Meu Jesus, Salvador
Eu, João, escrevo às
sete igrejas que estão na província da Ásia. Que a graça e a paz lhes sejam
dadas da parte de Deus, aquele que é, que era e que há de vir; da parte dos
sete espíritos que estão diante do seu trono e da parte de Jesus Cristo, a
testemunha fiel! Ele é o primeiro Filho, que foi ressuscitado e que governa os
reis do mundo inteiro. Ele nos ama, e pela sua morte na cruz nos livrou dos
nossos pecados, e fez de nós um reino de sacerdotes a fim de servirmos ao seu
Deus e Pai. A Jesus Cristo sejam dados a glória e o poder para todo o sempre!
Amém! Olhem! Ele vem com
as nuvens! Todos o verão, até mesmo os que o atravessaram com a lança. Todos os
povos do mundo chorarão por causa dele. Certamente será assim. Amém! Eu sou o
Alfa e o Ômega, diz o Senhor Deus, o Todo-Poderoso, que é, que era e que há de
vir. Apocalipse 1.1.-4.
A
vida divide-se em antes e depois dele. A cada 25 de dezembro, dois bilhões de
pessoas celebram o nascimento de um palestino moreno, de cabelos longos,
segundo alguns de olhos castanhos e nariz adunco, como sugerem as marcas de
sangue e suor impressas num lençol de linho guardado como relíquia pelos
católicos. Foi com esse possível biotipo que ele morreu, com cerca de 30 anos.
Mesmo aqueles que nunca entraram para seu rebanho reconhecem a data. É a partir
dela que dias, semanas, meses, anos, séculos e milênios são contados. Como a
infinitude do tempo, esse homem de Nazaré se mantém vivo.[1]
Nenhuma
vida foi tão esmiuçada e tão cercada de mistérios. Proclamado filho de Deus,
ele rompe o terceiro milênio cercado da fé, das dúvidas e da curiosidade de
cristãos e não-cristãos. Como teria nascido? Como viveu? Quem foi ele? Bilhões
de pessoas seguem extasiadas esse personagem inacabado, obra aberta a desafiar
místicos, teólogos e cientistas. Mas não há explicação capaz de oferecer a
versão definitiva, irrefutável, sobre o filho de Maria.[2]
E
no correr dos séculos foi transformado no símbolo de um dilema: ou os povos
assimilam a convivência respeitosa num mundo marcado por diferenças -- daí os
diálogos inter-religiosos que procuram reconciliar católicos, judeus e
protestantes -- ou aprofundam os contrastes, raiz da proliferação do
fundamentalismo. O mais estranho é que, na encruzilhada da civilização,
cristãos e não-cristãos voltam ao começo de tudo.
Não
restam dúvidas sobre sua passagem pelo planeta: Jesus viveu nesta Terra. Muitos
estudiosos consideraram que em relação a tal fato existem mais fontes
confiáveis do que em relação a Sócrates, cuja existência foi basicamente testemunhada
por um único discípulo, Platão. Mas não é possível discorrer com a mesma
segurança sobre a data de nascimento e a de morte de Jesus.
Um
recenseamento promovido na Palestina por Herodes, interessado em regularizar a
cobrança de impostos, forneceu evidências de que ele teria nascido cerca de
seis anos antes do chamado ano zero. Teria morrido às vésperas da Páscoa
judaica, numa sexta-feira. Conferindo calendários antigos, verifica-se que duas
sextas-feiras coincidiram com a celebração naquele período: nos anos 30 e 33 da
Era Cristã.[3]
O Cristo da fé
Juntamente com a crença na
Trindade, a teologia da encarnação ocupa uma posição central nos ensinamentos
da igreja. Jesus é mais que um homem santo ou um mestre de moralidade. Ele é o
Filho de Deus que se tornou Filho do Homem. A teologia da encarnação é uma
expressão da experiência do Cristo na igreja. Nele, a divindade está unida à
humanidade, sem a destruição de nenhuma dessas realidades. Jesus Cristo é
verdadeiramente Deus, que tem em comum a mesma realidade igualmente com o Pai e
o Espírito. Ele é verdadeiramente homem que compartilha com todos nós o que é
humano. E como único Deus-homem, Jesus Cristo colocou a humanidade em comunhão
com Deus.
Pela manifestação da
Trindade, pelo ensinamento do significado da autêntica vida humana, e pela
vitória sobre os poderes do pecado e da morte (I Co 15, Cl 1.19-20) através da ressurreição,
Cristo é a expressão suprema do amor de Deus o Pai, por seu povo, tornado
presente em cada época e em cada lugar pelo Espírito Santo através da vida da
igreja. Os pais da igreja resumiram o ministério de Cristo nesta clara
afirmação: "Deus tornou-se o que nós somos de tal maneira que nós podemos
nos tornar o que Ele é."
É um risco separar Jesus e
Cristo, ou ver a ação salvífica num e em outro não, ou teologicamente afirmar
que há uma ação salvífica no Cristo em sua divindade, separada da humanidade do
Cristo encarnado. É fundamental levar em conta, teologicamente, os dois
aspectos complementares da cristologia. Ao dado da união das duas naturezas de
Jesus, o Cristo, temos que compreender a questão da distinção, que nos alerta
para o fato de que não há confusão entre essas duas naturezas.
O monofisismo se apresenta
entre nós, quando iniciamos uma caminhada em direção à predileção por uma das
naturezas do Cristo, no caso, a tendência de absorção da natureza humana na
divina. Mas há um monofisismo invertido, que é um outro risco, atualmente menos
comum, que é o da absorção da natureza divina na humana, ocasionando uma
redução da divindade da pessoa do Verbo.
A ação humana de Jesus é a
ação do Cristo encarnado, mas há uma ação divina que permanece sempre distinta
da humana. Assim, há uma ação contínua do Logos antes e depois da encarnação,
mas sem que isto signifique a negação do evento cristológico como concentração
insuperável da auto-revelação divina. Isto porque a economia do Cristo
encarnado constitui a revelação de uma economia mais ampla, a do Cristo eterno
de Deus.
A revelação de nosso Jesus, o Cristo, oferece à humanidade tudo o que é necessário para a salvação, não necessitando ser completada por qualquer outra ação ou processo, que não seja o arrependimento e a obediência. O evento Jesus, sem deixar de ser revelação universal da vontade de Deus, permanece particular em razão de sua historicidade. Significa que tal evento não diminui a potência salvífica de Deus, pois a ação universal do Cristo e do Espírito Santo não se circunscreve à humanidade de Jesus. Por isso não se pode reduzir Jesus a uma figura salvífica entre outras. A revelação operada em Jesus Cristo é definitiva e insuperável.
Seria um erro absurdo entender a ação do Espírito Santo deslocada da economia salvífica universal do Cristo encarnado. Na historicidade da igreja, é fundamental insistir na conjunção da cristologia com a pneumatologia, a fim de preservar a centralidade do evento Cristo. Irineu, pai da igreja, utiliza uma metáfora para nos explicar essa conjunção – que logicamente como qualquer metáfora tem suas limitações. Ele fala das duas mãos de Deus que operam juntas economia da salvação: a mão do Cristo e a mão do Espírito Santo. Mãos que atuam unidas, mas são distintas e complementares. Assim, a presença do Espírito na obra do Cristo encarnado não põe um fim na atuação do Espírito Santo depois do evento-Cristo. O Espírito Santo estava presente e operante antes da glorificação do Cristo e continua presente hoje.
A revelação universal do Cristo não pode nos levar a considerar as religiões do mundo como caminhos complementares ao do corpo de Cristo. Quando muito a universalidade da revelação presente nessas religiões assumem um papel de preparação evangélica para a compreender no evento Cristo, não podendo ser consideradas caminhos de salvação. Ao longo da história cristã foram comuns injustiças e a perseguições aos grupos, denominações e religiões que discordavam do cristianismo hegemônico naquele momento. Ações essas que violentam a imago Dei, o livre-arbítrio e a compreensão da ação salvífica do Cristo.
Grupos, denominações e
mesmo religiões não-cristãs não se resumem à mera representação de uma busca
humana de Deus, mas traduzem a revelação universal de Deus, através da qual Ele
tem se automanifestado à humanidade. São parte do processo de envolvimento
pessoal de Deus com a humanidade, que atravessa a história, tendo como centro
salvífico o evento Cristo.
Jesus, o
Cristo, é aquele que revela o Pai. Quando Deus dá-se a conhecer, de forma
direta e especial, o faz através de seu Filho, em carne e osso. E é justamente
essa verdade revelada em Cristo, que deve dirigir toda a nossa compreensão do
ser humano e da igreja de Cristo.
Jesus
Cristo é Deus e homem, consubstancialmente perfeito e pleno. Nesse sentido,
entendemos que o Cristo encarnado possibilita uma compreensão do que é a
humanidade, traduzindo numa linguagem cheia de vida os conteúdos fundamentais
daquilo que está dito em Gênesis sobre o homem, antes do pecado.
O Cristo revelado é a dimensão mais profunda do humano, a dimensão que
traduz aquilo que o cristão é: filho adotado do amor e da graça de Deus, criado
para o louvor, honra e glória do Deus eterno.
Assim, o corpo de Cristo
sobre a terra é uma nova vida com Cristo e em Cristo, dirigida pelo Espírito
Santo. A luz da ressurreição de Cristo reina sobre a igreja (I
Co 15.3-8) e
a alegria da ressurreição, do triunfo sobre a morte, compenetra-se nela. O
Senhor ressuscitado vive conosco e nossa vida é uma vida misteriosa em Cristo.
Os cristãos levam este nome precisamente porque são de Cristo, vivem em Cristo
e Cristo vive neles. A encarnação não é unicamente uma idéia ou uma teologia; é
antes de tudo um fato que se produziu uma vez no tempo, mas que possui a força
da eternidade. E esta encarnação perpetua, sem confusão, as duas naturezas: a
natureza divina e a natureza humana.
A igreja é o corpo místico
de Cristo, enquanto unidade de vida com Ele. Expressa-se a mesma idéia quando
se dá à igreja o nome de esposa de Cristo ou esposa do Verbo. A igreja,
enquanto corpo de Cristo não é Cristo-Deus-homem, pois ela não é mais que sua
humanidade; mas é a vida em Cristo e com Cristo, a vida de Cristo em nós:
"Não sou mais eu quem vive, é Cristo que vive em mim" (Gl 2,20).
A igreja, em sua qualidade
de corpo de Cristo, que vive da vida de Cristo, é por Ele mesmo o domínio, onde
está presente e onde opera o Espírito Santo. Eis aqui, porque se pode definir a
igreja como uma vida bendita no Espírito Santo. A igreja é obra da encarnação
do Verbo, ela é encarnação: na igreja Deus se assimila à natureza humana e
através da igreja o corpo se assimila à natureza divina. É a santificação, que
os pais chamavam deificação (Zeosis) da natureza humana, conseqüência da união
de duas naturezas em Cristo. Assim, a igreja é o corpo de Cristo: enquanto
igreja participamos da vida divina da Trindade. Ela é a vida em Cristo, é o
corpo de Cristo, que permanece unida à Trindade.
Jesus num mundo de exclusão
A primeira parte da missão de Jesus (4.14–9.50) é
toda situada na Galiléia (cf. 23.5; At 10.37). Ao contrário de Mateus (15.21;
16.13) e Marcos (7.24-31; 8.27), Lucas abre a comissão de Jesus com a cena da
pregação na sinagoga de Nazaré (4.16-30), que descortina toda a seqüência do
evangelho: o anúncio da salvação fundamentado nas promessas do Antigo
Testamento e inspirado pelo Espírito Santo, a salvação dos pagãos, a rejeição
de seus compatriotas e a tentativa de assassinato.
No texto, Lucas descreve duas questões centrais: em
primeiro lugar o programa de Jesus e, em segundo lugar, o destinatário da
mensagem. Assim, os versículos 18 e 19 apresentam o programa e os versículos
23-27 seu público, os gentios.
Jesus foi ungido, escolhido por Deus, e sob a ação
do Espírito Santo – ação esta que caracteriza o verdadeiro profeta – tem como
missão proclamar e libertar. Seu programa é formado por quatro pontos: anunciar
a boa nova aos pobres, proclamar a
libertação aos cativos, dar vista aos cegos, por em liberdade os oprimidos.
O programa destaca duas idéias a de anunciar,
proclamar, e a de libertar, salvar.
A idéia de proclamar está presente no Antigo
Testamento, já que a missão profética era, sobretudo, proclamatória. De Samuel
a Jeremias – incluídos nesse período de ouro homens como Samuel, Natã, Gade,
Azarias, Elias, Eliseu, Joel, Miquéias, Micaías, Isaías e Jeremias -- esses
anunciadores da vontade de Deus falaram aos reis e ao povo. Advertiam,
repreendiam, encorajavam. Falavam de julgamentos e de promessas espetaculares.
Traduziam grandeza de caráter e força moral.
E assim também foi o último período da profecia
hebraica, de Ezequiel a Malaquias. No período helênico, graças às reuniões nas
casas de oração, sinagogas, a proclamação se generalizou. As Escrituras eram
lidas e interpretadas.
João, o batista, foi um anunciador da chegada do
reino. E Jesus, ali na sinagoga de Nazaré, colocou em seu programa a tarefa da
proclamação.
O conceito de libertação no Antigo Testamento parte
da idéia de livramento e de segurança. A pessoa de um libertador no AT traduz
sempre a imagem do libertador como alguém que arrebata um povo da destruição
(Jz 18.28). E no Novo Testamento, o
libertador era aquele que soltava os israelitas da escravidão (At 7.35), ou que
arrancaria a nação da impiedade (Rm 11.26).
Para todo o judeu, na época de Jesus, o ato mais
característico de libertação ocorreu sob a liderança de Moisés, quando Deus
salvou seu povo da escravidão aos egípcios e o libertou no deserto do Sinai (Ex
12.31—14. 31).
É fundamental entender que a libertação da
escravidão egípcia definiu para os judeus do período helênico o paradigma da
libertação como um ato de Deus que não visava apenas o alívio de uma situação
desastrosa. Mas, e aí está a chave do conceito de aliança, para que livres
possam servi-lo. Essa idéia fundamenta o conceito de aliança e da
espiritualidade judaica até o primeiro século.
O texto usado por Jesus é a leitura de Isaías
61.1-2. Ao ler o texto e dizer que ele próprio é o cumprimento da profecia,
Jesus cria uma nova hermenêutica, que será amplamente utilizada por todos os
escritores do Novo Testamento. Ele é o intérprete inspirado, ungido, no
cumprimento do que foi anunciado e que está presente nesse kairós para o
desenlace dos últimos tempos – proclamar o ano aceitável do Senhor.
Partindo dessa hermenêutica, os escritores do NT, e Lucas entre eles, lerão o
Antigo Testamento à luz do evento Jesus.[4]
Uma
característica marcante que se destaca na personalidade de Jesus é a sua
liberdade. Liberdade policrômica e polifônica, que abrange os mais
diversos registros de expressão e, talvez, seja a chave para explicar o
fascínio exercido por ele sobre os que o rodeavam. Liberdade de
iniciativa e de movimentos, como desenvoltura e franqueza para falar, com
clareza quando toma alguma posição, instrui ou critica. Demonstra grande
liberdade em face das classes dominantes (Lc 13:31-33, João 7:1-10, João
10:18). Liberdade para ensinar (Mc 1:22).
Liberdade
para escolher seus discípulos entre pessoas mal vistas. A liberdade de Jesus
vai abrindo caminho entre os conflitos
sociais, sem renunciar um só momento ao sentido do outro, à preocupação pela
pessoa de carne e osso dentro de cada situação concreta. Liberdade que visa
suscitar condições humanas adequadas a uma vida pessoal criativa e libertadora
dos grilhões que a prendem ao passado e lhe tolhem o futuro.
A
radicalidade da liberdade de Jesus consiste na plenitude de sua inserção no mundo
do pobre. A liberdade de Jesus constitui-se assim no fato pessoal
fundamental ligado à pregação do Reino. Antes de ser tema de sua pregação, a
liberdade e a libertação encontram expressão concreta na própria pessoa, no seu
dinamismo criador, na sua originalidade irredutível. Jesus se mostra
profundamente livre e, por isso, tanto a sua palavra como seus atos suscitam
liberdade ali onde se fazem presentes. Neste sentido, sua prática
fundadora de liberdade. Jesus liberta para o Reino.
Mas, qual é a missão?
Em meio a todas as questões que se levantam, uma pergunta surge: O que quis e
veio trazer afinal Jesus, o Cristo, com a sua pregação?
De uma forma breve a melhor resposta é: ser em sua própria pessoa a
resposta de Deus à condição humana. Mas para entender Jesus como resposta à
condição humana, precisamos compreender quais são as questões que demandam esta
resposta. De uma forma geral podemos dizer que elas são geradas por um
princípio-esperança gerador de constantes utopias de superação de felicidade
plena, que faz parte do humano, seja qual for a sua cultura ou civilização.
É neste contexto, que de certa forma esta presente em toda história humana, que surge um homem de Nazaré anunciando a resposta de Deus: o romper da nova
ordem está próximo e será trazido por Deus (cf. Mc 1:14, Mt 3:17, Lc 4:18s).
Jesus não começou pregando a si mesmo, mas o Reino de Deus, que é indiscutivelmente o centro de sua mensagem. Mas o que era Reino de
Deus para os ouvintes de Jesus? A realização da esperança de superação de todas as
alienações humanas, da destruição de todo mal, seja físico, seja moral, do
pecado, do ódio, da divisão, da dor e da morte. Isto aconteceria não numa outra
vida, no céu, ou pós-morte. Esta utopia, anseio de todos os povos, é o objeto da
pregação de Jesus. A sua promessa é que não será mais utopia, mas realidade a
ser introduzida por Deus (Lc 4:18-19, 21).
Jesus
torna-se libertador porque prega e inaugura o Reino de Deus. Reino este, que é
a transformação global e estrutural da realidade estabelecida do homem e do
cosmos, purificados de todos os seus males. Não é ser um outro mundo, mas
transformar o mundo em novo. Ele apresenta o Reino como graça, acima de todos
os esquemas anteriores de possíveis virtudes e merecimentos.
Os zelotas procuravam alianças para realizar a sua revolta militar; os sacerdotes obtinham a ajuda dos grandes poderes do mundo para manter a ordem
sacra estabelecida; os fariseus insistiam na pureza da lei que pode conservar os fiéis impolutos dentro deste mundo corrupto; e os apocalípticos queriam congregar os restantes escolhidos para o tempo de julgamento que estava próximo. Jesus escolhe como destinatários do seu reino os últimos do mundo. É o cumprimento de uma das grandes utopias do AT, expressas no ano sabático ou do jubileu, que jamais foram realizadas como ideais sociais de forma definitiva. Os milagres de Jesus vêm mostrar que o Reino já esta presente e fermentando no velho mundo. Jesus anuncia o ano de graçado Senhor que não conhecerá ocaso.
A libertação promovida por este Reino abarca tudo: humano, sociedade, mundo, a
totalidade da realidade deve ser transformada por Deus, a partir do próprio ser humano. A pregação do Reino se realiza em dois tempos: no presente
e no futuro.
Por
isto Jesus entusiasma as massas. Ele tem consciência de que com ele já se iniciou o fim deste velho mundo. Jesus vai entender o messianismo
e as categorias apocalípticas como os meios mais adequados para comunicar sua
mensagem libertadora. Com essa linguagem ele participa dos desejos fundamentais
do coração humano, de libertação e de uma nova ordem. A sua moral tem sentido
messiânico e se exprime na forma de ruptura. Suplantando os princípios do seu
povo, ele acolhe à mesa e na amizade os perdidos, expulsos da aliança.
Apesar
destes elementos, a pregação de Jesus destaca-se das expectativas messiânicas
do povo. Ele não alimenta o nacionalismo judeu; não diz nenhuma palavra de
rebelião contra os romanos, nem faz qualquer alusão à restauração do rei
davídico.
Neste ponto, decepciona a todos. O que mais se ressalta no Jesus, o
Cristo, é a autoridade com que anuncia o reino e o torna presente por sinais e
gestos inauditos. Em Jesus, irrompe o tempo da libertação.
Uma
vez entendendo qual era a sua missão, é preciso saber qual a sua estratégia. Já que Reino de Deus significa uma revolução total, global e estrutural da velha ordem, Jesus faz duas exigências fundamentais: exige conversão da pessoa e postula uma reestruturação do mundo da pessoa.
O
Reino atinge primeiro as pessoas. Delas se exige conversão, no sentido de mudar o modo de pensar e agir no sentido de Deus, portanto
revolucionar-se interiormente. É um novo modo de existir diante de Deus e diante da novidade anunciada por Jesus. Implica sempre numa ruptura (Lc 12:51-52). É um não à ordem vigente (Lc 13:3,5). Ruptura até mesmo de uma religião que gerava uma consciência oprimida. Afinal, na religião judaica, ao tempo no NT, tudo estava prescrito e determinado, tanto nas relações com Deus como entre os homens. A Lei era a manifestação da vontade de Deus. Com isso a
consciência
sente-se oprimida por um fardo insuportável de prescrições legais (Mt 23:4).
Jesus levanta um protesto contra a escravização do homem em nome da lei (Mc 2:27). A pregação ética de Jesus pode ser resumida em uma frase: não é a lei que salva, mas o amor. Em outras palavras ele desteologiza a concepção da lei. A vontade de Deus não se encontra só nas prescrições legais e nos livros santos, mas se manifesta principalmente nos sinais dos tempos (Lc12:54-57).
Deve
ficar claro que, se Jesus liberta o homem das leis, não o entrega a
libertinagem ou a irresponsabilidade. Antes pelo contrário, cria laços e
ligações ainda mais fortes que os da lei. Liberdade sim, frente a lei. Contudo
só para o bem e não para a libertinagem. Desta forma, ele deseja libertar o
homem das convenções e dos preconceitos sociais. No Reino de Deus deve haver
liberdade e igualdade fraterna. Nesta concepção, justiça supera o conceito
clássico de dar a cada um o que é seu. Jesus vem anunciar uma igualdade
fundamental. Ele confronta toda a subordinação desumanizadora a um sistema,
seja social ou religioso.
Um outro aspecto deste processo de libertação, passa pelo mundo das pessoas,
como por exemplo a libertação do legalismo, das convenções sem fundamento, do
autoritarismo e das forças e potentados que subjugam o homem. Estas forças eram
representadas particularmente pelos escribas e fariseus, que viviam espalhados
por todo Israel, comandavam as sinagogas, possuíam enorme influencia sobre o
povo e para cada caso tinham uma solução que arrancavam pelos cabelos das
tradições religiosas do passado e dos comentários da lei mosaica. Quanto
a eles Jesus declara que dizem e nada fazem. Atam pesadas cargas de preceitos e
leis e põem-nas nos ombros dos outros.
Jesus prega que para entrar no Reino não basta fazer o que a lei ordena. A presente ordem das coisas não pode salvar o homem da sua alienação fundamental. Ela é uma desordem. Urge uma mudança de vida e uma reviravolta nos
fundamentos da velha situação. Por isso os marginalizados da ordem vigente
estão mais próximos do Reino de Deus que os outros. Jesus vai além das
fronteiras da lei, para o local onde habitam aqueles a quem o povo e os
letrados consideram pecadores. Ele veio de forma provocativa.
Podia
ter vindo de maneira mais interna, silenciosa, oculta. Podia ter se mostrado
como um homem espiritual, prudente. Preferiu, no entanto, comportar-se
escandalosamente: sentou à mesa com os pecadores, oficiais de seu povo
(publicanos e prostitutas), convidando-os assim para o banquete novo de seu Reino. Ele rompe as convenções sociais da época, não se atém às convenções religiosas e não respeita as divisões de classes. Ele realiza sua ação no reverso da história.
Texto do Jorge Pinheiro, 21 de
setembro de 2003.