlacionam às estruturas sociopsicológicas de interação com a situação social objetiva. 

Pensamento huguenote e cultura tupi-guarani
O primeiro referencial é a pessoa. Nesse sentido, ao analisar essa relação entre o pensamento huguenote e a cultura tupi-guarani devemos partir de uma fenomenologia política que leve em conta questões como a origem do pensamento político e religioso calvinista, enquanto simbologia do cristianismo reformado. É bom lembrar que a conversão de João Calvino (1509-1564) ao protestantismo se deu entre 1532 e 1533, quando tinha 23 ou 24 anos. Donde o protestantismo calvinista dos huguenotes, na baía de Guanabara dos anos 1555-1560, tinha ainda a plasticidade de um pensamento político/ religioso em construção. E é a partir daí, dessa plasticidade da simbologia reformada em construção, que devemos trazer à tona os elementos não reflexivos desse pensamento1 e analisar como ele se relacionou com uma cultura até aquele momento desconhecida. 
 
E a questão da pessoa, aí imbricada, leva-nos a uma antropologia existencial. Ora, a questão existencial é traspassada pela religião, que é dimensão de profundidade e espectro dessa profundidade no espírito humano. Tal metáfora tillichiana2 traduz a idéia de que o aspecto religioso aponta em direção àquilo que na vida do ser humano é último e incondicional. Assim, no sentido mais amplo e fundamental do termo, religião é preocupação última. E a preocupação última se manifesta em absolutamente todas as funções criativas do espírito humano. 

Nem sempre é necessário perguntar-se pelas raízes de um fenômeno social, mas quando não temos respostas para uma realidade que se apresenta como nova, então é necessário perguntar pelas raízes. É necessário procurar pelas raízes do pensamento político e religioso na própria pessoa humana. E é esse caminho, que parte da teologia da cultura, que nos direciona na análise do ethos tupinambá. 

A formação da consciência 

Sem uma imagem do humano, de suas forças e tensões, não se pode dizer nada sobre as fundações políticas do pensamento e do ser religioso. Sem uma teoria do humano não se pode construir uma teoria das orientações políticas e religiosas. Mas, o Tupinambá, e aqui estamos falando da cultura tupi-guarani, embora colado à natureza, é pessoa e por isso ser dividido. Não importa saber onde termina a natureza e onde começa o tupinambá, não importa que a passagem entre natureza e tupinambá se tenha feito através de transições ou por um salto. O importante é que em determinado momento, a diferença ficou clara. 

O tupinambá tem consciência de si mesmo, distingue-se da natureza enquanto ser que se desdobra, tornando-se pessoa consciente de si mesma. A natureza ignora esta divisão, por isso o tupinambá não é uma combinação de duas partes autônomas, tais como natureza e corpo, mas um só ser, fendido em sua unidade. Estas determinações gerais levam a algumas considerações no que se refere à pesquisa do tupinambá e da cultura tupi-guarani. Elas negam qualquer dedução da cultura tupi-guarani enquanto puro movimento reflexo frente à natureza. 

Mas, porque os pensamentos políticos e religiosos vêm do ser humano enquanto unidade, a relação entre huguenote e tupinambá está enraizada no ser que ambos são. É por isso que não se pode entender essa correlação entre pensamento huguenote e cultura tupi-guarani sem contextualizar seu enraizamento no ser humano enquanto ser imbricado a pulsões e interesses, constrangimentos e aspirações constituintes do humano. Mas também é impossível separar o huguenote de sua consciência, ou ver o tupinambá como simples subproduto do ser tupi- guarani. 

A consciência estrutura ser huguenote enquanto ser social, em cada um de seus elementos, inclusive as sensações pulsantes mais primitivas. Mas, quando se tenta desfazer laços passa-se ao largo da primeira e mais importante característica daquilo que é humano, de que há uma consciência inadequada ao ser, uma falsa consciência, que, no entanto, não invalida a unidade do ser e da consciência. Isto porque, não é possível haver falsa consciência quando o que é designado não é conhecido. 

A consciência ajustada é uma consciência que emerge da pessoa e ao mesmo tempo a determina. Não pode ser uma coisa sem ser a outra, porque o humano é uma unidade na divisão, e desta unidade nascem as raízes do pensamento político e religioso. O ser humano, quer seja o huguenote recém desembarcado no litoral do Rio de Janeiro, ou o tupinambá estabelecido na região, se encontra enquanto realidade dada, assim como seu ambiente. 

Este encontro do pensamento calvinista com a cultura tupi-guarani criou a possibilidade de algo novo, que não existia antes, que poderia produzir uma consciência, diferente das originais de cada grupo. A realidade daquilo que huguenote e tupinambá eram estava a priori colocada, era algo próprio. Mas, agora tínhamos uma tensão entre o ser-próprio huguenote e tupinambá e o ser-posto frente a frente no litoral do Rio de Janeiro. E aqui a origem não liberta. Não se pode dizer que eram e que não são mais. Sem dúvida, eram puxados pela origem, que os segurava firme, fazendo-os submergir. E se a origem é o que estabelecia como algo huguenote e tupinambá, ser-posto frente a frente supunha caminhar para a morte ou em direção ao novo. 

Teologia da Cultura e religiosidade 

A religiosidade não se dá simplesmente como processo de adequação da mente humana ao novo que lhe é apresentado. Impõe-se que o novo inerente ao processo cognoscitivo tenha um significado: uma relação em que o ser humano opera como ser significante e o novo como haver significado. Desta forma, a religiosidade não se processa entre realidades ahistóricas, mas em relação espacial e temporal, exigindo para que a interação humano/ realidade se estruture que haja algo maior, alguma coisa além de ambos, não causal, mas essencial. 

No processo de construção das religiosidades é o ser humano quem se encontra em construção, já que é partícipe, mas não senhor pleno do processo. É um ser colocado no tempo e no espaço, que estabelece relação com a realidade que o cerca dentro do processo cognoscitivo enquanto dimensão humana e histórica. 

Analisar as relações político-religiosas entre huguenotes e tupinambá, nos obriga pensar utilizar como referenciais teóricos Paul Tillich; Alfred Métraux e Florestan Fernandes, no que se refere à religiosidade, à organização social e à função da guerra entre os tupinambá; e a documentação produzida no período, em especial os textos de Jean de Léry, Cordelier André Thevet, e A Confissão de Fé da Guanabara, escrita por Jean du Bourdel, Matthieu Verneuil, Pierre Bourdon, André la Fon, em 1558, que foram condenados à morte e enforcados naquele ano. 

No que tange ao pensamento político dos huguenotes é importante fazer a leitura de seu republicanismo radical, expresso em teses constitucionalistas, contratualistas e na defesa da resistência com base no direito positivo e no direito natural, produzidas no período posterior, mas próximas da presença huguenote no Brasil. Temos, então, Luís de Condé, “La défense civile et militaire des innocents et de l'Église de Christ” (1563); François Hotman, “Franco-Gallia” (1573); Eusebe de Philadelphe (pseudônimo), “Reveille-Matin” (1573); Théodore de Bèze, “Du Droit des Magistrats” (1574) e “Le Politicien” (1574); anônimos, “Paroles Politiques” (1574), e Philippe Du Plessis-Mornay, “Vindiciae contra Tyrannos” (1579). 

A leitura do estado da arte no que se refere à presença francesa no litoral fluminense, em meados do século XVI, mostra a carência de estudos multiculturais destinados à compreensão do papel que o calvinismo jogou na elaboração do projeto colonial francês. Essa carência dificulta a compreensão do papel do protestantismo de invasão, conforme definição de Antonio Gouvêa Mendonça, na história brasileira. 
A familiaridade dos franceses com o litoral atlântico não foi suficiente para assegurar uma vida longa à tentativa de implantação de uma “República Cristã”, leia-se huguenote, em solo brasileiro. Este foi um diálogo fraturado por razões internas, religiosas, que envolveram entre outros temas uma controvérsia eucarística sobre a presença real ou não do corpo e do sangue de Jesus no pão e vinho servidos na Ceia. Tais questões teológicas levaram os huguenotes “a optar pela fúria canibal dos tupinambá à antropofagia da transubstanciação praticada pelos papistas”,1 abandonando assim o espaço geográfico da colônia recém plantada. 

Outras razões, continentais, mas também religiosas, aceleraram o processo de deterioração do projeto colonial francês no litoral fluminense: crescia na França a oposição entre católicos e protestantes. Dessa maneira, as desavenças entre Nicolau Durand de Villegaignon e os huguenotes foram apenas uma pálida antevisão do que estava por vir em todo o mundo francês. Tal situação acabou por desintegrar o projeto colonial francês na região e impossibilitou o desenvolvimento do diálogo aberto entre huguenotes e tupinambá. Mas a literatura produzida na época, tanto católica como protestante, nos permitem, à luz das Ciências da Religião, avaliar e projetar sinais sobre tal diálogo. 

CONCLUSÃO 

Toda documentação deve estar centrada em dois textos, singulares e fundamentais para a compreensão daquele momento histórico: Les Singularités de la France Antarctique, do padre Cordelier André Thevet, e L'Histoire d'un Voyage faict en la terre du Brésil, do huguenote Jean de Léry. O primeiro foi publicado em 1557-1558 e afirma que o fracasso da França Antártica se deveu às dissensões internas ao movimento huguenote, o que levou Jean de Léry a escrever seu livro a fim de opor-se “as mentiras e erros” contidos no trabalho de Thevet. 

Deve-se ressaltar que o livro de Léry desde sua primeira edição em 1578 (A La Rochelle, Pour Antoine Chuppin. M.D.LXXVIII, com reedições em francês e latim en 1585, 1586, 1592, na "Collection des Grands Voyages" de Théodore de Bry, em 1594, 1599, 1600), continua a ser sucesso editorial. 

Dessa maneira, neste caminho sobre a relação entre política e religiosidade, deve-se discutir as razões do fracasso do projeto calvinista, tanto no que refere à tentativa colonizadora, como aquele de implantar uma República huguenote no Brasil. Mas deve apresentar também uma leitura da força cultural dos tupinambá, que sem serem passivos diante da invasão exerceram um papel ativo em suas relações com os huguenotes. Dessa forma, tal abordagem quebra paradigmas, preconceitos, e mostra a cultura tupinambá como hegemônica na relação huguenote/ tupinambá. Isto porque os huguenotes aqui desembarcados confessavam um protoprotestantismo e viviam o trânsito em direção a um protestantismo em construção, marcado ainda por séculos de presença católica na França.

Notas


1Paul Tillich, “La Décision Socialiste“, Écrits contre les nazis (1932-1935), Paris, Genève, Québec: Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1994, p.27. “Die sozialistische Entscheidung”, in Christentum und soziale Gestaltung. Frühe Schriften zum religiösen Sozialismus, Evangelisches Verlagswerk Stuttgart, Gesammelte Werke II, 1962, pp. 219-265. Trad. fr. Nicole Grondin e Lucien Pelletier, introd. de Jean Richard. 

2Paul Tillich, Teologia de la cultura y otros ensayos, A dimensão religiosa na vida espiritual do homem, Buenos Aires, Amorrortu Editores, 1974, pp. 16-17. Man’s right to knowledge, Columbia University Press, 1954. 

1 Andrea Daher, «Récits français et histoires portugaises: Claude d’Abbeville et Pero de Magalhães Gandavo», Nuevo Mundo Mundos Nuevos, Número 1, 2001, mis en ligne le 4 février 2005, référence du 10 mars 2006. disponível em World Wide Web: http://nuevomundo.revues.org/document238.html.

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TOLEDO, Fátima de Melo, O sonho da Quimera: uma análise do Diálogo para a conversão do Gentio do padre Manuel da Nóbrega (dissertação de Mestrado em História), FFLCH-USP, 2001.

Jorge Pinheiro: Sexo e rede no colo da cunhã

Jorge Pinheiro: Sexo e rede no colo da cunhã: A alegria é a prova dos nove ou sexo e rede no colo da cunhã Jorge Pinheiro  “Tupi or not tupi that is the question”. (Oswald de Andrade, Ma...

jeudi 29 novembre 2018

Dieu ... pour les débutants


Dieu ... pour les débutants
Jorge Pinheiro, PhD


L'idéal d'objectivité des Lumières et la compréhension de l'esprit en tant que simple copie du réel ont été rassemblés par chèque au XXe siècle. Pour la psychanalyse, le champ des représentations symboliques ne peut pas être compris, selon une raison empirique, qui donne aux symboles une correspondance immédiate avec des contenus sensibles objectifs.

Les rêves ne peuvent pas être interprétés, selon cette logique, car les symboles, contrairement aux signes qui indiquent simplement certains objets d'expérience consciente, sont des moyens par lesquels l'être humain représente pour lui-même les relations vécues inconsciemment avec le monde.

Du théologien Sören Kierkegaard [1], l'existence montre que la conscience révèle comment la relation avec la réalité se produit.

Pour la science, le regard objectif est conditionné par les attitudes de valeur que l'on retrouve dans la vie consciente. L'être humain ne voit pas le monde de manière désintéressée : sa vision est déterminée par sa vie mentale, qui tourne autour d'une matrice émotionnelle. Cette perspective, qui est la lecture de la Haute Modernité, récupère le concept de Dieu en tant que symbole chargé de signification. Non plus en tant que signe placé en dehors de l'expérience, mais en tant que symbole dont le contenu est la condition même de l'homme. L'étude du sens de Dieu apparaît maintenant comme un besoin traduisant le sens dans la vie humaine. Feuerbach dans L'essence du christianisme, considérait Dieu comme le journal secret dans lequel l'être humain exposait ses idées les plus hautes sur lui-même.

Aujourd'hui, nous voyons différents. Dieu est la raison d'être de la théologie, car il lui faut-il une centralité anthropologique, car la révélation est un dialogue entre Dieu et l'humaine et sans anthropologie, il est impossible de savoir qui est cette personne à qui Dieu parle.

Friedrich Schleiermacher [2] était déjà parvenu à une conclusion similaire dans De la religion, affirmant que le symbole Dieu ne fait pas référence à un objet, mais plutôt à un type de sentiment. Schleiermacher a été à l'origine de la théologie du sentiment qui a traduit une recherche à l'exploration de l'âme humaine. Par lui, être en relation avec Dieu est en vrai la conscience de la dépendance absolue.

Le même critère anthropologique se retrouve encore chez Paul Tillich [3], lorsqu'il identifie Dieu avec la préoccupation centrale (ultimate concern) de l'être humain et chez Rudolph Bultmann [4], lorsqu'il dit que tout énoncé sur Dieu est en même temps un énoncé sur la personne et vice versa. Ce critère implique cependant un subjectivisme total.

Comme l'observe Rodolphe Otto [5] dans sa phénoménologie du divin, dans Le Sacré, la conscience a toujours un point de référence objectif. La conscience n'existe pas en elle-même, mais est toujours un type de relation : "conscience de". Par conséquent, la conscience de Dieu, si elle est essentiellement un fait anthropologique, ne peut être confondue avec une production ou une illusion de conscience. Dieu est le nom d'une relation vraiment vécue.



[1] Søren Kierkegaard, né le 5 mai 1813 et mort le 11 novembre 1855 à Copenhagen, était un écrivain, théologien protestant et philosophe danois.
[2] Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher (Breslau, 21 novembre 1768Berlin, 12 février 1834) était un théologien protestant et un philosophe allemand.
[3] Paul Johannes Tillich (20 août 1886 Starzeddel, Allemagne - 22 octobre 1965, Chicago) était un écrivain, un philosophe de la religion, et un théologien protestant allemand et américain.
[4] Rudolf Bultmann, né le 20 août 1884 et mort le 30 juillet 1976, était un théologien allemand de tradition luthérienne.
[5] Rudolf Otto (25 septembre 18696 mars 1937) était un théologien luthérien, chercheur en religion comparée, de nationalité allemande. Dans Le Sacré il a proposé le terme de « numineux » pour qualifier la sphère au-delà du rationnel. 





Deus ... para principiantes

O ideal de objetividade dos iluministas e a compreensão da mente como simples cópia do real foram colacados em cheque no século vinte. Para a psicanálise, o campo das representações simbólicas não pode ser compreendido segundo a razão empírica, que aos símbolos correspondência imediata a conteúdos sensíveis objetivos. Os sonhos não podem ser interpretados segundo essa lógica, porque os símbolos, ao contrário dos signos que simplesmente apontam para certos objetos da experiência consciente, são maneiras pelas quais o ser humano representa para si mesmo as relações vividas de forma inconsciente com o mundo. 

A partir do teólogo Soren Kierkegaard, a existência mostra que a consciência revela o como de sua relação com a realidade.

Para a ciência, o olhar objetivo está condicionado pelas atitudes de valor que se encontram na vida consciente. O ser humano não vê o mundo de forma desinteressada: sua visão é determinada por sua vida mental, que gira em torno de uma matriz emocional. Essa perspectiva, que é leitura da alta Modernidade, recupera o conceito Deus como símbolo carregado de significação. Não mais como signo que se coloca fora da experiência, mas como símbolo cujo conteúdo é a própria condição do humano. O estudo do significado de Deus se coloca, agora, como necessidade que traduz sentido para a vida humana.  

Feuerbach na A essência do cristianismo, 1841, via Deus como o diário secreto em que o ser humano colocava suas mais altas ideias sobre si mesmo.  

Hoje vemos diferente. Deus é a razão de ser da teologia, já que esta necessita de uma centralidade antropológica, porque a revelação é um diálogo entre Deus e o humano, e sem antropologia é impossível saber quem é este humano a quem Deus fala.

Friedrich Schleiermacher já havia chegado a uma conclusão semelhante em A fé cristã, ao afirmar que o símbolo Deus não se refere a um objeto, mas antes a uma forma de sentimento:

"Estar em relação com Deus é o mesmo que a consciência de absoluta dependência".

O mesmo critério antropológico é ainda encontrado em Paul Tillich, quando identifica Deus com a preocupação última do ser humano, e em Rudolph Bultmann, quando diz que cada afirmação sobre Deus é, ao mesmo tempo, uma afirmação a respeito do humano e vice-versa. Esse critério, no entanto, implica total subjetivismo. 

Como Rudolf Otto observa na sua fenomenologia do divino, em O sagrado, a consciência tem sempre um ponto objetivo de referência. A consciência não existe em si, mas é sempre uma forma de relação: "consciência de". A consciência de Deus, portanto, se é essencialmente um fato antropológico, não pode confundir-se com uma produção ou ilusão da consciência. Deus é o nome de uma relação realmente vivida.


mercredi 28 novembre 2018

A adoração, caminhos

ADORATORES ADORABUNT PATREM IN SPIRITU ET VERITATE

Prof. Dr. Jorge Pinheiro


“No entanto, está chegando a hora, e de fato já chegou, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade. São estes os adoradores que o Pai procura. Deus é espírito e é necessário que os seus adoradores o adorem em espírito e em verdade”. João 4.23-24.

Introdução

A adoração pode ser definida como veneração ou culto que se rende a alguém ou algo que se considera sobrenatural, divino e sagrado, bem como rituais e códigos morais que expressam a ação de adorar.

A palavra portuguesa adorar deriva do latim adoratìo, ónis. No mundo helênico, anterior ao nascimento do cristianismo, adoração referia-se a realização de um serviço sacerdotal, no grego leitourgeo. Mas, depois, no cristianismo passou a ser visto como um estilo de comportamento marcado pelo amor, veneração, ou mesmo idolatria por alguém ou alguma coisa que se considerava excepcional, singular. Donde adorar passou a ser entendido como uma forma de paixão.

A palavra adoração foi usada durante séculos no contexto cultural da Europa, marcado pela presença do cristianismo que se apropriou do termo latino. E tanto na antropologia, como na sociologia, foi compreendida como expressão de um tropismo humano em direção ao transcendente, ou seja, como expressão de espiritualidade.

Se tomarmos, por exemplo, o filme “A Paixão de Cristo”, de Mel Gibson, vemos que tanto os críticos como milhões de espectadores não notaram que o filme tratava de um dos temas centrais do cristianismo: a questão da espiritualidade cristã. E é esse tema que pretendo abordar, adoração/ espiritualidade, a partir de um texto clássico, o diálogo entre Jesus e a samaritana.

Para os povos semitas, o que nós hoje entendemos por adoração era traduzido nos gestos de curvar-se, prostrar-se, colocar a cabeça no chão, num ato de total submissão, de entrega, já que aquele diante de quem a pessoa se prostrava poderia decepar-lhe a cabeça. Mas havia um outro gesto, o do beijo, que significava o abrir-se ao espírito e ser por ele possuído. Assim, adorar foi entendido através desses gestuais como submissão e possessão.

Mas a adoração não é exclusiva dos povos semitas. Os hindus têm, por exemplo, o culto ao rio Ganges, pois acreditam que é mais antigo que a terra e que jorrou do céu e, por isso, pode libertar o homem de seus pecados em vidas anteriores, curar e purificar o corpo e a alma. E eles adoram o Ganges. A adoração é chamada puja e consiste de orações e oferendas. Assim, a idéia de adoração é enriquecida também pelo ato de entregar algo, algo vital, que pode ser alimento, bebida ou mesmo riquezas.

Entendidos esses três componentes do conceito adoração, vamos à discussão do texto onde Jesus conversa com a samaritana e trata da adoração/ espiritualidade cristã. E pensar os versículos 23 e 24. De forma abrangente podemos dizer que espiritualidade é aquela relação do ser com a transcendência, que dá sentido à vida. E exatamente por isso intercalo na nossa reflexão o belo poema de Ada Negri,[1] Atto d´amore.[2]

"Não sei dizer-te quanto te amo Deus/ no qual creio, Deus que é a vida/ vivente, aquela já vivida e aquela/ que é para ser vivida além dos confins/ do mundo e onde não existe o tempo."

O ser humano, unidade multiforme, tem em seu espírito não uma dimensão parcial da vida, mas irredutível, conforme afirma Lossky.[3] Nesse sentido, o espírito é a totalidade da vida. Nas situações de perda, falta de sentido e de ameaça à vida há sempre experiência com a transcendência, pois mesmo na negação dela há um sentido transcendente.

Na reconstrução da Europa, depois da Segunda Guerra mundial, o teólogo teuto-americano Paul Tillich disse que a desintegração espiritual da sociedade ocidental já tinha sido prevista por teólogos e estudiosos, no século XIX, mas a necessidade de compreender este fenômeno exigia que nos aprofundássemos em seu estudo.

Assim, para Tillich, “se não houver espírito, as construções humanas não poderão produzi-lo. Ele, o espírito age ou não age nos indivíduos e nos grupos. E quando age cria seu próprio meio de comunicação. Assim, o espírito se manifesta por meio das palavras, das formas de vida, das instituições sociais e dos símbolos religiosos”.[4]

A idéia espírito, de que nos fala Jesus, nos leva a uma compreensão abrangente de espiritualidade, que não pode ser entendida apenas como sinônimo de piedade ou como conhecimento dos princípios de que se compõe a piedade.

Partindo do senso comum da igreja brasileira, a espiritualidade pode ser vista como uma interpretação particular do ideal evangélico, mas se partimos do que Jesus nos transmite e da contextualização realizada por Tillich podemos dizer que há uma espiritualidade comum à espécie humana, que ela se expressa existencialmente por sermos todos imago Dei.

Quando multidões assistem a um filme como A Paixão de Cristo e são despertadas, cada qual a sua maneira, acerca da miserabilidade humana, constatamos que as pessoas têm atributos potenciais para a espiritualidade. Esses atributos, presentes na imagem de Deus que somos, e que chamo de tropismo à transcendência, nos leva à questão da adoração.

“Eu não soube; mas a Ti nada escondo / daquele que está no profundo. Cada ato/ da vida, em mim, foi amor. E eu acreditei/ que fosse pelo homem, ou a obra, ou a pátria/ terrena, ou nascido do meu próprio peso, / ou das flores, das plantas, das frutas que caem no chão, / da substância, alimento e luz/ mas foi o Teu amor, que em cada coisa/ e criatura estás presente. E agora/ que um a um caíram ao meu lado, / os companheiros de estrada, e submissas sopram as vozes da terra, a tua/ face refulge de esplendor mais forte/ e tua voz é cântico do gloria”.

A espiritualidade e o sagrado

Otto, um dos teóricos que se debruçou sobre esta questão, diz que a experiência humana diante do sagrado tem sempre algo intenso e profundo, que ele chama de mysterium tremendum, que traduz o numinoso, o que é transcendente para a realidade do crente, que diante daquilo que o esmaga desenvolve senso de temor.[5] Esse temor é um medo qualitativo, motivo para reflexão e energia que transformado em poder faz dele um adorador.

Tais experiências com o sagrado encorajam e incorporam no adorador aquilo que lhe é distinto. Apesar dessa relação de aparente intimidade de relacionamento, permanece o abismo entre adorador e sagrado. Dessa maneira, este desejo de saltar sobre o abismo que separa humano e sagrado é em última instância o móvel que dará origem à espiritualidade.

Se por um lado a crise ocidental pode ser traduzida como uma crise espiritual, por outro essa busca frenética de bens materiais e de consumo aumenta o vazio humano e favorece a busca da espiritualidade como experiência de vida coerente e recomendável. Assim, vivemos numa sociedade em crise espiritual, que procura encontrar a espiritualidade perdida.

A espiritualidade cristã

A espiritualidade cristã foi construída ao redor da cruz. A paixão de Cristo sempre foi entendida por teólogos e crentes como o derramar do dom da vida de Deus sobre os seres humanos. E porque a morte de Jesus Cristo não é derrota, mas sacrifício livremente aceito, a espiritualidade cristã tem sempre dois movimentos:

1. Um movimento em relação ao outro, ao próximo, ao desvalido, àquele que sofre, que é um chamado ao compromisso. Este movimento da espiritualidade em relação ao próximo nós chamamos de serviço.

A partir desse momento em que a espiritualidade torna-se caminho para Deus através do serviço ao próximo, a espiritualidade tem algo a dizer a todos os nossos relacionamentos, tanto pessoais, como sociais e políticos.

Pode parecer desconcertante relacionar espiritualidade e relacionamentos pessoais, sociais e políticos, mas ao falar de espiritualidade estamos falando do exercício do amor e por relacionamentos pessoais, sociais e políticos entendemos a transformação da sociedade na direção do reino de Deus, para que se faça justiça aos excluídos de tal forma que encontrem vida e salvação. Nesse sentido, a espiritualidade dá sentido à vida pessoal, social e política e torna-se além de profética, transformadora.

2. Mas a espiritualidade tem um outro movimento, que se por um lado está ligado ao rigor da fé, como vemos na oração e nos momentos de contrição, ela se realiza existencialmente, enquanto encontro com Deus. Esse encontro, conforme no diz Jesus, é a adoração e está na raiz da conversão e de todo processo de santificação. É um processo místico, no sentido que mostra nossa miserabilidade diante do insondável mistério de Deus.

Considerações finais

Por isso, a espiritualidade e, por extensão, a sua expressão de submissão, possessão e entrega, que é a adoração, é profética e transformadora no encontro com o outro, com o humano, e um ato místico de adoração diante da majestade de Deus.

Ou, conforme nos diz Galilea, a contemplação de Jesus Cristo no irmão que sofre e a contemplação de Deus no Cristo ressurreto são sempre frutos da ação do Espírito em nossas vidas.[6] Esses dois encontros devem ser a base da espiritualidade cristã na alta modernidade e fundamentam todo ato de adoração daquele que crê.

“Ora, Deus que sempre amei – te amo sabendo/ amar-te; com a inefável certeza/ que tudo foi justiça, mesmo a dor, / tudo foi bem, mesmo o meu mal, tudo/ para mim Tu foste e sei, me faz temente/ de uma alegria maior que a morte. / Permanece comigo, pois a noite desce/ sobre minha casa com misericórdia/ de sombras e estrelas. Que Tu participas, à mesa/ humilde, o pouco pão e a água pura/ da minha pobreza. Permanece Tu apenas/ junto de mim a tua serva; e no silêncio/ dos seres, o meu coração te entende único”.


Notas

[1] Ada Negri nasceu em Lodi, na Lombardia, em 1870, filha de camponeses. Seus primeiros livros refletiam uma consciência social que se opunha às tendências dominantes no fim do século. Mais tarde, a sua poesia incluiu uma afirmação de sexualidade feminina, diferente das tradicionais poesias de amor (Il Libro di Mara, 1919). Ada Negri faleceu em 1945.

[2] Tradução do italiano para o português por Jorge Pinheiro.

[3] Vadlimir Lossky, A l’image et la ressemblance de Dieu, Paris, 1967, p. 118.

[4] Paul Tillich, A Era Protestante, São Paulo, Ciências da Religião, 1992, pp. 275-276.

[5] Rudolf Otto, O Sagrado, Lisboa, Edições 70, 1992, pp. 21-22.

[6] Segundo Galilea, Espiritualidade da Libertação, Petrópolis, Vozes, 1975, pp. 15-16.

A morte e a construção da espiritualidade

A morte e a construção da espiritualidade
Duas ou três palavras
Jorge Pinheiro, PhD

Em sua carta aos Romanos (5.12), o apóstolo Paulo explicita esse processo de construção do humano ao afirmar que a hamartia entrou na vida humana por um primeiro e com a hamartia, a consciência da morte. Ora, hamartia era uma expressão militar dos gregos que se referia ao ato do arqueiro errar o alvo, quer no treinamento, quer na batalha. Paulo utiliza a expressão no sentido de que vivemos sempre sob a possibilidade de errar os alvos existenciais. Por isso, a compreensão de hamartia está sempre ligada à ausência, separação, alienação, já que implica em distanciamento do objetivo existencial. Para um vôo antropológico sugiro o livro de Philippe Ariès, já traduzido para o português, O Homem diante da Morte.

Errar o alvo, ou seja, hamartia ou peccatu, reforça este estado da existência, que chamamos alienação, e nos leva à origem da consciência humana. E Paulo fala, então, da consciência matricial da morte. Para o apóstolo, o estado de ausência, separação e alienação na existência produz esta consciência matricial, a consciência da morte.

A partir da consciência da morte temos a consciência do divino, a consciência da diversidade, já que não somos bichos e, por extensão, não somos apenas natureza, a consciência de que podemos escolher, e a consciência de que coisas e ações podem ser boas ou não. Dessa maneira, hamartia implica em conseqüências: necessidades diante da lei, daquilo que é ou está frente à existência, e possibilidades diante da liberdade, daquilo que não existe, mas pode ser criado.

A antropologia da imagem de Deus


A antropologia da imagem de Deus
Jorge Pinheiro, PhD

O shemá era a oração que duas vezes por dia os judeus elevavam ao Eterno. Essa prece reconhece Deus como único e diz que deviam amá-lo com todo leb, com toda nefesh e com toda meod, conforme Deuteronômio 6.5.

Leb e lebab, que os gregos traduziram por cardia e nós por coração, nos falam dos movimentos do corpo humano. Leb e sua variante lebab ocorrem 858 vezes nas Escrituras hebraicas, das quais 814 se referem ao coração humano. Expressam a noção antropológica de que somos movidos por sentimentos e emoções que movimentam e dirigem nossos membros e corpo. Têm a realidade anatômica e as funções fisiológicas do coração enquanto expressões das atividades do ser humano, que levam às disposições de ânimo como alegria e aflição, coragem e temor, desejo e aspiração, e também às funções intelectuais como inteligência e decisão da vontade, que na cultura ocidental atribuímos ao cérebro. Nas passagens do livro de Gênesis que nos falam do leb constatamos que a antropologia se apresenta como uma psicologia teológica. Assim, leb tem um significado antropológico que fala daqueles aspectos que nos levam aos movimentos do sentir, do querer e do agir, que compõem a personalidade humana.

Meod, que os gregos traduziram por dynamis,ia. intensidade e abundituras judaicas, e traduz a id555555555555555555555555555555555555555555555555555555555555555555555555 e nós por força, aparece trezentas vezes nas Escrituras hebraicas, e traduz a idéia de intensidade e abundância. Em alguns textos, como no caso do crescimento do povo hebreu no Egito, meod aparece ligado à idéia de reprodução, de muitos filhos, o que nos leva a uma compreensão diferente do termo dynamis em grego, que nos fala de uma força física externa ao ser humano. Em hebraico podemos entender meod como potência, aquela força, aquela energia que faz de nós seres criadores, tanto no sentido biológico como intelectual. Seria potência que identifica o ser humano, capacidade de gerar que faz o humano crescer e multiplicar-se.

Mas, nefesh, que os gregos traduziram por psyché, mas que significa garganta, respiração, fôlego, pessoa, vida e alma,[1] sem dúvida, nos fala da plenitude daquilo que é humano, conforme encontramos em Gênesis 2.7. Dessa maneira, nefesh possibilita um rico diálogo com o texto de Gênesis e nos permite uma reconstrução dos significados da natureza humana.

A expressão nefesh leva a uma concepção de exterior versus interior,[2] que tem por base Deuteronômio 32.9, quando afirma que “uma parte de Iaveh faz seu povo”. Mobiliza assim em diferentes níveis essa força criacional, que constitui uma parte de Deus. A matéria-prima utilizada por Deus na modelagem humana é ordinária, enquanto material pertencente a ordem comum de “ló nefesh”: inanimados e animais. É o sopro de Deus que faz especial essa matéria ordinária. Mas será que estamos somente diante de um símbolo ou, de fato, a força criacional de Deus transmite à matéria ordinária não somente vida, mas transfere intensidade e profundidade? De certa maneira, não é absurdo dizer que os seres celestiais são criaturas integralmente espirituais. Sua existência procede do exterior da força criacional de Deus. A exteriorização traduz-se no fato de que a força criacional se dá através da palavra, da palavra criadora de Deus. Nesse sentido, nefesh procede da interioridade de Deus e por isso é conhecida como “ein sof”, que vem de seu interior. “Ele soprou” deve ser entendido como continuidade da afirmação anterior “façamos o ser humano” (Gênesis 1.26), de maneira que nefesh liga céu e terra, o que está acima e o que está abaixo. Por isso, dizemos que a natureza humana é superior à natureza angélica, porque procede da interioridade de Iaveh. Traduz ação mediadora e conjuntiva da força criacional. Donde, a natureza humana procede de atributos divinos não ostensivos, discretos, que se traduzem em integridade holística, pluralidade social, sabedoria, compreensão e abertura à transcendência. Nefesh entende-se e revela-se enquanto natureza que se torna compreensível e inteligível. É transbordamento e transparência do Espírito de Deus, que indica transbordamento e transparência no humano, daquilo que relaciona o que está em cima com o que está em baixo. Da leitura de Gênesis 2.7 podemos constatar que o texto fala de respiração e daquilo que o humano passa a ser: ele não tem uma nefesh, ele passa a ser uma nefesh.

O texto e o pensamento literário dos hebreus são sintéticos. Daí que a chave para chegarmos a uma compreensão analítica dele exige identificar com que parte do corpo o ser humano pode ser comparado e onde o agir humano faz interface com nefesh, utilizando para isso textos que apresentam diferentes sentidos de nefesh. Embora a expressão nefesh apareça 755 vezes nas Escrituras hebraicas e seja traduzida seiscentas vezes na Septuaginta por “psyché”, garganta e estômago podem ser tomados por paradigma e transmitem a idéia de necessidade, de algo difícil de ser saciado. Nesse sentido, a palavra alma nos dá uma tradução incompleta, pois a idéia é que “Iaveh Deus formou o ser humano do pó da terra e insuflou em suas narinas o seu hálito e o ser humano se tornou um ser vivente que necessita Dele para ser saciado”.

Nefesh não traduz algo bom ou mal, mas a realidade das necessidades fundamentais e imprescindíveis da alma humana, que ao não serem ou não estarem preenchidas por Deus produzem alienação, individualismo, descrença, ignorância e idolatria. Mas como o sopro de Deus pode ter gerado um ser humano com tal índole de insaciabilidade? Se entendermos a nefesh como o órgão das necessidades vitais, dos movimentos emocionais da alma, somos levados a entender o pensamento sintético hebreu ao ver a nefesh como síntese da própria vida. Assim, as necessidades humanas criadas pelo próprio Deus só podem ser saciadas por Ele.

“Quem me encontra, encontrou a vida e alcançou benevolência de Iaveh. Quem não me acha, faz violência à sua nefesh. Todos os que me odeiam, amam a morte”. Provérbios 8.39 e seguintes.

No relato de Gênesis 2.7 o ser humano é definido como nefesh hayah, um ser vivente, que necessita ser saciado. Quando integrado ao seu Criador, nefesh é transbordamento e transparência do Espírito de Deus, que indica transbordamento e transparência no humano, daquilo que relaciona o que está em cima com o que está em baixo. Mas essa natureza também se vai constituir enquanto expansão dos significados da imagem de Deus, em graça e amor. “Ele soprou” traduz o fato de que as coisas do intelecto e do coração expressam-se através dos órgãos da fala, em especial, garganta e boca, que possibilitam o sopro. Nefesh como substantivo ganhou vários sentidos, sendo garganta um deles, e assim é usado em Provérbios 23.2, quando diz “põe uma faca à tua garganta, se fores uma pessoa de grande apetite”. A garganta ou goela é por onde entra e sai a respiração, o ar. O ser vivente, então, ganhou a designação nefesh, ser respirador. No caso do humano refere-se basicamente à forma que o espírito e a inteligência, sem forma em si, assumiu ao animar o corpo.[3] Esse padrão simboliza a interioridade da natureza humana. Portanto, para que o humano possa dar intensidade e profundidade a sua inteligência precisa de amor e graça, que nascem da interioridade de Iaveh. Em Gênesis 2.7, “ele soprou” significa que Aquele que soprou o fez numa determinada direção e com objetivo definido. Aqui, direção e objetivo traduzem destinação.

Esse é o destino do humano: ter sua nefesh integralmente saciada por seu Criador e a partir daí relacionar-se com Ele, com o universo, com seus semelhantes e consigo mesmo. Nesse caso, temos uma nefesh em equilíbrio, plena do Espírito de Deus, o que se traduz em integridade holística, pluralidade social, sabedoria, conhecimento e abertura à transcendência. A ruptura dessa integridade produz alienação, individualismo, descrença, ignorância e idolatria. A antropologia da nefesh em Gênesis nos fala sobre a imagem de Deus e nos dirige a uma pesquisa teológica do humano, da humanidade, da pessoa e da comunidade, da pessoa e da ordem social, da pessoa enquanto excluído, da pessoa enquanto eleito, da humanidade e seu destino, ou seja, da vida para o mundo, do amor para o próximo e da criação para todos.

Diante disso, devemos nos perguntar que princípios podem nortear tal pesquisa teológica? Sem dúvida, o princípio arquitetônico, enquanto revelação, fé objetiva, base e eixo da teologia. E logicamente o princípio hermenêutico, ou seja, a interpretação dos aspectos históricos e lingüísticos dessa revelação. Devemos partir, logicamente, da razão filosófica, que produz ordenação, mas não devemos esquecer a razão científica, enquanto leitura fenomenológica da natureza da antropologia e nem da razão ordinária, enquanto universalidade do senso comum. É bom lembrar, que toda análise metodológica, consciente ou inconscientemente, no correr da história da teologia, tem levado inexoravelmente a diferentes compreensões do fato teológico. Isto porque o princípio arquitetônico depende do que colocamos como base da estruturação geral da revelação e porque o princípio hermenêutico parte sempre de uma ou de múltiplas visões filosóficas que podem ser utilizadas como instrumentos de interpretação da história da revelação. Ou seja, quer queiramos ou não, a ideologia define a hermenêutica, pois o saber sempre está sob o risco de ser arrebatado pela ideologia, já que a ideologia permanece à espreita enquanto código de interpretação. Enquanto intelectuais temos amarras, pontos de apoio, somos transportados pela substância ética.[4]

Aqui reside a dificuldade, toda teologia é transitória. Reflete um momento de compreensão da revelação e de sua história. Mas, em nosso trabalho, utilizaremos a antropologia que as Escrituras nos oferecem como um instrumental hermenêutico para compreender o homo brasiliensis. Isto porque embora não seja antropologia, a teologia nos oferece um roteiro antropológico legítimo. No centro da fé cristã se encontra Jesus Cristo, Deus e ser humano, revelador do divino e do humano. E se a teologia fala da divindade, ela fala a homens e mulheres, fala sobre um Deus que encarnou e que ama os homens e mulheres. Está a serviço do humano.[5] Não podemos fugir a essa realidade, por isso, teologicamente, nosso objetivo é fazer a partir da própria compreensão do humano uma leitura da imagem de Deus que responda aos questionamentos e necessidades teológicas das brasilidades.

No livro das origens lemos: “agora vamos fazer os seres humanos, que serão como nós, que se parecerão conosco. Eles terão poder sobre os peixes, sobre as aves, sobre os animais domésticos e selvagens e sobre os animais que se arrastam pelo chão”. (Gênesis 1.26). Ora, se todo o universo é o mundo do ser humano, conforme afirmam os dois relatos da criação e o salmo oito, em que sentido o ser humano é a imagem de Deus? Como Deus conferiu ao humano essa correspondência?

A partir da antropologia bíblica podemos ver que em primeiro lugar o homo sapiens é fruto de uma intervenção de Deus. Há uma concessão de encargo que diferencia o ser humano do resto da criação. Ele é apresentado como um momento sublime, especial, como um ser que coroa toda a ação criadora de Deus. Ele recebe responsabilidade e poder de decisão. Em relação a esta discussão, considero elucidativa a exposição que apresenta a imagem de Deus através de três concepções: substantiva, ou seja, física e psicológica; relacional, ou seja, com um tropismo à transcendência e possibilidade de relacionamento com Deus; e funcional, que se dá através da ação cultural do ser humano.

Acredito, porém, que privilegiar uma dessas concepções em detrimento das outras duas é perder a riqueza do ser humano enquanto imagem de Deus. Por isso, aqui correlacionamos as três concepções, já que formam uma totalidade. Em segundo lugar, Deus deixa claro a finalidade da decisão de criar um ser pessoal, segundo sua imagem. Tal ser deverá ter uma relação especial com o restante da criação. Deus cria e entrega ao ser humano sua criação. Este ser pessoal deverá estar sobre ela, numa relação de trabalho, produção e administração. O ser humano relaciona-se com a criação e através do uso e de suas descobertas em relação a ela, mantém uma permanente relação com Deus. Em terceiro lugar, a imagem de Deus é traduzida na relação que mantém com as criaturas, já que é uma relação de domínio. Ele reina sobre o universo produzido pelo poder criador de Deus. Mas aqui há um detalhe sutil: este direito de domínio não lhe é próprio, ele reina enquanto imagem de Deus. Ele não é proprietário, nem tem autonomia irrestrita sobre a criação. Imagem de Deus traduz também abertura à transcendência. Aqui estão dados os elementos que nos permitem entender porque faz parte da humanidade o abrir-se à transcendência e viver com ela. Há um deslumbramento permanente diante do absoluto, do sobrenatural e do mistério. Estamos diante de um ser que pode pensar o que não está aqui e agora, e que pode refletir sobre o que vai além da realidade factual. E é por poder pensar tais realidades que não podem ser vistas, que o ser humano enquanto imagem de Deus pode refletir sobre a eternidade e relacionar-se com o transcendente. Assim, ao ser feito imagem de Deus, o próprio Deus transfere à humanidade a capacidade de relacionar-se com Ele.

Adão é um ser plural. Esse ser humano de que fala Gênesis 1.26, que deve ser uma imagem de Deus, não é uma pessoa em particular, pois a continuação do texto fala que eles dominem. Assim, estamos diante da criação da humanidade e o domínio do universo não é dado a uma pessoa, mas a comunidade dos homens. Ninguém pode ser excluído da autoridade de domínio dada por Deus à humanidade. Da mesma maneira, em Gênesis 1.27 temos uma outra característica fundamental dessa mesma humanidade: ela é formada por homens e mulheres. Para alguns teólogos, como Karl Barth,[6] tal explicação de Gênesis 1.27b, de uma humanidade formada por dois sexos, é apresentada por Deus “quase à maneira de definição”. Logicamente, há uma intenção para que o texto bíblico se aprofunde em tais minúcias. É a de apresentar como o universo criado deveria ser administrado: através da convivência de seres que se completam e se amam. Ou seja, esse ser plural só poderia exercer o domínio através da comunidade, completando-se como homem e mulher.

E para onde aponta o domínio? Todo o universo é o mundo do ser humano, por isso há a total desmitização da natureza. Não há astros divinos, terra divina, nem animais divinos. Todo o universo pode tornar-se o ambiente do ser humano, seu espaço, que ele pode adaptar às suas necessidades e administrar. E como ele consegue isso? Através da cultura, enquanto processo social e objetivo de sujeição da natureza, e através da necessidade de expansão e domínio, pessoal e subjetivo, que é peculiar a todo homem e mulher livres. Mas, o afastamento de Deus fez com que a humanidade perdesse sua capacidade de ser imagem de Deus viva e eficaz. Seu caráter inicial está distorcido e o mal perpassa todas suas ações. Assim, o ser humano lançou-se ao domínio de seus iguais, inclusive através do derramamento de sangue; suprimiu o equilíbrio e a mútua ajuda entre homem e mulher; mitificou a ciência e técnica; e lançou-se à destruição da própria natureza. Cristo é “a verdadeira imagem do Deus invisível” (Colossenses 1.15, cf. 2 Coríntios 4.4) e a Ele cabe fazer, a nível escatológico, aquilo que à humanidade tornou-se impossível. “Foi-me dado todo o poder no céu e na terra, por isso, indo, fazei discípulos em todas as nações...” (Mt 28.18).



[1]     Nelson Kirst, Nelson Kilpp, Milton Schwantes, Acir Raymann, Rudi Zimmer, Dicionário Hebraico Português & Aramaico Português, São Leopoldo/Petrópolis, Sinodal/Vozes, 1988. Verbete: vpn, p. 159.
[2]  Raphaël Draï, La Pensée Juive et L’Interrogation Divine, Exégèse et Épistémologie, Paris, Presses Universitaires de France, 1996, p. 414.
[3]  L. Byron Harbin, Teologia do Antigo Testamento (apostila), São Paulo, Faculdade Teológica Batista de São Paulo, 1997, p. 32.
[4]  Paul Ricoeur, Interpretação e Ideologias, RJ, Francisco Alves, 1990, pp.94-95.
[5]  Antonio Manzatto in Teologia e Literatura, São Paulo, Edições Loyola, 1994, p. 41.
[6] Citado por Hans Walter Wolff, in Antropologia do Antigo Testamento, São Paulo, Edições Loyola, 1975, p. 215.