dimanche 14 septembre 2014

Talmud -- história, ética e teologia

 O TALMUD
História, Ética e Teologia

JORGE PINHEIRO, PhD

Entre os anos que vão da destruição do beit sheni (segundo templo) até a derrota da revolta de bar Cochba (70 a 135), Israel vive um momento muito especial em sua história, que recebe o nome de “período de Yavne”. Esse período caracterizou-se por novas tentativas de reconquistar a independência por meios militares e pela formação de um novo sistema de governo, que permitiu aos judeus sobreviverem sem um Estado.

Um homem, o rabino Yochanan ben Zakai, inicia a reconstrução da vida judaica, não mais em Jerusalém, mas em Yavne. Restabelece as funções do sanhedrin (sinédrio), fixa os meses e os anos bissextos, possibilitando a manutenção das festas judaicas mesmo sem templo. Yavne transforma-se assim num centro da cultura nacional judaica e de sua espiritualidade.

Anos mais tarde, o rabino Gamaliel, filho de um dos líderes da revolta contra Roma, é reconhecido como líder da nação e substitui ben Zakai, tornando-se chefe do sinédrio de Yavne. Tem início uma política de unificação das diferentes seitas judaicas: sacerdotes saem de Yavne em direção aos pontos mais distantes do galut (diáspora), com a finalidade uniformizar doutrinariamente o povo judeu. O contato com os cristãos é proibido e tem início de ambas as partes uma separação histórica entre cristianismo e judaísmo.

Na Academia de Yavne são estabelecidas as características das festas judaicas, agora sem sacrifícios e peregrinações anuais. É realizada uma nova tradução do Tanach para o grego, já que a Septuaginta, muito usada pelos cristãos, não incorporava a visão dos rabinos de Yavne.

Outro nome que se destacará em Yavne é do rabino Akiva ben Yossef. Viaja por quase toda a diáspora,  da Gália, no Ocidente, à Babilônia, no Oriente. Prega a Tanach e transforma-se em um de seus mais importantes intérpretes. Após o fracasso da revolta de bar Cochba, é preso e condenado à morte.

Vencida a última resistência judaica, o imperador romano Adriano toma uma série de medidas que lembram em muito as leis de Antíoco IV Epifanes: proíbe o estudo do Tanach, a prática da circuncisão e a ordenação de novos rabinos. Derrotados e perseguidos, a grande maioria dos judeus deixa a Judéia e refugia-se no Galil (Galiléia), primeiro em Usha e posteriormente nas cidades de Tzipori e Tveria. No Galil será estabelecido o centro da cultura judaica nos séculos II, III e IV.

Nessa época, duas instituições, que já existiam, passam a definir a vida política e religiosa judaica, a nessiut e o sanhedrin. A nessiut era a presidência, e seu ocupante recebia o título de nassi, o patriarca e era o líder máximo do povo judeu. Com pequenas exceções, o cargo de nassi foi ocupado pelos descendentes do rabino Hilel, o sábio, que descendiam, segundo a tradição, da linhagem do rei Davi. O nassi era eleito pelo sanhedrin e o cargo era vitalício. Ao nassi cabia nomear os dirigentes das comunidades do galut e recolher contribuições para a manutenção do governo judaico. Como desde o século I, a lei escolar de Shimon ben Shetach definia a gratuidade e obrigatoriedade da instrução primária para todos os meninos judeus, o nassi era responsável por garantir que em cada cidade houvesse ao menos uma escola. O patriarca também representava o povo junto ao império romano. O cargo de nassi só vai ser extinto em 427.

Enquanto o nassi fazia as vezes de rei, o sanhedrin fazia as vezes de parlamento, combinando os poderes legislativo e judiciário. Nos dois séculos posteriores à derrota de bar Cochba, o sanhedrin reunia os rabinos e principais eruditos da época. Os saduceus, que representavam a aristocracia e a classe alta, já haviam desaparecido da vida judaica. A orientação rabínica tinha o peso hegemônico dos fariseus. Assim, a atividade principal do sanhedrin consistia em discutir as leis da Torah e intepretá-las e adaptá-las à nova realidade. Nesse sentido, o sanhedrin passou a ser um beit midrash, uma casa de estudo. Os rabinos realizavam discussões e debates e seus discípulos acompanhavam com interesse a seqüência das argumentações. Mas nada era anotado. Tudo era guardado de memória. Os rabinos mantinham, também, cursos sobre assuntos de interesse cotidiano, de forma que as salas do sanhedrim estavam sempre cheias de estudantes, futuros rabinos do povo judeu.

Além de funcionar como beit midrash, o sanhedrin era também beit din elion, o supremo tribunal.

E assim, no correr desses anos, vai-se formando um novo corpo de leis, derivadas da Torah, que não se encontram nela, mas que tinham como finalidade dar respostas à nova realidade que surge com o fim na nação judaica geograficamente estabelecida. Como a Torah é sagrada, nada é agregado a ela para evitar que pudesse de alguma forma lhe fazer sombra. Por isso, a nova legislação não é escrita em lugar nenhum.

Com o passar dos anos, esse corpo de leis torna-se tão vasto e as condições da diáspora culturalmente tão complexas, que se tornou necessário escrever o material acumulado até aquele momento. O primeiro texto foi preparado ainda no período de Yavne. Os rabinos Akiva e Meir também redigiram várias leis orais. Temos assim, a mishná (repetição) do rabi Akiva e de outros.
Mas será no final do século II, sob a presidência do nassi rabi Yehudá, da linhagem de Hilel, que foi editada de forma ordenada a primeira Mishná, com a aceitação plena do sanhedrin. Ela incorporou trechos das mishnaiot anteriores.

A Ética dos Pais

A Mishná contém seis partes chamadas shishá sedarim. Cada seder inclui diversas massechtot (tratados) e cada tratado se divide em prakim (capítulos) e perek (parágrafos). Foi redigida em hebraico e contém, ao todo, 63 tratados e 528 capítulos. Os seis livros que formam a Mishná são: Zeraim (sementes), que trata da agricultura e das orações; Moed (festividades), sobre as leis do shabat e dos chaguim; Nashim (mulheres), contém as leis referentes ao casamento, ao divórcio, ao adultério, etc.; Nezikin (prejuízos), sobre a lei civil, criminal, contratos, fraudes, castigos, etc; Kodashim (coisas sagradas), trata da ordem no culto do beit hamikdash e da kasrhrut; Toharot (purificação) sobre o cerimonial da purificação, banho ritual (mikvá), etc.

No tratado Pirkei Avot - Ética dos Pais, por exemplo, temos ensinamentos morais que tratam de boa conduta, estudo, justiça e retidão, sintetizando séculos de cultura judaica:

“Qual o justo caminho que um homem deve escolher para si? Aquele que é uma honra para ele que o pratica e uma honra para ele de parte dos homens. Se tão cuidadoso de um preceito leve quanto de um grave, pois não sabes qual a recompensa dada aos preceitos. Considera a perda de um preceito segundo a sua recompensa e o ganho de uma transgressão de acordo com sua perda. Observa três coisas e não cairás em poder do pecado: sabe que está acima de ti um olho que vê, um ouvido que ouve e que todos os teus feitos estão escritos num livro.” (Rabi Yehudá ha Nassi).

“Bom é o estudo da Torah junto com a ocupação no mundo, pois o labor em ambos faz esquecer o pecado e todo estudo da Torah desacompanhado do trabalho resulta em nada e acarreta o pecado. E todos os que se ocupam do trabalho comunitário se ocupem dele por amor do Nome dos céus, pois o mérito dos seus pais os sustenta e sua justiça permanece para sempre. ‘E quanto a vós, disse Deus, vos darei grande recompensa, como se vós mesmos os tivésseis realizado’.” (Rabi Gamaliel, filho de Yehudá ha Nassi).[1]

Após terminarem seus estudos primários, os meninos que desejavam prosseguir seus estudos eram encaminhados para o Sanhedrin. Lá estudavam a Mishná do rabi Yehudá e as compilações de histórias e tradições que formaram o Midrash, a Tossefta e a Baraíta. Os professores, conhecidos como amoraítas, expositores, conforme ensinavam acrescentavam novas interpretações aos textos dos tanaítas, rabinos cujas discussões estão registradas na Mishná. As conclusões dos amoraítas foram consideradas um complemento, Guemará, da Mishná do rabino Yehuda. Temos, então, a partir da união desses tratados, o Talmud da Palestina ou Talmud Yerushalmi.

Derivado de dml (ser instruído), Talmud traduz a idéia de aprendizado ou ensino. Seu ponto de partida, como vimos é a lei oral, que segundo a própria tradição rabínica repousa em Moisés, que teria recebido de Deus duas leis, a escrita e a oral[2]. Ambas se complementam, mas apenas os judeus têm a segunda[3].

No século IV, novos conflitos entre judeus e romanos levam a destruição das cidades de Tzipori, Lud e Tveria. Milhares de judeus são mortos ou vendidos como escravos. Choques políticos e administrativos entre o Sanhedrin e o patriarca e as difíceis condições econômicas levam o centro de Eretz Israel a sucumbir definitvamente. Há uma maciça emigração de religiosos e amoraítas para a Babilônia.

O último patriarca importante será Hilel II, que é também conhecido por ter realizado os cálculos do calendário judaico, utilizado até os dias de hoje.

Na Babilônia, os emigrantes palestinos juntaram-se à comunidade judaica, que desde os tempos das deportações realizadas por assírios e babilônicos, manteve-se nas cidades de Nehardea, Mahoza, Pumbedita e Sura. É interessante notar, que nessas cidades havia uma rede de ensino primário judaico de alto nível, que o melhor do pensamento palestino tinha migrado para elas e que os reis sassânidas, então no auge de seu poder, aceitavam muito bem a presença judaica na Babilônia.

Rav Ashi, líder da academia de Sura, inicia a compilação do material religioso existente, organiza sua exposição e distribui o material conforme os critérios definidos. Anos mais tarde, quando os sacerdotes zoroastristas iniciam uma dura perseguição religiosa aos judeus, Ravina, o último dos amoraítas babilônicos e chefe da academia de Sura, dá seqüência ao trabalho de Rav Ashi. Surge, então, uma obra monumental, o Talmud babilônico.

Temos então dois talmudim, o Talmud Yerushalmi e o Talmud Bavli.

Assim, os sábios cujas discussões estão registradas na Mishná viveram em Eretz Israel na época dos fariseus, entre os anos 100 a.C. e 200 d.C. Após a finalização da Mishná, outros mestres realizaram novos comentários e readaptações da Mishná, dando origem a um complemento, a Guemará. Este segundo trabalho foi realizado simultaneamente em Israel (entre os anos 200 d.C. e 350 d.C.) e na Babilônia (entre os anos 200 d.C. e 500 d.C.). No entanto, a Guemará babilônica é considerada mais importante.

A Teologia do Talmud

Essa obra traduz setecentos anos de trabalho, cita estudos e conclusões de mais de mil rabinos, mas tem por base apenas três fundamentos:

1. Existe apenas um Deus verdadeiro, justo e bom.
2. A Torah, dada por Ele, contém toda a verdade e a justiça.
3. O homem deve fazer o possível para ser verdadeiro, justo e bom. E a melhor maneira de chegar a essas metas é investigar e cumprir a Torah.

Dessa maneira, o Talmud foi um guia para o povo judeu nos terríveis anos do galut e nas perseguições da Idade Média. A lei em seu sentido estrito, mais conhecida como halachá, manteve a coesão do povo. E tudo aquilo que não é lei, ou seja, as histórias, lendas, fábulas, contos, biografias, provérbios, receitas, matemática, astronomia e medicina, a agadá, serviu como fonte inesgotável de inspiração para a cultura e folclore judaicos. Em parte essa tradição de estudo deu ao povo judeu um alto nível cultural, que manteve mesmo nos momentos mais sombrios da história humana.

Os rabinos costumam dizer que para se nadar no mar do Talmud e não se afogar, é necessário saber nadar muito bem, ou seja, conhecer profundamente a Torah. O Talmud é uma imensa enciclopédia onde todos os assuntos se encontram misturados.

O pensamento judaico é oriental, totalmente diferente do pensamento grego. O judeu começa a falar de um assunto, discorre sobre diversos outros, responde a perguntas que não têm nada a ver com o tema central, e no final da conversa volta ao assunto inicial. Isso leva a teologia ocidental, acostumada à lógica aristotélica, a evitar navegar mais profundamente nas águas do Talmud. Além disso, para o leitor comum, o Talmud apresenta outra dificuldade, está escrito em três idiomas: hebraico bíblico nas citações do Tanach, hebraico da Mishná na Mishná e aramaico na Guemará. Para levar o judeu da alta Idade Média a mergulhar com mais confiança no Talmud, o exegeta Rashi (rabino Shlomo Itzhaki), ao redor do ano 1.100, na França, elaborou uma série de comentários que ainda hoje são de grande ajuda para os estudiosos modernos.

Assim, podemos definir a teologia do Talmud através do seguinte conceito: o conhecimento da idéia de Deus entre os judeus viveu uma revelação crescente. Mas na época do beit sheni o conceito de Deus era bem semelhante ao de hoje: um ser infinitamente poderoso, bom, criador dos céus e da terra, e juiz supremo dos homens. No entanto, nenhum homem pode ser julgado pelas suas ações, se dois fatores não foram levados em conta: a liberdade de escolha e a existência de uma lei que diga o que é certo e o que é errado. Para os rabinos do Talmud não adianta a pura vontade de escolher o bem. Por isso, a Torah é um presente de Deus, permitindo ao homem transformar sua boa vontade em práxis.

Acontece que a Torah, afirmam os talmudistas, apesar de sua transcendência e revelação, está histórica e culturalmente situada no momento em que foi escrita. É preciso um midrash (hermenêutica) para que seus ensinamentos e sua ética possam ser compreendidas e utilizadas pelo judeu de outras atualidades. Vejamos, agora, um exemplo da teologia do Talmud, em dois trechos de um midrash do texto de Ex 20:2.

Eu sou o Senhor teu Deus. Por que os Dez Mandamentos não foram ditos no começo da Torah? Eles fornecem uma parábola. A que isso pode ser comparado? Ao seguinte: Um rei que entrou em uma província disse ao povo: Posso ser vosso rei? Mas o povo lhe disse: Fizeste algo bom para nós para que nos governeis? Que ele fez então? Construiu-lhes a muralha da cidade, introduziu o abastecimento de água para eles, e lutou suas batalhas. Então quando ele lhes disse: Posso ser vosso rei? Eles lhe disseram: Sim, sim. Da mesma maneira, Deus. Ele trouxe os israelitas para fora do Egito, dividiu o mar para eles, fez descer o maná para eles, fez subir um poço para eles, trouxe codornas para eles. Lutou por eles a batalha com Amaleque. Então Ele lhes disse: Eu serei vosso rei. E eles Lhe disseram: Sim, sim. Rabi disse: Isto proclama a excelência de Israel. Pois, quando todos eles estavam diante do Monte Sinai para receber a Torah, todos se decidiram igualmente a aceitar o reinado de Deus alegremente. Além disso, foram garantia um para o outro. E não foi somente no que diz respeito a atos públicos de Deus, revelando-Se-lhes, desejou fazer Seu pacto com eles, mas também no que diz respeito a atos secretos, como está dito: As coisas encobertas são para o Senhor nosso Deus e as reveladas...” (Dt 29:28). Mas eles Lhe disseram: No que se refere a atos públicos, estamos prontos a fazer um pacto contigo, mas não faremos um pacto contigo com referência atos secretos, para que nenhum de nós cometa um pecado secretamente e a comunidade inteira seja considerada responsável por ele”.
(...)
“Outra interpretação: Eu sou o Senhor teu Deus. Quando o Santíssimo, louvado seja, levantou-se e disse: Eu sou o Senhor teu Deus, a terra tremeu, como está dito: “Ó Senhor, saindo Tu de Seir, caminhando Tu desde o campo de Edom, a terra estremeceu” (Jz 5:4). E continuou a dizer: “Os montes vacilaram diante do Senhor” (v.5). E também diz: “A voz do Senhor é poderosa. A voz do Senhor é cheia de majestade” (Sl 29:4) até “E no seu Templo cada um diz: Glória!” (v. 9). E até suas casas estavam plenas do esplendor da Shekiná. Naquele tempo todos os reis das nações do mundo se reuniram e vieram a Balaam, filho de Beor. Eles lhe disseram: talvez Deus esteja para destruir Seu mundo com um dilúvio. Ele lhes disse: Sois uns tolos! Há muito tempo Deus jurou a Noé que não mais traria um dilúvio sobre o mundo, como está dito: Porque isto será para mim como as águas de Noé, pois jurei que as águas de Noé não inundariam mais a terra”(Is 54:9). Então eles lhe disseram: Talvez Ele não traga um dilúvio de água, mas Ele pode trazer um dilúvio de fogo. Porém ele lhes: Ele não vem trazer um dilúvio de água nem um dilúvio de fogo. Simplesmente o Santíssimo, louvado seja, vem dar a Torá ao Seu povo. Pois está dito: “O Senhor dará força ao Seu povo...” (Sl 29:11). Logo que ouviram isto dele, todos voltaram as costas e cada um foi para o seu lugar. E assim todas as nações do mundo foram convidadas a aceitar a Torah, a fim de que não tivessem escusa para dizer: Se nos houvessem convidado, teríamos aceitado. Pois, veja, elas foram convidadas e se recusaram a aceitar a Torah. (...)”.[4]

Bibliografia Mínima Recomendada

Guinsburg, J., Do Estudo e da Oração, São Paulo, Editora Perspectiva, 1968.
Gundry, Robert H., Panorama do Novo Testamento, São Paulo, Edições Vida Nova, 1991.
Berezin, Rifka, Caminhos do Povo Judeu, vol II, São Paulo, Fed. Israelita do Est. de SP, 1988.
Scholem, Gershom, A Mística Judaica, São Paulo, Editora Perspectiva, 1972.





[1] Pirkei Avot (A Ética dos Pais), Capítulo II in J. Guinsburg, Do Estudo e da Oração, São Paulo, Editora Perspectiva, pp. 170.
[2] “Moisés recebeu a Torah do Sinai e transmitiu-a a Josué e Josué aos anciãos e os anciãos aos profetas e os profetas transmitiram-na aos homens da Grande Sinagoga. Esses disseram três coisas: ‘Sede ponderados nos vossos julgamentos, formai muitos discípulos e levantai uma cerca em volta da Torah”. Pirkei Avot (A Ética dos Pais), Capítulo Primeiro in J. Guinsburg, Do Estudo e da Oração, São Paulo, Editora Perspectiva, p. 168.
[3] “Asseverando que as leis orais remontavam ao tempo de Moisés, no Monte Sinai, os rabinos elevaram suas contraditórias interpretações do Antigo Testamento a uma posição de maior importância que o próprio Antigo Testamento”. Robert H. Gundry, Panorama do Novo Testamento, São Paulo, Edições Vida Nova, 1991, pp. 52.
[4] Mekhilta, cap. 5, “O Senhor Teu Deus, in J. Guinsburg, Do Estudo e da Oração, São Paulo, Editora Perspectiva, pp. 194-196.

vendredi 12 septembre 2014

Memórias de Santiago

Jorge Pinheiro


O centro de Santiago se transformou num parlamento. Não podíamos ouvir claramente as vozes porque estavam amordaçadas, podíamos ouvir os pensamentos que se debatiam  em meio aos clamores de justiça e liberdade.

 

Cada homem e mulher da Unidade Popular, não importava o matiz político, tinha o coração partido e sentia-se abandonado pelo destino. Ninguém falava, cada um olhava para o outro como se vivesse o momento maior da traição. O terror foi tomando conta dos corpos e mentes.

 

Ali, no minicentro formado por Ahumada com Huérfanos, convertido nos últimos dias na tribuna pública do medo e do silêncio, podíamos ouvir os pensamentos da gente que lutara e morrera na tragédia dos últimos dias.


O cenário de todos esses dias era parecido. Jovens, homens adultos, velhos, desgrenhados, ensangüentados, rasgados, mutilados vagueavam como cadáveres, procurando não chamar a atenção. Ninguém falava alto, ninguém repartia panfletos ou jornais. Não se viam grupos ou círculos. Ninguém escutava argumentos, ninguém polemizava.

Ninguém era partidário. Éramos todos apolíticos, sombras que vagueavam pelo centro.

·               A poucos metros de cada um de nós, sempre em grupos, piquetes de Carabineiros sob comando de oficiais observavam se alguém traspassava a fronteira do bom senso e abria a boca.

Pensamos. Olhamos o companheiro que passava e pensamos. Ele entendia e nos respondia. Todos falávamos, a comunicação era plena e solidária, apesar do medo. Sem som, sem voz, nos comunicávamos.

Eis o espelho do Chile, medo e esperança, dialogavam sem pedir permissão a ninguém, e nós nos aproximamos de um desses grupos e escutamos com atenção.

Preste você também a máxima atenção a esses corações e ouvirá o clamor que não é audível para os assassinos da liberdade. Simplesmente preste atenção.

Ligue seu gravador, de forma dissimulada, para evitar inibições. Venha para esse parlamento de rua, o lugar natural da democracia.

Não se preocupe com os nomes. Aqui ninguém tem títulos, somos todos passantes.



Cena Um
Diálogo Um


Jovem triste, sujo de sangue, tem as mãos quebradas. Fala pausado como se estivesse no meio de um sonho.

- No dia 11 de setembro eu cumpria minhas funções como membro do dispositivo da segurança do presidente Salvador Allende. Esse dia era muito importante para mim, porque era o dia do meu casamento.

Homem baleado no peito à queima roupa. Tem a camisa e a parca verde oliva queimadas.

- Nossos planos em caso de golpe sempre levaram em conta duas variáveis: uma ruim e outra péssima. A péssima era de que o grosso das forças armadas apoiasse o golpe. A ruim era de que o povo tivesse armas e alguns regimentos permanecessem leais ao governo.

Senhora de 55 anos chora o filho desaparecido.

-Digam aos militares que o povo não vive só de pão, queremos nossos filhos...

Moça desgrenhada, enlameada, vestida de noiva, com um buquê na mão...

- Pão nós temos... Eles não vieram para nos dar, mas para tirar o que temos...



Cena Um
Diálogo Dois


Jovem triste...

- Estive de guarda do lado de fora do quarto do Dr. Allende até as duas da manhã. Depois chegou alguém para me render. Lembro-me, ao me deitar, que vi garrafas de Coca-Cola e sanduíches guardados por meus companheiros para a minha despedida de solteiro.

Operário, veste um macacão manchado de graxa e arrasta com dificuldade uma das pernas.

- Eles estão falando em mudanças. Que tipo de mudanças? As poblaciones foram invadidas, estão entrando em tudo que é casa. Prendendo pessoas, desaparecendo com elas. Essa mudança nós não queremos.

Velho, de óculos, é o único que esboça algo parecido com um sorriso.

- Não percam a esperança, a coisa está começando. Muita água ainda vai rolar.

Partidários da Unidade Popular em coro.

- É isso mesmo. Está havendo resistência em tudo que é lado, principalmente nas poblaciones... O que eles dizem não interessa, não podemos fazer o jogo deles.

Homem baleado no peito...

- Faço parte da direção do Grupo de Amigos do Presidente - GAP e sempre defendi a idéia de que em caso de golpe, o presidente deveria criar uma zona liberada, num dos subúrbios operários da cidade. A partir daí, com uma equipe de rádio portátil, organizar a resistência...



Cena Um
Diálogo Três


Um homem destoa do ambiente, está bem vestido e porta com elegância uma bengala trabalhada.

- E se as mudanças forem boas? E se houver mais empregos?

Velho, de óculos...

- Os milicos darem trabalho? Você está louco. Eles vão dar chumbo...

Jovem triste...

- A situação política e militar estava se complicando e eu sabia que meu casamento tinha que acontecer rápido, no máximo em meia hora...

Um homem destoa do ambiente...

- Mas porque o desemprego estava aumentando? Porque ninguém queria investir aqui? Porque não tinha estabilidade. Quem sabe agora, pode haver alguma mudança e o dinheiro de fora começa a entrar?

Velho, de óculos...

- Diga-me senhor, com toda a sinceridade. Quem produz o desemprego nesse país? É o governo ou los momios, que fecharam fábricas, mandaram suas fortunas para a Suíça e para Miami? A estabilidade que eles querem vai ser construída em cima do seu cadáver.

Velho, de óculos...

- O setor privado chileno está de braço dado com os militares.

Homem baleado no peito...

- Allende preferiu ir para o palácio La Moneda. Isso condicionou nossos planos.

Velho, de óculos...

- E há mais um detalhe. O investimento estrangeiro procura é mão de obra barata, não quer fazer a felicidade de ninguém.



Cena Dois
Diálogo Um


Jovem triste...

- Fui despertado às cinco e meia da manhã. Falam que a Marinha, em Valparaíso, estava rebelada. Preparei-me para o combate e fomos para o Palácio La Moneda. A comitiva especial do GAP, que normalmente era composta por quatro carros foi reforçada, com mais duas camionetas de cabine dupla. Não havia nenhum movimento no centro da cidade. Eram sete da manhã.

Velho, de óculos...

- Minha pergunta é, você é ou não é de esquerda?...

Um homem destoa do ambiente...

- Vou responder com toda a honestidade: não posso dizer que sou dessa esquerda que está aí. Sempre votei nulo.

Velho, de óculos...

- Então, colega, chegou a hora de fazer alguma coisa...

Moça desgrenhada

- As armas falam mais alto que as urnas...

Homem baleado no peito...

- Temos 140 fuzis, com 120 tiros por fuzil. E algumas bazucas, com seis projéteis por bazuca. Não dá para mais de um combate.



Cena Dois
Diálogo Dois


Índio mapuche, forte, troncudo.

- Os militares vão repetir a truculência de Custer e sua tropa. Vão exterminar os mapuches. Para nós não há alternativa. É lutar ou ser escravizado.

Operário, veste um macacão manchado de graxa...

- É, os mapuches não têm opção.

Senhora de 55 anos...

- Temos que pensar em função de nossas crianças. O que elas vão herdar.

Jovem triste...

- Eu e Isabel íamos nos encontrar no cartório às nove e trinta.

Moça desgrenhada...

- Mas o que podemos herdar se anos de democracia, uma tradição chilena, foram queimados com o La Moneda?

Um homem destoa do ambiente...

- E de que valeu votar na Unidade Popular?

Velho, de óculos...

- Valeu votar e eleger Allende. Era a exigência do momento. Não foi errado. Agora, é o momento de usarmos outras armas...

Homem baleado no peito...

- Os trabalhadores estão na periferia da cidade, nos cordões industriais e nas poblaciones. Temos que cobrir Vicuña Mackenna, San Joaquín, Cerrillos, Pan-americana Norte... Conseguir mais munição e avançar sobre o La Moneda.

Operário, veste um macacão manchado de graxa...

- Concordo, só não sei como... Está todo mundo preso. Quem vai liderar a oposição?

Um homem destoa do ambiente...

- Pior ainda, tem gente fugindo como rato. As embaixadas estão cheias. Todos os estrangeiros que estavam aqui para nos ajudar estão fugindo. Inclusive, muita gente da UP...

Operário, veste um macacão manchado de graxa...

- Se ficarmos parados vai ser pior ainda. Eles vão atacar os mapuches, proibir os partidos, fechar os sindicatos, os jornais. Só vai ficar quem disser sim.


 

Cena Dois

Diálogo Três
·                

Homem baleado no peito...

 

- São seis e meia. Nossa central de rádio informa que está havendo um levante militar.


Um homem destoa do ambiente...

- Tudo começou no governo de Frei. A democracia cristã fez o papel de Pilatos, lavou as mãos e entregou a Unidade Popular aos seus algozes.

Índio mapuche, forte, troncudo.

- Companheiro, a luta de classes não começou com Frei. Allende fez o que pode.

Moça desgrenhada...

- Os governos democráticos sempre reprimiram os trabalhadores, mas esses militares nem democráticos são...

Um homem destoa do ambiente...

- É, mas, em agosto a própria Câmara dos Deputados começou a sinalizar a favor de um golpe de estado.

Índio mapuche, forte, troncudo.

- Concordo em parte. Não que a Câmara fosse confiável, mas o que ela estava dizendo é que Allende estava implodindo o estado de direito...

Um homem destoa do ambiente...

- É, a Câmara dizia que Allende violou a garantia constitucional do direito de propriedade, amparou invasões de fazendas, de indústrias, de comércios, e que por essa via pretendia construir a nova área estatal da economia.

Operário, veste um macacão manchado de graxa...

- Que isso aconteceu é verdade, agora se foi da vontade de Allende eu não sei.

Senhora de 55 anos...

- Estou de acordo. A esquerda tentou construir um Chile socialista. Ao menos tentou. Mas e a direita, o que fez em toda a história da República?

Moça desgrenhada...

- Não me interessa o que fez a direita. Ela tem sido minha inimiga. A Unidade Popular pode ser uma mierda, mas é o meu governo.

Homem baleado no peito...

 

- Eu estava em casa dormindo. Dei um longo abraço em minha mulher. Ela foi para seu posto de combate, na central de comunicações do partido socialista e eu para o meu.


Jovem triste...

- Tenho 23 anos e hoje é o dia do meu casamento. Deveria ser o dia mais feliz e importante de minha vida. Estou todo molhado, tive que ajudar a apagar o incêndio do palácio, depois do bombardeio.



Cena Três
Diálogo Um


Jovem triste...

 

- O primeiro som de combate foi impressionante. O martelar de uma metralhadora pesada. Eu estava na rua Morandé, 80. Minha missão era cuidar da porta. Quebramos os vidros e respondemos ao fogo. Vimos um tanque e a tropa atrás. Os soldados não queriam avançar, mas os oficiais os obrigavam, sob a ameaça das armas.


Moça desgrenhada...

- Estão falando em milhares de mortos. Em gente boiando no Mapocho?

Senhora de 55 anos...

- Será que pode haver gente tão desalmada assim, a ponto de matar trabalhadores indefesos?

Moça desgrenhada...

- Matam sim e com apoio de gente de fora, com a participação descarada dos Estados Unidos, do financiamento que deram aos camioneiros, aos comerciantes e agora aos militares...

Homem baleado no peito...

 

- Recebi ordens de acompanhar o responsável pelo armamento, para tirar e distribuir as armas que estavam num depósito perto do parque Cormo.


Moça desgrenhada...

- A senhora tem alguma esperança em Pinochet?

Senhora de 55 anos...

- Não falei de Pinochet, falei de gente desalmada...

Moça desgrenhada...

- Mas e Pinochet? Gosta ou não gosta?

Senhora de 55 anos...

- Você está me provocando... Claro que não gosto.

Moça desgrenhada...

- Senhora, não estou lhe acusando. Mas ele assassinou meus sonhos...

Senhora de 55 anos...

- E os meus também...

Jovem triste...

- Só às duas e meia da tarde tomei consciência de que estava vivendo um absurdo. Estava no meio de um combate aberto com os militares, era bala para tudo quanto é lado, e foi aí que resolvi telefonar para Isabel e dizer que nosso casamento deveria ser adiado. Mas que nos veríamos à noite. Eu estava embaixo de uma escrivaninha, com um telefone de um lado e o fuzil de outro.

Operário, veste um macacão manchado de graxa...

- O que você acha de Allende?

Um homem destoa do ambiente...

- Eu que pergunto: em que deu seu governo?

Operário, veste um macacão manchado de graxa...

- Mas por que vocês se juntaram à oposição e à direita?

Um homem destoa do ambiente...

- Eu não me juntei à direita, por isso tenho direito de perguntar: quem derrubou a Unidade Popular? A intolerância dos militares ou Allende e a fome?

Operário, veste um macacão manchado de graxa...

- Allende ia colocar seu cargo a disposição do povo, ia chamar a um plebiscito e por isso as forças armadas deram o golpe de Estado. Essa é a verdade.

Um homem destoa do ambiente...

- Então foram os militares, e eu não tenho nada com isso...

Operário, veste um macacão manchado de graxa...

- Vocês se aliaram à direita civil...

Um homem destoa do ambiente...

- De acordo com sua lógica quem não apóia a UP é de direita. Eu não apoiei a UP e não sou de direita.

Operário, veste um macacão manchado de graxa...

- O único que a democracia cristã fez foi confundir as pessoas. E agora, com quem a democracia cristã pretende governar? Ou vocês ficam com a democracia ou ficam com a ditadura. Não dá para ser Pilatos a vida inteira.

Um homem destoa do ambiente...

- Sabe de uma coisa, o que passou, passou. Temos que construir um novo Chile.

Partidários da Unidade Popular em coro.

-¡Se siente, se siente, Allende está presente!

Jovem triste...

- Isabel mora perto dos Correios, em Puente, e escutou as rajadas de metralhadoras. Sua primeira reação foi dizer que eu ia morrer. Pedi então para falar com seu irmão, um companheiro, um amigo extraordinário.

“Olha, estamos no meio do golpe”.

“Então estamos indo para o La Moneda, com reforços”.

“Não sejam loucos. É impossível, estamos isolados”.

 

Homem baleado no peito...

 

- Além das armas do parque Cormo, temos outros depósitos, o mais importante deles está na rua Chile-Espanha, perto de Irarrázaval.



Cena Três
Diálogo Dois


O jovem triste e o homem baleado contam suas histórias. Todos ouvem em silêncio.

- Ele entendeu. Era uma despedida. Senti novamente o sentido de missão que me levara ao GAP. O combate é uma situação de violência física extrema, todos os sentidos estão dirigidos à luta, você pode morrer a qualquer momento. Não há tempo para pensar no que foi sua vida. Não há tempo.

- Estou no depósito da rua Chile-Espanha faz meia hora. Algo está errado, ainda não chegou a unidade que deveria pegar as armas.

- Às quatro da tarde, subimos para o segundo andar do palácio, porque o primeiro estava em chamas. Aí caímos todos. Quando eu ia ser morto, um sargento disse que ia usar-me como escudo, porque dos prédios muitos companheiros estavam resistindo.

 

- Resolvo eu mesmo carregar uma camioneta. Deixo a casa e vou para Irarrázaval com o responsável pelo depósito. O trânsito está pesado, todo mundo parece querer chegar em casa o mais rápido possível. Vejo uma camioneta parada. Jogo o carro em cima dela, desço, ponho a mauser na cabeça do condutor e dou ordem para que saia da camioneta.

 

- Eu e os companheiros, usados como escudos, fomos obrigados a deitar na Morandé. Pensei que fossem nos esmagar com o tanque. Mas, de repente, aparece um jovem oficial, de porte senhoril, de luvas de couro e nos diz: “Senhores, vocês têm feridos? Mandei buscar uma ambulância para retirar seus feridos”.

 

- Meu colega pegou a camioneta e saiu cantando pneus.

- Logo chegou a ambulância. E também um ônibus da Marinha, que nos levou ao regimento Tacna.

 

- Eu fiquei, no meio daquele trânsito congestionado. Enfiei a mão no carro, peguei uma metralhadora AKA e gritei: “Todo mundo no chão”. As pessoas obedeceram. Lançaram-se de cara no chão. Eu estava louco. Usava uma parca verde oliva e estava completamente despenteado.

- Quando desci do ônibus, um oficial me apoiou, segurando meu braço. Depois pegou uma bandagem e vedou o sangramento à bala no braço de um companheiro. Foi o único oficial que nos permitiu ir ao banheiro à noite. Todos os outros nos torturaram.

 

- Depois de carregar a camioneta, fomos para o segundo depósito, na avenida La Feria, perto de San Miguel. Eu de carro, fazendo a escolta da camioneta.

- Fomos colocados em galpões e cavalariças, junto com os membros da presidência da República. Nos deixaram de pernas abertas, mãos na nuca e nos disseram que íamos ser fuzilados à meia-noite. Depois às cinco da manhã.

 

- Às dez e meia, voltei para nosso QG, com todas as armas de quatro depósitos.

- Havia mudança de guarda a cada duas horas. E a cada duas horas éramos surrados.

 

- A comissão política ordenou que déssemos início aos combates. São onze horas e somos 130 pessoas. Estamos diante da alternativa péssima: todas as forças armadas apoiaram o golpe.

Um homem de quarenta anos entra na conversa. Tem as mãos sujas de pólvora. Seu olhar está fixo, em alguma coisa que a gente não vê.

- Eu também combati no palácio La Moneda. Sou do GAP da Regional Santiago Centro.

 

Jovem triste...

- Eu não queria morrer aos 23 anos. E o que mais me incomodava era que eu não tinha filhos. Nem um menino, nem uma menina, que pudesse contar a minha história...

 

Partidários da Unidade Popular em coro.

- Pinochet assassino! Pinochet assassino!

 

Homem baleado no peito...

 

- Fomos para Indumet. Juntos com a direção MIR começamos a programar um ataque conjunto. Chega, então, outro companheiro da direção do GAP e informa que o La Moneda está pedindo ajuda. Temos que romper o cerco do palácio. 

Homem de quarenta anos...

- O presidente foi morto por sete homens, um capitão, um tenente e cinco soldados. Recebeu seis tiros, dois no pescoço e quatro no tórax. Tiros de metralhadora CIC 7.62, norte-americana. Eram quase duas da tarde.

 

Homem baleado no peito...

 

- Carabineiros começam a cercar Indumet. Rubém sai e atira nos carabineiros. Começa o tiroteio.

Homem de quarenta anos...

- Discutimos se devíamos nos render ou não. Eu fiquei e com outros companheiros, pegamos o corpo do presidente, colocamos a faixa presidencial, e ao lado do corpo deixamos o seu fuzil AKM 7.62, presenteado por Fidel Castro.

Partidários da Unidade Popular em coro.

- Pinochet assassino! Pinochet assassino!

 


·                

Cena Três

Diálogo Três



O homem que foi baleado no peito, à queima roupa, que tem a camisa e a parca verde oliva queimadas, continua sua história. Todos ouvem em silêncio.


A rua é sem saída e um ônibus de carabineiros bloqueia a rua. Começam a chegar tanques. Vou tentar romper o cerco pela retaguarda. Explodimos uma parede e saímos por trás. Estamos em San Joaquín, em frente à Coca-Cola.

 

León é metralhado. Companheiros o levam de volta para Indumet. Os carabineiros invadem Indumet e fuzilam León e mais dois operários.

 

Cruzamos San Joaquín e nos enfiamos por uma rua ao lado da Coca-Cola.
 
Nosso comando chegou a La Légua. Um caminhão de carabineiros tentou nos interceptar, mas respondemos com tiros de bazuca. O caminhão incendiou. Pegamos todas as armas deles e fizemos um pequeno discurso exortando a que lutassem ao lado do povo e não contra ele.

Ocupamos a praça de La Légua. Tomamos um caminhão de bombeiros, ligamos a sirene e passamos de población em población chamando a população a resistir e a defender o governo.

Em La Légua deixamos uma companheira que estava ferida no tornozelo. Ficou com alguns moradores de uma población e se salvou.
  
Chegamos a Sumar, que era um dos locais de concentração, segundo nosso plano de resistência. Vários companheiros estavam chegando de Tomás Moro. Um deles com uma camioneta cheia de armas.

O companheiro Lozada, da comissão política, dirigiu nossa reorganização. Tínhamos 200 homens armados.

Somos então atacados por um helicóptero Puma do Exército. Ele desce à altura das copas das árvores e começa a nos metralhar. Uns cem companheiros respondem de imediato. O Puma é atingido e afasta-se rapidamente, mortalmente ferido.

Tentei derrubá-lo com um tiro de bazuca ou de M60, mas já não tínhamos essas armas à mão. No meio dessa confusão, pensei na frase do Che: “Se a revolução é verdadeira, ou se vence ou se morre”.
  
Para não sermos um alvo fácil e concentrado, criamos um comando para juntar-se aos trabalhadores de Mademsa—Madeco. Eu fui com esse comando.

No caminho, por La Légua, fomos atacados por unidades de carabineiros. Como a ordem era chegar a Mademsa—Madeco, um grupo ficou combatendo, enquanto outro, cerca de 50 companheiros, rompeu o cerco e seguiu seu caminho.

Chegamos a nosso destino e aí criamos nossa segunda defesa perimetral, com carros, rádio e o controle de vários quarteirões.

Às três da tarde tive uma reunião com o interventor da fábrica, um companheiro socialista. Conseguimos pão e víveres para os combatentes. Fui então informado pela central de rádio que até aquele momento não havia nenhuma comunicação das regionais.

Os militares tinham ocupado todas as rádios.

O homem de quarenta anos, que tem as mãos sujas de pólvora e o olhar fixo em alguma coisa que a gente não vê, interrompe:

- Às quatro e vinte fugimos pela rua Teatinos.

O operário, que veste um macacão manchado de graxa e arrasta com dificuldade uma das pernas, completa:

- Eis um homem digno.

 

O homem que foi baleado no peito, à queima roupa, que tem a camisa e a parca verde oliva queimadas, termina sua história. Volta-se a fazer silêncio.

 

Às seis da tarde chega minha mulher. Que alegria vê-la viva. Nos abraçamos, nos beijamos, e a coloco para combater ao meu lado.

Saímos com duas camionetas cheia de companheiros para romper o cerco que havia em La Légua e também para aliviar a guerra que acontecia dentro de meu peito. Nesse instante, aviões de reconhecimento voavam baixo sobre La Légua. Fomos metralhados. Não havia como seguir.
  
Esperamos que chegasse a noite para saber o que acontecia em Santiago e no resto do país. Fomos informados que Allende morrera no La Moneda. Não acreditamos. Nossas informações vinham através das rádios controladas pelos militares e não acreditávamos nessas informações.

Falamos por telefone com diferentes regiões de Santiago para ver o que estava acontecendo. Soubemos que os companheiros de La Légua enterraram suas armas e tentam voltar às suas casas. Vão para o sul de Santiago sem armas...  

Está confirmada a morte de Allende. Do comando que partiu de Sumar restam poucos homens...

Partidários da Unidade Popular em coro.

- Pinochet assassino! Pinochet assassino!

A curta distância, mas sem entrar no debate, um casal de jovens de Vitacura comenta em voz baixa: “Deixa que gritem. Durante muito tempo fomos a maioria silenciosa, mas o passado não voltará, caminhamos para o futuro”.



Meu olhar passeia triste pelo microcentro de Santiago. Nem uma viva alma. É um espaço vazio habitado por fantasmas...