vendredi 17 janvier 2025

Para compreender o neocalvinismo de Kuyper

O neocalvinismo de Kuyper

Jorge Pinheiro, PhD


Abraham Kuyper (1837-1920), segundo Philippe Gonzalez, foi um teólogo reformado que procurou realçar a relevância do pensamento calvinista para a vida contemporânea, tanto a nível individual como coletivo. A posteridade o vê como um dos principais iniciadores da tendência teológica conhecida como neo-calvinismo. A visão de Kuyper é fiel à de Calvino no seu desejo de enfatizar a importância da glória de Deus, um tema recorrente no pensamento calvinista.


"Deus criou o cosmos geocentricamente, ou seja, colocou o centro espiritual desse cosmos no nosso planeta, e fez com que todas as divisões dos reinos da natureza nesta terra culminassem no homem. Deus chamou este homem, como portador da sua imagem, para consagrar o cosmos à sua glória. Portanto, na criação de Deus, o homem ocupa os cargos de profeta, sacerdote e rei; e apesar do fato de o pecado ter vindo perturbar estes planos elevados, Deus leva-os por diante”.


No pensamento calvinista, a glória de Deus está ligada ao reinado de Deus sobre o universo. Para o cristão, então, trata-se de glorificar o soberano divino, confessando esta verdade, tanto em pensamento como em ação, em todas as dimensões da vida. Mas a sua soberania não se limita ao íntimo do crente, à sua espiritualidade individual. Esta soberania é cósmica: estende-se a todas as esferas da existência.


Neste correr do século 21, o protestantismo tem vivido transformações significativas. Na Europa secular, as igrejas que emergiram da Reforma Magisterial viram suas fileiras e sua influência diminuir. Já as correntes que reivindicam a herança da Reforma Radical, e sua concepção de igreja livre, gozam de uma relativa estabilidade. Esta transformação tem repercussões na relação entre os diferentes protestantismos e a sociedade.


Só que o chamado declínio do protestantismo institucional pode ser visto como o sucesso de ideias que defendia, a começar pela liberdade individual e pela separação entre religião e política. Este sucesso deve-se à extensão destas ideias a toda a sociedade, contribuindo para a sua secularização. Essas mesmas idéias infundiram no evangelicalismo, outra vertente do protestantismo, uma concepção fortemente individualista da salvação. O individualismo parece assim ser uma componente central do protestantismo. Hoje, a ênfase na figura do indivíduo tende a eliminar qualquer forma colectiva de relação com a fé, a começar pela comunidade eclesial.


Questionar o bem comum, os desafios sociais, enquanto questões que fazem parte dos desígnios de Deus, leva a igreja a enfrentar temas novos. Entram em jogo, então, a família, a sociedade e o Estado. Ou seja, está levantada a questão da relação que os cristãos e a comunidade de fé deve estabelecer com estes grupos. E como o questionamento diz respeito às entidades que estruturam as relações sociais, temos então o desafio político.


Por razões históricas evidentes, na Europa, nos territórios onde eram majoritárias, as igrejas saídas da Reforma Magisterial mantiveram laços privilegiados com o Estado. Inversamente, as igrejas livres mantiveram uma espécie de distância das autoridades políticas. 


No entanto, se o modelo de cristianismo deixou de ser estruturante para as igrejas oficiais e deu lugar a uma concepção do pluralismo religioso inerente às sociedades modernas, é entre as correntes próximas do evangelicalismo que se assiste à emergência de reivindicações preocupadas em preservar o carácter cristão das nações ocidentais. 


Estas reivindicações apontam para uma transformação importante no seio do protestantismo evangélico. Elementos centrais relacionados com a salvação, o significado da história e a relação com o mundo estão a ser redefinidos. Esta redefinição é conseguida através do papel que as comunidades de fé desempenham no plano de Deus para o mundo. Assim, tornar a nação uma categoria teologicamente relevante implica transformações essenciais. E a relação com o mundo proposta por este novo discurso prevê o acesso dos cristãos regenerados a lugares de decisão nos vários sectores da sociedade, a começar pela política e pela economia, de modo a imprimir uma visão cristã à convivência.


Quando se trata de fazer essa conversão do quadro de pensamento evangélico habitual, os defensores destes novos desenvolvimentos retiram uma parte considerável dos seus argumentos do contexto da teologia política neo-reformada. 


Ao contrário da teologia anabatista, o pensamento neo-reformado considera sistematicamente o envolvimento na sociedade em situações de antagonismo entre os apoiadores do protestantismo e os adeptos de outras visões do mundo. Aproveita o papel favorável atribuído ao magistrado no pensamento calvinista e permite assim encarar o exercício do poder por um cristão como um bem para a sociedade, desde que este se deixe guiar por princípios extraídos das Escrituras. Em comparação, uma concepção anabatista não parece adequada para pensar este tipo de situação.


A posição kuyperiana apresenta aspectos problemáticos. A leitura neo-reformada da fé cristã e da sua relação com a sociedade é incapaz de pensar o pluralismo fora da visão de confronto e visa o estabelecimento de uma nação cristã. Simultaneamente, esta teologia é deficiente na forma como revela a presença do Cristo no mundo, ou seja, o milagre da encarnação.


Kuyper fundou, em 1880, uma instituição dedicada à cosmovisão calvinista: a Universidade Livre de Amsterdam. Foi um dos responsáveis pelo movimento de reforma que as igrejas reformadas holandesas viveram e que deu origem, em 1886, ao nascimento de uma denominação que pretendia fazer um regresso às fontes do calvinismo, e que se chamou "Gereformeerde Kerk" [Igreja Reformada]. E tornou-se um político: foi um dos fundadores do Partido Anti-Revolucionário (1878). Anos mais tarde, Kuyper tornou-se primeiro-ministro dos Países Baixos de 1901 a 1905.


Em um de seus livros mais famosos, Lectures on Calvinism, proferidas em Princeton em 1898, ele definiu o calvinismo e explicou porque o considerou um sistema de pensamento que constitui uma alternativa à modernidade. Já que, com a Revolução Francesa, ocorrida em 1789, segundo ele, a ordem social deixou de basear-se na revelação divina, mas optou pela vontade humana.  


Kuyper propôs a distinção entre os diferentes usos do termo calvinismo. Alguns por serem depreciativos, pois pode ser usado para se referir a uma minoria religiosa sectária. Outros, dizem que o calvinismo traduz a estreiteza da doutrina da predestinação. Ele condenou também a visão batista, que se considera ligada ao tronco calvinista. Kuyper rejeitou estes usos do termo, por serem sectários, confessionais ou denominacionais. E propôs uma leitura que chamou de científica.


Segundo Kuyper, o aspecto científico do calvinismo emerge de três aspectos. O primeiro é histórico: o calvinismo passou por um desenvolvimento particular dentro do protestantismo, um desenvolvimento que lhe permitiu evitar as armadilhas nas quais tanto os luteranos quanto os anabatistas foram presos. O segundo aspecto é filosófico: o sistema desenvolvido por Calvino é global e, portanto, capaz de ser estendido a todas as esferas que compõem a existência. A terceira razão é política. Pois, para ele, o calvinismo garantiu a liberdade às nações que escolheram fazer dele sua base constitucional. Haveria uma afinidade entre o calvinismo e a opção pelo governo democrática. E o teólogo cita como exemplos a Holanda, a Inglaterra e os EUA, além da Suíça.


Quando Kuyper se refere ao caráter científico do calvinismo, ele está se referindo a uma visão de mundo coerente. Assim, o calvinismo constituiria uma forma de consciência religiosa com teologia própria, com uma ordem eclesial particular, e que daria origem a formas de vida política ou social particulares. Isto implicaria uma relação específica entre este tipo de cristianismo e o mundo, entre a igreja e o Estado, entre a ciência e a arte. 


Na concepção kuyperiana, o calvinismo constitui um sistema global comparável aos experimentados pela humanidade ao longo da sua história. É por isso que o teólogo se propõe a comparar 0 calvinismo com outras cosmovisões como o paganismo, o islamismo, o catolicismo e o modernismo. E, como seria de esperar, o objetivo de Kuyper será demonstrar a superioridade do calvinismo sobre todas as outras cosmovisões e, sobretudo, a sua capacidade de encarnar as exigências do cristianismo, em oposição ao catolicismo, à ortodoxia e ao luteranismo.


Uma pequena bibliografia


Blaser, K., & Geense, A. (2006 [1995]). 'KUYPER, Abraham (1837-1920)', pp. 734a-734b in  P. Gisel (ed), Encyclopédie du protestantisme. Paris: PUF. 

Kayayan, É., & Kayayan, A. R. (1995). Le chrétien dans la cité. Lausanne: L'Âge d'Homme. Kuyper, A. (1899). Calvinism : six Stone-lectures. Edinburgh/New York:  T & T Clark/Fleming H. Revell Company. 

Reimer, A. J. (2003). 'Public Orthodoxy and Civic Forbearance : The Challenges of Modern  Law for Religious Minority Groups', Conrad Grebel Review, 21(3), 96-111.————. (2009). 'An Anabaptist-Mennonite Political Theology: Theological Presuppositions',  Direction, 38(1), 29-44. 

Wagner, C. P. (2008). Dominion! How Kingdom Action Can Change the World. Grand  Rapids: Chosen. 



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