Prepare-se para adquirir a nova edição
revista e corrigida do Teologia Bíblica e
Sistemática, o ultimato da práxis protestante, lançado pela Fonte
Editorial. Abaixo, a primeira versão do capítulo nove,
conforme foi escrita
inicialmente. Boa leitura, Jorge Pinheiro.
Capítulo nove
A
alienação e o pecado
“Acorda, levanta, resolve/ Há uma guerra no nosso caminho/
Nos confins do infinito/ Nas veredas estreitas do universo/ Vejo/ As cinzas do tempo/ O renascimento/ As danças do fogo/ Purificação, transporte”.
A Árvore dos Encantados, Cordel do Fogo Encantado.
A existência, enquanto processo, pode ter
determinação construtiva no sentido teleológico, por apresentar qualidades
adequadas à sua natureza ou função. E o humano, momento da existência, tem
possibilidades diante dela. Essas possibilidades podem ser chamadas de
liberdade condicionada e relativa à própria existência. Mas tais possibilidades
são desafios à compreensão da condição humana e de suas
relações reais. Estamos, então, falando de alienação.
I. A
alienação como desafio
A alienação antecede o exercício
da liberdade. A idéia, trabalhada por Tillich, a partir de Hegel, é de que
pertencemos essencialmente àquilo de que estamos separados. Ou seja, o humano
não está separado de seu ser, mas é julgado por ele, e mesmo quando este lhe é
hostil não consegue separar-se dele. As possibilidades humanas estão, nesse
sentido, mesmo enquanto determinação construtiva e dinâmica, sob funções
correlatas, alienação e lei, liberdade e necessidade, que são realidades da
existência.
Se a alienação é ruptura
essencial, parto que vai produzir a consciência humana, remete tanto ao
distanciamento como à aproximação com o Ser. Não seria, então, apenas
disfunção, mas apontaria também às funções do humano, enquanto ser com
possibilidades de realização somática, psíquica, cultural, ecológica e do
sentido pleno da vida.
Na tradição
judaico-cristã essa relação entre alienação e liberdade foi um tema teológico
de importância. Dos textos judaicos resgatamos ideias como aliança, constância,
fidelidade, que remetem à correlação alienação/lei. E no testamento cristão a
ideia de destino traduziu o conceito de alienação em seus dois vetores,
distanciamento e aproximação.
As tensões ao redor da compreensão
das idéias de alienação, que traduz funções e disfunções do humano, e graça,
enquanto ação divina para a salvação, apontam para duas outras questões:
história e liberdade. Essas duas questões formam a base do pensamento de que o
ser humano por ser imagem do Eterno é um ser livre e, por extensão, faz
história. Livre significa liberdade de julgamento e ação no âmbito da
existência. Então, para que as pessoas sejam livres, o Eterno garante a
liberdade delas.
Na carta aos Romanos (5.12), Paulo afirma que hamartia
entrou no cosmo através do humano e com hamartia, a morte. Ora, hamartia ou
peccatus é um fazer, uma consequência que nasce deste conceito militar dos
gregos, ato do arqueiro errar o alvo, quer no treinamento, quer na batalha.
Paulo utiliza a expressão no sentido de que a humanidade vive um fazer em que
errar o alvo é possibilidade crescente na existência, embora não seja um estado
dela.
Errar o alvo, ou, em hebraico moderno,
errar o tiro, leva à conseqüências. Paulo privilegia uma delas, a consciência
da morte. Para o apóstolo, hamartia ou peccatus produz uma consciência
matricial, a consciência da morte. A partir da consciência da morte temos a
consciência do divino, a consciência da diversidade, já que não somos bichos e,
por extensão, não somos natureza, a consciência de que podemos escolher, e a
consciência de que coisas e ações podem ser boas ou não. Dessa maneira, o alvo
é o desafio de acertar, e estão diante do humano, de forma permanente, as
necessidades diante da lei, daquilo que é ou está frente à existência e
possibilidades diante da liberdade, daquilo que não existe, mas pode ser
criado.
Alvo implica, então, em
necessidades e lei e possibilidades e liberdade, que não se excluem: estão
correlacionadas na existência humana, fazem parte do desafio da existência.
Ora, em termos teológicos, a partir
dessa primeira reflexão, podemos dizer que todos são chamados à comunhão e cada
pessoa pode responder positivamente a esse chamado. Caso o ser humano responda
positivamente ao chamado, vive o processo de libertação que leva à comunhão
plena. A comunhão consiste, então, em metanóia, que é volta ao estado de
liberdade e permanência na escolha. A partir desta resposta, o Eterno opera a
salvação do ser humano. Por isso, podemos dizer que a vontade humana abre o
caminho da libertação. A partir daí entendemos a graça universal, pois todos os
seres humanos poderiam responder positivamente ao chamado à comunhão. Ou seja,
a liberdade de julgamento no âmbito da existência leva a pessoa a escolher os
caminhos de sua história.
As funções e disfunções existenciais do humano, ou seja, a alienação, fazem com
que as ações humanas, a partir dos desejos – emoções e sentimentos – levem o ser
humano à possibilidade de errar o alvo, lehatati em hebraico, hamartia, em
grego, e peccatu, em latim. Dentro da tradição das escrituras
hebraico-judaicas, lehatati é a violação da lei. Mas lehatati é sempre uma ação
do coração e não um estado do ser. Já a alienação, esta sim, é um estado da
existência e toda a humanidade se encontra nesse estado de disfunção, ou
inclinação para fazer o mal, conforme vemos em Gênesis 8.21. Assim, lehatati
traduz não somente falta moral, mas todas as violações da lei, quer conscientes
ou não. E, segundo a tradição judaica, todo ser humano nasce sem lehatati, e a
culpa de Hadam recaiu sobre ele e sua família, mas não se estendeu à espécie
humana. Apesar disso, todo ser humano é responsável pelo lehatati porque todos
temos vontade livre, mas natureza alienada e, por isso, tendemos também para o
mal. Por isso, o texto acima citado de Gênesis diz que o coração humano é mau
desde a sua juventude. Mas o Eterno, através de sua misericórdia, possibilita
ao ser humano a metanóia e o perdão.
O axioma fruto-da-árvore-do-bem-e-do-mal pode ser lido
assim: fruto-da-existência/bem-e-mal, porque está a nos falar de uma dualidade
intrínseca à vida, o bom e o ruim, a sanidade e a loucura, a saúde e a doença,
a vida e a morte. Nesse sentido, ao se fazer a pergunta pelo mal deve-se fazer
também a pergunta pelo bem, já que não estão separados, são correlatos, joio e
trigo.
E se a libertação humana é um bem, é tanbém
um processo, por isso, não somos plenamente livres, porque depende se permanecemos
ou não na opção escolhida. Se mantivermos a escolha seremos livres, se
abandonarmos a escolha retornamos à alienação. Caso nos alienemos, se não
houver metanóia, se não voltarmos à comunhão, estaremos alienada.
Dessa maneira, na polaridade
alienação/comunhão dá-se a construção das pessoas e das comunidades, que interagem,
por opção ou por omissão, na construção de sua história. O Eterno é soberano
porque construiu e mantém o universo, sustentando-o na universalidade do
Espírito, aqui entendida como sentido da vida. A soberania especial está sobre
a comunidade que permanece na escolha. As outras comunidades estão fora desta
soberania especial, da graça que gera comunhão plena, exatamente porque usaram
a liberdade para escolher o lehatati.
E quanto maior a alienação, mais o
Eterno retrai sua soberania sobre tais pessoas e comunidades, e,
consequentemente, a graça que gera comunhão plena. O que explica o mal enquanto
feituras pessoal e social. E para que o processo histórico se dê, o Eterno
contrai espaço-temporalmente sua justiça executora.
Por paixão ao ser humano, ele contrai
a ação de seu conhecimento. Caso o Eterno, a partir de seu conhecimento,
definisse todas as ações livres do ser humano, as pessoas e as sociedades
poderiam fazer apenas aquilo que o Eterno por conhecer definisse, sem poderem
tomar decisões alienadas, sem poderem se afastar dele.
O Eterno dirige o seu fazer, mas
interage com as pessoas e as comunidades humanas na produção da história,
enquanto obra que nasce das correlações liberdade e comunhão e liberdade e
alienação. A polaridade alienação versus comunhão não apresenta o ser humano
como bom ou mal, mas como ser que age a partir dessa polaridade. Isso fica
claro no diálogo que o Eterno tem com Caim, quando diz que ele está inclinado
para o mal, mas deve dominá-lo. Essa conversa apresenta um padrão humano, a
alienação.
Em Gênesis, o Eterno disse
para Hawah, que no texto representa a vida, que a alienação seria a regra e a
humanidade cresceria sob o signo da violência. A alienação estabelece uma
proposição, um princípio atemporal e não espacial, sobre o qual a razão
titubeia, uma vez que aparentemente transcende a concepção de humanidade, mas,
ao mesmo tempo, reduz qualquer expressão humana. Parece estar além da razão: é
impensável. Podemos, no entanto, partir do postulado de que há uma alienação
ontológica, que antecede todo mal manifesto. Esta causa maior é a raiz sem raiz
de tudo que foi e é mal. Despida de atributos não tem, a princípio, nenhuma
relação com o mal expresso. É o mal que
é e está além da razão de ser maligno, malévolo, malvado.
O que é mal está simbolizado
no ser alienado sob dois aspectos: por um lado, é o não-espaço da
subjetividade, aquilo que a mente não pode excluir, nem conceber por si mesma.
Por outro lado, o mal incondicionado é dinâmico. A consciência é inconcebível
quando separada do movimento, pois é ele que leva à mudança. Tal aspecto do mal
é simbolizado na ideação “multiplicarei o teu sofrer e a tua conceição: em dor
darás à luz filhos”. Um símbolo gráfico do mal presente no parir a vida. Este
axioma fundante do mal ontológico remete àquilo que podemos simbolizar como
características do mal.
A natureza da causa do mal,
derivada da alienação aparentemente sem causa, aflora como consciência,
impessoal, que permeia a natureza. Esta causa do mal é o campo da consciência,
que transcende a relação com a existência e da qual a existência consciente é
condicão. Mas, ao atravessar pela negação a relação entre existência e
consciência, surge a alienação enquanto estado da existência: o espírito do mal,
a consciência do mal e a matéria do mal.
Espírito do mal, consciência
do mal e matéria do mal devem ser considerados não como independentes, mas
correlações que se originam no ser alienado. Considerada a alienação ontológica,
raiz da qual procedem todas as manifestações do mal, a expressão “multiplicarei
o teu sofrer e a tua conceição: em dor darás à luz filhos” assume o caráter de
ideação do que ainda não é humano. Ela é a fonte da força de todo mal
individual e social e fornece os elementos para a análise do mal que perpassa o
humano e sua história. Tal raiz pré-humana é o absoluto expresso no
“multiplicarei o teu sofrer e a tua conceição: em dor darás à luz filhos”, base
do mal objetivo. Tal ideação do porvir humano é a raiz do mal individual e
social, enquanto estado da existência, alienação em seus diferentes graus.
A correlação dos aspectos da alienação
ontológica, de origem, é fundante da existência enquanto mal manifesto. A
ideação da humanidade, separada de tal estado, não se manifesta como mal
individual e social, uma vez que é somente através de um veículo, a alienação
da ideação, que o mal aflora como violência que é, ato alienado que necessitou
de base física para apresentar-se como momento de uma complexidade maior,
natural e humana. Da mesma forma, tal estado da existência, separado da ideação
da humanidade, permaneceria como uma abstração da qual o mal não poderia
emergir. O mal-manifesto, assim, é permeado pela correlação, que é fundamento
de sua existência como alienação que se manifesta.
As correlações entre mal-manifesto,
espírito e matéria do mal são símbolos da alienação ontológica, presentes no
universo manifestado da alienação. Essa correlação é alienação existencial, a
ponte através da qual as idéias são impressas enquanto substância da natureza do
mal, presentes na forma de leis da natureza e da sobrevivência do humano. A
alienação, dessa maneira, é dinâmica da ideação do humano, é meio que guia a
manifestação.
Ou como disse Lameque (Gn 4.23-24), ser violento mítico
consciente do ciclo do mal, apresentado nas escrituras hebraicas: “Ada e Zilá,
ouçam a minha voz. Escutem, mulheres de Lameque, as minhas palavras: matei um
homem, porque me machucou. E um jovem, porque me pisou. Se são mortas sete
pessoas para pagar pela morte de Caim, então, se alguém me matar, serão mortas
setenta e sete pessoas da família do assassino”.
Assim, a consciência procede
também da ideação do mal, e fornece os meios que possibilitam ao mal
individualizar-se na existência humana. A alienação em suas manifestações é o
elo entre o espírito e a matéria do mal, presença que, paradoxalmente,
equilibra vida e morte, permanência e destruição. Por isso, o apóstolo Paulo
disse que o Cristo é a paz, porque derrubou a parede da separação que
estava no meio, a inimizade, e aboliu a lei dos mandamentos na forma de
ordenanças, para criar, nele próprio, o novo humano.
Podemos, dessa maneira, ler Gênesis
6.5 (“a imaginação dos pensamentos de seu coração era continuamente má”), 8.21
(“a imaginação do coração do homem é má desde a sua meninice”) e Deuteronômio
31.21 (“porque conheço a sua imaginação”), a partir da compressão do conceito
de alienação. É interessante que nenhum desses textos fala do ser humano como
essencialmente corrupto, mas alienado. A própria palavra yetzer, que vem da
raiz yzr, utilizada quando as Escrituras hebraicas falam de inclinação maligna,
significa moldar, propor-se. A idéia é que o ser humano é dirigido por suas
inclinações, imaginações, sejam elas boas ou más. É yetzer que, combinado ao
julgamento livre no âmbito da existência, possibilita a metanóia. Ou, conforme
diz Deuteronômio, o Eterno coloca diante do ser humano a possibilidade do bem e
a possibilidade do mal. Os seres humanos terão comunhão se obedecerem aos
mandamentos do Eterno e errarão o alvo se desobedecerem aos mandamentos do
Senhor (11.16-28).
Só o Eterno é capaz de fazer com que
exista a liberdade humana e mantê-la.
Essa graça, oriunda do Eterno e derramada sobre a humanidade,
possibilita a construção da história. Por isso, Paulo diz que o Eterno fica de humor transverso
com a alienação que distancia, mas segura as pontas com calma, por saber que a
alienação é fruto da sua valência e, diante da alienação que aproxima, também
obra sua, Ele expressa alegria. (Romanos 9.22-23).
Essa leitura da liberdade entregue ao
ser humano é importante para a teologia, pois ao dizer que as pessoas e as
comunidades humanas podem agir à margem daquilo que o Eterno desejaria para a
humanidade, apresenta a violência, a guerra e os genocídios como frutos da
opção e ação humanas. E o teólogo pode, então, analisar porque os profetas
clamam e apontam às sociedades o caminho do Reino, embora estas possam escolher
os seus próprios caminhos. O campo de concretação de Auschwitz, sob o nazismo,
e os genocídios contemporâneos são, então, passíveis de estudo. Mas a nossa
leitura coloca, também, para as comunidades de fé, o clamor profético e o
desafio de expandir o Reino.
Em relação à alienação, o ser humano
herdou de Hadam a inclinação para o mal e, como consequência, a possibilidade
crescente de errar o alvo, mas não a culpa. Os seres humanos são alienados
porque separaram razão e coração e erram o alvo porque são alienados. E em
relação ao processo de libertação, a morte do Cristo abre as portas da
comunhão, mas não assegura a libertação plena, pois esta só será definitiva se
a pessoa não desistir da corrida.
Paralelo ao pensamento hebraico, a
cultura grega apresentou uma rica leitura do conceito de destino, que relaciona
alienação e hamartia. O conceito destino nasceu da reflexão de que os deuses
são imortais porque o humano está situado entre a finitude existencial e a
infinitude potencial. Para os gregos o destino era finitude existencial, e esse
é o tema da tragédia grega e da busca da superação filosófica, principalmente
de estóicos e epicuristas. Era uma tentativa de colocar o humano acima do
destino que o distanciava de seu ser, transformando-se em poder destrutivo que
envolveu o mundo helênico em culpa e julgamento.
Um exemplo dessa leitura, que nos
interessa para a construção de uma compreensão teológica da alienação, seria o
arrazoado que Pedro, o apóstolo, fez em sua segunda epístola, ao dizer que a
graça não tem limites, pois o Eterno não retarda a sua promessa, como alguns
afirmam, por julgá-la demorada, mas por ser paciente. Ele não escolheria a
danação eterna de pessoas, ao contrário, desejaria que todos chegassem à
metanóia, ou seja, fizessem o caminho de volta à liberdade e construíssem
comunhão.
Dessa maneira, a graça tem eficácia
ilimitada, mas há uma chave para que a função graça seja plenamente exercida. E
essa chave é: chegar à metanóia. Dessa maneira, o sacrifício do Cristo, que é
graça plena e universal, deve ser somado à metanóia, produzindo então a
libertação. Ou seja, graça plena mais metanóia é igual à libertação. E o
sacrifício do Cristo sem a metanóia, produz justiça. Ou seja, o valor da cruz
não é limitado, mas sim sua aplicação. E a preparação da pessoa e das
comunidades humanas para a graça tem o julgamento livre no âmbito da existência
como movimento e o Eterno como móvel.
Essa preparação pode ser pensada como
movimento que parte, enquanto universalidade, da liberdade humana em direção à
especificidade que tem o Eterno como móvel e implica em graça determinada pelo
Eterno, embora não seja proveniente da coação, mas do seu pleno conhecimento,
porquanto a intenção do Eterno não pode deixar de ter efeito.
Por isso, podemos falar da
universalidade da graça, presente na comunidade humana, e na especificidade da
graça, que infalível segue a boa vontade humana. Mas esse movimento é
dialético, pois, quando olhamos da perspectiva do humano, ele parte da
universalidade, mas se olharmos da perspectiva divina parte da especificidade.
Ou seja, universalidade e especificidade são termos relativos, que se
complementam na plenitude da graça. Por isso, liberdade, eleição e graça fazem
parte de uma dança permanente, onde cada conceito implica na existência do
outro e nenhum tem existência independente, mas criam uma unidade/diversidade
correlacional plena e necessária.
Todas as pessoas e comunidades
humanas realizam suas existências dentro desse processo, fazem parte dele, o
que significa dizer que existência, liberdade e graça fazem parte da história
humana. O Eterno mobiliza o processo em direção à especificidade, com base no
seu conhecimento da fé e da perseverança de cada pessoa e das comunidades
humanas, mas conhece e aceita o sentido da universalidade humana. Esta seria a
leitura do texto de Pedro, quando disse que no meio do povo surgiram falsos
profetas que introduziram doutrinas destruidoras, a ponto de renegarem o Eterno
que os resgatou.
II.
Alienação e destino
Na teologia paulina, enquanto
diálogo das concepções do apóstolo com o mundo helênico, principalmente em sua
carta aos Romanos, alienação/destino é o tempo favorável que triunfa sobre o
espaço. O caráter do tempo propício à liberdade substituiu o tempo cíclico,
transitório e perecível do pensamento helênico. A partir dessa compreensão, destino
traduz aproximação, e apresenta novas possibilidades de construção da liberdade
no tempo e na história.
Antes, a filosofia confrontava-se
com a inspiração dos poetas, mas, a partir de Paulo, a revelação apodera-se da
filosofia. Assim, o destino que distanciava foi questionado pelo pensamento
paulino: “aquele que não era meu povo será chamado de meu povo, e aquela que
não era amada passou a ser amada”. (Romanos 9.25). O transitório e perecível
perdeu importância e a idéia da construção da existência enquanto tempo
favorável foi tomando forma.
Mas voltemos um pouco atrás, para
entendermos esse processo. Dentro da visão paulina, que traduz o pensamento
cristão palestino, alienação/destino, no sentido de que os limites são
potencialmente ilimitados, é a lei na qual surge o conceito de liberdade.
Assim, alienação/destino correlaciona conceitos, porque a alienação está
sujeita à liberdade; porque alienação significa que a liberdade também está
sujeita à lei; e porque alienação significa que liberdade e lei são
complementares e interdependentes.
Analisando o conceito cristão
palestino de alienação/destino -- exposto por Paulo em sua carta aos Romanos --
podemos dizer que a liberdade humana está ligada às leis universais, de tal
forma que liberdade e leis se encontram entrelaçadas. Para Paulo, assim como
para a tradição judaica, lei é imposição de limites. Por isso, a alienação é um
estado que surge da correlação entre lei e vida, porque se o julgamento é
inerente a tudo na existência, também o é a liberdade.
Assim, a certeza de que a
alienação/destino é propícia e tem significado realizador e não destruidor, é a
peça chave do pensamento de Paulo, que coloca o sentido da vida, que é o Cristo
-- revelado pelo amor do Pai na presença do Espírito --, acima do destino. Ao fazer isso, Paulo está
dizendo que a compreensão do destino não está ao alcance da razão humana, mas o
sentido da vida traduz a imortalidade potencial do humano.
Quando o humano faz a defesa do
sentido incondicional da vida deixa de temer a ameaça da alienação/destino que
distancia, e aceita o lugar que cabe à alienação enquanto estado da existência.
Reconhecemos, então, que desde o princípio vivemos num estado de alienação e
que sempre desejamos nos livrar dela, mas nunca conseguimos. Mas nessa análise
da alienação cabe relacionar sentido de vida e tempo. O sentido da vida deve
envolver as leis universais, a plenitude do tempo e a própria existência. E
quando o Cristo alcança a existência, penetra no tempo e faz da alienação,
aproximação.
É necessário, porém, entender que
a consciência parte da alienação e que o reino da existência só é acessível ao
conhecimento liberto da alienação que distancia. Dessa maneira, ao contrário do
que pensavam os gregos, o humano possui potencialidade própria, enquanto ser,
para realizar seu destino. Quanto maior a potencialidade humana – que cresce na
medida da expansão do sentido da vida, sempre entendida como o Cristo revelado
pelo amor do Pai na presença do Espírito -- maior será sua consciência de
destino.
O destino humano, que nasce da
alienação, aponta para o sentido da vida que emerge das crises e desafios.
Quanto mais profundamente entendermos nosso destino, no sentido paulino de
prokeimai, estar colocado, ser proposto, predestinado, e o de nossas comunidades,
tanto mais livres seremos. É o que nos explica o apóstolo Paulo:
“E da mesma maneira também o Espírito ajuda as nossas
fraquezas; porque não sabemos o que havemos de pedir como convém, mas o mesmo
Espírito intercede por nós com gemidos inexprimíveis. E aquele que examina os
corações sabe qual é a intenção do Espírito; e é ele que segundo Deus intercede
pelos santos. E sabemos que todas as coisas contribuem juntamente para o bem
daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados por seu decreto. Porque os
que dantes conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu
Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. E aos que
predestinou, a esses também chamou; e aos que chamou, a esses também
justificou; e aos que justificou, a esses também glorificou”. Romanos 8. 26-30.
A liberdade humana se dá na
existência, enquanto realidade condicionada pela materialidade. A liberdade
entende-se como correlação entre lei e sentido de vida, que como vimos é o
Cristo revelado pelo amor do Pai na presença do Espírito. Quando Hegel afirmava
que a liberdade é a consciência da necessidade, como fez questão de mostrar
Marx, cometia um erro porque descartava a realização da liberdade. É por isso
que Marx dirá que liberdade é práxis. Ora, para Marx, práxis é consciência da
necessidade somada à ação transformadora. Ou seja, consciência da lei diante do
estado de alienação que distancia é mudança radical, é ação transformadora da
vida.
Lehatati, hamartia, peccatu é um
fazer. Em relação ao imediato transforma-se em estado e no que se refere à
espécie humana é um domínio. Lehatati, hamartia, peccatu acontece quando minha
liberdade é desafiada, quando ela é chamada a surgir como feitura humana. Nesse
sentido, lehatati, hamartia, peccatu não se apresenta sem agente moral, sem
liberdade. Toda vez que realizo minha liberdade a lei está presente, pois
lehatati, hamartia, peccatu é um contra-tipo da liberdade.
Por isso, só podemos responder à
alienação que distancia reconhecendo que lehatati, hamartia, peccatu é feitura
minha e de minha espécie, e que devo promover a ruptura desse fazer através da
ação de expansão do sentido pleno da vida. Ao nível do pensamento, do
sentimento, da vontade e da ação -- pois a alienação que distancia é o que não
devia estar -- devemos exercer uma ética radical de defesa da vida e de seu
sentido, de combate ao estado de alienação na vida de pessoas e comunidades.
Ballestero,
ao analisar o caráter radical do pensamento de Nicolas de Cusa, Lutero e Marx,
disse que o projeto de liberdade dos três repousam sobre a autonomia e o ato
livre, embora concebidos de maneiras diferentes e mesmo antagônicos. Mas que
existem, no contexto da obra dos três, analogias de fundo. E essas se referem
ao fato de que liberdade poderia significar a abolição da lei, o colapso da
determinação exterior, e não o comportamento que se adequou aos limites da
ordem. Assim, segundo Ballestero, Cusa, Lutero e Marx olham a liberdade como a
destruição da ordenação exterior e anterior ao próprio ato livre. Ou, como
disse o apóstolo Paulo:
“Portanto, agora, nenhuma condenação há para os que estão
em Cristo Jesus, que não andam segundo a carne, mas segundo o espírito. Porque
a lei do Espírito de vida, em Cristo Jesus, me livrou da lei do pecado e da
morte. Porquanto, o que era impossível à lei, visto como estava enferma pela
carne, Deus, enviando o seu Filho em semelhança da carne do pecado, pelo pecado
condenou o pecado na carne, para que a justiça da lei se cumprisse em nós, que
não andamos segundo a carne, mas segundo o Espírito. Porque os que são segundo
a carne inclinam-se para as coisas da carne; mas os que são segundo o Espírito,
para as coisas do Espírito. Porque a inclinação da carne é morte; mas a
inclinação do Espírito é vida e paz”. Romanos 8.1-6.
Os ensaios mostram que a revolução
teórica empreendida por Cusa e Lutero não foi gratuita, nem produto de um
simples ato ideal, mas se enraizou no tecido histórico do movimento de
decomposição global da formação social pré-capitalista. Cusa e Lutero clamaram por
essa destruição. Sem entrar nos detalhes das mutações vividas no século
dezesseis, com a ruptura do equilíbrio cidade/campo, o surgimento das
manufaturas e a consolidação do sistema de trabalho assalariado, vemos que a
alienação que distancia da condição humana na incipiente sociedade capitalista
foi percebida por Cusa e Lutero: a liberdade do sujeito se dá como dor.
Mas ambos consideraram essa
subjetividade liberada pelo início da arrancada capitalista como desequilíbrio.
Assim, tanto Cusa quanto Lutero partiram do distanciamento nessa subjetividade
alienada do nascente capitalismo, considerando que deveria ser superada para
que o sentido da vida florescesse. Aí, então, teríamos o fim da
não-essencialidade do sujeito alienado e a inserção deste na totalidade
objetiva. Mas isso não poderia acontecer sem a transformação dessa realidade
objetiva em realidade plena de vida, que sustenta o humano. Dessa maneira, o
sentido da vida constrói num nível superior o universo anteriormente negado.
O jovem Marx, seguindo os
passos de Hegel, partiu dessa discussão. Para ele, a religião era a realização
imaginária da essência do humano, e que essa essência não tinha realidade
alguma. De todas as maneiras, há um ponto de interligação nessa perspectiva: a
liberdade como abolição da legalidade, como coincidência do momento subjetivo
com o momento objetivo e como responsabilidade maior do ser humano.
Para Lutero, o humano existe como
estrutura ontológica dual. Sua conceituação partiu da ansiedade teórica do
século dezesseis, mas traduziu-se em superação da subjetividade alienada. O
humano pleno do sentido da vida é senhor de todas as coisas, não está submetido
a ninguém e esse senhorio radical é produto da vida em plenitude. Sua liberdade
transforma a subjetividade alienada em realidade objetiva. Nesse sentido, o
caráter da liberdade do humano pleno do sentido de vida se dá como processo:
morre o imediato, o alienado, e tem início a construção de uma segunda
natureza.
A liberdade surge como
deslocamento do humano alienado, como distanciamento crítico daquilo que foi
naturalmente dado. O primeiro momento da liberdade parte de uma concepção
trágica, porque o senhorio num primeiro momento implica em servidão, criando
tensão e luta. “É necessário desesperar-se por você mesmo, fazer com que você
saia de dentro de você e escape de sua prisão” (Lutero, Les grands écrits, p.
259). Mas superada a tensão, temos a liberdade enquanto sentido pleno de vida,
uma dimensão de combate. E retornando ao apóstolo Paulo:
“Vós, porém, não estais na carne, mas no Espírito, se é
que o Espírito de Deus habita em vós. Mas, se alguém não tem o Espírito do
Cristo, esse tal não é dele. E, se Cristo está em vós, o corpo, na verdade,
está morto por causa do pecado, mas o espírito vive por causa da justiça. E, se o Espírito daquele que dos mortos
ressuscitou a Jesus habita em vós, aquele que dos mortos ressuscitou a Cristo
também vivificará o vosso corpo mortal, pelo seu Espírito que em vós habita. De
maneira que, irmãos, somos devedores, não à carne para viver segundo a
carne, porque, se viverdes segundo a
carne, morrereis; mas, se pelo espírito mortificardes as obras do corpo,
vivereis. Porque todos os que são guiados pelo Espírito de Deus, esses são
filhos de Deus”. Romanos 8.9-14.
Os humanos são chamados a superar
a alienação, ter a liberdade que vai além, a liberdade que é construída na
expansão do sentido pleno da vida. E, assim como Paulo, estou convencido de que
morte ou vida, anjos ou governos, coisas presentes ou futuras, poderes, altura
ou profundidade, ou qualquer criatura não poderá me distanciar do amor do
Eterno, que está no Novo Ser, o Senhor.
III. O
pecado está no mundo
“Que é, pois, o tempo? Se ninguém
me pergunta, eu o sei; se desejo explicar a quem o pergunta, não o sei”,
afirmou Agostinho, um homem entre um tempo romano que desmoronava e o tempo
medieval em formação. O jeito romano de olhar o mundo dava lugar a um novo
olhar. E para olhar o mundo e entendê-lo era necessário saber de onde vinha o
mal e a existência do pecado.
De Pelágio (c. 360-420) sabemos pouco. Saiu da Grã-Bretanha, onde tinha jogado
um papel importante na formação do cristianismo céltico. Como Agostinho também
era monge, e muito respeitado na Grã-Bretanha tanto entre o clero como entre os
líderes celtas não religiosos. Nunca foi visto como herege ou alguém que não
merecesse a confiança de seus colegas. Foi um precursor do humanismo, pois
acreditava nas possibilidades da pessoa e via o mal como um produto social.
Em 410, Roma, fragilizada, foi saqueada pelos godos. Os pagãos, nome com que a
Igreja designava os não-cristãos, atribuíram a invasão ao fato de os romanos
terem abandonado os deuses antigos. De acordo com eles, enquanto fora adorado,
Júpiter protegera a cidade; ao ser trocado pelo cristianismo, deixara de fazê-lo.
Assim entre 412 e 427, Agostinho escreveu A Cidade de Deus, um livro cuja base
era o pensamento neoplatônico e que exerceria forte influência nos tempos
medievais. Nele respondeu a tais acusações, argumentando que coisas piores
haviam ocorrido em tempos pré-cristãos. Que os deuses pagãos eram perversos.
Ele não negava a existência de entidades como Baco, Netuno e Júpiter, mas os
considerava demônios.
Demônios que ordenavam aos homens, por exemplo, que criassem peças teatrais,
definidas por Agostinho como “espetáculos da imundície”. Em razão desses
deuses, Roma sempre fora perversa e pecaminosa.
Com o cristianismo, Roma se salvaria. E, se a cidade dos homens fora invadida,
pouco importava, já que o objetivo maior era a salvação por meio do amor para
atingir a cidade de Deus, a sociedade dos eleitos. A busca central não era a
cidadania na sociedade dos homens, mas a salvação no reino de Deus.
E assim questões do dia-a-dia,
políticas, levarão Agostinho a discutir a questão do mal. Nas suas Confissões
conta a história de sua descoberta de Deus, ainda na infância. Para ele, o mal
habitava a natureza de todos os seres humanos. Fazia parte da essência do ser,
depois do pecado de Adão. E, se os bebês são inocentes, não é porque lhes falte
o desejo de fazerem o mal, mas por carecerem de força.
Agostinho, como sua geração,
estava preocupado com o problema do mal.
E vai procurar a solução para esta questão na construção de uma teologia
que combinaria os textos da revelação bíblica com uma leitura hermenêutica
neoplatônica. Assim, a partir da questão da essência em Platão, rompe com o
pensamento cristão grego e oriental, que norteava entre outros o monge
britânico Pelágio e a igreja cristã celta.
As ideias de Pelágio e da igreja
oriental não combinavam com o determinismo essencialista da nascente igreja
romana. Nessa época Roma combatia teologicamente os donatistas da África do
Norte. Para os donatistas a eficácia dos sacramentos dependia do estado
espiritual dos sacerdotes que os ministravam. Essa ideia trouxe um problema
para a Igreja. Se ela concordasse com tal visão, poria abaixo o edifício
cerimonial e litúrgico da Igreja. E se não concordasse significaria que o
edifício cerimonial da Igreja dependia do caráter moral dos clérigos e ninguém
poderia ter a certeza se as ordenanças e os rituais teriam eficácia espiritual.
Mas, se a declaração dos
donatistas fosse declarada falsa, então os sacramentos poderiam ser
administrados eficazmente mesmo por um herético ou pecador. A acusação de
heresia conservaria, desta forma, a estrutura da igreja. Naquela época, muitos
homens da igreja, inclusive Agostinho, defendiam que a igreja era uma
instituição cuja santidade vinha dos sacramentos e não da fé das pessoas. Para
Agostinho e para a igreja de Roma os sacramentos produziam santificação e não
era a vida pia que produzia homens santos.
Tal discussão levou
Agostinho a negar a realidade metafísica do mal. O mal não é um ser, uma
pessoa, mas privação de ser, como a escuridão é a ausência de luz. Tal falta
estaria presente em todo ser que não seja Deus, enquanto criado e limitado.
Quanto ao mal físico, que
atinge os seres humanos, Agostinho justificou-o através de um argumento
estético: o contraste dos seres contribui para a harmonia do conjunto.
E em relação ao mal moral,
Agostinho disse que existe a vontade má que livremente faz o mal. Ela, porém,
não é causa eficiente, mas deficiente, sendo o mal não-ser. Este não-ser pode
unicamente provir do homem, livre e limitado, e não de Deus, que é puro ser e
produz unicamente o ser.
Assim Agostinho, através do
neoplatonismo, explica que o mal moral entrou no mundo humano pelo pecado
original. Por isso, a humanidade foi punida com o sofrimento, físico e moral,
além perder dos dons que Deus havia dado a Adão.
Como se vê, para Agostinho,
o mal físico teria origem na culpa do próprio ser humano. Mas este mal foi remediado pela redenção em
Cristo, que restituiu à humanidade os dons sobrenaturais e a possibilidade do
bem moral. Mas deixou o sofrimento, consequência do pecado, como meio de
purificação e expiação.
E a explicação última de
tudo isso estaria no fato de que é mais glorioso para Deus tirar o bem do mal,
do que não permitir o mal. Assim, a teologia agostiniana considera que o mal é
a privação do bem e não o contrário. E que essa privação do bem não tem origem
no mal metafísico ou no mal moral e físico. O bem nunca é consequência, porque
se fosse consequência nasceria do mal. Então, para Agostinho, a solução do
problema para o mal -- físico e moral (pecado original versus redenção) -- é
estético: o contraste entre os seres leva a harmonia do conjunto. Por isso,
para ele, na Igreja está a salvação.
A
Igreja celta, porém, não viu a discussão dessa maneira. Para Pelágio e seu
discípulo Caelestius, a questão girava ao redor da teologia do livre arbítrio.
Não concordava, com a idéia essencialista defendida por Agostinho, que até
aquele momento não era majoritária, de um pecado original que degenerou a
natureza da humanidade. Numa leitura existencial-fenomenológica do problema do
mal, simplesmente revolucionária para sua época, defendeu que eram os atos e as
ações que levavam o ser humano a herdar o inferno. E discordou de Agostinho,
quando este afirmou que o ser humano só poderia ganhar a salvação através da
igreja.
Considerou a doutrina do pecado
original sem base neotestamentária e afirmou que todos são concebidos sem o mal
moral e que diante dos delitos e pecados são salvos pela graça de Deus, que não
merecemos, que nos é entregue através de Jesus Cristo.
Até aquele momento, a visão de
Pelágio e seus seguidores traduziam a doutrina histórica do livre arbítrio
humano e a da maldade socialmente presente no mundo. Tal visão levou Pelágio a
entrar em choque com seu maior opositor, Agostinho de Tagasta.
Mas, as posições de Pelágio não
eram a única fonte de seus problemas com a igreja. Quando ela visitou Roma, em
torno de 380, o que viu e ouviu estava em oposição com o rigoroso asceticismo
praticado por ele e pelos monges britânicos. Ficou chocado com a pompa e o luxo
da hierarquia da igreja romana. Responsabilizou a lassidão moral do Papado, mas
obteve como resposta a partir de citação das Confissões de Agostinho, que Deus
em sua vontade determina uns para o luxo e outros para a abstinência. Pelágio
atacou este ensino, afirmando que a lei moral impera sobre toda a terra.
Pelágio manteve sua vida
de asceta. Pregou a natureza moral boa do ser humano e sua responsabilidade
para escolher o asceticismo cristão como forma de avançar espiritualmente.
Apesar de viver na Irlanda, ganhou inimigos e ficou sob os ataques de
Agostinho.
Ao redor de 412, Pelágio foi para
a Palestina, onde em 415 compareceu diante do Sínodo de Jerusalém acusado de
heresia. Para defender-se dos ataques de Agostinho e de Jerônimo, escreveu
Arbitrio de libero (Na vontade livre), em 416, que ao invés de melhorar a
situação, levou-o a ser condenado em dois conselhos africanos.
Ele e Caelestius foram propostos à
condenação e excomunhão pelo papa Inocente. Mas o sucessor de Inocente, Zosimus
declarou Pelágio inocente em sua Fidei de libellus (Indicação breve da fé), mas
depois reconsiderou, quando nova investigação foi proposta pelo concílio de
Cartago (397-419). Zosimus confirmou as acusações e Pelágio foi condenado. A
partir dessa data, mas nada se sabe dele.
No entanto, Pelágio é lembrado
como aquele que teologicamente tentou livrar a humanidade da culpa de Adão.
Seus seguidores fazem questão de mostrar que ele foi um dos primeiros
dissidentes da igreja católica romana em construção.
O individualismo áspero do monge
celta, sua convicção de que cada pessoa está livre para escolher entre o bem e
o mal, e sua insistência de que a fé deve ser prática (ora et labora), marcaram
a imaginação teológica do final do século 20. E não somente a imaginação da
Teologia, mas também da Pedagogia e da Psicologia.
IV. Pecado,
culpa e graça
As tensões ao redor da compreensão
das ideias de alienação, enquanto inclinação existencial para o mal, e graça,
enquanto ação divina para a salvação humana, apontam para duas outras questões:
história e liberdade. Essas duas questões formam a base do pensamento de que o
ser humano por ser imagem do Eterno é um ser livre e, por extensão, faz
história. Livre significa liberdade de julgamento no âmbito da existência.
Então, para que as pessoas sejam livres, o Eterno garante a liberdade delas.
Assim, todos são chamados à comunhão
e cada pessoa poderia responder positivamente ou não a esse chamado. Caso o ser
humano respondesse positivamente ao chamado viveria o processo de libertação
que leva à comunhão plena. A comunhão consistiria, então, em arrependimento,
que é volta ao estado de liberdade, mais permanência na escolha. A partir desta
resposta, o Eterno opera a salvação do ser humano. Por isso, podemos dizer que
a vontade humana abre o caminho da libertação. A partir daí entendemos a graça
universal, pois todos os seres humanos poderiam responder positivamente ao
chamado à comunhão. Ou seja, a liberdade de julgamento no âmbito da existência
leva a pessoa a escolher os caminhos de sua história.
A inclinação para o mal, ou seja, a alienação, faz com que
as ações humanas, a partir dos desejos – emoções e sentimentos – levem o ser
humano a errar o alvo, leharati em hebraico, hamartáno, em grego, e peccátu, em
latim. Dentro da tradição das escrituras hebraico-judaicas, leharati é a
violação da lei. Mas o leharati é sempre uma ação do coração e não um estado do
ser. Já a alienação, esta sim, é um estado da existência e toda a humanidade se
encontra nesse estado de inclinação para fazer o mal, conforme vemos em Gênesis
8.21. Assim, leharati traduz não somente falta moral, mas todas as violações da
lei, quer conscientes ou não. E, segundo a tradição judaica, todo ser humano
nasce sem leharati, e a culpa de Adão recaiu sobre ele e sua família, mas não
se estendeu à espécie humana. Apesar disso todo ser humano é responsável pelo
leharati porque todos temos vontade livre, mas natureza alienada e tendemos
para o mal. Por isso, o texto citado de Gênesis, acima, diz que o coração
humano é mau desde a sua juventude. Mas o Eterno, através de sua misericórdia,
possibilita ao ser humano o arrependimento e o perdão.
A libertação humana é um processo,
por isso a pessoa não seria plenamente livre, porque dependeria dela permanecer
ou não na opção escolhida. Se ela se mantivesse na escolha seria plenamente
livre, se abandonasse a escolha voltaria à alienação. Caso a pessoa livre se
alienasse, se não se arrependesse e voltasse à comunhão, seria eternamente
alienada.
Dessa maneira, na polaridade
alienação versus comunhão dá-se a construção da história, ou seja, as pessoas e
as comunidades humanas interagem, por opção ou por omissão, na construção de
sua história. O Eterno é soberano porque criou e mantém o universo,
sustentando-o na universalidade do Espírito. A soberania especial estaria
somente sobre a comunidade que permanece na escolha. As outras comunidades
estariam fora desta soberania especial, da graça que gera comunhão plena,
exatamente porque usaram a liberdade para escolher o leharati.
E quanto maior a alienação, mais o
Eterno retrai sua soberania sobre tais pessoas e comunidades, e,
consequentemente, a graça que gera comunhão plena. O que explica o mal enquanto
feituras pessoal e social. E para que o processo histórico se dê, o Eterno
contrai espaço-temporalmente sua justiça executora.
Por paixão ao ser humano, ele contrai
a ação de seu conhecimento. Caso o Eterno, a partir de seu conhecimento,
definisse todas as ações livres do ser humano, as pessoas e as sociedades
poderiam fazer apenas aquilo que o Eterno por conhecer definisse, sem poderem
tomar decisões alienadas, sem poderem se afastar dele.
Assim, o Eterno dirige o seu fazer,
mas interage com as pessoas e as comunidades humanas na produção da história,
enquanto obra que nasce das correlações liberdade/ comunhão e liberdade/
alienação. A polaridade alienação versus comunhão não apresenta o ser humano
como bom ou mal, mas como ser que age a partir dessa polaridade. Isso fica
claro no diálogo que o Eterno tem com Caim, quando diz que ele está inclinado para
o mal, mas deve dominá-lo. Essa conversa apresenta um padrão humano, a
tendência à alienação.
Assim podemos ler Gênesis 6.5, 8.21 e
Deuteronômio 31.21. É interessante que nenhum desses textos fala do ser humano
como essencialmente corrupto, mas inclinado à alienação. A própria palavra
yetzer, que vem da raiz yzr, utilizada quando as Escrituras hebraicas falam de
inclinação maligna, significa moldar, propor-se. A idéia é que o ser humano é
dirigido por suas inclinações, imaginações, sejam elas boas ou más. É yetzer
que, combinado ao julgamento livre no âmbito da existência, possibilita o
arrependimento. Ou, conforme diz Deuteronômio, o Eterno coloca diante do ser
humano a possibilidade do bem e a possibilidade do mal. Os seres humanos terão
comunhão se
obedecerem aos mandamentos do Eterno
e serão alienados se desobedecerem aos mandamentos do Senhor (11.16-28).
Assim, só o Eterno é capaz de fazer
com que exista a liberdade humana e mantê-la.
Essa graça, oriunda do Eterno e derramada sobre a humanidade, possibilita
a construção da história.
Essa leitura da liberdade entregue ao
ser humano é importante para a teologia, pois ao dizer que as pessoas e as
comunidades humanas podem agir à margem daquilo que o Eterno desejaria para a
humanidade, apresenta a violência, a guerra e os genocídios como frutos da
opção e ação humanas. E o teólogo pode, então, analisar porque os profetas
clamam e apontam às sociedades o caminho do Reino, embora estas possam escolher
os seus próprios caminhos. O campo de concretação de Auschwitz, sob o nazismo,
e os genocídios contemporâneos, frutos de políticas religiosas
fundamentalistas, são, então, passíveis de estudo. Mas a nossa leitura coloca,
também, para as comunidades de fé, o clamor profético e o desafio de expandir o
Reino.
Em relação à alienação, o ser humano
herdou de Adão a inclinação para o mal e, como consequência, a possibilidade
crescente de errar o alvo, mas não a culpa. Os seres humanos são alienados
porque separaram razão e coração e erram o alvo porque são alienados. E em
relação ao processo de libertação, a morte do Cristo abre as portas da
comunhão, mas não assegura a libertação plena, pois esta só será definitiva se
a pessoa não desistir da corrida.
Um exemplo dessa leitura, que nos
interessa para a construção de uma hermenêutica teológica, seria o arrazoado
que Pedro, o apóstolo, fez em sua segunda epístola, ao dizer que a graça não
tem limites, pois o Eterno não retarda a sua promessa, como alguns afirmam, por
julgá-la demorada, mas por ser paciente. Ele não escolheria a danação eterna de
pessoas, ao contrário, desejaria que todos chegassem ao arrependimento, ou
seja, fizessem o caminho de volta à liberdade e construíssem comunhão.
Dessa maneira, a graça tem eficácia
ilimitada, mas há uma chave para que a função graça seja plenamente exercida. E
essa chave é: chegar ao arrependimento. Dessa maneira, o sacrifício do Cristo,
que é graça plena e universal, deve ser somado ao arrependimento, produzindo
então a libertação. Ou seja, graça plena mais arrependimento é igual à
libertação. E o sacrifício do Cristo sem o arrependimento produz justiça. Ou
seja, o valor da cruz não seria limitado, mas sim sua aplicação. E a preparação
da pessoa e das comunidades humanas para a graça tem o julgamento livre no
âmbito da existência como movimento e o Eterno como móvel.
Essa preparação pode ser pensada como
movimento que parte, enquanto universalidade, da liberdade humana em direção à
especificidade que tem o Eterno como móvel e implica em graça determinada pelo
Eterno, embora não seja proveniente da coação, mas do seu pleno conhecimento,
porquanto a intenção do Eterno não pode deixar de ter efeito.
Por isso, podemos falar da
universalidade da graça, presente na comunidade humana, e na especificidade da
graça, que infalível segue a boa vontade humana. Mas esse movimento é
dialético, pois, quando olhamos da perspectiva do humano, ele parte da
universalidade, mas se olharmos da perspectiva divina parte da especificidade.
Ou seja, universalidade e especificidade são termos relativos, que se
complementam na plenitude da graça. Por isso, liberdade, eleição e graça fazem
parte de uma dança permanente, onde cada conceito implica na existência do
outro e nenhum tem existência independente, mas criam uma unidade/ diversidade
correlacional plena e necessária.
Todas as pessoas e comunidades
humanas realizam suas existências dentro desse processo, fazem parte dele, o
que significa dizer que existência, liberdade e graça fazem parte da história
humana. O Eterno mobiliza o processo em direção à especificidade, com base no
seu conhecimento da fé e da perseverança de cada pessoa e das comunidades
humanas, mas conhece e aceita o sentido da universalidade humana. Esta seria a
leitura do texto de Pedro, quando disse que no meio do povo surgiram falsos
profetas que introduziram doutrinas destruidoras, a ponto de renegarem o Eterno
que os resgatou.
V. DIANTE
DO MAL
Na teologia cristã, teodiceia, termo cunhado por Gottfried
Wilhelm Leibniz (1646-1716), designa a doutrina que procura conciliar a bondade
e onipotência de Deus com a existência do mal no mundo. E será a partir dessa
doutrina que vamos voltar à questão do mal, que focamos antes, biblicamente,
como alienação e pecado. A palavra mal vem do latim malu, e refere-se aquilo
que é nocivo, prejudicial, que fere, que é um estado mórbido, doença, angústia,
sofrimento, e desgraça. Temos, então, o mal moral, contrário ao caráter do
Criador, produzido por agentes morais e temos o mal natural, consequência dos
desequilíbrios da natureza: furacões, terremotos, e as sequências
degenerativas, como as epidemias, deformidades congênitas, AIDS, etc.
As cosmovisões se posicionam diante da questão do
mal de diferentes maneiras. Para alguns pensadores agnósticos e ateus o mal não
existe. Jean-Paul Sartre, por exemplo, embora descartasse o mal, falava do
absurdo da existência, e disse que o inferno são os outros. Mas, a posição
clássica dos ateísmos humanistas, positivistas, marxistas e mesmo
existencialistas relativizam o mal, já que seria uma visão antropocêntrica, sem
contudo negá-lo.
Já para o panteísmo monista, como
é o caso do hinduísmo e setores do budismo, tudo é deus, então nada é mal. Para
essa cosmovisão, as coisas parecem más, mas isso é ilusão.
Para o teísmo, o mal é uma
realidade. Mas o teísmo tem muitas leituras. Assim, para as correntes
dualistas, existem duas forças opostas em equilíbrio, o bem e o mal. Para as
correntes teístas finitistas, que negam atributos da divindade, Deus pode ser
bom, mas não onipotente. Essa é a cosmovisão de setores do judaísmo
contemporâneo. O problema dessa leitura é que apresenta um Deus com limitações,
que não controla o universo, ao contrário do que diz Paulo – “nele, digo, no qual fomos também feitos herança,
predestinados segundo o propósito daquele que faz todas as coisas conforme o
conselho da sua vontade” (Ef
1.11). Outra afirmação do teísmo finitista é de que Deus pode ser onipotente,
mas não é lá muito bom. Essa cosmovisão foi defendida por John Stuart Mill e R.
Roth. O problema aqui é que esse Deus de Mill e Roth aparentemente não é o
mesmo de quem Tiago diz – “toda boa dádiva e todo
dom perfeito são lá do alto, descendo do Pai das luzes, em quem não pode
existir variação ou sombra de mudança” (Tg 1.17). Mas há ainda outras leituras teístas, como a
de Irineu e J. Hick que acreditavam que Deus criou o universo como lugar de
provação e aperfeiçoamento. Aqui também temos um problema: é que o conceito de
resgate do ser humano diante do pecado deixa de ter significado, pois Deus seria
o responsável pela trágica condição do mundo. O que não está de acordo com a
afirmação de Gênesis (1.31) – “e viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom.
Houve tarde e manhã, o sexto dia”
Ora, em Gn 1.31; 1Tm 4.4; Ez 28.12-16
vemos que o universo, enquanto construção dinâmica, é bom no sentido
teleológico, tem as qualidades adequadas à sua natureza ou função, e que Deus
fez seres livres que tinham e têm opção de escolha: “ele nos gerou pela
palavra da verdade, para que fôssemos como que primícias das suas criaturas” (Tg 1.18).
A impossibilidade de escolha diante do bem e do mal implicaria na remoção do
livre arbítrio. Hc 1.13; Tg 1.13; IJo1.5; Is 6.3; At 17.31; 2Tm 2.13; Tito 1.2;
Ap 4.8.
Dessa maneira, o mal tem origem no
exercício da escolha de seres livres (Ez 28.12-17; Is 14.12-15; Jo 8.44; Ap
12.9; Mt 13.19; Ef 6.16, Ijo 2.13s; 3.12; 5.18) e de humanos (Gn 3.1-20; Rm 5.12-19).
A liberdade de escolha era e é boa, enquanto liberdade dinâmica e progressiva,
pois reflete a própria imagem do Deus criador. Mas, na existência está a
permanente possibilidade de degradação do bom, do livre arbítrio, mas não pela
execução do mal, pois o mal moral e o mal natural são fruto do processo de
deslocamento da imagem de Deus: o que teologicamente chamamos de mau encontro,
conceito antropológico criado por La Boétie e mais tarde utilizado por Pierre
Clastres, que usamos como categoria que traduz as disfunções da imago Dei na espécie humana -- alienação
espiritual (Gn 3.8-11, ICo 2.14), alienação psicossomática (Gn 3.3, 4, 16, 19,
Jó 14.1-2), alienação sociológica (Gn 3.12, 16-17; Gn 4) e alienação
antropo-ecológica (Gn 3.17-19; 9.12). Assim, o ser humano está alienado,
separado, em estado de pecado em relação a Deus, a si mesmo, aos outros homens,
à natureza, e esta consigo mesma.
Parte da ciência no século XX
apresentou-se como materialista. É bom lembrar que antes, cientistas como
Galileu, Francis Bacon, Isaac Newton, B. Pascal, M. Faraday e outros não se
posicionavam como ateus. Albert Einstein, já no século XX, afirmou: “Deus nunca
joga dados com o Universo”. Ao negar o ação criadora de um Deus infinito e
pessoal, o ateísmo retira a base para qualquer significado moral no universo, e
com isso o ser humano deixa de ter sentido existencial.
Por isso, nos remetemos aqui à teologia da criação
e vamos analisar, primeiramente, a questão do termo dia, yom, em Gênesis 1:1-2.3. A raiz de yom aparece 2.355 vezes no texto massorético e pode exprimir um instante
de tempo (Gn 3.5); um período de luz (Gn 1.14,16,18); um período de 24 horas;
uma época; um período geral e indefinido (Gn. 2:4, sete dias; 4:3, ao cabo de
dias; 29:14, um mês inteiro; 41:1, ano; Amós 5:18, o dia do Eterno. Não temos
um conceito único para yom. Não há
uma posição unânime na igreja. Agostinho considerou que o tempo surge com o
universo. E Tomás de Aquino disse que o tempo é uma medida humana.
Mas tempo nos remete a outro conceito o de caos. E aí vem
a pergunta: Deus criou o caos? Na leitura tradicional, tohu significa apenas
sem forma, caos; e bohu vazia, desolada. Mas temos outros termos que nos levam
a idéia de caos: trevas (Gn.1:2,4, 5); abismo (Gn.1:2); águas (Gn.1:2,6-10,21).
Mas na leitura tradicional o caos reflete apenas uma situação sem ordem, é
plenamente histórico e faz parte da criação original.
Mas temos outras teorias, como as da catástrofe: (a)
teoria da criação a partir do caos. Nela, Gn.1:1 é um resumo do capítulo
inteiro (1:2-2:3). Aqui a conjunção vê, em hebraico, traduz seu sentido mais
comum “e”. E céu e terra significam o universo organizado (Gn.2:4, 5:1; 9:32).
Essa seria a primeira criação que aparece em Hb.11:3; Cl.1:16,17; Jo.1:1-3; e
Rm.4:17. E (b) teoria da brecha, onde Gn.1:1 é criação original e a conjunção
vê que inicia 1:2 deve ser traduzida como porém, simbolizando um lapso de tempo
desconhecido, em que houve uma catástrofe entre os dois períodos. Donde, Gn.
1:3-21 é uma recriação da terra.
A questão da construção
do mundo é fundamental para o estudo do fazer bem e do fazer mal, pois
posicionam bem e mal em condições e momentos diferentes, conforme a leitura que
se faça de Gênesis. De todas as maneiras, a relação criação versus bem e mal
sublinha a constante existente que nasce da liberdade humana diante da
realidade. O ser humano pode usar a liberdade para retribuir o seu amor ao
Criador, oferecendo-se a ele em adoração e serviço, mas no dom da liberdade
está contida outra possibilidade, a de decidir fazer-se alvo de seu amor-próprio.
A alienação consiste nisso, na decisão do ser humano de fazer um caminho solo.
Essa deslocamento leva ao abuso da dignidade e à distorção da aliança de ser
imagem de Deus, colocando-se como demiurgo, como móvel de querer. Ou como disse
La Boétie, “que mau encontro foi esse que pode desnaturar tanto o ser humano, o
único nascido de verdade para viver francamente, e fazê-lo perder a lembrança
de seu primeiro ser e o desejo de retomá-lo?” E
Clastres, analisando o texto desse libertário do século XVI, que influenciou o
pensamento huguenote francês, afirma:
“Mau encontro: acidente
trágico, azar inaugural cujos efeitos não cessam de ampliar-se, a tal ponto que
é abolida a memória do antes, a tal ponto que o amor da servidão substituiu-se
ao desejo de liberdade. O que diz La Boétie? Mais do que qualquer outro
clarividente, afirma inicialmente que essa passagem da liberdade à servidão
deu-se sem necessidade, afirma acidental – e, desde então, que trabalho pensar
o impensável mau encontro!”.
O distanciamento do ser
humano de Deus teve como conseqüência o entorpecimento da responsabilidade e da
materialidade do mundo, dando à morte poder sobre o humano. Criou distorção na
primitiva relação de equilíbrio da imago
Dei e inverteu a relação entre espírito, alma e corpo, gerando conflitos
que não remontam à estrutura original do ser humano, mas estão na base do afastamento
do ser humano em relação a Deus. O distanciamento do ser humano, que entorpece
sua liberdade, nos leva à compreensão do Cristo como figura histórica que
representa o penhor de redenção do ser humano, conforme João 1.4. Assim, dois
elementos fazem parte da compreensão da encarnação: o primeiro deles é a
absoluta irrepetibilidade do acontecimento; e o segundo é o fato material de
que o próprio Deus, como ser humano, como membro de uma família, de uma
comunidade, de um tempo, entra na corporabilidade, na materialidade da história
da humanidade, criando no meio dela a semente de uma radical transformação de
todo o modo de ser do humano, abrangendo todas as esferas da natureza humana,
material, psíquica e espiritual.
Vejamos como se dá na
tradição judaico-cristã essa relação entre liberdade versus mal. No Antigo
Testamento temos uma espiral conceitual na trindade aliança, fidelidade e
constância, cujo centro epistemológico é a liberdade. No Novo Testamento o
vértice é o conceito de destino.
Paralelamente ao pensamento
hebraico, a cultura grega apresentará uma leitura diferente do conceito de
destino, que traduzia a maneira de pensar e viver do helenismo. Na sua época,
por razões apologéticas, o apóstolo Paulo apresentará um conceito de destino
que resgata e transcende o conceito veterotestamentário de aliança. Entre os
gregos, a religião e o culto de mistérios traduziam uma luta contra o destino,
numa tentativa de colocar-se acima dele. A origem dos cultos de mistérios não
pode ser entendida quando os vemos apenas como mitos. Para o ser humano
helênico a luta com o destino era inevitável porque o destino tinha qualidades
demoníacas. Era um poder sagrado e destrutivo. Envolvia o ser humano numa culpa
objetiva. Os cultos de mistério, dessa forma, ofereciam uma purificação das
mãos de deuses que manipulando o destino, excluía do ser humano qualquer
possibilidade de liberdade. Assim, também a filosofia helênica, através do
conhecimento, procurava elevar o ser humano à transcendência, despojando-o dos
objetivos e formas da vida imediata, para lançá-lo através da abstração em
direção ao ser puro. O mundo helênico era um mundo de culpa objetiva e castigo
trágico e m profundo pessimismo atravessava todo o conhecimento, desde Anaximandro,
passando por Pitágoras, Demócrito, Sócrates, Platão e Aristóteles.
Apesar dessa visão trágica, os
gregos eram apaixonados pela vida e é essa dicotomia que dará riqueza a esta
que será uma das mais expressivas culturas da humanidade. Mas, em última
instância, a luta do filósofo permaneceu inalterada em todo o helenismo:
superar o destino. E isso foi tentado através do domínio do pensamento, como
forma de elevar-se acima da existência, já que no campo da ação e da
transformação da existência é impossível superar o destino. No entanto, nunca
essa meta foi alcançada. Possibilidade e necessidade foram conceitos chaves nas
discussões do helenismo pós-platônico. O medo de demônios obscureceu o espírito
helênico. O epicurismo tentou, em vão, libertar seus seguidores do medo, mas ao
definir o conceito de possibilidade absoluta [ou azar], abriu o espaço para o
medo em sua argumentação filosófica.
Dessa maneira, a filosofia grega
caminhou para ceticismo, já que a busca de uma certeza transcendente para a
existência humana se mostrou nula. Ao mesmo tempo, enquanto força sobre-humana
do destino, as nações eram submetidas ao poderio romano. Diante desse destino
trágico, o mundo helênico tinha necessidade da revelação. Ameaçado por um
destino demoníaco, o mundo helênico ansiava por um destino salvador,
necessitava de graça.
Cristo é a vitória sobre a ideia de
que a matéria é força que resiste a Deus e o vence. Nesse sentido, o
cristianismo traduz a compreensão de que o mundo é uma criação divina e de que
Cristo é a vitória da perfeição do novo ser em todos seus aspectos sobre o medo
trágico e a matéria que resiste, hostil a Deus. É a negação radical do caráter
demoníaco da existência em si. Dá a existência um valor essencialmente positivo
e valoriza os acontecimentos da ordem temporal. Em Cristo, ao contrário do que
pensava Anaximandro, a ordem do tempo não leva apenas ao transitório e
perecível, mas também à possibilidade de algo totalmente novo, um propósito e
um fim que dá pleno significado à vida humana.
No cristianismo o tempo triunfa
sobre o espaço. O caráter irreversível do tempo bom [cairos] substitui o tempo
cíclico, transitório e perecível do pensamento helênico. A partir desse
momento, destino outorga graça, que traz salvação no tempo e na história. O
mundo helênico e sua interpretação da vida estão superados e com eles, a
filosofia, a religião e os cultos de mistério.
Antes, a filosofia buscava
desesperadamente a revelação, agora a revelação apodera-se da filosofia dando
origem à teologia. Assim, a teologia jogou fora o destino demoníaco e, por
extensão, a metafísica helenística e se apropriou de suas formas lógicas e de
seus conteúdos empíricos. O transitório e perecível da filosofia helenística
não teve importância na formação do pensamento ocidental, mas sim a idéia da
criação divina do mundo e a fé numa providência divina, através da salvação que
se constrói historicamente e acontece num tempo bom. E isso já não é helenismo,
mas antropologia teológica cristã.
Mas voltemos um pouco atrás, para
entendermos esse processo. Dentro da visão paulina, que traduz o pensamento
cristão palestino, destino, no sentido de que os limites estão dados de
antemão, é a lei transcendente na qual está imbricado o conceito de liberdade.
Assim, destino também implica numa trindade conceitual: (1) o destino está
sujeito à liberdade; (2) destino significa que a liberdade também está sujeita
à lei; (3) destino significa que liberdade e lei são interdependentes e
complementares.
Analisando o conceito cristão
palestino de destino, exposto por Paulo (Romanos 8.31-39; e 9), podemos dizer
que a liberdade humana está ligada às leis universais, de tal forma que
liberdade e leis se encontram intrinsecamente entrelaçadas. Aqui Paulo trabalha
com um conceito judaico, de que lei é imposição de limites, que faz parte da
revelação, que se expressa pela primeira vez como criação de Deus. Mas para
Paulo, se o mal é uma probabilidade que surge da dialética lei e graça, o
julgamento era inerente a tudo na criação, mas também a liberdade.
Assim, a certeza de que o destino
é divino e não demoníaco e tem um significado realizador e não destruidor é a
peça chave do pensamento paulino, que coloca o Logos acima do destino. Ao fazer
isso, Paulo está dizendo que a compreensão do destino não está ao alcance do
ser humano, nem pode ser submetido aos processos do pensamento humano. Mas esse
Logos eterno se reflete através de nossos pensamentos, embora não exista um ato
do pensamento sem a secreta premissa de sua verdade incondicional (Romanos 12.2
e ICoríntios 2.16). Mas a verdade incondicional não está ao nosso alcance. Em
nós humanos há sempre um elemento de aventura e risco em cada enunciado da
verdade. Mas, mesmo assim, devemos correr este risco, sabendo que este é o
único modo que a verdade pode ser revelada a seres finitos e históricos.
Quando mantemos relação com o
Logos eterno e deixamos de temer a ameaça do destino demoníaco, aceitamos o
lugar que cabe ao destino em nosso pensamento. Podemos reconhecer que desde o
princípio esteve submetido ao destino e que o nosso pensamento sempre desejou
livrar-se dele, mas nunca conseguiu. Tarefa teológica da maior importância na
análise cristã do destino é saber relacionar Logos e cairos. O Logos deve
alcançar o cairos. O Logos deve envolver e dominar as leis universais, a
plenitude do tempo, a verdade e o destino da existência. A separação entre
Logos e existência chegou ao fim. O Logos alcançou a existência, penetrou no
tempo e no destino. E isso aconteceu não como algo extrínseco a ele próprio,
mas porque é a expressão de seu próprio caráter intrínseco, sua liberdade.
É necessário, porém, entender que
tanto a existência como o conhecimento humano estão submetidos ao destino e que
o imutável e eterno reino da verdade só é acessível ao conhecimento liberto do destino:
a revelação. Dessa maneira, ao contrário do que pensavam os gregos, todo ser
humano possui uma potencialidade própria, enquanto ser, para realizar seu
destino. Quanto maior a potencialidade do ser – que cresce à medida que é
envolvido e dominado pelo Logos – mais profundamente está implicado seu
conhecimento no destino.
Nosso destino, que aqui deve ser
entendido como missão, é servir ao Logos, num novo cairos, que emerge das
crises e desafios de nossos dias. Quanto mais profundamente entendermos nosso
destino (no sentido de prokeimai, estar colocado, ser proposto) e o de nossa
sociedade, tanto mais livres seremos. Então, nosso trabalho será pleno de força
e verdade.
A vontade humana não é neutra e a
liberdade humana sempre se dá dentro de uma realidade condicionada. Assim, a
liberdade entende-se como relação dialética entre lei e graça. Quando Hegel
afirmava que a liberdade é a consciência da necessidade, como fez questão de
mostrar Marx, cometia um erro porque descartava a realização da liberdade. É
por isso que Marx dirá que liberdade é práxis. Ora, para Marx, práxis é
consciência da necessidade mais ação transformadora. Ou seja, em termos
teológicos, consciência da lei diante da existência do mal é arrependimento e
ação transformadora do Logos produzindo justificação e mudança de vida, graça.
Dentro da visão cristã e
exatamente pelo que acabamos de ver, o mal, ao contrário do que pensavam os
gnósticos, não é um ser, mas um fazer. Em relação ao imediato é um estado e no
que se refere à espécie humana é um domínio. Numa definição teológica, o mal
acontece perante aquilo que minha liberdade é desafiada, quando ele, o mal, é
chamado à surgir como feitura humana. Nesse sentido, o mal não se apresenta sem
agente moral, sem liberdade. Toda vez que realizo minha liberdade a lei está
presente, pois o mal é um antítipo da salvação.
Por isso só podemos responder ao
mal reconhecendo que o mal é feitura minha e de minha espécie, colocando a
ruptura desse domínio nas mãos daquele único que pode fazê-lo, o Logos. A
partir daí, ao nível do pensamento, já que é um desafio teológico, o caminho é
a reflexão, como aquela que Agostinho fez frente aos gnósticos, quando esses
levantarem a satânica pergunta: Por que o mal existe? Transformando assim o mal
em coisa e mundo, dando existência e imagem ao mal. Agostinho responde dizendo
que a única pergunta que posso fazer é: O que me leva a fazer o mal? E ao nível
da vontade e do sentimento, crendo em Deus apesar do mal, pois a Cristologia
nos ensina que o Logos também sofreu. E por fim, ao nível da ação, pois o mal é
o que não devia estar, devemos ter uma ética de responsabilidade social, de
combate a este estado e domínio na vida de meu próximo e da sociedade.
Mil anos depois de
Agostinho, a questão do mal continuava em discussão e a teodicéia, ainda em
construção, oscilou entre dois imperativos aparentemente excludentes, o da
soberania de Deus, (ICr.29:11-14; Sl.139:1-16; Is.45:1-13; 63:16-17; Ef.1:11;
Jo.6:44; Rm.9:11-24) e o do livre arbítrio (II Pe.2:1 redenção, IJo.2:2 propiciação,
IICo. 5:19; reconciliação, Is. 53:6, Jo.1:29, 3:16-18, 4:42, ITm. 4:10,
IIPe.3:9). Mas, no início do século XX, a partir da teologia dialética,
passou-se a ver tais imperativos como conjunto ou totalidade. Assim eleição e
oferta aberta foram lidos como termos complementares, e a cruz como base da
salvação e da condenação, Jo.3:18,36.
Mas vamos analisar a dialética de
tais imperativos sob um novo ângulo. Em 1970, Manuel Ballestero publicou em
Madri, pela Siglo XXI, La Revolución del Espíritu (Tres pensamientos de
libertad), analisando o caráter radical da liberdade no pensamento de três
gênios da modernidade: Nicolas de Cusa, Lutero e Marx. Ballestero diz que sua
preocupação residiu em analisar o projeto de libertação desses três pensadores,
sabendo que o ato livre e a autonomia são concebidos de maneiras diferentes e
mesmo antagônicas, embora existam, no contexto da obra dos três, analogias de
fundo, “já que neles, em um e outro plano, liberdade significa abolição da lei,
colapso da determinação exterior, e não – à maneira conservadora –
comportamento que se adequou aos limites da ordem. Liberdade para os pensadores
que aqui analisamos significa a destruição de toda ordenação que seja exterior
e anterior ao próprio ato livre.”
Os ensaios mostram que a revolução
teórica empreendida por Cusa e Lutero não é gratuita, nem produto de um simples
ato ideal, mas se enraíza no tecido histórico do movimento de decomposição
global da formação social pré-capitalista. Cusa e Lutero clamam por essa
destruição. Sem entrar nos detalhes das mutações vividas no século 16, com a
ruptura do equilíbrio cidade/campo, o surgimento das manufaturas e consolidação
do sistema de trabalho assalariado, vemos que a dimensão negativa da condição
humana na incipiente sociedade capitalista será percebida por Cusa e Lutero: a
autonomia do sujeito se dá como dor. Mas ambos consideram essa subjetividade
liberada pelo início da arrancada capitalista como desequilíbrio. Assim, tanto
Cusa quanto Lutero partem da negação dessa subjetividade alienada do nascente
capitalismo, considerando que deve ser superada para que o Espírito floresça.
Aí, então, teríamos o fim da inessencialidade do sujeito alienado e a inserção
deste na totalidade objetiva. Mas isso não pode acontecer sem a transformação
dessa realidade objetiva em realidade espiritual, que sustém o ser humano.
Dessa maneira, para os dois pensadores, o Espírito constrói num nível superior
o universo anteriormente negado.
O jovem Marx, seguindo os
passos de Hegel, partirá dessa discussão. Para ele, a religião é a realização
imaginária da essência do ser humano, já que essa essência do ser humano não
tem realidade alguma. Mas há um ponto de interligação nessa perspectiva, quando
vê, assim como Cusa e Lutero, a liberdade como abolição da legalidade, como
coincidência do momento subjetivo com o momento objetivo, e como
responsabilidade suprema do ser humano. Para entender esse ponto de partida de
Marx é bom ler seus manuscritos econômicos e filosóficos, mas também sua
Introdução à Crítica da Economia Política (Marx, São Paulo, Abril Cultural,
1982), texto que só foi descoberto em 1902 e publicado por Kautsky em 1903.
“O cristão é senhor de todas as coisas e não
está submetido a ninguém. O cristão é servo em tudo e está submetido a todo mundo”
(Lutero, Les grands écrits reformateurs, Paris, Aubier, 1955, p. 225). Livre e
não submisso, servo e escravo. Para Lutero, o ser humano existe como estrutura
ontológica dual. Sua conceituação traduz a ansiedade teórica do século XVI, mas
traduz-se em superação da subjetividade alienada. O cristão é senhor de todas
as coisas, não está submetido a ninguém e esse senhorio radical é produto da
graça. Sua liberdade é fruto da fé que transforma a subjetividade alienada em
realidade objetiva. Nesse sentido, o caráter espiritual da autonomia do cristão
se dá como processo. Morre o imediato, o alienado, e tem início a construção de
uma segunda natureza. A liberdade surge como deslocamento do ser humano
natural, como distanciamento crítico daquilo que foi naturalmente dado. O
primeiro momento da liberdade parte de uma concepção trágica, porque o senhorio
num primeiro momento implica em servidão, criando tensão e luta... “É
necessário desesperar-se por você mesmo, fazer com que você saia de dentro de
você e escape de sua prisão” (Lutero, Les grands écrits, p. 259). Mas, superada
a tensão, temos a liberdade enquanto espiritualidade, uma dimensão de combate.
O ser humano, que em Cristo vive essa metamorfose, tem a liberdade que vai
além, a liberdade no Espírito que é fonte de realidade e ação. Assim, o cristão
transforma-se em receptáculo da fé, em intencionalidade aberta ao Absoluto.
Bibliografia recomendada
Severino Croatto, As linguagens
da experiência religiosa. Uma introdução à fenomenologia da religião, São
Paulo. Paulinas. 2001.
Para
discussão em sala de aula. Veja “Seven, Os
sete pecados capitais”, de David Finche (1995), com
Brad Pitt e Morgan Freeman, leia o texto abaixo e
analise o filme a partir das leituras feitas.
Franz
Rosenzweig: lições de judaísmo
Por Jorge Pinheiro
São Paulo – Para um diálogo fraterno entre judeus e cristãos é necessário que
cada lado conheça não somente o pensamento, mas em especial a cultura e a
maneira de sentir do outro. É uma reflexão desse tipo que pretendo fazer aqui,
quem sabe em alguns artigos. E hoje vou começar a partir de um filósofo que
marcou época: Franz Rosenzweig (1886-1929).
Em primeiro lugar é importante olhar o judaísmo não como corpo doutrinário ou
estrutura de rituais, mas como experiência que parte do reconhecimento de uma
realidade que vai além da existência. Tal vivência para o judeu tem seu momento
maior na eleição de Israel, que é visto como pai da experiência com o
transcendente para povos e culturas. É claro que há momentos da história em que
essa percepção aparentemente se perde, obscurecida pela realidade das nações
onde o judeu vive. Mas, mesmo nessas situações, subsiste de forma misteriosa a
bênção da presença do povo judeu, que mais tarde brotará abençoando povos e
nações e assim cumprindo o mandato que Deus deu ao pai Abraão.
Disse que falaria sobre e a partir de Franz Rosenzweig porque, sem dúvida,
temos muito a aprender com ele em matéria de diálogo e fraternidade. Foi um
estudioso da teologia protestante liberal de Aldolf Harnack, mas permaneceu
judeu porque esta era a religião de seus pais e porque gostava de observar os
costumes judaicos e de refletir, à maneira judaica, sobre as histórias
bíblicas.
Seu primo, Hans Ehrenberg, se converteu ao cristianismo e foi batizado em 1911.
Diante disso, Rosenzweig refletiu sobre sua cultura alemã e escreveu a seus
pais dizendo: “Nós somos cristãos em
todas as coisas, nós vivemos em um estado cristão, freqüentamos as escolas
cristãs, lemos livros cristãos, nossa cultura inteira tem por base uma fundação
cristã”, mas isso não fez dele um cristão.
Mais tarde, em 1913, ao discutir a conversão de judeus com Eugen Rosenstock e
seus primos Hans e Rudolf Ehrenberg, Rosenzweig disse que até poderia vir a
batizar-se, mas colocou uma questão: gostaria de examinar o que significaria
aceitar o batismo, o que tal ato representaria diante de seu judaísmo, já que
não era um pagão, mas um judeu. Assim, pediu a seus parentes um tempo para
reflexão, para pensar e celebrar os dez dias santos que vão do Rosh ha Chanah ao Yom Kippur.
Esses dez dias foram fundamentais para Rosenzweig, pois se transformaram nos
dez dias de retorno as suas raízes judaicas. Mais tarde, ele escreveu a Rudolf
que a conversão ao cristianismo “parece
desnecessária e impossível agora. Eu sou um judeu”.
E fez uma leitura teológica judaica do evento Jesus. Concordou com a presença
de Cristo e de sua igreja no mundo, mas afirmou que ninguém vem do Pai, mas
através dele. (João 14.6). E que isso é assim em relação ao povo judeu, pois
como povo não precisa ir ao Pai, porque já está com ele. Essa é a realidade do
povo de Israel, do povo, e não do judeu individual. Assim, Rosenzweig fez uma
distinção entre o mundo gentio que precisa conhecer a Deus, e o povo judeu que,
em última instância, é a estrela da redenção. Ou como disse: “Diante de Deus, judeus e cristãos são, por
isso, trabalhadores de uma mesma obra. Não se pode prescindir de nenhum dos dois.
Entre os dois sempre existiu inimizade, mas ainda assim estão juntos na mais
estreita reciprocidade. Assim, a verdade, toda a verdade, pertence tão pouco a
eles quanto a nós”. (A Estrela da Redenção, p. 489).
Abrindo
parênteses. Estrela da redenção nos mostra que o símbolo é um código. E, por
isso, podemos dizer que as cenas de Seven combinam discursos e imagens,
levam à centralidade do número 7 e já no título remetem às escrituras
judaico-cristãs, à construção do mundo, e tudo acontece em uma semana. Mas não
há hermenêutica sem literatura, então os livros são fundamentais para
decodificar os outros livros que se lê, mas também o que acontece. A literatura
mostra-se como ferramenta para os dois lados. É usada pelos detetives, quase
teólogos, para descobrir os motivos de Doe, e é usada por este último para
interpretar a cultura norte-americana pós-moderna.
O caráter e a história da sinagoga, para Rosenzweig, são diferentes da igreja,
mas não excludentes. Às vezes se chocam, embora estejam juntas na oposição ao
paganismo que não tem a revelação por base. Para ele, a revelação é a garantia
da vocação permanente, do comissionamento que sustenta e dá sentido tanto à
igreja como à sinagoga. Assim, a revelação é a origem objetiva tanto da
sinagoga como da igreja, e dá as duas uma orientação firme que, ao mesmo tempo,
as diferencia, mas também as une.
Rosenzweig estudou medicina, história e filosofia. Partiu do idealismo alemão e
construiu seu próprio pensar teológico. Bebeu em Goethe e Kant, mas seguiu seu
próprio caminho. Professor, considerou que só no período do idealismo alemão o
professor da filosofia e o filósofo eram um e o mesmo. E de certa forma
procurou seguir esta tradição: procurou encontrar sua própria resposta
filosófica para as questões da vida e da espiritualidade, sem abandonar suas
funções de professor.
Estudou judaísmo com Hermann Cohen (1842-1918), que dava um curso de Filosofia
da Religião Judaica na Universidade de Marburg. A partir de Cohen, Rosenzweig
passou a utilizar o método da correlação, que mais tarde seria utilizado também
por Paul Tillich. Para Rosenzweig a filosofia pecara por ser monista, já que a
palavra “e” tinha sido descartada. Assim, a partir da correlação passou a fazer
uma nova teologia: Deus e humanidade, humanidade e Deus, Deus e natureza,
natureza e Deus.
Repensou seu judaísmo. Reconsiderou as relações em que as coisas se encontram,
ampliou seu universo teológico, que antes estava imerso em idéias que se
bastavam, presas aos conceitos e às essências. Lançou, assim, bases filosóficas
para se olhar o outro como igual, pensamento que mais tarde norteou a ética de
Emmanuel Lévinas.
28/3/2009
Fonte: ViaPolítica/O autor