Reflexões a partir de uma
cama de hospital
“Sou malandro velho
Não tenho nada com
isso” (Loki, Arnaldo Baptista, 1974).
Depois
de quatorze dias internado no Hospital AC Camargo, em 2010, em São Paulo, e
duas cirurgias, resolvi escrever sobre uma afirmação de Paul Tillich – “o estado da existência é o estado da
alienação” – presente na Teologia Sistemática (São Leopoldo, Est/Sinodal,
2005, p. 339), e dizer um olá para Arnaldo Baptista, roqueiro-mor da minha
geração militante.
A existência, enquanto processo, pode ter determinação
construtiva no sentido teleológico, por apresentar qualidades adequadas à sua
natureza ou função. E o humano, momento da existência, tem possibilidades diante
dela. Essas possibilidades podem ser chamadas de liberdade condicionada e relativa
à própria existência. Mas tais possibilidades são desafios à compreensão da condição humana e de suas relações
reais. Estamos, então, falando de alienação.
I.
A
alienação como desafio
A
alienação antecede o exercício da liberdade. A idéia, trabalhada por Tillich, a
partir de Hegel, é de que pertencemos essencialmente àquilo de que estamos
separados. Ou seja, o humano não está separado de seu ser, mas é julgado por
ele, e mesmo quando este lhe é hostil não consegue separar-se dele. As
possibilidades humanas estão, nesse sentido, mesmo enquanto determinação
construtiva e dinâmica, sob funções correlatas, alienação e lei, liberdade e
necessidade, que são realidades da existência.
Se
a alienação é ruptura essencial, parto que vai produzir a consciência humana, remete
tanto ao distanciamento como à aproximação com o Ser. Não seria, então, apenas
disfunção, mas apontaria também às funções do humano, enquanto ser com
possibilidades de realização somática, psíquica, cultural, ecológica e do sentido
pleno da vida.
Na tradição judaico-cristã essa relação entre alienação
e liberdade foi um tema teológico de importância. Dos textos judaicos
resgatamos idéias como aliança, constância, fidelidade, que remetem à
correlação alienação/lei. E no testamento cristão a idéia de destino traduziu o
conceito de alienação em seus dois vetores, distanciamento e aproximação.
As tensões ao redor da
compreensão das idéias de alienação, que traduz funções e disfunções do humano,
e graça, enquanto ação divina para a salvação, apontam para duas outras
questões: história e liberdade. Essas duas questões formam a base do pensamento
de que o ser humano por ser imagem do Eterno é um ser livre e, por extensão,
faz história. Livre significa liberdade de julgamento e ação no âmbito da
existência. Então, para que as pessoas sejam livres, o Eterno garante a
liberdade delas.
Na carta aos Romanos (5.12), Paulo afirma que hamartia entrou no cosmo através do
humano e com hamartia, a morte. Ora, hamartia ou peccatus
é um fazer, uma consequência que nasce deste conceito militar dos gregos, ato
do arqueiro errar o alvo, quer no treinamento, quer na batalha. Paulo utiliza a
expressão no sentido de que a humanidade vive um fazer em que errar o alvo é
possibilidade crescente na existência, embora não seja um estado dela.
Errar o alvo, ou, em
hebraico moderno, errar o tiro, leva à conseqüências. Paulo privilegia uma
delas, a consciência da morte. Para o apóstolo, hamartia ou peccatus
produz uma consciência matricial, a consciência da morte. A partir da
consciência da morte temos a consciência do divino, a consciência da
diversidade, já que não somos bichos e, por extensão, não somos natureza, a
consciência de que podemos escolher, e a consciência de que coisas e ações
podem ser boas ou não. Dessa maneira, o alvo é o desafio de acertar, e estão diante
do humano, de forma permanente, as necessidades diante da lei, daquilo que é ou
está frente à existência e possibilidades diante da liberdade, daquilo que não
existe, mas pode ser criado.
Alvo implica, então, em necessidades
e lei e possibilidades e liberdade, que não se excluem: estão correlacionadas
na existência humana, fazem parte do desafio da existência.
Ora, em termos
teológicos, a partir dessa primeira reflexão, podemos dizer que todos são
chamados à comunhão e cada pessoa pode responder positivamente a esse chamado.
Caso o ser humano responda positivamente ao chamado, vive o processo de
libertação que leva à comunhão plena. A comunhão consiste, então, em metanóia,
que é volta ao estado de liberdade e permanência na escolha. A partir desta
resposta, o Eterno opera a salvação do ser humano. Por isso, podemos dizer que
a vontade humana abre o caminho da libertação. A partir daí entendemos a graça
universal, pois todos os seres humanos poderiam responder positivamente ao
chamado à comunhão. Ou seja, a liberdade de julgamento no âmbito da existência
leva a pessoa a escolher os caminhos de sua história.
As funções
e disfunções existenciais do humano, ou seja, a alienação,
fazem com que as ações humanas, a partir dos desejos – emoções e sentimentos –
levem o ser humano à possibilidade de errar o alvo, lehatati (להחט'א),
em hebraico, hamartia, em grego, e peccatu, em latim. Dentro da
tradição das escrituras hebraico-judaicas, lehatati é a violação da lei.
Mas lehatati é sempre uma ação do coração e não um estado do ser.
Já a alienação, esta sim, é um estado da existência e toda a humanidade se
encontra nesse estado de disfunção, ou inclinação para fazer o mal, conforme
vemos em Gênesis 8.21. Assim, lehatati traduz não somente falta moral,
mas todas as violações da lei, quer conscientes ou não. E, segundo a tradição
judaica, todo ser humano nasce sem lehatati, e a culpa de Adão
recaiu sobre ele e sua família, mas não se estendeu à espécie humana. Apesar
disso, todo ser humano é responsável pelo lehatati porque todos temos
vontade livre, mas natureza alienada e, por isso, tendemos também para o mal.
Por isso, o texto acima citado de Gênesis diz que o coração humano é mau desde
a sua juventude. Mas o Eterno, através de sua misericórdia, possibilita ao ser
humano a metanóia e o perdão.
A libertação humana é um
processo, por isso, a pessoa não é plenamente livre, porque depende dela
permanecer ou não na opção escolhida. Se ela manter a escolha será plenamente
livre, se abandonar a escolha retorna à alienação. Caso a pessoa livre se
alienar, se não houver metanóia, se não voltar à comunhão, estará alienada.
Dessa maneira, na
polaridade alienação/comunhão dá-se a construção da história, ou seja, as
pessoas e as comunidades humanas interagem, por opção ou por omissão, na
construção de sua história. O Eterno é soberano porque criou e mantém o
universo, sustentando-o na universalidade do Espírito, aqui entendido como
sentido da vida. A soberania especial está sobre a comunidade que permanece na
escolha. As outras comunidades estão fora desta soberania especial, da graça
que gera comunhão plena, exatamente porque usaram a liberdade para escolher o lehatati.
E quanto maior a
alienação, mais o Eterno retrai sua soberania sobre tais pessoas e comunidades,
e, consequentemente, a graça que gera comunhão plena. O que explica o mal enquanto
feituras pessoal e social. E para que o processo histórico se dê, o Eterno
contrai espaço-temporalmente sua justiça executora.
Por paixão ao ser humano,
ele contrai a ação de seu conhecimento. Caso o Eterno, a partir de seu
conhecimento, definisse todas as ações livres do ser humano, as pessoas e as
sociedades poderiam fazer apenas aquilo que o Eterno por conhecer definisse,
sem poderem tomar decisões alienadas, sem poderem se afastar dele.
O Eterno dirige o seu
fazer, mas interage com as pessoas e as comunidades humanas na produção da
história, enquanto obra que nasce das correlações liberdade e comunhão e
liberdade e alienação. A polaridade alienação versus comunhão não
apresenta o ser humano como bom ou mal, mas como ser que age a partir dessa
polaridade. Isso fica claro no diálogo que o Eterno tem com Caim, quando diz
que ele está inclinado para o mal, mas deve dominá-lo. Essa conversa apresenta
um padrão humano, a alienação.
Podemos ler Gênesis 6.5,
8.21 e Deuteronômio 31.21 a partir da compressão do conceito de alienação. É
interessante que nenhum desses textos fala do ser humano como essencialmente
corrupto, mas alienado. A própria palavra yetzer, que vem da raiz yzr,
utilizada quando as Escrituras hebraicas falam de inclinação maligna, significa
moldar, propor-se. A idéia é que o ser humano é dirigido por suas inclinações,
imaginações, sejam elas boas ou más. É yetzer que, combinado ao
julgamento livre no âmbito da existência, possibilita a metanóia. Ou, conforme
diz Deuteronômio, o Eterno coloca diante do ser humano a possibilidade do bem e
a possibilidade do mal. Os seres humanos terão comunhão se obedecerem aos
mandamentos do Eterno e errarão o alvo se desobedecerem aos mandamentos do
Senhor (11.16-28).
Assim, só o Eterno é
capaz de fazer com que exista a liberdade humana e mantê-la. Essa graça, oriunda do Eterno e derramada
sobre a humanidade, possibilita a construção da história. Por isso, Paulo diz que o Eterno fica de humor
transverso com a alienação que distancia, mas segura as pontas com calma,
por saber que a alienação é fruto da sua
valência e, diante da alienação que aproxima, também obra sua, Ele expressa
alegria. (Romanos 9.22-23).
Essa leitura da liberdade
entregue ao ser humano é importante para a teologia, pois ao dizer que as
pessoas e as comunidades humanas podem agir à margem daquilo que o Eterno
desejaria para a humanidade, apresenta a violência, a guerra e os genocídios
como frutos da opção e ação humanas. E o teólogo pode, então, analisar porque
os profetas clamam e apontam às sociedades o caminho do Reino, embora estas
possam escolher os seus próprios caminhos. O campo de concretação de Auschwitz,
sob o nazismo, e os genocídios contemporâneos são, então, passíveis de estudo.
Mas a nossa leitura coloca, também, para as comunidades de fé, o clamor
profético e o desafio de expandir o Reino.
Em relação à alienação, o
ser humano herdou de Adão a inclinação para o mal e, como consequência, a
possibilidade crescente de errar o alvo, mas não a culpa. Os seres humanos são
alienados porque separaram razão e coração e erram o alvo porque são alienados.
E em relação ao processo de libertação, a morte do Cristo abre as portas da
comunhão, mas não assegura a libertação plena, pois esta só será definitiva se
a pessoa não desistir da corrida.
Paralelo ao pensamento
hebraico, a cultura grega apresentou uma rica leitura do conceito de destino,
que relaciona alienação e hamartia. O conceito destino nasceu da reflexão de
que os deuses são imortais porque o humano está situado entre a finitude
existencial e a infinitude potencial. Para os gregos o destino era finitude
existencial, e esse é o tema da tragédia grega e da busca da superação filosófica,
principalmente de estóicos e epicuristas. Era uma tentativa de colocar o humano
acima do destino que o distanciava de seu ser, transformando-se em poder
destrutivo que envolveu o mundo helênico em culpa e julgamento.
Um exemplo dessa leitura,
que nos interessa para a construção de uma compreensão teológica da alienação,
seria o arrazoado que Pedro, o apóstolo, fez em sua segunda epístola, ao dizer
que a graça não tem limites, pois o Eterno não retarda a sua promessa, como
alguns afirmam, por julgá-la demorada, mas por ser paciente. Ele não escolheria
a danação eterna de pessoas, ao contrário, desejaria que todos chegassem à metanóia,
ou seja, fizessem o caminho de volta à liberdade e construíssem comunhão.
Dessa maneira, a graça
tem eficácia ilimitada, mas há uma chave para que a função graça seja
plenamente exercida. E essa chave é: chegar à metanóia. Dessa maneira, o
sacrifício de Cristo, que é graça plena e universal, deve ser somado à metanóia,
produzindo então a libertação. Ou seja, graça plena mais metanóia é igual à
libertação. E o sacrifício do Cristo sem a metanóia, produz justiça. Ou seja, o
valor da cruz não é limitado, mas sim sua aplicação. E a preparação da pessoa e
das comunidades humanas para a graça tem o julgamento livre no âmbito da
existência como movimento e o Eterno como móvel.
Essa preparação pode ser
pensada como movimento que parte, enquanto universalidade, da liberdade humana
em direção à especificidade que tem o Eterno como móvel e implica em graça
determinada pelo Eterno, embora não seja proveniente da coação, mas do seu
pleno conhecimento, porquanto a intenção do Eterno não pode deixar de ter
efeito.
Por isso, podemos falar
da universalidade da graça, presente na comunidade humana, e na especificidade
da graça, que infalível segue a boa vontade humana. Mas esse movimento é
dialético, pois, quando olhamos da perspectiva do humano, ele parte da
universalidade, mas se olharmos da perspectiva divina parte da especificidade.
Ou seja, universalidade e especificidade são termos relativos, que se
complementam na plenitude da graça. Por isso, liberdade, eleição e graça fazem
parte de uma dança permanente, onde cada conceito implica na existência do
outro e nenhum tem existência independente, mas criam uma unidade/diversidade
correlacional plena e necessária.
Todas as pessoas e
comunidades humanas realizam suas existências dentro desse processo, fazem
parte dele, o que significa dizer que existência, liberdade e graça fazem parte
da história humana. O Eterno mobiliza o processo em direção à especificidade,
com base no seu conhecimento da fé e da perseverança de cada pessoa e das
comunidades humanas, mas conhece e aceita o sentido da universalidade humana.
Esta seria a leitura do texto de Pedro, quando disse que no meio do povo
surgiram falsos profetas que introduziram doutrinas destruidoras, a ponto de
renegarem o Eterno que os resgatou.
Na teologia paulina, enquanto
diálogo das concepções do apóstolo com o mundo helênico, principalmente em sua
carta aos Romanos, alienação/destino é o tempo favorável que triunfa sobre o
espaço. O caráter do tempo propício à liberdade substituiu o tempo cíclico,
transitório e perecível do pensamento helênico. A partir dessa compreensão,
destino traduz aproximação, e apresenta novas possibilidades de construção da liberdade
no tempo e na história.
“Ficamos
até mesmo todos juntos
Reunidos
numa pessoa só”
Antes, a filosofia confrontava-se
com a inspiração dos poetas, mas, a partir de Paulo, a revelação apodera-se da
filosofia. Assim, o destino que distanciava foi questionado pelo pensamento paulino:
“aquele que não era meu povo será chamado
de meu povo, e aquela que não era amada passou a ser amada” (Romanos 9.25).
O transitório e perecível perdeu importância e a idéia da construção da
existência enquanto tempo favorável foi tomando forma.
Mas voltemos um pouco
atrás, para entendermos esse processo. Dentro da visão paulina, que traduz o
pensamento cristão palestino, alienação/destino,
no sentido de que os limites são potencialmente ilimitados, é a lei na qual surge
o conceito de liberdade. Assim, alienação/destino correlaciona conceitos,
porque a alienação está sujeita à liberdade; porque alienação significa que a
liberdade também está sujeita à lei; e porque alienação significa que liberdade
e lei são complementares e interdependentes.
Analisando o conceito
cristão palestino de alienação/destino -- exposto por Paulo em sua carta aos Romanos
-- podemos dizer que a liberdade humana está ligada às leis universais, de tal
forma que liberdade e leis se encontram entrelaçadas. Para Paulo, assim como
para a tradição judaica, lei é imposição de limites. Por isso, a alienação é um
estado que surge da correlação entre lei e vida, porque se o julgamento é
inerente a tudo na existência, também o é a liberdade.
Assim, a certeza de que a
alienação/destino é propícia e tem significado realizador e não destruidor, é a
peça chave do pensamento de Paulo, que coloca o sentido da vida acima do
destino. Ao fazer isso, Paulo está dizendo que a compreensão do destino não
está ao alcance da razão humana, mas o sentido da vida traduz a imortalidade
potencial do humano.
Quando o humano faz a
defesa do sentido incondicional da vida deixa de temer a ameaça da alienação/destino
que distancia, e aceita o lugar que cabe à alienação enquanto estado da
existência. Reconhecemos, então, que desde o princípio vivemos num estado de
alienação e que sempre desejamos nos livrar dela, mas nunca conseguimos. Mas
nessa análise da alienação cabe relacionar sentido de vida e tempo. O
sentido de vida deve envolver
as leis universais, a plenitude do tempo e a própria existência. E quando o sentido
de vida alcança a existência,
penetra no tempo e faz da alienação, aproximação.
É necessário, porém,
entender que a consciência parte da alienação e que o reino da existência só é
acessível ao conhecimento liberto da alienação que distancia. Dessa maneira, ao
contrário do que pensavam os gregos, o humano possui potencialidade própria,
enquanto ser, para realizar seu destino. Quanto maior a potencialidade humana –
que cresce na medida da expansão do sentido da vida – maior será sua consciência
de destino.
O destino humano, que
nasce da alienação, aponta para o sentido da vida que emerge das crises e
desafios. Quanto mais profundamente entendermos nosso destino, no sentido paulino
de prokeimai, estar colocado, ser proposto, e o de nossas comunidades, tanto
mais livres seremos.
Assim, a liberdade humana
se dá na existência, enquanto realidade condicionada pela materialidade. A liberdade
entende-se como correlação entre lei e sentido de vida. Quando Hegel afirmava
que a liberdade é a consciência da necessidade, como fez questão de mostrar
Marx, cometia um erro porque descartava a realização da liberdade. É por isso
que Marx dirá que liberdade é práxis. Ora, para Marx, práxis é consciência da
necessidade somada à ação transformadora. Ou seja, consciência da lei diante do
estado de alienação que distancia é mudança radical, é ação transformadora da
vida.
Lehatati, hamartia,
peccatu é um fazer. Em relação ao imediato transforma-se em estado e no
que se refere à espécie humana é um domínio. Lehatati, hamartia, peccatu
acontece quando minha liberdade é desafiada, quando ela é chamada a surgir como
feitura humana. Nesse sentido, lehatati, hamartia, peccatu não se
apresenta sem agente moral, sem liberdade. Toda vez que realizo minha liberdade
a lei está presente, pois lehatati, hamartia, peccatu é um contra-tipo
da liberdade.
Por isso, só podemos
responder à alienação que distancia reconhecendo que lehatati, hamartia,
peccatu é feitura minha e de minha espécie, e que devo promover a
ruptura desse fazer através da ação de expansão do sentido pleno da vida. Ao nível do pensamento, do
sentimento, da vontade e da ação -- pois a alienação que distancia é o que não
devia estar -- devemos exercer uma ética radical de defesa da vida e de seu
sentido, de combate ao estado de
alienação na vida de pessoas e comunidades.
“Eu sou velho mas gosto de
viajar por aí”
Em 1970, Manuel
Ballestero publicou em Madri, pela Siglo XXI, La Revolución del Espíritu (Tres pensamientos de libertad),
analisando o caráter radical da liberdade no pensamento de três gênios da
modernidade: Nicolas de Cusa, Lutero e Marx. Ballestero diz que sua preocupação
residiu em analisar o projeto de liberdade desses três pensadores, sabendo que a
autonomia e o ato livre são concebidos de maneiras diferentes e mesmo
antagônicos, embora existam, no contexto da obra dos três, analogias de fundo.
E essas se referem ao fato de que liberdade poderia significar a abolição da
lei, o colapso da determinação exterior, e não o comportamento que se adequou
aos limites da ordem. Assim, segundo Ballestero, Cusa, Lutero e Marx olham a liberdade
como a destruição da ordenação exterior e anterior ao próprio ato livre.
Os ensaios mostram que a
revolução teórica empreendida por Cusa e Lutero não foi gratuita, nem produto
de um simples ato ideal, mas se enraizou no tecido histórico do movimento de
decomposição global da formação social pré-capitalista. Cusa e Lutero clamaram
por essa destruição. Sem entrar nos detalhes das mutações vividas no século dezesseis,
com a ruptura do equilíbrio cidade/campo, o surgimento das manufaturas e a consolidação
do sistema de trabalho assalariado, vemos que a alienação que distancia da
condição humana na incipiente sociedade capitalista foi percebida por Cusa e
Lutero: a liberdade do sujeito se dá como dor.
Mas ambos consideraram
essa subjetividade liberada pelo início da arrancada capitalista como
desequilíbrio. Assim, tanto Cusa quanto Lutero partiram do distanciamento nessa
subjetividade alienada do nascente capitalismo, considerando que deveria ser
superada para que o sentido da vida florescesse. Aí, então, teríamos o fim da não-essencialidade
do sujeito alienado e a inserção deste na totalidade objetiva. Mas isso não
poderia acontecer sem a transformação dessa realidade objetiva em realidade plena
de vida, que sustenta o humano. Dessa maneira, para os dois pensadores, o
sentido da vida constrói num nível superior o universo anteriormente negado.
O jovem Marx, seguindo os passos de Hegel, partiu
dessa discussão. Para ele, a religião era a realização imaginária da essência
do humano, mas essa essência não tem realidade alguma. De todas as maneiras, há
um ponto de interligação nessa perspectiva: a liberdade como abolição da
legalidade, como coincidência do momento subjetivo com o momento objetivo e
como responsabilidade maior do ser humano.
Para Lutero, o humano existe como estrutura
ontológica dual. Sua conceituação partiu da ansiedade teórica do século dezesseis,
mas traduziu-se em superação da subjetividade alienada. O humano pleno do
sentido de vida é senhor de todas as coisas, não está submetido a ninguém e
esse senhorio radical é produto da vida em plenitude. Sua liberdade transforma
a subjetividade alienada em realidade objetiva. Nesse sentido, o caráter da liberdade
do humano pleno do sentido de vida se dá como processo: morre o imediato, o
alienado, e tem início a construção de uma segunda natureza.
A liberdade surge como deslocamento do humano alienado,
como distanciamento crítico daquilo que foi naturalmente dado. O primeiro
momento da liberdade parte de uma concepção trágica, porque o senhorio num
primeiro momento implica em servidão, criando tensão e luta. “É necessário desesperar-se por você mesmo,
fazer com que você saia de dentro de você e escape de sua prisão” (Lutero, Les grands écrits, p. 259). Mas superada
a tensão, temos a liberdade enquanto sentido pleno de vida, uma dimensão de
combate.
“So malandro velho
Não se mete no enguiço”
Os humanos são chamados a superar a alienação,
ter a liberdade que vai além, a liberdade que é construída na expansão do
sentido pleno da vida. E, assim como Paulo, estou convencido de que morte ou vida,
anjos ou governos, coisas presentes ou futuras, poderes, altura ou profundidade,
ou qualquer criatura não poderá me distanciar do amor do Eterno, que está no
Novo Ser, o Senhor.