SOCIALISMO E RELIGIÃO
no processo de fundação do Partido dos
trabalhadores
UMA LEITURA A PARTIR DE PAUL
TILLICH
Por JORGE PINHEIRO
Introdução
Podemos
dizer que em Tillich, religião e política não são realidades estanques. Isto
porque para ele, as raízes do pensamento político não são apenas pensamentos.
Pensamento político é a expressão de um ser político, de uma situação social.
Não se pode entender o pensamento quando se subestimam as realidades sociais
das quais vem o pensamento político. As raízes do pensamento político não podem
agir com uma força igual em todo momento e em todo grupo. Um ou outro pode
predominar, depende de uma situação social, grupos ou formas de dominação
determinadas. Depende de estruturas sócio-psicológicas, da interação com a
situação social objetiva.
Por
isso, para Tillich, a palavra princípio, enquanto característica
dinâmica, serve para caracterizar de maneira global os grupos políticos.[1] O pensamento
tem como tarefa extrair uma multiplicidade de fenômenos que constitui a
característica comum a todos os indivíduos. Esta tarefa geralmente é realizada
com ajuda do conceito de essência. Desde Platão, a relação entre
essência e fenômeno domina a teoria do conhecimento no Ocidente. Porém a lógica
da essência não é suficiente para dar conta das realidades históricas.[2] A essência de
um fenômeno histórico é uma abstração, tirou sua força viva da história.
Assim,
nos cabe perguntar: até que ponto Paul Tillich tem algo a dizer a respeito da
ação humana e social num país do Terceiro Mundo? Até que ponto pode fornecer
elementos para uma análise da relação religião e política no Partido dos
Trabalhadores?
Em
1977, os estudantes saíram às ruas. Clamavam por liberdades democráticas e
cantavam: Vai acabar, vai acabar, a ditadura militar!. Nessa época,
moradores dos bairros organizavam-se em associações e entidades para exigir
saneamento, asfalto, transporte, escolas. Donas de casa começaram a se reunir,
passando a exigir creches, saúde para todos, o fim da carestia. Dessas
discussões nasceu o Movimento do Custo de Vida, que, em agosto de 1978,
realizaria uma grande manifestação na Praça da Sé, na cidade de São Paulo, sob
olhares da Polícia Militar. E as mulheres passaram a ter presença ativa em
todas as mobilizações.[3]
Negros organizaram seu movimento, não apenas para
denunciar o preconceito racial, mas, para manifestar o orgulho por seus valores
culturais.[4]
A Igreja Católica aglutinou várias dessas lutas,
possibilitando a sua organização. Uma
participante de um Clube de Mães conta que costurava para fora, e não tinha
tempo para nada. Quando ia à missa aos domingos, o padre tinha a mania de
apontar o dedo e perguntar: "Você!, o que você faz durante a semana?"
[5]
Setores
como os de professores universitários, médicos, advogados, jornalistas e
funcionários públicos também começaram a se mobilizar, levantando bandeiras e
formas de organização próprias, que desembocavam na luta contra a ditadura.
Formou-se o Comitê Brasileiro pela Anistia, que exigia a volta dos exilados
políticos.
Todas essas lutas foram resumidas numa palavra de ordem: Abaixo a ditadura! E foi tomando corpo a idéia da necessidade de unificar todos esses movimentos em uma organização mais ampla: um Partido dos Trabalhadores.
Como surgiu o PT
O ano era 1978. Era ainda o tempo da ditadura: de
censura, perseguição política, tortura, assassinatos políticos e exílio. Os
partidos políticos haviam sido extintos, dando lugar a duas agremiações, que
funcionavam como pólos de apoio do governo militar, o Movimento Democrático Brasileiro
e a Aliança para a Renovação Nacional, que muitos chamavam de partido do sim
e partido do sim, senhor.
Era o tempo do arrocho salarial, que dava sustentação ao chamado milagre brasileiro. Os sindicatos estavam atrelados ao governo e quando tentavam reivindicar eram reprimidos. A última greve acontecera em 1968, na cidade de Osasco, em São Paulo, e havia terminado com muitas prisões.
Mas também era o tempo o tempo da resistência. Assim, no dia 12 de maio de 1978, 1.600 trabalhadores da Saab-Scânia, em São Bernardo do Campo, em São Paulo, entraram na fábrica e cruzaram os braços. O movimento grevista se alastrou por outras fábricas, outras regiões, outras categorias: metalúrgicos das cidades de São Paulo, Osasco e Campinas, em São Paulo, de João Monlevade, em Minas Gerais, professores do primeiro e segundo graus do estado de São Paulo, bancários...
Em 1979 e 1980 novas ondas de greves pararam várias regiões do país, a começar por São Bernardo do Campo. Ali, o sindicato dos metalúrgicos passou por intervenções e, em 1980, seu presidente, Luiz Inácio da Silva, o Lula, foi preso, junto com outros membros da diretoria. Lula conta:
E aí eu lembro que eu ficava lá naquela trave lá (no
estádio de Vila Euclides), e a gente, na hora de colocar em votação, a gente
gritava: Olha, os companheiros que são favoráveis à proposta da Fiesp, por
favor, levantem a mão. Ninguém levantava a mão. E a gente falava: Os
companheiros que são contra a proposta da Fiesp, levantem a mão. E aí todo
mundo...
Aqui foi onde a gente descobriu a necessidade de dar um passo adiante, aqui foi onde a classe trabalhadora criou consciência política. Aliás, eu acho que aqui é que começou o verdadeiro processo de democratização deste país, porque foi aqui que a classe trabalhadora deu o seu grito de guerra.[6]
A idéia do Partido dos Trabalhadores surgiu com o
avanço e o fortalecimento desse novo e amplo movimento social que se estendeu
das fábricas aos bairros, dos sindicatos às comunidades eclesiais de base, dos
movimentos contra a carestia às associações de moradores, do movimento
estudantil e de intelectuais às associações profissionais, do movimento dos
negros ao movimento das mulheres e, ainda outros, como os que lutavam pelos
direitos das populações indígenas. Ou, como afirma sua primeira Declaração
Política:
Surgiu,
portanto, como uma necessidade de: criar um efetivo canal de expressão política
e partidária dos trabalhadores das cidades e dos campos e de todos os setores
explorados pelo capitalismo; construir uma organização política de militantes
dos variados movimentos sociais, que são freqüentemente fragmentados pelas suas
próprias diferenças internas e por luta reivindicatória que nem sempre alcança
a expressão política de que são capazes; finalmente, se conquistar a política
como uma atividade própria das massas populares, que desejam participar, legal
e legitimamente, de todas as esferas de poder da sociedade, não apenas nos
momentos de disputas eleitorais, mas também e principalmente nos momentos que
permitem, a partir de sua prática no dia-a-dia a construção de uma nova
concepção de democracia com raízes nas bases da sociedade e sustentada pelas
decisões das maiorias.[7]
Há aqui, enquanto fundamento da formação do PT, um
mito de origem: o da construção de uma sociedade que expresse a vontade de
todos os trabalhadores explorados
pelo capitalismo e a construção de nova democracia, com raízes nas bases
da sociedade e sustentada pelas decisões das maiorias.
Esse
mito de origem, de construção de uma democracia radical, cujas bases estão da
Revolução Francesa, se cruzará com outros mitos de origem, socialistas.
Falando
sobre os tempos pós Revolução Francesa, Tillich diz que o Reino dos céus agora
não vem do alto, não provém de uma atividade divina transformadora do mundo,
mas de uma humanidade armada do espírito e da espada que conquista seu espaço.
Assim, depois da Revolução Francesa e de suas repercussões no século 19, e nos
círculos comunistas, este entusiasmo escatológico emprenha as massas. É o
sagrado que ficou e que as leva ao sacrifício e ao combate heróico[8].
Os socialismos no PT
Na
primeira campanha do Partido dos Trabalhadores, em 1982, quando Luiz Inácio
Lula da Silva concorreu ao governo paulista, o número da sigla era o três, não
o 13. Os slogans: Vote no três porque o resto é burguês e Trabalhador
vota em trabalhador.
Conforme declarava sua Carta de Princípios, o PT nasceu entendendo que
“a emancipação dos trabalhadores é obra dos próprios
trabalhadores, que sabem que a democracia é participação organizada e
consciente e que, como classe explorada, jamais deverá esperar da atuação das
elites privilegiadas a solução de seus problemas”.[9]
E no seu Manifesto de fundação, já deixava claro para que
desejava chegar ao poder.
O PT pretende chegar ao governo e à direção do Estado para
realizar uma política democrática, do ponto de vista dos trabalhadores, tanto
no plano econômico quanto no plano social. O PT buscará conquistar a liberdade
para que o povo possa construir uma sociedade igualitária, onde não haja
explorados e nem exploradores.[10]
E em discurso na 1a. Convenção Nacional do Partido dos Trabalhadores, em Brasília, Lula anunciou o caráter socialista do partido.
O socialismo que nós queremos se definirá por todo o povo, como
exigência concreta das lutas populares, como resposta política e econômica
global a todas as aspirações concretas que o PT seja capaz de enfrentar. Seria
muito fácil, aqui sentados comodamente, no recinto do Senado da República, nos
decidirmos por uma definição ou por outra. Seria muito fácil e muito errado. O
socialismo que nós queremos não nascerá de um decreto, nem nosso, nem de
ninguém.
O socialismo que nós queremos irá se definindo nas lutas do
dia-a-dia, do mesmo modo que nós estamos construindo o PT. O socialismo que nós
queremos terá que ser a emancipação dos trabalhadores. E a libertação dos
trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores.[11]
Mas o socialismo democrático das correntes sindicais
classistas, que se expressaram no discurso de Lula, não combinavam com o
marxismo leninismo e o trotskismo dos grupos de militantes de esquerda que
participaram da formação do PT.
Apolônio de Carvalho, ex-dirigente do Partido Comunista Brasileiro e fundador do PCBr, foi um dos militantes do PT que mais tarde se levantou contra a presença do trotskismo no Partido dos Trabalhadores. Segundo ele, havia correntes políticas que se revelaram corpos estranhos no interior do PT. Entre elas, citava a Convergência Socialista e a Causa Operária, ambas trotskistas, mas incluía também o PCBr (Partido Comunista do Brasil, revolucionário), fundado por ele. [12]
O
convívio do PT com as correntes de esquerda num primeiro momento será fácil.
Numa conjuntura inicial em que as reivindicações sociais e econômicas dão o
tom, voltadas para os problemas e aspirações de suas fontes sindicais recentes,
as bandeiras políticas cingem-se ao fim do regime militar e ao retorno de um
regime de democracia.
O
PT encara contradições internas como fatores de avanço e enriquecimento. Aceita
o debate das divergências mais graves, a busca de suas raízes, e o
encaminhamento em comum de suas soluções.
No
debate com Apolônio de Carvalho, Valério Arcary, dirigente da Convergência
Socialista defende a idéia de que foram os trotskistas que levantaram a
proposta de um Partido dos Trabalhadores.
Foi
um companheiro nosso, o Zé Maria de Almeida, dirigente metalúrgico, quem, pela
primeira vez, apresentou uma moção "Pela criação de um Partido dos
Trabalhadores", aprovada no Congresso dos Metalúrgicos de São Paulo, em
1979, na cidade de Lins, com o voto, entre outros, do próprio Lula.[13]
Mas,
sem dúvida, a pressão crescente das correntes de esquerda não agradou a
diversos grupos do PT, em especial aos sindicalistas que se estruturaram ao
redor de uma tendência que veio a ser conhecida como Articulação.
Mais
tarde, essa oposição vai tornar-se explícita, quando no 5º. Encontro Nacional, o PT vai aprovar
uma Resolução sobre Tendências, onde diz:
É
rigorosamente incompatível com o caráter do PT a existência, velada ou
ostensiva, de partidos em seu interior, concorrentes do próprio PT. Quer dizer,
o PT não admite em seu interior organizações com políticas particulares em
relação à política geral do PT, com direção própria, com representação pública
própria, com disciplina própria. Implicando inevitavelmente em dupla
fidelidade, com estrutura paralela e fechada, com finanças próprias, de forma
orgânica e permanente, com jornais públicos e de periodicidade regular.[14]
Assim,
após proposta de Apolônio de Carvalho, a Convergência Socialista, a Causa
Operária e o Partido Comunista do Brasil (revolucionário) foram expulsos do
Partido dos Trabalhadores. Os demais grupos, acatando a proposta da Resolução
de Tendências, diluíram-se.
Na
verdade, a expulsão de alguns grupos organizados e a diluição de outros não
eliminou o mito socialista, de construção de uma sociedade sem classes e
igualitária, enquanto pensamento fundante. Ao contrário, fez dele o centro de
toda a mitologia petista, ao redor do qual se aglutinaram um sindicalismo
atuante e aguerrido e o solidarismo cristão.
O sindicalismo classista
Apesar
da forte repressão às mobilizações e da intervenção governamental em diversos
sindicatos, se organizou um movimento de oposição à prática e à estrutura
sindical vigente (corporativa, assistencialista e fundamentada na Carta del
Lavoro, de Mussolini). Este movimento ficou conhecido como "novo
sindicalismo" e se caracterizou pela busca de novas formas de relação e
participação dos trabalhadores no cotidiano dos sindicatos.
Assim,
o movimento
dos trabalhadores que surgiu com as greves de 1978-1980 rompeu com a estrutura
sindical imposta pela legislação corporativa herdada dos anos 30. Tratava-se de
consolidar a ruptura, dando forma orgânica ao novo sindicalismo, autônomo e
independente. E a proposta foi construir a Central Única dos Trabalhadores,
como já previa a Declaração Política do Partido dos Trabalhadores.
O Movimento pelo PT considera também que a luta por
uma Central Única dos Trabalhadores é uma reivindicação fundamental de todos
que vivem dos seus salários, mas entende que a sua construção passa,
necessariamente, pela derrubada da atual estrutura sindical atrelada ao Estado.
Portanto, a CUT não pode ser o resultado de articulações de cúpula: ela se fará
pela vontade de todos os trabalhadores.[15]
A
construção da central sindical teve seu primeiro impulso em 1981, quando se
realizou a Conferência Nacional da Classe Trabalhadora (Conclat), que reuniu,
na Praia Grande (litoral de São Paulo), 5.247 delegados representando 1.126
entidades sindicais de todo o país. Formou-se então uma comissão Pró-CUT, mas
ficou evidente que setores ligados ao sindicalismo tradicional não desejavam
desatrelar-se do Estado, criando empecilhos para a afirmação da independência
das classes trabalhadoras.
Em 26, 27 e 28 de agosto de 1983, reuniu-se o I Congresso Nacional da Classe Trabalhadora (I Conclat), em São Bernardo. Sem a presença dos setores que não queriam a ruptura com o sindicalismo oficial, o Congresso conseguiu reunir 5.059 delegados, representando 912 entidades sindicais.
“Foram
as grandes greves de massa que propiciaram a possibilidade histórica da criação
de um partido classista, e de massas, o Partido dos Trabalhadores (PT). Foi
todo este acúmulo político que contribuiu decisivamente para a formação de
inúmeras oposições sindicais em todo o país e para a construção da própria CUT.
Neste sentido, o sindicalismo classista reconhece o papel decisivo dos partidos
políticos que estão efetivamente comprometidos com as aspirações históricas dos
trabalhadores e que a CUT e estes partidos fazem parte de um mesmo movimento, o
movimento dos trabalhadores em defesa de seus interesses e pela superação do
capitalismo como forma de produção e organização social”. [16]
E assim foi fundada a Central Única dos
Trabalhadores.
Tendo nascido das lutas reivindicatórias dos trabalhadores, o projeto de constituição do PT evitou se confundir o movimento sindical. Ao contrário, defendeu a autonomia e a independência dos sindicatos, não só em relação ao Estado, como também em relação aos partidos políticos.
A CUT foi construída pela classe trabalhadora, e só por ela, e sempre enfrentou uma feroz e intensa repressão por parte das classes dominantes. A CUT representa uma ruptura com o populismo sindical que manobrava as massas através de promessas assistencialistas e demagógicas para dar sustentação política ao governo. É uma ruptura com o reformismo que limita as reivindicações e conquistas aos limites permitidos pelo governo e pelos patrões. É uma ruptura com o peleguismo que vive às custas do imposto sindical, sob o manto do governo, e que dá as costas para a classe trabalhadora. Enfim, a CUT rompe com todas as formas de conciliação de classes que estiveram presentes nos momentos mais importantes da história brasileira deste século.[17]
O papel da Igreja Católica
A
velha Igreja Católica ainda pesava. Um processo de descolamento se dava em toda
a América Latina. Desde Medellín nascia uma igreja voltada para os problemas
das sociedades pobres e dependentes. É aí que aparecem Pedro Casaldáliga, Tomás
Balduíno, D. Pelé, Benedito Uchoa, Cândido Padim, D. Adriano Hipólito.
Qual
era o papel dessa Igreja? Para os setores à esquerda na sociedade a resposta à
pergunta estava nas Comunidades Eclesiais de Base. O jornal Versus, da
Convergência Socialista, uma das organizações de esquerda que fizeram parte da
formação do Partido dos Trabalhadores explica:
Hoje
são quase 50 mil Comunidades Eclesiais de Base, organizando cerca de um milhão
e quinhentas mil pessoas, no Brasil. Elas identificam o pecado-raiz de toda a
opressão: “...esse grande pecado é agora social e se chama sistema
capitalista”, concluiu o III Encontro Intereclesial de Comunidades de Base, em
julho de 1978 na Paraíba. Já não se contam mais nos dedos as Comissões
Diocesanas de Justiça e Paz. A Igreja Católica foi, talvez, o primeiro setor
organizado, com peso efetivo na sociedade brasileira, a empunhar a bandeira de
luta pelos direitos humanos. Ligada às parcelas mais exploradas do povo,
sofrendo a perda de padres e freiras perseguidos e mortos, a Igreja se
organizou para combater as ameaças à Justiça e à Paz. Deixa, enfim, o regaço
dos poderosos, não sem contradições e conflitos dentro de sua própria
estrutura. [18]
Para Frei Betto, as comunidades eclesiais de base
buscavam unificar, encarnar a fé dentro daquilo que diz respeito ao ser humano:
política, família, sexualidade, o lúdico e o esportivo... Não colocava a fé em
uma esfera separada. A fé tinha que ser fermento que transforma toda essa
massa.
Durante a ditadura, a igreja, pressionada por essas
correntes progressistas, ocupou um papel quase que de atriz de destaque no
palco social. Ela fez o papel do partido político que não podia existir naquele
momento. Teve papel preponderante nas denúncias dos crimes da ditadura militar,
na defesa dos presos políticos, no atendimento das famílias, na luta pela
anistia, sobretudo no incremento do movimento popular, por meio da grande rede
de Comunidades Eclesiais de Base.
Não só isso. São raros os dirigentes de movimentos
populares, sindicais e políticos, de extração popular, hoje no Brasil, que não
tenham vindo de um trabalho da Igreja. Não é mérito da Igreja; isso é
conjuntura. Ela serviu, bem ou mal, de escola política. O palco social agora
tem muitos atores e atrizes. [19]
Segundo Tillich, “uma igreja que levanta a si
mesma, em sua mensagem e devoção, ao Deus acima do Deus do teísmo, sem
sacrificar seus símbolos concretos, pode ser intermediária de uma coragem que
incorpora em si a dúvida e a insignificação. É a Igreja sob a Cruz que sozinha
pode fazer isto, a Igreja que prega o Crucificado, que gritou para o Deus que
permanecia seu Deus depois que o Deus da confiança o havia abandonado nas
trevas da dúvida e insignificação. Ser uma parte em tal igreja é receber uma
coragem de ser na qual podemos perder nosso eu e na qual recebemos nosso
mundo”.[20]
Essa Igreja, que gritou a Deus, como Cristo o fez,
diante da dúvida e da insignificação, esteve presente na formação do Partido
dos Trabalhadores e deixou marcas.
Assim,
a formação do Partido dos Trabalhadores teve origem a partir do desenvolvimento
econômico e social que se deu durante o governo militar, que gerou uma classe
operária industrial, concentrada nos grandes centros urbanos, e uma moderna
classe média assalariada. Desde 1978, tanto os operários como esta classe média
estavam num processo de mobilização.
Essa
combinação de fatores, o surgimento de estratos novos na sociedade e as
mobilizações condicionaram o surgimento de fenômenos novos na sociedade.
A
idéia do PT surge então de quatro fatores: a nova realidade social; as
mobilizações e lutas que geraram uma nova experiência, não somente sindical,
mas democrática e política; a falta de alternativas para esta nova vanguarda,
que necessitava expressar-se politicamente; e a possibilidade de expressar
através das direções sindicais classistas e correntes da esquerda socialista.
O
Partido dos Trabalhadores não estava nos planos do governo militar. Sua
intenção era de que todos os dirigentes sindicais, assim com o ativismo,
escoassem para o interior Movimento Democrático Brasileiro. Este era o projeto
dos militares, que o movimento de massas
fosse enquadrado através de uma saída democrática controlada, entrilhando seu
descontentamento para a luta parlamentar permitida.
Na
verdade, a construção do PT passou por grandes dificuldades. Como os dirigentes
sindicais chegaram à questão do PT através do classismo, como mediação entre a
questão sindical e política, o Partido dos Trabalhadores necessitou dos quadros
políticos. Estes quadros vieram da esquerda socialista e das comunidades
eclesiais de base e viabilizar o projeto de construção do Partido dos
Trabalhadores. Os dirigentes sindicais desejavam um partido, mas no primeiro
não sabiam como construí-lo. E as esquerdas socialistas e religiosas, na sua
maioria intelectuais e estudantes, sonhavam em encher suas pequenas
organizações com trabalhadores fabris. O Partido dos Trabalhadores possibilita,
então, num primeiro momento o encontro da necessidade com a utopia. E assim
surgiu o PT. [21]
Tillich e as raízes do socialismo
Como
dissemos no início deste texto, para Tillich, religião e política não são
realidades estanques, já que as raízes do pensamento político não são apenas
pensamentos. Todo pensamento político é a expressão de um ser político, de uma
situação social. Por isso, não se pode entender o pensamento quando se
subestimam as realidades sociais das quais vem o pensamento político.
As
raízes do pensamento político não podem agir com uma força igual em todo
momento e em todo grupo. Um ou outro pode predominar, depende de uma situação
social, grupos ou formas de dominação determinadas. Depende de estruturas
sócio-psicológicas, da interação com a situação social objetiva. Mas há algumas
considerações, como as questões da origem e do ser, que balizam o pensamento
tillichiano e que podem nos ajudar na compreensão da presença da religião e do
socialismo na formação do Partido dos Trabalhadores.
Em
A Decisão Socialista[22],
Tillich traduz uma confiança no progresso humano. Parte de uma filosofia
política onde seu referencial primeiro é o ser. Nesse sentido, podemos dizer
que faz uma fenomenologia política quando analisa questões como o ser, a origem
do pensamento político, enquanto mito, e a partir daí procura trazer à tona os
elementos não reflexivos do pensamento político.
Lembramos
aqui, a crítica de Ernest Bloch a Freud, quando apresenta a Psicanálise como
uma volta à origem, que resultaria em conformidade às normas sociais. Assim, o
mito não é transformador. Só a utopia, enquanto sonho acordado, é progressivo e
pode se apresentar como revolucionário.
“O
espírito da utopia (uma expressão de Ernest Bloch) é a força que transforma a
realidade. Ele é a base de todos os grandes movimentos da história; é a tensão
que tira o homem de sua tranqüilidade e de suas certezas, e o lança em novas
incertezas, numa nova inquietação. A utopia é a força do novo.” [23]
Apesar
de citar Bloch em relação à utopia, em relação ao mito ele não é tão radical
quanto Bloch. Tillich parte do mito, entendendo que devemos rompê-lo passando
através, resgatá-lo. Nesse sentido, os símbolos devem ser atravessados para que
se possa conhecer aquilo que ele evoca. E isso é o que deve acontecer em
relação ao mito de origem, ele não pode ser abandonado, mas atravessado.
Assim,
a questão existencial, presente nessa filosofia política, leva a uma
antropologia existencial. Ora, a questão existencial é transpassada pela
religião, que é a dimensão da profundidade, o espectro da profundidade na
totalidade do espírito humano.
A
metáfora profundidade significa que o aspecto religioso aponta em direção
àquilo que, na vida espiritual do homem, é último, infinito e incondicional. No
sentido mais amplo e fundamental do termo, religião é preocupação última. E a
preocupação última se manifesta em absolutamente todas as funções criativas do
espírito humano. Assim, a religião constitui a substância, o fundamento e a
profundidade da vida espiritual do homem.[24]
Para
Tillich nem sempre é necessário perguntar pelas raízes de um fenômeno
espiritual ou social. Muitas vezes tal pergunta mostra-se supérflua,
principalmente quando um testemunho saudável revela a integridade das raízes.
Mas quando se apresentam distorções ou desvios, quando o testemunho congela ou
a vida principia a desaparecer, então se torna necessário perguntar: quais são
suas raízes?
Em
1993, Tillich considerava que esta era a situação do socialismo e, em
particular, do socialismo alemão. Para ele, os eventos que preanunciavam a
ascensão do nazismo, revelavam o estado de profunda crise do socialismo. E esse
estado não só se explicava pelos eventos dos últimos anos, mas deviam ser
pesquisadas a partir da segunda metade do século de 19, pois faziam parte de
sua constelação histórica de origem. Por isso, acreditava Tillich, a tarefa
mais urgente dos anos futuros seria um exame das razões do debilitamento do
socialismo. E tal tarefa seria impossível de ser realizada se não se achasse
uma resposta à pergunta das raízes.
Porém,
afirmava Tillich, assim que se levanta a pergunta das raízes do pensamento
socialista, faz-se necessário ir mais fundo, porque o socialismo é um movimento
de oposição[25],
de mão dupla, um movimento de oposição à sociedade burguesa, mas enquanto
mediação, uniu-se à sociedade burguesa na oposição às formas feudais e
patriarcais de sociedade. Entender esta raiz do socialismo, ajudaria a entender
as raízes do pensamento político que lhe deu origem.
É
necessário procurar pelas raízes do pensamento político no próprio do homem,
declara Tillich. Para ele, sem uma imagem do homem, de suas forças e tensões,
não se pode dizer nada sobre as fundações políticas do pensamento e do ser
político. Sem uma teoria do homem, não se
pode construir uma teoria das orientações políticas.
O
homem, afirma o teólogo, diferente da natureza, é um ser dividido. Não importa
saber onde termina a natureza e onde começa o homem, não importa que a passagem
entre os dois se faça através de lentas transições ou por um salto. O
importante é que em determinado momento, a diferença ficou clara.
Há
no entanto, para Tillich, um processo vital indiviso, que desdobra natureza sem
interrogar nem requerer, um processo que está ligado àquilo que se encontra
nele e faz parte do que ele é. Assim, existe um processo vital que deseja saber
sobre o homem, e que coloca algumas questões para ele: já não é indiviso, mas
também dividido. É idêntico a si mesmo quando diante de si mesmo, no ato de
pensar e de conhecer. Mas não apenas isso.
Segundo
Tillich, o homem tem consciência de si mesmo, ou em outras palavras,
distingue-se da natureza enquanto ser que se desdobra, tornando-se um ser
consciente de si mesmo. A natureza ignora esta divisão. Por isso, o homem não é
uma combinação de duas partes autônomas, tais como natureza e mente ou corpo e
alma, mas um só ser, porém fendido em sua unidade.
Estas
determinações gerais, considera Tillich, levam a algumas considerações no que
se refere à pesquisa do pensamento político. Elas negam qualquer dedução do
pensamento político enquanto puro movimento de pensamento, de exigências
ético-religiosas, ou considerações ditadas por determinada cosmovisão. O
pensamento político vem do homem enquanto unidade. Está enraizada no ser e na
sua consciência, mais precisamente em sua unidade indissolúvel. É por isso que
não se pode entender um sistema de pensamento político sem contextualizar seu
enraizamento no ser humano enquanto ser social, ou seja, o imbricamento de
pulsões e interesses, os constrangimentos e as aspirações constituintes do ser
social.
Mas
também é impossível separar o ser de sua consciência, ou ver o pensamento
político como simples subproduto do ser. Assim, para Tillich, a consciência
estrutura todo o ser do homem, todo o ser social, em cada um de seus elementos,
inclusive as sensações pulsantes mais primitivas.
Quando
tenta desfazer laços, explica Tillich, passa-se ao largo da primeira e mais
importante característica da essência humana, o que produz uma distorção no
quadro geral que ele faz de si próprio, de que há uma consciência inadequada ao
ser, uma falsa consciência, mas que não invalida a unidade do ser e da
consciência. Isto porque, afirma, o conceito de falsa consciência não é
possível quando a coisa que se designa é não conhecível. Assim, a consciência
justa é uma consciência que emerge do ser e ao mesmo tempo o determina. Não
pode ser uma coisa sem ser a outra, porque o homem é uma unidade na divisão, e
desta unidade nascem as duas raízes de todo pensamento político.
O
homem se encontra enquanto realidade dada, assim como seu ambiente. Mas estar
no mundo enquanto realidade significa aquele não vem da si mesmo, que ele não é
sua própria origem. Para Tillich, que cita a expressão de Heidegger, o homem é
um “ser lançado”. Esta situação leva o homem a colocar-se a questão da fonte. O
que mais tarde vai aparecer como questão filosófica. Mas tal discussão é uma
construção, e o mito apresenta a primeira resposta, enquanto determinante para
a discussão de conjunto.
Assim,
no caso do Partido dos Trabalhadores, o mito de origem fundante é o socialismo,
não de forma diluída, mas traduzida principalmente na experiência da revolução
cubana. Essa realidade pode ser vista na preocupação sempre presente de defesa
da Revolução Cubana, de seus líderes e, também, de suas ações políticas, mesmo
as mais contraditórias e discutíveis.
A
origem é o que faz emergir. Este aparecimento dá lugar a algo novo, que não
existiu antes, que produz uma consciência própria, diferente da origem. A
realidade que somos está colocada, mas também é algo próprio. É uma tensão
entre o ser-posto e o ser-próprio.
Para
Tillich, a origem não nos liberta. Não se pode dizer que era e que não é mais.
Constantemente somos puxados pela origem: ela nos faz emergir, nos segura
firme. É ela que nos estabelece como algo, enquanto essência. Dessa maneira,
ser-posto no mundo supõe caminhar para a morte.
Assim,
para Tillich, a concepção conservadora admite o surgimento do eterno no tempo,
que repousa no passado. Por essa razão nega toda mudança, presente ou futura[26]. A força dessa
concepção repousa no fato de que considera o eterno como dado e não como
resultado da ação cultural e religiosa do ser humano.
A
concepção conservadora também reconhece o kairós, mas o situa no passado.
Paul
Tillich ao falar da plenitude do tempo no evento Jesus, explica a construção de
sua concepção de kairós: um tempo carregado de tensão, de possibilidades e
impossibilidades, qualitativo e rico de conteúdo. Nem tudo é possível sempre,
nem tudo é verdade em todos os tempos, nem tudo é exigido em todo momento.
Diversos mestres, diferentes poderes cósmicos, reinam em tempos diferentes, e o
Senhor que triunfa sobre anjos e poderes, reina no tempo pleno de destino e de
tensões, que se estende entre a Ressurreição e a Segunda vinda. Ele reina no
tempo presente que, em sua essência, é diferente dos outros tempos do passado.
É nessa viva e profunda consciência da história que está enraizada a idéia de
kairós, e é a partir dela que deve ser elaborado o conceito de uma filosofia
consciente da história. [27]
A
concepção conservadora desconsidera que se aconteceu no passado como
acontecimento único, é ele quem se revela em todos os sim e não
do passado, do presente e futuro. Sob tal visão repousa o pensamento político
conservador. Perdeu o sentido supratemporal do kairós[28].
O
mito expressou com profunda riqueza este estado de coisas, com o testemunho
de objetos e eventos nos quais o grupo
humano percebe sua origem. Em todos os mitos ressoam a lei cíclica do
nascimento e da morte. Todo o mito é mito da origem, responde à pergunta da providência
e conta porque somos segurados na origem e estamos debaixo de seu império. A
consciência mítica original é a raiz de todo o pensamento político conservador
e romântico.
Mas
o homem vai além do colocar-se como realidade dada, vai além do saber
colocar-se diante do ciclo do nascimento e a morte. Faz a experiência de uma
exigência que separou o imediato da vida e o leva a colocar-se diante da
pergunta da providência uma outra pergunta: por que?
Esta
pergunta quebra o ciclo de uma maneira fundamental, eleva o homem acima da
esfera do simples viver. Porque é a exigência de algo que não está aí, que tem
que se tornar realidade. Quando se faz a experiência desse tipo de exigência
não se está mais colado à origem. Vai-se além da afirmação do que já está. A
exigência nomeia o que deve ser. E o que deve ser não é determinado com a
afirmação daquilo que já é, disso que é, significa que tal exigência impôs ao
homem o incondicionado.
O
“por que” não está dentro dos limites da fonte. É o incondicionalmente novo. É
através do “por que” que o homem deve alcançar algo do incondicionalmente novo.
Este é o sentido da exigência, quando o homem, por ser dividido, faz esta
experiência. Ele detém um conhecimento próprio, por isso é possível ir além da
realidade, além daquilo que o cerca.
Tal
é a liberdade do homem: não que ele tenha uma vontade livre, mas não está
preso, enquanto homem, ao que está dado. O ciclo do nascimento e morte foi
quebrado, sua existência e sua ação não estão amarradas na simples propagação
de sua origem. Quando esta consciência se
impõe, são rasgados os laços da origem, o mito original está quebrado. A
ruptura do mito original pelo incondicionado de exigência é a raiz do
pensamento político liberal, democrático
e socialista.
Mas,
a concepção progressista considera o eterno um alvo infinito, existente em cada
época, mas que não se apresenta enquanto irrupção. Assim, os tempos tornam-se
vazios, sem decisão, sem responsabilidade. Na concepção progressista existe uma
tensão diante do que foi. Mas a consciência de que o alvo é inacessível a
debilita e produz um compromisso continuado com o passado. A concepção
progressista não oferece nenhuma opção ao que está dado. Transforma-se em
progresso mitigado, em crítica pontual desprovida de tensão, onde não há
nenhuma responsabilidade última [29].
Este
progressismo mitigado é a atitude característica da sociedade burguesa. É um
perigo que ameaça constantemente, é a supressão do não e do sim
incondicionados, a supressão do anúncio da plenitude dos tempos. É o verdadeiro
adversário do espírito profético [30].
A
exigência que o homem faz na experiência diante do incondicionado não é
estranha a ele. Se fosse estranha à sua essência, não lhe seriam concernentes e
ele não poderia discernir tal coisa como exigência. Se ela lhe toca é porque
coloca diante de seus olhos gás sua essência enquanto exigência. Funda-se a
incondicionalidade, a irrevogabilidade com que o dever-ser aborda o homem e
exige ser afirmado por ele.
Se
a exigência é a própria essência do homem, então ela encontra seu fundamento na
sua origem, e então a providência e o
destino não pertencem a mundos diferentes. Ainda, diante do original, o que é
requerido é o incondicionalmente novo. Assim, para Tillich, a origem é ambígua.
Há nela uma separação entre origem verdadeira e a origem real. O que é realmente original não é o que é original de verdade.
A
realização da origem é esta exigência e este dever-ser pelo qual o homem é
confrontado. O “por que” do homem é a realização da sua providência. A origem real é negada pela origem verdadeira;
mas certamente, não é uma pura e simples negação. A origem real tem que levar à
real verdadeira, ela é sua expressão, mas também disfarce e distorção. A pura
consciência mítica original ignora todas as ambigüidades da origem. É por isto
que esta consciência está presa à origem e considera sacrilégio toda a
ultrapassagem da origem. Só a consciência que, fazendo a experiência da
exigência da incondicionalidade, se livra dos laços de origem e se apercebe da
ambigüidade da origem.
A
exigência quer a realização da origem verdadeira. Porém o homem não recebe uma
exigência incondicionada de outros. É no reencontro do "eu e você"
que a exigência torna-se concreta. Seu conteúdo é reconhecido no você com a
dignidade do "eu", a dignidade para ser livre, portador da realização
daquilo que apontada à origem. Reconhecer no você uma dignidade igual ao do eu,
isto é justiça. A exigência que nos arrasta à ambigüidade da origem é a
exigência de justiça. A origem não rompida conduz a poderes em tensão que
procuram a dominação e destroem um ao outro. Quando a origem é rompida vem o
poder do ser, o declínio dos poderes que "expiam e são julgados por seu
sacrilégio, de acordo com a ordem do tempo", como já evocou a filosofia
grega.
A
exigência incondicional eleva acima deste ciclo trágico. Diante do poder e da
impotência do ser, opõe a justiça, que provém do dever-ser. Portanto, para
Tillich, não há uma simples oposição, porque o dever-ser é a realização do ser.
A justiça é o verdadeiro poder do ser. Nisto se torna realidade o que é
apontado na origem. Na relação entre os dois elementos da existência humana e
as duas raízes do pensamento político, a exigência predomina sobre a pura
origem, e a justiça, sobre o puro poder do ser. A pergunta do “por que” é
superior à da providência. O mito original não deve representar no pensamento
político mais do que uma crença rompida, uma crença desvelada.
Esse
é o caminho da utopia. Sem o espírito utópico não há protesto, nem espírito
profético[31].
Isto
é exato na medida em que cada tensão orientada para adiante comporta uma
representação daquilo que deve vir e de como se entende a realização desse
ideal. Eis porque o espírito da utopia está presente em todo agir
incondicionalmente decidido, em todo agir orientado à transformação do presente [32].
A
utopia quer realizar a eternidade no tempo, mas esquece que o eterno abala o
tempo e todos seus conteúdos. É por isso que a utopia leva, necessariamente, à
decepção. Progresso mitigado é o resultado da utopia revolucionária desencantada.
A
idéia do kairós nasce da discussão com a utopia. O kairós comporta a irrupção
da eternidade no tempo, o caráter absolutamente decisivo deste instante
histórico enquanto destino, mas tem a consciência de que não pode existir um
estado de eternidade no tempo, a consciência de que o eterno é, em sua
essência, aquele que faz a irrupção no tempo, sem contudo fixar-se nele.
Assim,
a realização da visão profética se encontra além do tempo, lá onde a utopia
desaparece, mas não a sua ação[33].
Em
relação ao Partido dos Trabalhadores no Brasil esse momento kairótico se
apresente através de sua preocupação com os milhões de excluídos, que estão
alijados da cidadania e a cada dia têm suas vidas colocadas diante da morte por
desnutrição, fome e endemias.
É
interessante ver, que diante de tais questões – a ameaça à vida dos milhões de
brasileiros excluídos – o mito e a utopia cedem lugar a propostas imediatas, de
salvação. Aí, sem dúvida, mesmo quando não de forma clara e inequívoca, se faz
presente o clamor profético.
Metodologicamente,
Tillich mostra que toda mudança, toda transformação exige uma compreensão do
momento vivido que vá além do meramente histórico, do aqui e agora. Deve
projetar-se no futuro, deve entender que há no espírito profético da responsabilidade
inelutável um choque entre este kairós e a utopia, que pensa poder fixar
a eternidade no tempo presente.
E é a partir dessa compreensão do que significa o
espírito de profecia no tempo presente, que voltamos ao kairós, mas agora com
novos conteúdos, construído enquanto responsabilidade inetulável. [34]
Kairós significa tempo concluído, o instante
concreto e, no sentido profético, a plenitude do tempo, a irrupção do eterno no
tempo. Kairós não é um qualquer momento pleno, uma parte ou outra do curso temporal:
kairós é o tempo onde se completa aquilo que é absolutamente significativo, é o
tempo do destino. Considerar uma época como um kairós, considerar o tempo como
aquele de uma decisão inevitável, de uma responsabilidade inelutável, é
considerá-lo enquanto espírito da profecia. [35]
Tal
desafio não pode ser resolvido por um homem, por mais que encarne o espírito da
profecia. O sujeito da transformação será, em última instância, a massa.
Para
Tillich, essas duas raízes do pensamento político mantêm entre elas uma relação
que é mais do simples justaposição. A exigência predomina na origem.
Considerando as várias tendências políticas, não se pode supor que elas sejam
atitudes humanas justificadas. Onde são requeridas decisões, o conceito
tradicional de realidade não é aplicável. Outro, no entanto, é quando estamos
diante de uma exigência do incondicionado.
Ninguém
pode entender o socialismo se não experimentar a exigência de sua justiça como
uma exigência do incondicionado. Quem não é confrontado pelo socialismo não
pode falar do socialismo, a não ser enquanto expressão que vem do exterior[36]. Não podem falar dele em verdade, porque é
contrário às tendências políticas que defendem. Aí está o nó da origem.
Mas,
todo sistema político requer autoridade, não só no sentido de possuir
instrumentos de força, mais também em termos de consentimento mudo ou manifesto
das pessoas. Tal consentimento só é possível se o grupo que está no poder
representa uma idéia poderosa, que goze de significado para todos.
Existe,
pois, na esfera política uma relação entre a autoridade e a autonomia, relação
que Paul Tillich caracteriza assim:
Toda
estrutura política pressupõe poder e, conseqüentemente, um grupo que o assume.
Mas um grupo de poder é também um conglomerado de interesses opostos a outras
unidades de interesses e sempre necessita uma correção. A democracia está
justificada e é necessária na medida em que é um sistema que incorpora
correções contra o uso errôneo da autoridade política.[37]
Exatamente
por isso, para Tillich socialismo e religião estão imbricados, e não existem
sem a necessidade de correção, ou seja, da democracia, enquanto grupo no poder.
Por isso vai dizer:
O
socialismo que nós queremos é aquele que coloca na teoria e na prática a
questão da possibilidade que a vida tenha sentido para todos os indivíduos da
sociedade e que se esforce para responder a esta questão no plano da realidade
e do pensamento. Um tal socialismo não é apenas um movimento político, é mais
que um movimento proletário. É um movimento que procura apreender cada aspecto
da vida e cada grupo da sociedade.[38]
Talvez
aqui resida o grande desafio do Partido dos Trabalhadores no Brasil: manter seu
ideário de origem, sem se deixar engessar por ele; projetar seus sonhos, sem
sacrificar vidas no altar da utopia; ser democracia, quando a intolerância e o
arbítrio marcaram e fazem parte da tradição política brasileira. E, por fim,
ser voz profética, que se encontra além do tempo e das classes, lá onde a
utopia desaparece, mas não a sua ação.
São
Bernardo do Campo, 30 de abril de 2003.
Jorge
Pinheiro
[1]
James Luther Adams, O conceito de era protestante segundo Paul Tillich, in Paul
Tillich, A Era Protestante, São Bernardo do Campo, Ciências da Religião, 1992,
p. 293.
[2]
Paul Tillich, Teologia Sistemática, São Leopoldo/ São Paulo, Editora Sinodal,
Ed. Paulinas, 1984, p. 173.
[3]
Depoimento de uma participante do Movimento do Custo de Vida. Citado por Eder
Sader, Quando novos personagens entraram em cena, Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1988.
[4]
Convocatória para o ato público contra o racismo, realizado em 18 de junho de
1978, em São Paulo, quando foi fundado o Movimento Negro Unificado Contra a
Discriminação Racial.
[5]
Eder Sader, Quando novos personagens entraram em cena, Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1988.
[6]
Depoimento de Luís Inácio Lula da Silva à jornalista Isabela Assunção, no
programa de TV, Globo Repórter, em 1988.
[7]
Declaração Política, São Bernardo do Campo, 13 de outubro de 1979, in
Resoluções de Encontros e Congressos, 1979-1998, Partido dos Trabalhadores, São
Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 1999, pp. 55-56.
[8]
Paul Tillich, Masse et Esprit, in Christianisme et Socialisme, Écrits
socialistes allemands (1919-1931), Paris/ Genève/ Québec, Les Éditios du Cerf,
Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, p. 104.
[9]
Carta de Princípios, Comissão Nacional Provisória, 1o. de maio de 1979, in
Resoluções de Encontros e Congressos, 1979-1998, Partido dos Trabalhadores, São
Paulo, Ed. Fundação Perseu Abramo, 1999, p. 53.
[10]
Manifesto aprovado pelo Movimento Pró-PT em 10 de fevereiro de 1980, no Colégio
Sion (SP) e publicado no Diário Oficial da União de 21 de outubro de 1980, in
Resoluções de Encontros e Congressos, 1979-1998, Partido dos Trabalhadores, São
Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 1999, p. 67.
[11]
Discurso de Luiz Inácio Lula da Silva na 1a. Convenção Nacional do Partido dos
Trabalhadores, realizado no dia 27 de setembro de 1981, no Senado da República,
in Resoluções de Encontros e Congressos, 1979-1998, Partido dos Trabalhadores,
São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 1999, p. 114.
[12]
Apolônio de Carvalho, Momento de exclusão, Revista Teoria e Debate no. 9,
janeiro/março, 1990.
[13]
Valério Arcary, Resposta a Apolônio, Revista Teoria e Debate no. 10,
abril/junho, 1990.
[14]
Resolução sobre tendências, 5o. Encontro Nacional, Brasília, 4-6 de dezembro de
1987, in Resoluções de Encontros e Congressos, 1979-1998, Partido dos
Trabalhadores, São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 1999, pp. 356 e 357.
[15]
Declaração Política do Partido dos Trabalhadores, 13/10/1979.
[16]
Aloízio Mercadante, Resultados para quem?, Teoria e Debate nº.1 (dez/87).
[17]
Concepção e prática sindical, Resoluções do 3°. Congresso Nacional da Central
Única dos Trabalhadores, 1988.
[18]
Renato Lemos e Marcos Magalhães, O mandamento da liberdade, São Paulo, Versus
no 28, janeiro de 1979, pp.14-15.
[19]
Entrevista de Frei Betto, Quando o
Vaticano golpeia, a Eugênio Bucci e Paulo de Tarso Venceslau, Tendência
e Debate nº. 4 (set/1988).
[20]
Paul Tillich, A coragem de ser, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992, p. 145.
[21]
Jorge Pinheiro, O príncipe do rancho, São Paulo, Versus no 33, junho de 1979,
pp. 28-32.
[22]
Paul Tillich, A Decisão Socialista, Introdução: As duas raízes do pensamento
político, o ser humano e a consciência política, Potsdam 1933, Gesammelte
Werke, II, pp. 219-365.
[23]
Paul Tillich, L’Homme et l’État, in Christianisme et Socialisme, Écrits
socialistes allemands (1919-1931), Paris/ Genève/ Québec, Les Éditions du Cerf,
Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, p. 474-475.
[24]
Paul Tillich, Teologia de la cultura y otros ensayos, A dimensão religiosa na
vida espiritual do homem, Buenos Aires, Amorrortu Editores, 1974, pp. 16-17.
Este texto foi publicado originalmente em Man’s right to knowledge, Columbia
University Press, 1954.
[25]
A Decisão Socialista [Introdução: As duas raízes do pensamento político,
Potsdam 1933, Gesammelte Werke, II, pp. 219-365].
[26]
Paul Tillich, Kairós II, in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes
allemands (1919-1931), Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les
Presses de l’Université Laval, 1992, pp. 255-267, tradução francesa do original
Kairós. Zur Geisteslage und Geisteswendung,
Gesammelte Werke, 1926, VI, pp. 29-41.
[27]
Paul Tillich, Kairos I, in Christianisme et socialisme, Écrits socialistes
allemands (1919-1931), Paris/ Genève/ Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions
Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, pp. 116-117.
[28]
Idem, op.cit., p. 260.
[29]
Idem, op.cit., p. 260.
[30]
Idem, op.cit., p. 260.
[31]
Para Tillich, o espírito profético está
envolvido na situação histórica concreta, tem a coragem de decidir e colocar-se
sob julgamento, ao nível do particular. Sem esquecer que sua relação aponta ao
incondicionado, e que o ponto mais elevado que é possível alcançar no tempo
está submetido ao não. Mas não deverá, por temer o não, perder a audácia do não
e do sim concretos. [Kairós II, idem, op.cit., p. 259].
[32]
Idem, op.cit., p. 260.
[33]
Idem, op. cit., p.261.
[34]
Paul Tillich, Kairós, in História do pensamento cristão, São Paulo, ASTE,
2000, p. 24.
[35]
Paul Tillich, Kairós II, idem, op. cit., p.
259.
[36]
Paul Tillich, La décision socialiste, Potsdam 1933, Gesammelte Werke, II, p.31.
[37]
Paul Tillich, Teologia de la cultura y otros ensayos, Entre la heteronomia y la
autonomia, Buenos Aires, Amorrortu Editores, 1974, pp. 239-240.
[38]
Paul Tillich, Le Socialisme, Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes
allemands (1919-1931), Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les
Presses de l’Université Laval, 1992, p. 346.