A Refundação do Mundo
Por um novo
Contrato Social
CEPAT (1) Informa
– 10/10/2005
A Crise do
Mundo Moderno
Jürgen
Moltmann, alemão, luterano, é um dos mais importantes teólogos vivos no final
deste século. Foi um dos inspiradores da teologia política nos anos sessenta e
influenciou a Teologia da Libertação. O último livro dele se chama Das Kommen Gottes. Christliche Eschatologie (O
Deus que Vem. Escatologia Cristã). O original alemão é de 1995. Aqui seguimos a
tradução italiana: L’Avvento di Dio.
Escatologia Cristiana, Queriniana, Brescia, 1998, p. 207-226. O tema
central deste CEPAT Informa é a
crise paradigmática que vivemos neste final de século e milênio. Esta crise é
abordada, a seguir, além do teólogo J. Moltmann, pelo ensaísta social J.- C.
Guillebaud, pelo filósofo H. G. Gadamer, pelo sociólogo Boaventura de Sousa
Santos, pelo teólogo Hans Küng, pelo filósofo Jean Baudrillard. Aqui traduzimos
e sintetizamos a análise crítica de J. Moltmann sobre a crise do mundo moderno.
Os negritos e os subtítulos são nossos.
Para Jürgen
Moltmann, "são dois os momentos mais significativos que assinalam os
inícios europeus do mundo moderno:
1.- A descoberta e a
‘conquista’ da América é o momento no qual a Europa se abre à
modernidade. A razão que levou à vitória é a razão moderna, como o mostrou
Tzvetan Todorov no encontro entre Hernan Cortés e Montezuma na Cidade do
México. Aqui a razão instrumental, interessada e orientada ao poder, se
demonstrou superior à razão mitológica dos astecas, que podemos chamar de
‘razão ecológica’. De fato, a primeira se interessa somente no cálculo da
consistência do adversário e não se preocupa em se mover em sintonia com as
estrelas e com a terra. Com a conquista do continente americano o cristianismo
europeu começa a converter o mundo, colonizando-o, enquanto a Europa, a partir
de então, dispõe de recursos que alimentam um sistema econômico, em escala
mundial, organizado mercantilisticamente e segundo princípios capitalísticos.
2.- O outro
momento que vê a Europa se abrir ao mundo novo é assinalado pela tomada do poder
sobre a natureza através da ciência e da técnica. No arco de tempo
compreendido entre Copérnico e Newton, as novas ciências da natureza
‘desencantam’ o mundo, tiram-lhe o mistério divino, a sua alma, para ‘torná-lo
escravo’, como Francis Bacon justificava a sua epistemologia, e transformam os
seres humanos em "senhores e proprietários da natureza", como depois
René Descartes escreverá no seu Tratado
sobre o Método. Trata-se de duas grandes ilusões desde o início. Os
homens podem, certamente, dominar os espaços, mas não o tempo".
Modernidade:
Uma Fé Messiânica
"Esta
dupla tomada de poder da civilização européia no mundo pode ser interpretada,
em chave religiosa, como a de uma fé
messiânica convicta de que por mil anos os santos reinarão com Cristo e
julgarão todos os povos do mundo, e que este reino messiânico cristão
(hebraico), ou "era cristã", será também a última da humanidade,
aquela idade de ouro que precederá o fim do mundo.
Agora poderá se cumprir o que há muito fora prometido, agora poderá se realizar o que há
muito tempo se esperava. Este é o pathos
messiânico com que se acolhe e se batiza ‘a modernidade’. Agora se realizará o que Gioachino di
Fiori predissera: a idade das luzes é a "terceira vinda do Espírito".
Agora o homem se torna capaz de
dominar a terra e por isso também de restabelecer aquela semelhança com Deus
que havia se esmaecido por sua culpa. A glória reflete ainda uma vez a sua luz:
esta é a idade das luzes (Aufklärung, enlightenment, ilustração, iluminismo), o
momento do êxodo definitivo dos homens da sua ‘minoridade culpável’ para o
"exercício livre e público da própria razão".
Não se trata
de uma ‘escatologia secularizada’, como o supunham Karl Löwith e Jakob Taubes,
mas antes de quiliasmo realizado, já que somente a esperança milenarística pode
ser realizada de modo histórico, sendo somente esta esperança de futuro
intra-histórico. Somente o milenarismo consegue compreender o reino de Deus de
modo teleológico, não apocalíptico, e a prospetar não uma figura catastrófica
do mundo, mas um ideal moral com o qual os seres humanos podem se aproximar
usando as suas próprias capacidades e se empenhando no mundo. Somente o
quiliasmo pode transmutar a escatologia em teleologia. Somente o quiliasmo é
capaz de infundir no otimismo humanístico – ‘o ser humano é bom’ – a
justificação teológica: "Satanás permanecerá preso por mil anos".
O bem pode
difundir-se livremente e a história realizar-se-á completamente no Reino de
Deus. "Um Cristo sem cruz conduz homens sem pecado num reino de Deus sem
julgamento": é a crítica que Richard Niebuhr fazia ao cristianismo moderno
do seu país (EUA), precisamente o cristianismo quiliástico da modernidade,
contra o qual o fundamentalismo apocalíptico levantava os seus protestos".
O Progresso é
o Reino de Deus na História
Para
Moltmann, "a fé no progresso e o ideal de humanidade do iluminismo alemão
constitui-se no novo quiliasmo teológico. Assim, por exemplo, para Kant era um
dado adquirido que a história da evolução humana se direcionava para um fim
escatológico e ele via na Revolução Francesa um ‘sinal da história’ que atesta
a disponibilidade moral da humanidade a se desenvolver sempre para o melhor, um
sinal escatológico. Ele se dava perfeitamente conta de que as idéias de fundo
da filosofia da história – as idéias da evolução, progresso e fim – derivavam
da teologia histórico-salvífica do quiliasmo e que não eram outra coisa que a
tradução do "plano salvífico", "economia de salvação",
"idade do mundo", "reino de Cristo" como fim da história.
Para Kant o momento temporal que assinala o ingresso do "reino de
Deus" na história é aquele da "passagem gradual da fé eclesiástica
para uma fé racional com dimensão universal".
O Reino de
Deus se realiza no âmbito da Razão
"O reino
de Deus vem, não como fruto de uma revolução apocalíptica preparada por Deus,
mas de uma evolução humana que se determina no âmbito da razão e da moralidade.
Os efeitos não dizem respeito à vida natural, mas exclusivamente à vida dos
homens. Aqui está a diferença entre o ‘quiliasmo filosófico’ e o teológico, mas
onde as premissas para uma superação unitária e programada da história, do
progresso e do fim último, sempre são as mesmas".
O Caráter
Totalitário do Messianismo Moderno
"Para
Fichte, Schelling e Hegel estas transferências de um quiliasmo teológico para
sistemas de caráter histórico-universalístico são tão óbvias que não há
necessidade de indicar as raízes. O pathos
que acompanha este ‘atuar-se’ da religião e da filosofia em Ludwig Feuerbach e
Karl Marx, como a sua fé na unidade de idéia e realização, assume um caráter
tipicamente messiânico e quiliástico na vontade de realização de uma história
ainda não realizada. É precisamente aqui que está a tendência ‘totalitária’.
Todos estes personagens viviam na esperança de que a partir de agora se realizasse uma libertação possível e por
isso também necessária, aquela de uma humanidade que agora se liberta das
dependências da natureza para se tornar sujeito da própria história, na
prospectiva de um futuro irradiante que será capaz de realizar plenamente o fim
para o qual a história tende. O poder
da modernidade européia deriva da revolução industrial, que fez da Inglaterra o
centro imperial do mundo.
O Caráter
Messiânico dos EUA
O pathos da ‘modernidade’ nasce do
mesmo solo que animava a declaração da independência dos EUA e a revolução
francesa. É um pathos dos últimos tempos. As utopias em termos
dos direitos humanos e da socialidade, aqueles que encontramos nas declarações
dos direitos humanos – "todos os homens nascem livres e iguais" –
refletem as visões do milênio e da ‘idade de ouro’, do sábado da história
universal e das leis do sábado que encontramos na torá. ‘Idade moderna’ aqui equivale a ‘últimos tempos’. E depois
da modernidade não pode seguir outra era. A modernidade é a última era do
gênero humano. Nem se dá um ‘fim da modernidade’ já que a era moderna
representa ‘o fim’."
O Sonho da
Modernidade:
Domínio e
Poder sobre Tudo e Todas as Coisas
Enfim, afirma
Moltmann, "o sonho quiliástico da ‘era moderna’ é o de dominar as nações,
adquirir o poder sobre a natureza e projetar uma civilização que transforme os
seres humanos em sujeitos da história. Este sonho depois se traduziu na
civilização tecno-científica da ‘modernidade’, cujas contradições cabe a nós,
hoje, experimentar e suportar com todas as conseqüências".
As aquisições mais importantes da modernidade são:
1.- as
declarações universais dos direitos humanos;
2.- as
explicações dos fenômenos naturais segundo a matemática;
3.- os EUA.
1.- As declarações dos Direitos Humanos
"As
declarações dos direitos humanos, a partir de 1789, se abrem com o enunciado:
"todos os seres humanos são criados livres
e iguais". De tal modo que a própria Europa, que se afirma como
potência mundial, agora assume os traços de uma realidade humana com dimensão
universalística. E a partir daí, o direito indivisível e universal à liberdade
motiva e legitima todos os movimentos de libertação das pessoas oprimidas e
humilhadas: escravos negros, mulheres, povos.
A partir daí,
o direito indivisível e universal à liberdade motivou e legitimou todas as
revoluções sociais modernas. Se a democracia é a forma política na qual se
exprime a liberdade, então a figura econômica que deverá assumir o
socialismo/comunitarismo é aquela da igualdade. Se todas os seres humanos foram
criados livres e
iguais, as sociedades modernas terão a tarefa de articular os direitos
individuais à liberdade com os direitos sociais à igualdade. Se não existirem
as mesmas condições de vida e possibilidade, não pode funcionar nem mesmo a
democracia. E se não se garante a realização da liberdade do indivíduo, não se
pode esperar que funcione um sistema fundado sobre os princípios da justiça
social.
O caráter
universalístico destas declarações só podem se realizar numa comunidade mundial
de estados que considerem os direitos humanos fundamentais de todos os
cidadãos. Certamente, trata-se de uma utopia, mas que se torna cada vez mais
uma necessidade histórica tendo em vista a sobrevivência do gênero humano. Aquilo
que iniciou como utopia do humanismo messiânico está se tornando cada vez mais
uma necessidade ecológica: a unidade do gênero humano é postulada pela própria
unidade do organismo ‘terra’.
2.- A Matematização das ciências: o Espírito de Geometria
"Perscrutar
a natureza por meio do esprit de
géométrie significou motivar e legitimar as ciências modernas da
natureza. Mas a realidade da natureza pode ser perscrutável? A suposta
inteligibilidade da natureza possibilitou a busca da "fórmula
universal". Mas a natureza é "computável" somente na medida em
que ela é capaz de ser dominada? Neste processo de matematização da natureza
operada pelas ciências entra também o ‘esclarecimento’ do comportamento pelas
ciências sociais e o seu empenho na burocratização das sociedades. Precisamente
Wilhelm von Humboldt sustentava que a aspiração geral da razão humana tem como
fim a anulação da causa. E isto significa o "fim da história", já que
a eliminação da causalidade comporta a exclusão do futuro e torna o presente sem
fim. Toda vez que se ‘concebe’ a história em tal sentido, se elimina a própria
história, já que "o conceito cancela o tempo" (Hegel)".
3.- O Modo de Vida Americano
"Quem
refundou a política sobre bases iluministas foram os EUA. A sua declaração da
independência e a sua constituição foram construções humanas que não fazem
apelo a tradições e nações, mas se desenvolvem exclusivamente a partir da ‘fé
messiânica’ dos pais fundadores: um ‘mundo novo’ e pluribus unum, como está impresso no escudo dos EUA; com respeito
ao mundo feudal, nacionalístico e classista da Europa das fraturas e dos
conflitos, se projeta um novus ordo
saeculorum (uma nova ordem dos séculos) messiânico aberto para a
humanidade inteira, como podemos ler em cada dólar; o ‘sonho americano’ é o
primeiro passo para a realização daquela humanidade unida que o mundo aspira.
De fato, o ‘experimento americano’ é o experimento que a modernidade colocou em
ato no mundo da política e da socialidade. Não o conseguiu plenamente ainda,
mas não o podemos, contudo, considerar como falido. Mas devemos nos convencer
que se os direitos humanos e a matemática podem ser universalizados, o
"american way of live" não o pode. Neste momento basta lembrar o
seguinte dado: "três Terras seriam necessárias se toda a população
partilhasse do padrão de consumo da América do Norte.
Em que posso esperar?
O Ressuscitado é Aquele que foi Aniquilado. Na Cruz.
Para J.
Moltmann, "o mundo moderno foi produzido pelo iluminismo e o iluminismo
nasceu do espírito hebraico-cristão da esperança messiânica. Daqui surge a
pergunta religiosa de Kant: "Em que coisa posso esperar?" É uma
pergunta que soa como algo singular, sem precedentes na história das religiões.
No passado o problema religioso dizia respeito sempre à origem sagrada do mundo.
E o problema era resolvido apelando para os mitos das origens ou para aquilo
que permanece eternamente na alternância dos tempos, aos símbolos relacionados
com a vida que passa. Para uma vida que se vive na história, o futuro pode ser
motivo de exaltação ou de ameaça. Somente um futuro que redime e apaga pode dar
consolação e conferir um sentido para um sofrer e agir na história. Com a idade
moderna, portanto, o futuro se
torna o paradigma da transcendência. E o pensamento teológico se torna uma
reflexão animada pela esperança: docta
spes. A teologia cristã agora terá a tarefa de remover desta abertura
moderna ao futuro a presunção messiânica e a subordinação apocalíptica, para
responder à pergunta de Kant atualizando a ressurreição do Cristo Jesus aniquilado
sobre a cruz".
A Refundação do Mundo
Jean-Claude
Guillebaud - editor, doutor em direito e ensaísta – acabou de lançar o livro, La Refondation du Monde (A Refundação
do Mundo), Ed. Seuil, Paris, 1999. Guillebaud é também autor de A Tirania do Prazer, lançado, em maio
deste ano, no Brasil, pela editora Bertrand. Nesta entrevista, concedida à Gazeta Mercantil, 17-9-99, Guillebaud
fala da necessidade de refundar o mundo. O sublinhado e os subtítulos são
nossos.
Gazeta Mercantil: A democracia está em julgamento ou apenas a
democracia como conhecemos hoje?
Jean-Claude Guillebaud: Não é uma crítica à democracia, mas à atual crise
da democracia. Sem que nos déssemos conta, o modelo democrático se espalhou
pelo mundo (e isto é uma boa coisa), como na América Latina. O continente hoje
é mais democrático do que em minha juventude. O progresso no espaço da
democracia é, algo óbvio, um dado positivo. Mas ao mesmo tempo, a democracia em
sua essência, vai se enfraquecendo e entra em uma espécie de crise. Na França,
nos Estados Unidos, em toda a parte ela está em crise. Isso porque está cada
vez mais tomada, colonizada pelas leis de mercado. Ela é cada vez mais
submetida à economia, que faz a lei. Este é então o paradoxo. A democracia está
gravemente afetada, porque nós saímos de um século marcado por massacres,
tirania, fracassos, grandes crises, e terminamos um pouco desencantados. O fim
do comunismo, há dez anos, foi uma das boas coisas, porque foi o fim de uma
barbárie, de uma tirania. Mas foi também o fim de uma esperança. Logo, trazemos
também um luto. Vivemos em um universo perigoso, desencantado, onde há apenas
um modelo econômico que triunfou. Como ele é sem concorrência, sem adversário,
vai se tornando cada vez mais dogmático e brutal. Estamos em um delicado
período, no qual a democracia está ameaçada. Penso ser este um bom momento para
recuperar algumas coisas. Dizemos para uma criança: "Por que você acha
isso?" Então é necessário perguntar por qual razão algumas crenças se
justificam. Por que acreditamos não ter o direito de matar nosso vizinho? Por
que acreditamos serem homens e mulheres iguais? É preciso reencontrar as raízes
de nossas convicções por melhor defendê-las.
GM: Isso não seria pregar um retorno aos mesmos ideais que geraram, por
exemplo, o marxismo, e assim reproduzir o mesmo cenário das disputas entre
esquerda e direita?
Guillebaud: Eu não sou um nostálgico. Não acredito em uma restauração. Não acredito
neste desejo de refazer valores antigos e reconstituir uma moral que
desapareceu. Não sou partidário de um arcaísmo. A restauração não funciona,
pois tem por conseqüência a ditadura, o totalitarismo, o clericalismo. Não
acredito em restaurar as coisas, pois as soluções não estão nunca atrás de nós,
mas sempre um pouco mais adiante. "Refundar" não significa restaurar.
Quando se
trata de recuperar o princípio de igualdade entre os homens, não significa
reinventar o "igualitarismo" marxista, onde todos seriam iguais e
uniformes. Todos os valores nos quais estamos ligados estão sempre a ser reinventados,
porque o mundo muda, todos os dias, cada vez mais rápido, e não podemos, em
1999, em meio a uma evolução tecnológica assustadora, sonhar em pensar o mundo
como se estivéssemos no século XIX ou XVIII. Isso não faz sentido. Não é
preciso restaurar valores, mas recriá-los e readaptá-los ao nosso tempo. Em meu
livro A Tirania do Prazer falo
da amoral sexual e da família, e lá disse haver duas atitudes falsas em relação
à família. Há aqueles dizendo que a família acabou, não existe mais, não é
necessária, e é preciso liberar o indivíduo dos laços, porque a família é um
horror. Isso é idiota. Nenhuma sociedade pode viver sem família.
Mas há outros
(mais à direita) dizendo ser necessário restaurar a autoridade paterna, a
família de outros tempos; colocar a mulher de volta na cozinha. Outra bobagem.
A forma familiar, ela muda com a história, jamais foi um organismo estável.
Bem, é preciso então reinventar a família, e este exemplo serve para todos os
valores fundadores da democracia: a fé no progresso, a igualdade, a razão. Não
é possível restaurar nada, mas também não podemos ser vítimas do cinismo e
dizer "não me importo com nada". Uma sociedade não pode viver sem um
mínimo de valores compartilhados.
GM: Mas há além do modelo democrático, uma nova forma de organização social
para o futuro?
Guillebaud: Eu acho que a democracia é alguma coisa em mudança. Algo difícil, que
não é natural. A democracia não é o estado natural da sociedade. O estado
natural é a selva. A democracia é um projeto. Um projeto magnífico, mas um
projeto difícil e sempre em perigo, ameaçado. Está sempre necessitando de uma
reinvenção, de uma defesa. Quando eu era estudante, nos anos 60, a democracia
estava ameaçada pelo marxismo, pelo Exército Vermelho. Era necessário lutar
contra isso. Hoje, nossa democracia é ameaçada pelo fanatismo religioso, pelo
fundamentalismo e também pelo mercado, que toma decisões no lugar do poder
político.
Como a ameaça
muda, a democracia também muda. Penso também que em sua maneira de ser
exercida, ela também se altera. Isso porque o nível de educação muda, e as
mídias mudaram muita coisa em função da democracia. Hoje há muito da política
que passa pelas mídias, e não mais pelas reuniões públicas. A democracia muda,
e devemos acompanhar a revolução. O constante é a esperança democrática. A
convicção de que cada um deve ser mestre da própria escolha. Esta liberdade
democrática é fundamental, e é preciso defendê-la. Quando estamos em um sistema
no qual o cidadão vota, elege governantes, e este poder, depois de eleito, se
volta para o cidadão e diz: "Não posso fazer nada, porque são as leis do
mercado", então significa não haver mais poder.
GM: Parece ainda haver outro problema. Uma "idéia de democracia"
contra a mesma democracia, como na divisão da sociedade em vários grupos e
subgrupos, cada um lutando por suas diferenças.
Guillebaud: Todas as idéias, mesmo a melhor delas, correm o risco de se tornar um
dogma. E quando isso acontece, e se tornam arrogantes ou imperiais, elas são
ameaçadoras. Um exemplo é o "politicamente correto" nos Estados
Unidos. O conceito se tornou um dogma, algo que pode destruir a democracia. E
há um outro exemplo: a razão científica. Ela é um valor formidável, nosso
patrimônio. Mas quando a razão se torna tecnocientificista, quando há esta
tirania do valor científico, ela se transforma em uma ameaça, e é preciso lutar
contra essa situação. O mesmo se aplica ao mercado, ao liberalismo. A lei da
oferta e da procura é algo positivo, a nação pode produzir a riqueza para
depois distribui-la também. Mas, quando o mercado se torna a única lei e todos
os outros valores, no espaço público, tornam-se secundários, ele, o
liberalismo, se transforma em um perigoso dogma para a democracia.
GM: Este posicionamento não o coloca, automaticamente, próximo da esquerda?
Guillebaud: Quando se pensa livremente, sempre há a acusação de pertencer a este ou
aquele grupo. Nos anos 60, quando eu era estudante de direito, o pensamento
dominante era marxista. À época, eu já contestava o marxismo. Era, na verdade,
antimarxista. Desconfiava muito de tudo aquilo. Lia mais Albert Camus do que
Jean-Paul Sartre, por assim dizer. Mas meus amigos diziam: "Se você pensa
assim, então você é de direita". Agora, ouço a mesma coisa, mas ao
inverso. Isso porque o pensamento dominante é a direita liberal. Se você se
opõe ao liberalismo, então você é marxista. Nunca fui. Não sou agora.
Reivindico o direto de pensar livremente, e no meu livro me refiro a filósofos
e outros pensadores que foram meus mestres e nunca estiveram na extrema-direita
ou na esquerda, como Edgar Morin, Cornelius Castoriadis, Maurice Merleau-Ponty.
Eles sempre procuraram ter o espírito livre.
GM: Em sua crítica ao poder do mercado, o sr. é antiamericano?
Guillebaud: Não estou de acordo com a condenação sistemática
dos Estados Unidos. Claro, o país é uma potência econômica militar, e é preciso
resistir a isso. Agora mesmo há uma disputa comercial entre a Europa e EUA.
Isso é normal. Assim deve ser. Mas não concordo em satanizar a nação. Por uma
razão simples. Os mecanismos que ameaçam a democracia, expostos no meu livro La Refondation du Monde, põem em
perigo também a América. O delírio do mercado, ou a subcultura do McDonald's,
ameaça tanto a cultura americana quanto a cultura européia. Os intelectuais de
lá são os primeiros a lutarem contra isso. Face a essa mesma barbárie, nós
estamos no mesmo campo, os americanos e nós. Em meu livro, quando critico a
dogmatização liberal, a maior parte dos autores citados são dos Estados Unidos.
Transformar a análise da democracia em uma espécie de duelo entre a Europa e os
EUA é idiota. Há uma ridícula tradição antiamericana na França, mas há também o
inverso. Há uma americanofilia. Se vem de lá, então é formidável. As duas
tradições são imbecis.
GM: Mas os desacordos entre a Europa e os Estados Unidos muitas vezes são o
sintoma de uma disputa de modelos econômicos e políticos. Os europeus podem
oferecer uma alternativa?
Guillebaud: Eu penso que isso será muito difícil, mas também inevitável. Neste
momento, em relação ao funcionamento da economia liberal, o modelo americano
está triunfando em toda parte. E isso inclui até mesmo os países europeus mais
aparelhados para resistir. Um exemplo, a Alemanha. Os alemães tinham um modelo
econômico, chamado de economia social de mercado, que era muito diferente do
sistema americano. Era mais igualitário, e o financiamento das empresas era
assegurado pelos bancos, e não pela bolsa. Havia uma co-gestão entre
empresários e trabalhadores. Hoje, esse modelo está sendo alterado em nome do
modelo anglo-saxão, com a competição permanente e a necessidade de conseguir
resultados a curto prazo.
De uma
maneira dolorosa, a Europa está se aproximando da estratégia americana. Isso
porque, no momento, e sobretudo quanto aos índices de desemprego, a América
está em melhor situação. Sem falar do crescimento inacreditável nos últimos
nove anos. Nos EUA, o índice de desemprego é de 4,5%, na França é de 11%. Isso
se traduz em prestígio, um sentimento de sucesso e de força do modelo
americano. Assim os europeus se deslocam na mesma direção. Isso é evidente. Mas
talvez não seja durável. Nossos valores são muito diferentes. Estamos
fascinados pelo modelo, e somos, no momento, incapazes de ver os
inconvenientes. Mas nós os descobriremos. Na semana passada, um órgão oficial
do governo dos Estados Unidos divulgou dados sobre o aumento das desigualdades
sociais no país nos últimos 20 anos. Elas aumentaram em proporções inéditas na
história da nação. Cerca de 20% dos mais pobres se tornaram ainda mais pobres.
Estamos esquecendo de levar em conta esse lado do modelo. O que mais me espanta
hoje é o fato de serem os próprios americanos (do partido democrata) os
responsável em alertar os europeus. Eles dizem: "Calma, nem tudo é uma
maravilha; há fracassos aqui também, e não sejam tolos em esquecer isso".
Podem ser necessários 20, 30 anos, mas certamente a sociedade americana reagirá
a isso.
GM: Para periféricos, toda a discussão ou teorização sobre modelos
econômicos e políticos parece algo extremamente abstrato, porque há ainda
problemas primários a serem resolvidos. Como um julgamento da democracia pode
interferir na vida dessas nações?
Guillebaud: Você tem razão. Mas há algo importante. Eu sou de
uma geração de pessoas que, quando eram militantes políticos "terceiro
mundistas", tinham tendência a dizer que "a democracia e a liberdade
não poderiam ser aplicadas em nações que não tivessem chegado a um determinado
grau de riqueza". Esse argumento serviu para justificar um grande número
de ditaduras e tiranias. Na América Latina havia muitos regimes ditatoriais, e
isso seria porque "eram pobres demais". Isso se falava também sobre a
China, sobre a África. Como aplicar a democracia nesses lugares? Primeiro, eles
precisariam "se desenvolver". Isso é uma bobagem. Uma dupla bobagem.
De um lado, é ofensivo aos homens.
Apenas os
países ricos poderiam desfrutar da democracia, uma forma de colonização
desprezível. Eu conheço bem a África. Há uma grande tradição de liberdade em
certas culturas africanas. E há um outro lado, também. Para um país se
desenvolver, precisa da liberdade. Mas a democracia não pode ser imposta, não
pode se sobrepor às diferenças culturais. A democracia é uma aprendizagem que
cada um deve fazer no interior de sua cultura. Os acontecimentos nos países do
leste europeu nos últimos dez anos são uma lição para nós. Depois do fim do
comunismo, eu morei quatro anos na Rússia; penso que nos enganamos muito sobre
eles. Acreditávamos, de maneira um pouco arrogante, que os russos, depois da
queda do muro, poderiam constituir uma democracia igual à da França, ou um
mercado igual.
Tentamos
aplicar nosso modelo, e me lembro que em Moscou, no período, havia um instituto
russo tatcherista, para imitar a Inglaterra. Ridículo, porque na cultura russa
há valores muito especiais sobre a coletividade, o espaço, a família, o tempo e
a religião. A democracia, ela deve progredir, mas não deve ser apenas cópia de
um modelo qualquer. Dizer que a democracia é um valor fundamental, e todos os
povos do mundo têm direito a ela, é uma coisa. Mas dizer que ela será igual em
todos os lugares, isso é um colonialismo cultural. No passado, minha geração
cometeu um erro dramático. Éramos "terceiro mundistas", tínhamos um
grande sentimento de culpa por sermos ocidentais; éramos "difererencialistas".
O "diferencialismo" consistia em afirmar que todas as culturas eram
respeitáveis e não tínhamos nenhuma lição a dar aos africanos, aos brasileiros
ou aos chineses. Cada povo, uma cultura. Cada povo, seu valor. Com as melhores
intenções do mundo, esse diferencialismo justificou a tirania chinesa (uma
"noção de liberdade" deferente entre os povos).
Isso foi um
erro trágico. Mas estamos nos recuperando dele. No final dos anos 70, com
organismos como a Anistia Internacional ou Médicos Sem Fronteira, surge uma
nova forma de militância, reafirmando o desejo de respeitar todas as culturas,
mas também dizendo haver valores universais inegáveis, mesmo que sejam uma
tradição cultural. Mas é preciso se manter na linha justa, para não cair outra
vez na tentação da arrogância ocidental. Como dizia a filósofa Simone Weil:
"É um dever para cada um de nós se desenraizar em relação à tradição, mas
é sempre um crime desenraizar o outro".
A Refundação do Mundo – Uma recensão
Traduzimos a
recensão do livro La Refondation du
Monde (A Refundação do Mundo), Seuil, 1999, 366 p. feita pelo Le Monde Diplomatique outubro de 1999.
"Um
título ambicioso, um conteúdo que não o desmente: o novo livro de Jean-Claude
Guillebaud é uma síntese magistral dos seis "venenos" – o autor justifica
a aparente arbitrariedade deste número – que se dissolvem no nosso mundo
"desencantado", e uma corajosa tomada de posição a favor dos
contra-venenos. Contra a recusa pós-moderna de toda idéia de projeto, contrapõe
a esperança reencontrada; contra a resignação à lei do mais forte, contrapõe a
crença na igualdade; face à submissão às forças do mercado, contrapõe a
reabilitação da política; em resposta ao cientificismo assustador, contrapõe o
retorno da razão crítica e modesta; contra o "eu", o "nós"
e, enfim, desafiando o "mundial", a reivindicação, sem falsa
modéstia, do universal. O autor não se ilude que pode ser acusado de
"arrogância ocidental", de neocolonialismo etc. Jean-Claude
Guillebaud faz apelo a um "humanismo paradoxal" que consiste em se
abrir para a alteridade, mas dando provas de uma firmeza reencontrada no que se
refere aos princípios que constituem a nossa herança histórica".
A crise do mundo moderno e o papel das religiões
Segundo H. G. Gadamer
"O
respeito pelas outras religiões é um bem que pode salvar-nos da catástrofe, mas
o caminho para a salvação tem os inimigos dentro e fora da Igreja, entre os
cardeais como Ratzinger de uma parte e no poder dos Estados Unidos, da outra
parte". Hans Georg Gadamer, que completará 100 anos de idade no próximo
mês de fevereiro, há muito tempo volta a sua atenção para a religião.
"Penso no respeito dos não religiosos para com as religiões, mas sobretudo
no respeito das religiões entre si, como um meio para salvar o planeta da
guerra e da ruína". H. G. Gadamer é o grande expoente da hermenêutica,
autor do clássico Verdade e Método
publicado no Brasil pela Editora Vozes. Papa Wojtyla é um admirador de Gadamer,
luterano, a tal ponto que desde o início dos seminários de verão que são
organizados em Castelgandolfo, onde o papa passa o verão europeu, o hermeneuta
alemão é convidado. Aqui traduzimos e reproduzimos, na íntegra, a entrevista
que concedeu para o jornal eletrônico Caffe Europa. Esta entrevista teve
importante repercussão na Europa. O CEPAT
Informa no. 54/1999, p. 55 publicou extratos de uma outra importante
entrevista de Gadamer. O sublinhado é nosso.
Caffe Europa: Por que o senhor se preocupa com os cardeais e
com Ratzinger?
H.G. Gadamer: Porque me dou conta que o Papa sustenta uma
tendência potencialmente cooperativa entre as religiões. Ele quereria fazer
mais do que faz, isto é certo, mas é preciso ver o que poder fazer
verdadeiramente. Veja o que aconteceu com o "mea culpa" sobre os
cismas, ortodoxo, protestante, anglicano. Os cardeais da doutrina se opuseram
ao gesto do Pontífice, que era exatamente uma crítica das divisões
doutrinárias. E o cardeal Ratzinger, sempre presente, muito presente, procurou
segurá-lo. O Papa é um homem que tem um olhar extraordinariamente longínquo e,
mesmo estando sempre muito atento, aqui foi além das suas possibilidades,
ousando mais do que se poderia esperar dele. A tendência cooperativa entre as
religiões tem inimigos muito fortes fora da Igreja, e aqui se destacam, acima
de tudo, os americanos, e dentro da Igreja, os cardeais como Ratzinger, guardas
severos da doutrina e da "unicidade" do cristianismo católico. Por
isto temo que o Papa não será capaz de superar os obstáculo. Talvez outros
líderes religiosos, como Dalai Lama, talvez um indiano, talvez outros. Espero
que surja alguma liderança religiosa capaz de alertar a humanidade contra o
risco de uma catástrofe.
Caffe Europa: Explique melhor a sua visão sobre os perigos
deste momento e do possível papel das religiões.
H.G. Gadamer: A humanidade está exposta a perigos enormes por
causa da ampla disponibilidade das armas atômicas e de outros venenos
destrutivos que podem produzir danos irremediáveis. A novidade do perigo,
comparando com os conflitos do passado, consiste no fato de que muitos países
tem em mãos, como, talvez, o Iraque, de tecnologias capazes de destruir a vida
sobre o planeta. Os americanos sabem muito bem quais são estes riscos, mas a
sua preocupação principal é a de manter e expandir o seu poder. Não temos,
portanto, muitos recursos para nos salvar. Por isto o meu olhar se volta, não
somente para a política, mas também para as religiões.
Caffe Europa: Mas as religiões, para sermos francos, são muitas
vezes mais causa de guerra do que de paz. Mesmo as guerras mais recentes
implicam conflitos e atritos religiosos.
H.G. Gadamer: É claro que as confissões religiosas são
diferentes, sei muito bem que é difícil encontrar uma língua comum até para as
diferentes ramos do cristianismo, mas a exposição ao perigo é tão grande, a
ameaça de autodestruição do globo tão forte que o diálogo entre as diferentes
culturas me parece, e espero que parecerá a todos, indispensável. Vamos partir,
então, daquilo que todas as culturas e as religiões têm em comum.
Caffe Europa: E o que elas têm em comum?
H.G. Gadamer: O tema que pode ser discutido entre as diversas
culturas é aquele dos direitos humanos. Sobre os direitos humanos é possível
encontrar um acordo. Deve-se encontrar um acordo pela simples razão que todas
as religiões, grandes e pequenas, o confucionismo, o budismo, o islamismo, o
cristianismo, mas também as seitas animistas da América do Sul ou da África,
todas, têm em comum o culto dos mortos. Até a Revolução de Outubro produziu a
idéia de conservar para a eternidade o corpo de Lenin. A própria múmia de Lenin
mostra, de forma caricatural, a convicção que alguma coisa vai para além da
morte.
Assim como os
guerreiros vikings que tinham o costume de sepultar seus mortos com toda a sua
enorme nave. O fato é que os seres humanos são as únicas entidades viventes que
conhecem o sepulcro. E o sepulcro revela que crêem num além, que depois da
morte permanece alguma coisa. A devoção pelos mortos, tão universal, exprime
algo que em termos filosóficos chamamos de transcendência. Este elemento comum
nos fornece a base para nos colocar um objetivo: que todas as religiões aceitem
os direitos humanos. Sem a cooperação das grandes culturas, este caminho não é
possível. O cristianismo sozinho não basta, ele não cobre o globo inteiro. E
nem as outras religiões. Naturalmente cabe um papel maior à política e não
tanto à filosofia. Nós filósofos podemos simplesmente nos empenhar para que o
tema filosófico da transcendência seja capaz de valorizar o traço comum a todos
os seres humanos e não as diferenças doutrinárias, das quais os Ratzinger de
todas as religiões gostam tanto e os sofistas que exasperam as diferenças
teológicas e as fixam em sistemas.
Caffe Europa: Os direitos humanos parecem ter mais inimigos que
amigos nas religiões.
H.G. Gadamer: Certamente os direitos humanos sempre foram
contestados porque percebidos como um ataque à autonomia das diversas culturas
e à soberania dos Estados. Por isto a China, por exemplo, sempre negou os
discursos sobre os direitos humanos. Devemos desintoxicar esta situação e
atribuir esta tarefa a todas as grandes religiões, não com o fim sub-reptício
de condenar a China pelo banho de sangue que houve em Pequim, mas em geral. Não
se trata de negar as culturas particulares. O modo certo de fazê-lo não é o dos
americanos, que não representam, certamente, a cultura mais amada pelos outros.
A desintoxicação cabe às grandes religiões. Mas não basta o que o Papa está
fazendo.
Caffe Europa: O Papa está organizando para a primavera do ano
2000 uma viagem que tem, precisamente, este significado, percorrer os lugares
da "história da salvação" comuns às três grandes religiões: islã,
cristianismo, hebraica.
H.G. Gadamer: Eu concordo com ele e me sinto pertencendo ao
mundo cristão. Sei também que ele seria a pessoa nas melhores condições para
operar a desintoxicação. Mas não sei se ele é capaz de fazê-lo pelas
dificuldades que temos visto dentro da Igreja. No Vaticano não estão muito
satisfeitos que ele seja tão "liberal". Entre ele e os cardeais não
há uma paz celestial, especialmente com alguns deles, como já falei. Outros
líderes religiosos podem ajudar, especialmente o Dalai Lama.
Caffe Europa: E se as religiões não se libertarem destes
obstáculos internos à cooperação para os direitos humanos?
H.G. Gadamer: Então devemos pedir ajuda aos políticos e pedir
aos americanos que contenham suas tendências expansionistas, que se assemelham
aquilo que se chamava imperialismo. Os homens de governo, europeus, indianos,
árabes deveriam intensificar o confronto com os direitos humanos para chegar a
uma paz sólida antes da terceira guerra mundial, antes do crepúsculo do mundo.
É indispensável que este diálogo seja mais rápido que a difusão dos armamentos
nucleares. E que os diferentes pontos de vista não possam impedir que se
encontre princípios comuns, como, por exemplo, o valor da vida, talvez o
banimento da pena de morte, como orientação geral, do direito internacional.
Provavelmente estou muito velho, e sou um velho cuja voz conta muito pouco, mas
estou convencido com suficiente segurança que o mundo não sobreviverá ao
próximo século se não nos encaminharmos nesta direção.
Caffe Europa: E o senhor quer que esta mensagem de alarme ajude
para que as pessoas abram os olhos? Quer encorajar o Papa?
H.G. Gadamer: Creio que o Papa esteja bem consciente dos
perigos, mas ele não tem uma plena autonomia de ação. Ele está sob pressões. Eu
não sou católico, mas também se fosse católico não poderia, certamente, pedir
que atendesse os meus desejos. Esta seria um vão exagero da minha função no
mundo. Sempre busquei com a minha filosofia mostrar quão poucas coisas podemos
controlar. Sempre insisti no fato que devemos aprender muito e não sabemos
nada. Dediquei-me ao nosso grande "ignoramus". Ignoramos sobretudo o
mistério da transcendência, não sabemos nada do além. Não mudarei agora, não
abandonarei a minha modéstia. Escreva que um velho lhe contou algumas idéias
que lhe passam pela cabeça, que ele lhe confidenciou alguns medos dos quais não
consegue se libertar.
Por uma ética global
Hans Küng,
teólogo alemão, defende o papel das religiões para a paz e uma ética global, em
entrevista concedida ao jornal português Público, no dia 26 de setembro de 1999. Na longa entrevista, o
jornal pergunta:
Público: No seu livro Projeto para uma
Nova Ética Mundial, sugere o papel fundamental das religiões para a paz
no mundo. Estamos perante uma teologia ecumênica para a paz?
Hans Küng: Pode ser chamada assim. Há uma longa história de vários livros e de
muitos diálogos com pessoas de outras religiões. O que defendo não é uma utopia
idealista, mas uma esperança realista, que resumo em quatro frases: não haverá
paz entre as nações sem paz entre as religiões; não haverá paz entre as
religiões sem diálogo inter-religioso; não haverá diálogo eficaz entre as
religiões sem posições éticas comuns para o nosso globo; não haverá
sobrevivência do globo sem uma ética global. Esta é uma visão que está
enraizada na minha fé católica, mas que pode ser partilhada por pessoas de
diferentes religiões, e por crentes e descrentes.
Público: Há quem considere que o diálogo inter-religioso comporta o risco do
sincretismo...
Hans Küng: Temos que evitar duas atitudes erradas: uma, à direita, é o
fundamentalismo que defende cada verdade como absoluta; outra, à esquerda, é o
sincretismo e o relativismo que aceita todas as religiões são iguais. É
possível estar enraizado na sua fé e respeitar, não denegrir, os outros. Mas
para evitar o sincretismo, é preciso conhecer alguma coisa das outras
religiões. As pessoas que têm medo do sincretismo não sabem nada das outras
religiões e, muitas vezes, nem sequer sabem nada da sua. Quando se estudam as
diferentes religiões, descobre-se que as posições éticas básicas são muito
similares, apesar das diferenças dogmáticas".
A Ética Feminista: A Ética do cuidado
A revista O que nos faz pensar, no. 13, abril de
1999, publica um artigo de Angelika Krebs, professora da Universidade de
Frankfurt am Main, com o título: "Ética feminista: uma crítica à
racionalidade do discurso". A revista é editada pelo Departamento de
Filosofia da PUC-RJ. O tema central do artigo é sobre a contribuição do
feminismo para a ética. A autora faz uma dura crítica à racionalidade do
discurso. Uma das teses centrais do artigo é que "o olhar da ética do
discurso sobre a moral é um olhar unilateral masculino, formado no mundo
tradicionalmente masculino da reciprocidade pessoal.
Os fenômenos
morais do cuidado unilateral no mundo tradicionalmente feminino são
desapercebidos por este olhar, que os remete ao âmbito da natureza, da
emotividade, da compaixão ou do amor". Assim ela conclui que "a ética
do discurso não consegue apreender corretamente o âmbito tradicionalmente
feminino do cuidado com seres humanos não-pessoais" Ela afirma que
"Habermas herdou de Kant o entendimento da moralidade restrito à personalidade.
Portanto, a crítica que aponta para uma tendência masculina em Habermas, vale
igualmente para Kant". Ela se pergunta pela possibilidade de uma ética do
cuidado feminina. Criticando "a definição de moral dada pela ética do
discurso, que incorpora um olhar masculino unilateral que - formado na esfera
masculina da comunicação simétrica - só é capaz de perceber a esfera feminina
do cuidado assimétrico de forma deturpada". Para ela, "a concepção de
moral ampliada no sentido feminino e que tem por conteúdo a proteção das
necessidades corporais e pessoais, ou seja, o bem-viver de todos os seres
carentes, pode ser denominada de uma ética
kantiana do bem-viver ou de uma ética
da necessidade". Daí vem a pergunta: "Não se poderia chamar
esta concepção moral também de ética
(feminina) do cuidado?"
Baudrillard:
O Mundo se converteu numa grande Disneylândia
O filósofo
francês Jean Baudrillard, participando de um simpósio sobre o fim do milênio,
em La Coruña, na Espanha, com mais de 500 especialistas, no final do mês de
setembro, afirmou que a engenharia genética anuncia a iminente aparição do
"homem artificial". O que são os seres humanos? São, por acaso, puros
espectros? "Este é o grande problema: O que acontece com o real quando ele
é substituído? O que ocorre com o corpo quando ele se torna inútil? Teremos um
corpo de síntese? Como desfazer-se do real? A reação dos comportamentos humanos
frente a tudo isto é um mistério" – segundo J. Baudrillard.
O mundo,
assim, se converteu numa "gigantesca Disneylandia" onde o real foi
substituído pelo virtual. Para ele, as transformações espetaculares dos últimos
anos permitem que se possa prever que o novo milênio "mudará as regras do
jogo", mas não sabemos em que direção. Baudrillard está seguro que se
produzirão catástrofes, no sentido ambivalente que dá a este conceito. Pois
para muitos, a catástrofe se apresenta como uma esperança para começar tudo de
novo, do zero. Internet é, para Baudrillard, uma destas catástrofes. Benéfica
como instrumento lúdico e de comunicação, mas que traz presságios obscuros.
"A rede é, em certa medida, uma desmedida, produz uma saturação de
informação e cria um mundo novo onde é possível estar em vários lugares ao
mesmo tempo", opina Baudrillard, "mas não sei se poderemos suportar
tudo isto. A Internet pode se converter num lugar inabitável, quase num
suicídio".
CEPAT INFORMA é uma publicação do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores
Rua: João Batista Gabardo, 151 - Sítio Cercado
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e-mail: cepat@super.com.br
(1) O Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – Cepat surge no início da década de 1990 com a preocupação de compreender melhor a profundidade, a amplitude e o impacto das transformações no mundo do trabalho. Nasceu da reflexão de jesuítas da Província do Brasil Meridional e de leigos especialmente ligados à Pastoral Operária sobre a ausência de uma atenção maior para o mundo urbano, mais especificamente para a realidade do mundo do trabalho. Por esta razão, mesmo sendo uma organização não governamental, o Cepat sempre se vinculou aos jesuítas e sempre se compreendeu como obra da Companhia de Jesus, entendendo-se como uma atualização das inspirações dos Centros de Investigação e Ação Social – CIAS. Desde 2008, passa a se constituir como Centro Jesuíta de Cidadania e Ação Social – CJ-Cias e integra a Rede Jesuíta de Cidadania e Ação Social – SJ-Cias.
(1) O Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – Cepat surge no início da década de 1990 com a preocupação de compreender melhor a profundidade, a amplitude e o impacto das transformações no mundo do trabalho. Nasceu da reflexão de jesuítas da Província do Brasil Meridional e de leigos especialmente ligados à Pastoral Operária sobre a ausência de uma atenção maior para o mundo urbano, mais especificamente para a realidade do mundo do trabalho. Por esta razão, mesmo sendo uma organização não governamental, o Cepat sempre se vinculou aos jesuítas e sempre se compreendeu como obra da Companhia de Jesus, entendendo-se como uma atualização das inspirações dos Centros de Investigação e Ação Social – CIAS. Desde 2008, passa a se constituir como Centro Jesuíta de Cidadania e Ação Social – CJ-Cias e integra a Rede Jesuíta de Cidadania e Ação Social – SJ-Cias.