lundi 17 mai 2021

O universo na mística judaica 2

O universo na mística judaica – II 
Jorge Pinheiro


Para os rabinos expositores da criação ex nihilo (a partir do nada), assim como para os defensores do processio Dei ad extra (processo dentro do Eterno) a intenção primeira de Gênesis-Um é apresentar o Eterno como criador, que utiliza tohu e bohu (sem forma e vazio, o caos) como matéria-prima para a formação do universo. E é a partir dessa relação entre surgimento do universo e revelação, que os estudiosos judeus entenderão a redenção, já que o estágio final do mundo revelado significa uma volta ao começo, uma nova criação.

“A Redenção deveria ser conseguida não por um movimento tempestuoso na tentativa de apressar crises e catástrofes históricas, mas antes pela remarcação do caminho que conduz aos primórdios da Criação e da Revelação, ao ponto em que o processo do mundo (a história do universo e de Deus) principiou-se a desenvolver-se dentro de um sistema de leis. Aquele que conhecia a senda pela qual viera podia ter esperanças eventualmente de poder retornar sobre seus passos”. [Gershom Scholem, A Mística Judaica, São Paulo, Perspectiva, 1972, p. 248].

Assim, mais do que qualquer intencionalidade em apresentar a cronologia do surgimento do universo, Gênesis Um apresenta uma ordem enquanto dialética da estrutura e acidentalidade. Esse processo é interpretado por Scholem como “o primeiro ato, o ato do tzimtzum, no qual Deus determina e (...) limita a Si mesmo, é um ato de julgamento que revela as raízes dessa qualidade em tudo o que existe. Essas raízes do julgamento divino subsistem em mistura caótica com o resíduo da luz divina que remanesceu, após a retirada ou retraimento original, dentro do espaço primário da criação de Deus. Então um segundo raio de luz emanado da essência do Ein-Sof traz ordem ao caos e põe o processo cósmico em movimento, ao separar os elementos ocultos e moldá-los em nova forma” [Iossef ibn Tabul in Gershom Scholem, Kiriat Sefer, vol. XIX, pp. 197-199]. 

E dois escritos antigos nos mostram que a hipótese da creatio ex nihilo tem base num texto do profeta Isaías, “assim diz Adonai, teu redentor, aquele que te modelou desde o ventre materno. Eu, Adonai, é que fiz tudo, e sozinho estendi os céus e firmei a terra. Com efeito, quem estava comigo? ” (Is 44.24), como num apócrifo intertestamentário: “Eu te suplico, meu filho, contempla o céu e a terra e observa tudo o que neles existe. Reconhece que não foi de coisas existentes que Deus os fez, e que também o gênero humano surgiu da mesma forma”. 2 Macabeus 7.28. 

À primeira vista, a cosmogonia judaica define a centralidade de Gênesis-Um no ato criativo do Eterno apenas enquanto espacialidade. Seria uma busca do lugar, da centralidade espacial. O que leva alguns especialistas a afirmarem que não há nenhum elemento espaço-temporal em Gênesis. Mas, isso não é verdade. Em 1740, Anton Lazzaro Moro, cristão novo, geólogo e exegeta italiano, desenvolveu uma sofisticada defesa da hipótese espaço-temporal em Gênesis Um. Dizia ele que tudo que está “envolto e fechado” precisa de um tempo para libertar-se e tornar-se evidente, e que o Eterno, ao criar a natureza, colocou-se como administrador das leis criadas. Daí concluiu: 

“Quando a Escritura afirma que ‘Spiritus Dei ferebatur super aquas (...)’ indica uma função que traz consigo sucessão de tempo” [Anton Lazzaro Moro, De Crostacei e degli altri Corpi Marini che si Truovano su Monti, 1740, apud Paolo Rossi, A Ciência e a Filosofia dos Modernos, São Paulo, Editora Unesp, 1992, p. 345].

Desenvolvendo sua tese espaço-temporal, explicou que toda a criação sofreu duas produções diferentes, que precisam ser cuidadosamente separadas: “a primeira é a do nada pela mão imediata do criador; a outra provém do seio das segundas causas acionadas pelo administrador da natureza. A primeira produção é instantânea e é ato divino proporcionado pela onipotência e eternidade de Deus; a segunda [produção] implica que o ato divino seja adaptado às exigências da natureza que Deus estabeleceu em cada coisa” [idem, op. cit., p. 345]. 

A partir daí sua cosmogonia é surpreendente. Explica que foi o Eterno quem moveu circularmente “a celeste matéria de todo o planetário vórtice”, obrigando essa matéria que formaria o Sol a colocar-se no lugar que lhe era destinado. Constatando que seja qual for a velocidade que se queira atribuir ao movimento diário do Sol e de seu vórtice, “isso não aconteceu num só dia e em só vinte e quatro horas”.

A formação do Sol, assim como a produção dos planetas, “comprova que aqueles seis dias não foram de medida igual aos dias modernos, mas que foram espaços de tempo de duração muito mais longa, ou seja, de uma duração proporcional à atividade das causas segundas e à exigência dos efeitos produzidos; espaços esses que foram chamados dias, conforme o costume freqüentemente usado nas Escrituras de exprimir com o nome de dias certos espaços de tempo longos e indeterminados”, afirmou Moro [idem, op. cit., p. 347].

É interessante ver como a física do século XX, principalmente aquela que sofreu influências dessa mesma cosmogonia, traduziu para uma nova linguagem antigos conceitos. 

É verdade, que desde Aristóteles a ciência avaliou equivocadamente o conceito tempo, considerando-o absoluto, sem relação imediata e causal com o espaço. Pensou um tempo sem ambigüidades, achando que se fosse medido corretamente, entre dois espaços ou eventos, o intervalo de mensuração seria sempre igual. Durante séculos, inclusive para Newton, o tempo foi independente do espaço. Mas, em 1905, Einstein tornou pública uma nova teoria de espaço, tempo e movimento, que ele chamou de relatividade especial. Comprovada em experiências de laboratório, essa teoria, aceita pela maioria dos físicos, levanta algumas hipóteses, como a equivalência da massa e da energia, a elasticidade do espaço e do tempo e a criação e destruição da matéria. Dez anos depois, na seqüência da teoria anterior, Einstein publicou a sua teoria da relatividade geral, com novas afirmações: a curvatura do espaço e do tempo, a possibilidade de que o universo seja finito, mas ilimitado e a possibilidade de o espaço e o tempo se esmagarem, deixando de existir.

”Estas considerações levou-nos a conceber teoricamente o universo real como um espaço curvo, de curvatura variável no espaço e no tempo, de acordo com a densidade de distribuição da matéria, susceptível porém, quando considerada em larga escala, de ser tomado como um espaço esférico. Esta concepção tem, pelo menos, a vantagem de ser logicamente irrepreensível, e de ser aquela que melhor se cinge ao ponto da teoria da relatividade geral”. [Albert Einstein, Considerações Cosmológicas sobre a Teoria da Relatividade, in O Princípio da Relatividade, H. A Lorentz, A. Einstein, H. Minkowski, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1958, pp. 239-240].

E ao criticar a teoria do tempo absoluto, Einstein mostrou que à medida que o deslocamento de um objeto se aproxima da velocidade da luz, sua massa aumenta mais rapidamente, de forma que gasta mais energia para aumentar sua velocidade. Por isso, muito possivelmente nunca possa atingir a velocidade da luz, pois deixaria de ter massa intrínseca. O importante dessa teoria é ter modificado a compreensão de tempo e de espaço. Antes, considerava-se que a velocidade da luz fosse a distância que ela percorre, dividida pelo tempo que leva para fazer isso. Agora, compreendemos que a velocidade pode ser a mesma, mas não a distância percorrida. A partir da teoria da relatividade, o conceito de simultaneidade, ou seja, da existência de um mesmo momento em dois lugares diferentes, deixou de ter qualquer significado em termos de universo.

O tempo não-determinado

Em linguagem da física da relatividade o tempo gasto é a velocidade da luz multiplicada pela distância que a luz percorreu. Temos então várias medidas de tempo, ou seja, medições diferentes entre dois eventos ou espaços. Gênesis nos apresenta este conceito de tempo com yom que aparece como tempo não determinado/quando em Gn 3.5; tempo não determinado/período em Gn 1.14, 16, 18; tempo não determinado/época em Gn 2.4.

Deixamos de ter, então, dois conceitos separados e absolutos: o tempo e o espaço, para termos um, o espaço-tempo. Ora, um evento é algo que acontece num determinado ponto do espaço e logicamente num tempo também determinado. Só que não há separação entre essas duas unidades. Uma das premissas da teoria da relatividade, conforme expõe Stephen Hawking, é que o tempo corre mais lentamente perto de um corpo volumoso [Uma breve História do Tempo, Rio de Janeiro, Rocco, 1988, pp. 35-60]. Assim, na Terra, para tomarmos um exemplo próximo, o tempo é mais lento que em outros planetas ou luas de menor massa. Isto porque existe uma relação entre energia da luz e sua freqüência. Quanto maior a energia, maior a sua freqüência.

Dessa maneira, à medida que a luz percorre verticalmente o campo gravitacional da Terra perde energia e sua freqüência diminui. Em outras palavras, espaço e tempo são quantidades dinâmicas. Quando um corpo se move no universo afeta a curva do espaço-tempo e, por sua vez, a curva do espaço-tempo afeta a forma como os corpos se movem e as forças atuam. Só que, e esse conceito é importante para a relatividade geral, não há como falar de espaço-tempo fora dos limites do universo. Essa premissa é interessante, pois descarta a idéia de um universo imutável, que sempre existiu, para trabalhar com a possibilidade de um universo que teve início e é plástico.

Assim, para a teoria da relatividade o universo teve começo como singularidade, o possível Big Bang, e deverá ter um fim também singular, o possível Big Crunch. E como o espaço-tempo é finito, mas sem limites, o Big Crunch poderia levar a uma concentração de energia tal que muito possivelmente possibilitaria a formação de um novo universo.

“De forma semelhante, se o universo explodisse novamente, deveria haver outro estado de densidade infinita no futuro, o Big Crunch, que seria o fim do tempo. Mesmo que o universo como um todo não entrasse novamente em colapso, haveria singularidades em algumas regiões determinadas, que explodiriam para formar buracos negros. Essas singularidades seriam o fim do tempo para quem ali caísse. Na grande explosão e demais singularidades todas as leis são inoperantes. Então, Deus ainda teria tido completa liberdade para escolher o que aconteceu e como o universo começou”. [Stephen Hawking, idem, op. cit., p. 236].

Ora, como a expansão do universo implica em perda de temperatura, que é uma medida de energia, quando o universo dobra de tamanho, sua temperatura cai pela metade. Assim, quando o Eterno criou o universo, supõe-se que tinha tamanho zero e temperatura infinitamente quente. Mas à medida que se expande, a temperatura cai. Isso explica porque o universo é tão uniforme, e parece igual mesmo nos mais diferentes pontos do espaço. Uma das consequências, caso consideremos o fiat divino como o Big Bang, é que a partir da grande explosão não houve tempo de a luz se deslocar por ilimitadas distâncias. É por isso que Gênesis apresenta em primeiro lugar tohu e bohu, as trevas e o abismo, e só no versículo três o surgimento da luz.

É interessante ver que uma das possibilidades que alguns físicos baralham é a de que o Eterno escolheu a configuração inicial do universo por razões que não temos condições de compreender. Consideram que os acontecimentos da criação não se deram de forma arbitrária, mas refletem um ordem comum. Hawking opta por uma variável que chama limitação caótica ou escolha ao acaso. Dentro desse ponto de vista, o universo primordial surgiu como caos. Ora, a segunda lei da termodinâmica mostra que há essa tendência no universo, e que a ordem e o equilíbrio, ou seja, a vida, que é a forma mais organizada da matéria, surge como oposição a este caos.

“Einstein uma vez formulou a pergunta: ‘Que nível de escolha Deus teria tido ao construir o universo?’ Se a proposta do não limite for correta, ele não teve qualquer liberdade para escolher as condições iniciais. Teria tido, ainda naturalmente, a liberdade de escolher as leis a que o universo obedece. Isto, entretanto, pode não ter sido um grau assim tão elevado de escolha. Pode ter sido apenas uma, ou um pequeno número de teorias completas unificadas, tal como a teoria do filamento heterótico, que são autoconsistentes e permitem a existência de estruturas tão complexas quanto os seres humanos, que podem investigar as leis do universo e fazer perguntas acerca da natureza de Deus”. [Stephen Hawking, idem, op. cit., p. 237].

E Prigogine e Stengers explicaram que “toda variação de entropia no interior de um sistema termodinâmico pode ser decomposta em dois tipos de contribuição: a entrada exterior de entropia, que mede as trocas com o meio e cujo sinal depende da natureza dessas trocas, e a produção de entropia, que mede os processos irreversíveis no interior do sistema. É essa produção de entropia que o segundo princípio define como positiva ou nula”. [Ilya Prigogine e Isabelle Stengers, Entre o Tempo e a Eternidade, São Paulo, Companhia das Letras, 1992, p. 53].

E a partir da termodinâmica, Hawking trabalha com as setas do tempo. “As leis científicas não distinguem entre as direções para frente e para trás do tempo. Entretanto, há pelo menos três setas de tempo que distinguem o passado do futuro, que são a seta termodinâmica, direção do tempo em que a desordem aumenta; a seta psicológica, direção do tempo na qual se recorda o passado e não o futuro; e a seta cosmológica, direção do tempo em que o universo se expande mais do que se contrai. Demonstrei que a seta psicológica é essencialmente a mesma que a termodinâmica, de modo que ambas sempre apontam para a mesma direção. A proposta do não limite para o universo prevê a existência de uma seta termodinâmica do tempo bem definida, porque o universo deve começar num estado plano e ordenado. E a razão por que se observa esta seta termodinâmica se adequar à cosmologia é que os seres inteligentes só podem existir na fase de expansão”. [Stephen Hawking, idem, op. cit., pp. 210, 211].

Coerente com sua visão de que o Eterno não joga dados com o universo, Einstein combateu às teses de acausalidade na mecânica quântica, defendidas pelas escolas de Copenhagem e Gottingen.

“Não posso suportar a idéia de que um elétron exposto a um raio de luz possa, por sua própria e livre iniciativa, escolher o momento e a direção segundo o qual deve saltar. Se isso for verdade, preferia ser sapateiro ou até empregado de uma casa de jogos em vez de ser físico”. Citado por Franco Selleri, Paradoxos e realidade, Ensaios sobre os Fundamentos da Microfísica, Lisboa, Fragmentos, 1990, p. 41.

Em 1944, voltaria à carga: “Nem sequer o grande sucesso inicial da teoria dos quanta consegue convencer-me de que na base de tudo esteja o indeterminismo, embora saiba bem que os colegas mais jovens considerem esta atitude como um efeito de esclerose. Um dia saber-se-á qual destas duas atitudes instintivas terá sido a atitude correta”. [Einstein, idem, op. cit. p. 59].

Ao finalizar este artigo desejo colocar em relevo algumas constatações presentes nessas reflexões sobre a origem do universo a partir da mística judaica.

A primeira é que a descrição do primeiro versículo de Gênesis-Um está fora do espaço-tempo. O surgimento do espaço-tempo teve início com o caos, que não deve ser entendido como negação ou pura ausência, mas como entropia. É universo espaço/temporal que repousa nos quatro conceitos enumerados por Noach: determinação, proclamação, trabalho e ordem.

Em segundo lugar, o tempo de Gênesis Um não é o tempo que conhecemos e no qual nos movemos, mas é o tempo da ordem/organicidade, tempos não determinados, épocas. Ou seja, o surgimento do universo implicou na expansão do espaço-tempo, assim o espaço-tempo de Gênesis 1.3 é totalmente diferente do espaço-tempo de Gênesis 1.12.

E, por fim, a expressão hebraica yom, presente nos textos de Gênesis Um, também não é a medida dos dias atuais, mas espaços de tempo de duração longa ou de duração proporcional à atividade das causas segundas e à exigência dos efeitos produzidos. Tivemos, então, um processo de expansão permanente, dentro dos limites das leis naturais e da liberdade de possibilidades.



dimanche 16 mai 2021

Judeus e palestinos, reivindicações históricas pela terra

A questão judaico-palestina
Reivindicações históricas pela terra


Jorge Pinheiro
Doutor em Ciências da Religião na Universidade Metodista de São Paulo, UMESP. 


O termo Palestina é originário de Philistines ou filisteus, povo egeu que, no século 12 a.C. se estabeleceu ao longo da planície costeira do Mediterrâneo, conhecida hoje como a Faixa de Gaza. No século dois a.C., após derrotar os judeus, os romanos deram o nome de Palestina à terra. 

Em 638, a conquista árabe da planície costeira do Mediterrâneo deu início a 1.300 anos de presença árabe na região. Porém, o país nunca foi exclusivamente árabe. Após as invasões muçulmanas do século sete, o árabe tornou-se gradualmente a língua da maioria da população da região. 

A cidade de Jerusalém é considerada a terceira mais sagrada na religião islâmica: as primeiras são Meca e Medina. Acredita-se que Jerusalém seja o local onde o maior profeta islâmico, Maomé, subiu aos Céus. A mesquita al-Aqsa, onde o domo da Rocha foi posteriormente construído, marca este ponto, que é sagrado para os muçulmanos. 

Enquanto os muçulmanos lideraram a região, cristãos e judeus viviam em paz, já que eram considerados os povos do Livro. Cristãos e judeus tinham controle autônomo em suas comunidades e era-lhes permitido praticar suas crenças com liberdade e segurança. Tal tolerância religiosa demonstrada pelo povo muçulmano é rara na história humana.

Em 1517, os turcos otomanos da Ásia Menor conquistaram a região e, com poucas interrupções, governaram a Palestina, até o inverno de 1917-1918. A região foi então dividida em diversos distritos, dentre eles, Jerusalém. A administração dos distritos foi cedida em grande parte aos árabes palestinos. As comunidades cristãs e judaicas, porém, receberam grande autonomia. A Palestina compartilhou a glória do Império Otomano durante o século 16, mas foi negligenciada quando o império começou entrar em declínio no século 17. 

Em 1882, menos de 250.000 árabes viviam no local. Uma parte significante da terra pertencia aos senhores que viviam no Cairo, Damasco e Beirute. Oitenta por cento dos árabes palestinos eram camponeses, nômades ou beduínos. 

Em 1917-1918, com apoio dos árabes, os britânicos capturaram a Palestina dos turcos otomanos. Na época, os árabes palestinos não se consideravam como sendo uma nacionalidade em separado. Eram parte de uma Síria árabe. O nacionalismo árabe palestino é, em grande parte, um fenômeno do pós Primeira Guerra Mundial. 

Em 1921, o Secretário Colonial britânico Winston Churchill separou quase 4/5 da Palestina – aproximadamente 35.000 milhas quadradas -- para criar um emirado árabe, a Transjordânia, conhecida hoje como Jordânia. Este país, que é uma monarquia árabe, é em sua maioria composto por palestinos que hoje representam aproximadamente 70% da população. 

Assim, o conflito árabe-israelense teve origem com a constituição do Estado de Israel nos territórios da antiga Palestina britânica e os movimentos de reação árabe, após um processo que inclui a migração organizada de judeus para a Palestina, a aquisição de terras, a instalação de empresas, colônias agrícolas, escolas e a organização militar dos imigrantes. 

A administração britânica na Palestina, recomposta após o fim da 2a Guerra Mundial, adotou uma política de dividir para reinar, apoiando-se ora os árabes, ora os judeus. Os dois lados adotam o terrorismo como forma de luta. 

Em 1939, os britânicos anunciaram o White Paper (Carta Branca), um documento relatando que um estado árabe independente e não dividido seria estabelecido na planície costeira do Mediterrâneo dentro de 10 anos. O nacionalismo árabe cresceu com a promessa de um estado forte. Mas, os britânicos não foram capazes de manter sua promessa aos árabes. 

O estado de Israel e as guerras na região

Em 1947, a Assembleia Geral da ONU e a Agência Judaica aprovam a divisão da planície costeira do Mediterrâneo, mas os árabes a rechaçam. Um exército da Liga Árabe ocupou a Galileia e atacou Jerusalém. Em 14 de maio de 1948, o Conselho Nacional Judeu proclamou o Estado de Israel, enquanto o ataque árabe foi contido pela mediação da ONU e pela superioridade da aviação israelense. Grande parte da população árabe abandonou a Palestina. Em maio de 1948 o Reino Unido renunciou ao mandato sobre a Palestina e retirou suas tropas, deixando a região no caos. 

Entre 1948 e 1956 o Estado israelense se consolidou com a migração maciça de judeus, o pagamento de US$ 3,5 bilhões pela Alemanha Ocidental como reparação de guerra, a implantação da agricultura coletivizada nos chamados kibutzim, indústrias de alta tecnologia, serviço militar obrigatório para homens e mulheres e a manutenção de um Exército moderno. Foi então, em 1948, estabelecido o estado de Israel. 

No fim da guerra (1949), Israel ocupou áreas cedidas pela ONU aos palestinos, principalmente na Galileia. Gaza ficou sob domínio egípcio, e a Cisjordânia, incluindo Jerusalém Oriental, sob domínio da Jordânia.

A guerra de 1956 teve origem nas tensões fronteiriças geradas pelo projeto de utilização das águas do rio Jordão por Israel, em 1952. Agrava-se com ataques de comandos árabes (fedayin) aos colonos judeus e a nacionalização do Canal de Suez pelo Egito, com apoio soviético, em 1956. Milícias palestinas realizaram ataques contra Israel do Líbano, da Cisjordânia e de Gaza. 

Assim, em 1967, após mobilização de tropas árabes contra suas fronteiras, Israel atacou o Egito com o objetivo de manter o canal aberto e controlar o golfo de Ácaba. Em outubro, com o apoio tácito do Reino Unido e da França, os israelenses ocuparam o Sinai e a Faixa de Gaza em uma semana. 

Em novembro foi criada uma força de paz da ONU para supervisionar o cessar-fogo. A ocupação da Faixa de Gaza e a consolidação do Estado de Israel aguçaram a questão dos refugiados palestinos, cuja integração é negada tanto por Israel quanto pelos países árabes. 

Em 1967 teve início outra guerra, a dos Seus Dias. Surgiu da reação egípcia contra a permanência das tropas da ONU, o bloqueio do porto de Eliat, no golfo de Ácaba, e a assinatura de um acordo militar com a Jordânia, em maio de 1967. Os israelenses, usando como pretexto o bloqueio no golfo de Ácaba e a intensificação do terrorismo palestino contra Israel, atacam o Egito, Síria e Jordânia em 5 de junho. Conquistam toda a península do Sinai até o canal de Suez (Egito), a Cisjordânia e as colinas de Golan (Síria).

A guerra do Yom Kippur teve como motivo a ocupação permanente dos territórios conquistados em 1967 por Israel e a instalação de colônias judaicas. Em 6 de outubro (dia do Yom Kippur ou do Perdão, feriado religioso judaico) de 1973, os sírios atacam as colinas de Golan pelo norte, enquanto os egípcios atacam pelo sudoeste, a partir do Canal de Suez. Forçam os israelenses a abandonar suas linhas de defesa fortificada (Bar-Lev) e os campos petrolíferos de Balayim e ocupam toda a área do canal. Contra-ataque israelense obriga o recuo egípcio e sírio, bombardeia Damasco e bases de mísseis e artilharia do Egito e ameaça expandir-se. Em 22 de outubro, a intervenção diplomática soviético-americana impõe um cessar-fogo.

Em 1977, Israel iniciou conversações com o Egito, que culminaram em um acordo de paz e a devolução do deserto do Sinai.

Em 1993, palestinos e israelenses iniciaram um processo de paz que previa retirada gradual de Israel dos territórios em troca de reconhecimento palestino do Estado judeu. Israel passou a se retirar paulatinamente dos centros urbanos palestinos.

Mas Israel seguiu expandindo suas colônias em Gaza e Cisjordânia, enquanto palestinos seguiram cometendo atentados.

Em julho de 2000, o líder palestino Iasser Arafat rejeitou uma proposta de acordo de paz de Israel, com devolução da quase totalidade de Gaza e Cisjordânia e representação palestina em Jerusalém. A questão da volta dos refugiados palestinos, que acabaria com a maioria judaica em Israel, era o principal entrave. A atual revolta palestina contra a ocupação israelense começou em setembro do mesmo ano.

O moderno estado de Israel está situado em um território que já foi conquistado por muitos povos: assírios, babilônios, persas, gregos, romanos, árabes muçulmanos e turcos otomanos. O país, localizado na costa oriental do Mar Mediterrâneo, é conhecido como a Terra Santa. Para os judeus, a terra é santa porque lhes foi prometida por Deus; para os cristãos, porque Jesus nasceu e viveu lá; para os muçulmanos, porque Jerusalém é o local da subida do profeta Maomé aos Céus.

Em 1948, o estado de Israel foi estabelecido e, desde então, esteve envolvido em guerras e conflitos com seus vizinhos árabes. 

Resumo da história dos judeus na terra

O laço judeu à terra de Israel data de mais de 3.700 anos. De acordo com a Bíblia, Deus prometeu que os descendentes do patriarca Abraão herdariam a terra. A Bíblia revela que os hebreus foram escravizados no Egito, até que Deus o libertou. Após sua libertação do Egito, os hebreus foram liderados por Moisés -- o maior profeta da história judaica -- e levado à terra de Israel. No entanto, foi Josué, sob o comando de Deus, que conquistou a terra, iniciando a penetração hebréia na região. 

Os judeus não tinham um nome especial para seu país. Chamavam-no simplesmente “eretz” (a terra), “eretz Israel”, “Israel”, “Cana’an”. O nome Palestina, como vimos, só surgiu com os romanos. É uma corruptela de Filístia e, originalmente, significava apenas o litoral sul daquilo que hoje chamamos Palestina.

Não é possível para a mentalidade gentílica apreciar plenamente o sentimento do judeu para com a terra. Para ele, significava o cenário divino para a execução da salvação. A terra do judaísmo era uma parte da religião do judaísmo. A terra por excelência, a dádiva especial de Iaveh ao Israel eleito. 

Os hebreus formaram a sua primeira monarquia constitucional por volta do ano 1000 a.C. O segundo rei dos judeus, Davi, estabeleceu Jerusalém como a capital do país e seu filho Salomão liderou a construção do templo de Jerusalém. 

Mais tarde, nos anos da ocupação helênica, Israel estava restrito ao distrito de Iahud (Judá), delimitado desde a época do império persa. A capital de Iahud era Jerusalém, mas também pertenciam ao distrito as cidades de Emaús, Belém, Mizpá, Betel e Lida. O distrito de Iahud era uma pálida lembrança da eretz Israel dos tempos de Davi e Salomão.

Durante a guerra dos macabeus, Israel foi reconquistando seu território histórico. E sob o governo de Alexandre Ianai (102 a 72 a.c.) voltou a ocupar o máximo de sua extensão territorial. Essa Palestina histórica mede, aproximadamente, 20 mil quilômetros quadrados de área. Ao norte, encontram-se os picos elevados do Líbano e do antilíbano. No leste e sul - durante séculos - estiveram as habitações nômades dos beduínos (árabes) e o reino dos Nabateus. Esses vizinhos eram sinônimos de rixas permanentes. É importante notar que o conceito de limite não era preciso. Não havia uma fronteira legalmente estabelecida, delimitando a Palestina ou separando seus vários distritos. Não podemos, por exemplo, falar com precisão de uma linha demarcatória entre a Judeia e a Samaria.

Os diferentes distritos eram separados por uma orla indefinida, com um ou vários quilômetros de largura, reconhecida como terra de ninguém. As “partes de Tiro e Sidom” (Mateus 15:21) eram a orla de terra entre a Galileia e a Fenícia, ocupada tanto pelos judeus como pelos gentios. E as “partes de Cesareia de Filio” (Mateus 16:13) eram as faixas dos domínios de Filipe.

A Judeia, tendo Jerusalém como centro, era o verdadeiro coração da “terra”. Contudo, havia em torno da Palestina uma larga faixa territorial que o judaísmo considerava potencial e legitimamente “a terra de Israel”, Embora realmente não fosse assim. A Palestina está localizada no grande distrito desértico da Ásia sudoeste e, por isso, seu clima deveria ser bem seco. Entretanto, sua vizinhança com o mar Mediterrâneo vem mitigar em grande parte a situação.

Ali, o ano na Palestina pode ser dividido em duas estações: a úmida e a seca. A estação úmida começa em outubro e a seca em abril. Daí segue que a maior parte da semeadura acontece nos meses de inverno, a fim de aproveitar as chuvas, que em média são de apenas 50 a 60 centímetros por ano.

Quanto à temperatura, o clima da Palestina é temperado. A neve é rara, mesmo na Galileia, exceto nos pontos mais altos. A temperatura média é de 30o c, subindo raramente acima dos 42o c no verão, ou caindo abaixo dos 18o c.

A topografia da Palestina define-se através de quatro caracteres físicos distintos. São a costa mediterrânea; as montanhas do Líbano, com sua extensão para o sul; o vale do Jordão; e as montanhas do antilíbano, também se estendendo para o sul.

A costa da Palestina é regular. Em todo o seu comprimento, a única baía de tamanho algo apreciável é a do Aco (Acre). Ao sul do monte Carmelo, o contorno da costa é praticamente reto, não oferecendo um porto natural. Mas ao norte do Carmelo há numerosas projeções pequenas de terra, que foram amplamente utilizadas pelos fenícios. As montanhas do Líbano e do antilíbano são divisões de uma longa cordilheira, que se ramifica a partir das montanhas do Cáucaso. A cadeia do Líbano desce até a península sinaítica, com duas interrupções: uma na planície do Esdraelom; a outra no deserto de Parã. Do Hermon, os montes antilibaneses mergulham subitamente para a planície de Basã, erguendo-se em seguida para o planalto de Gileade e Moabe, ponto em que a cadeia entra gradativamente em declive, resolvendo-se nuns poucos montes esparsos, situados no centro do deserto arábico.

Entre as montanhas do Líbano e antilíbano fica a vasta depressão que forma o vale do Jordão. Tanto o rio, como o vale, principiam no ponto em que a volumosa cadeia se divide, no norte da Palestina. O rio Jordão desce 216 quilômetros em direção ao mar Morto. A partir daí, o rio desliza gradativamente para o golfo de Ácaba.

Esta é a “eretz”. A terra da promessa e bênçãos divinas, terra de sagradas tradições e de proezas santas. Uma terra pequena, mas peculiar. 

No ano 70 d.C., os romanos destruíram o templo. Tudo o que restou de pé foi sua muralha ocidental, conhecido por todos como muro das lamentações, considerado pelo judaísmo como o local mais sagrado do mundo. Sendo assim, pessoas de vários países, judeus e não-judeus, visitam o muro em Jerusalém. Elas escrevem bilhetes com pedidos a Deus e os colocam entre suas pedras. 

Além de destruir o templo de Jerusalém, os romanos expulsaram os judeus de sua terra, dando início à diáspora, que significa a dispersão dos judeus para outros países do mundo. Contudo, apesar de terem sido conquistados pelos romanos, muitos judeus continuaram a viver na região. 

Por volta do século IX, comunidades judaicas foram restabelecidas em Jerusalém e Tibérias. No século XI, a população judaica crescia nas cidades de Rafah, Gaza, Ashkelon, Jaffa e Caesarea. Durante o século XII, muitos judeus que viviam na região foram mortos pelas Cruzadas, mas nos séculos seguintes, a imigração para a terra continuou. Mais comunidades religiosas judaicas se fixaram em Jerusalém e em outras cidades.

Um dos pontos fundamentais da fé judaica é que todo o povo será liderado de volta à terra e que o templo será restabelecido. Muitos judeus acreditam que o Messias, que será enviado por Deus, irá liderar o retorno de todo o povo judeu à terra. 

Contudo, muitos judeus acreditavam que eles próprios deveriam iniciar o retorno à terra. A ideia de estabelecer um estado judeu moderno ganhou grande popularidade no século 19 na Europa. Em parte isso foi fruto do aparecimento do anti-semitismo, que levou ao surgimento de pogroms – massacres organizados de judeus – na Rússia e na Europa Oriental. 

Esta violência notória contra judeus europeus ocasionou imigrações maciças para a Terra de Israel. Em 1914, o número de imigrantes vindos da Rússia para a Palestina já alcançava os 100 mil imigrantes. Simultaneamente, muitos judeus vindos do Iêmen, Marrocos, Iraque e Turquia imigraram para a região. Quando os judeus começaram, em 1882, a imigrar para seu antigo território em grande escala, viviam por lá menos de 250.000 árabes. 

Um jornalista austríaco chamado Theodor Herzl levou adiante a ideia do sionismo, definido como o movimento nacional de libertação do povo judeu. O sionismo afirma que o povo judeu tem direito ao seu próprio estado, soberano e independente, e cresceu como reação ao anti-semitismo e influenciado pelo nacionalismo na Europa.

No início do século 20, viviam na Palestina sob domínio do Império Otomano cerca de 500 mil muçulmanos e 50 mil judeus. Após a Primeira Guerra (1914-1918), a Palestina passou para mãos britânicas, cujo chanceler, Arthur Balfour, declarou, em 1917, apoio à "instalação de um lar nacional judeu" no local.

A população judaica na Palestina chegou a cerca de 300 mil na década de 1930, causando reação violenta dos árabes. Pressionada Londres restringiu a imigração judaica à região, mesmo com o avanço nazista na Europa.

Após o Holocausto, que matou cerca de seis milhões judeus europeus, o movimento sionista ganhou força. A ONU aprovou a partilha da região em dois Estados, um judeu e outro palestino, com Jerusalém sob administração internacional. Os sionistas aceitaram a partilha, rechaçada pelos líderes árabes.

Argumentos judaicos a favor da terra

1. A terra de Israel foi prometida por Deus aos judeus. Esta é a antiga terra dos patriarcas e profetas bíblicos. As principais orações judaicas falam sobre o retorno do povo à sua cidade sagrada. As orações judaicas são feitas em direção a Jerusalém. Durante as festas judaicas, as orações são encerradas recitando a frase “ano que vem em Jerusalém”. 

2. Desde que os judeus foram exilados pelos romanos, a terra de Israel nunca foi estabelecida como um estado. A região foi colonizada por diversos impérios, mas nunca voltou a ser um estado soberano. Foram imigrantes judeus que desenvolveram a agricultura e construíram cidades para restabelecer um estado no seu lar histórico.

3. O estado de Israel foi criado pelas Nações Unidas em 1947. É um estado democrático, moderno e soberano. 

4. A terra de Israel foi comprada ou conquistada por Israel em guerras de defesa, após o país ter sido atacado por seus vizinhos árabes. 

5. Os árabes controlam 99.9% do território no Oriente Médio. Israel representa apenas um décimo de 1% da região. 

6. A segurança do povo judeu apenas pode ser garantida através da existência de um estado judeu forte e soberano.

A questão palestina e as guerras na região

A questão palestina surgiu como resultado do projeto de instauração do Estado de Israel e da decisão da ONU de dividir a Palestina em dois Estados. O Estado judeu ocupa uma área de 10 mil km², incluindo a Galileia oriental, a faixa que vai de Haifa a Telaviv e a região do deserto do Neguev até o golfo de Ácaba. O Estado palestino, associado à Jordânia, ocupa uma área de 11,5 mil km², incluindo a Cisjordânia e a Faixa de Gaza. Jerusalém recebe status internacional. 

A guerra de 1948 liquidou a decisão da ONU, já que o acordo de armistício de 1949 resulta na anexação da Cisjordânia pela Jordânia e na ocupação da Faixa de Gaza pelo Egito. Nenhum passo posterior é dado para implementar a decisão da ONU. A Constituição de um Estado que represente os 1,3 milhão de palestinos vivendo na região vira letra morta. 

Ao mesmo tempo, organizações extremistas israelenses, estimuladas pela omissão do Estado de Israel, das grandes potências e da ONU, desencadeiam ações terroristas contra os palestinos, visando expulsá-los e deixar o território livre para colonos judeus. O massacre de todos os 254 habitantes de Deir Yassin, em 1948, é o sinal para o êxodo em massa. Cerca de 300 mil palestinos permanecem em Israel após o êxodo para os países árabes vizinhos, mas sua situação é de cidadãos de segunda classe.

Argumentos palestinos a favor da terra

1. Os árabes muçulmanos viveram no local por muitos séculos. 

2. O povo palestino tem o direito à independência nacional e à soberania sobre a terra onde viveu. 

3. Jerusalém é a terceira cidade sagrada na religião muçulmana, local de elevação do profeta Maomé aos Céus. 

4. O Oriente Médio é dominado por árabes. Outras religiões ou nacionalidades não pertencem à região. 

5. Todos os territórios árabes que foram colonizados tornaram-se estados completamente independentes, exceto a Palestina. 

6. Os palestinos tornaram-se refugiados. Outros países árabes nunca os aceitaram completamente e eles vivem frequentemente em campos para refugiados tomados pela pobreza. 

Algumas considerações

O conflito entre israelenses e palestinos é acima de tudo uma questão geopolítica e religiosa. Acreditamos que acontecimentos históricos que levaram tanto ao estabelecimento do estado de Israel quanto ao conflito entre palestinos e israelenses envolvem questões geopolíticas e religiosas que exigem a desmilitarização do conflito e a formação de estados leigos e democráticos que possibilitem a convivência pacífica entre os povos, com plena liberdade de expressão religiosa para todas as nacionalidades envolvidas no conflito. 

Para isso, é necessário que as grandes potências, em parte responsáveis por esta guerra geopolítica e religiosa, parem de favorecer esta ou aquela parte, esta ou aquela etnia, esta ou aquela religião. Sabemos que tal proposta esbarra na questão do petróleo e no desejo de controle geopolítico da região.

De todas as maneiras, não haverá paz na região e muito menos fim do terrorismo se as democracias ocidentais não respeitarem o direito a autodeterminação dos povos, suas culturas e crenças.






vendredi 14 mai 2021

O universo da mística judaica -- 1

 O universo na mística judaica – I

Jorge Pinheiro

 

Aos olhos de Hitler e de seus fiéis, conforme descreve Raphaël Draï, existia um perigoso pensamento judaico, caracterizado por sua essência maléfica, inspiradora da física de Einstein, da literatura de Kafka, da música de Schoenberg e da psicanálise de Freud. [La Pensée Juive et L’Interrogation Divine, Exégèse et Épistémologie, Paris, Presses Universitaires de France, 1966, p.1].

 
Deixando de lado os delírios hitlerianos, podemos dizer que há um criativo pensamento judaico que, através dos séculos, soube combinar Torah e conhecimento, ética e epistemologia. Nosso propósito é, numa primeira aproximação, mostrar que os estudos judaicos dos conteúdos de Gênesis Um produziram uma epistemologia que interliga o conceito espaço/tempo em Gênesis Um com a teoria da relatividade. Essa dialética tem especial importância para a teologia, já que a partir dela podemos entender melhor a literalidade poética de Gênesis Um.

 
“No começar Deus criando o fogoágua e a terra./ E a terra era lodo torvo e a treva sobre o rosto do abismo/ E o sopro-Deus revoa sobre o rosto da água”. [Augusto de Campos, Bere’shith, A Cena da Origem, São Paulo, Perspectiva, 1988, p. 45].

 
O desafio maior para quem analisa significações é o próprio exercício da leitura. O desejo de conservar a linguagem pode levar a uma solução oposta àquela se pretende. Considerar o simbólico como abstrato e irrelevante é, em última instância, separar signo e objeto. Assim quando um texto passa a ser apenas e somente um conjunto fechado costumamos dizer que compreendemos o referido texto. Mas ao fazer isso, na verdade, eliminamos a possibilidade de restaurar sua intenção original e de ultrapassar a literalidade para captar o sentido primeiro de seu autor. Logicamente, esse midrash tem como ponto de partida, e exige como garantia, a compreensão do primeiro discurso.

 
Em novembro de 1942, o poeta e crítico Ezra Pound afirmava que “o mistério profundo da vida é descobrir porque os outros não compreendem aquilo que se escreve e diz. A coisa parece simples e clara ao escritor, mas outros o tomam em sentido diferente. E se gastam anos para saber porque e como” [Ezra Pound, Lettere 1907-1958, Milão, Feltrinelli Editore, 1980, p. 7].

 
Logicamente, como autor e crítico, Pound falava de hermenêutica em seu sentido laico. Ou seja, quando um texto pode ser percorrido em sua literalidade, e a partir daí é possível arrancar do discurso poético os elementos lógicos que lhe deram constituição. Mas mesmo assim, como alerta Pound, isso pode transformar-se em tarefa de anos.

 
Interpretar um texto considerado revelado, quando há um processo constante de interação dele com suas interpretações, arrancar dele significações é um desafio que não se resume à vida de uma pessoa ou a um curto período de anos. É nosso pressuposto que Gênesis Um enquanto palavra/ordem do Eterno apresenta mais receptáculos do que é perceptível na leitura de toda uma geração. Aqui há uma dialeticidade que permanece no equilíbrio de seus contrários, sem síntese definitiva: a revelação, essa interação do texto com suas interpretações, dá-se através da linguagem humana. Nossa necessidade histórica de interpretar nasce daí, dessa inadequação entre significante e significado.

 
“A tarefa do intérprete consiste, pois, na explicitação da mensagem divina, através do raciocínio bem dirigido. As conclusões a que se chega nada acrescentam ao significado do texto, pois já estavam contidas ali desde sempre; embora para ele sejam novas, uma vez que diferem do que está escrito, em si mesmas não o são, porque estavam gravadas no subsolo do texto que se interpretou. Contudo, sendo a Bíblia obra de um ser infinito, as interpretações jamais se esgotam. Cada novo corte no texto aprofunda o seu sentido, mas é sempre possível avançar mais. Elas se sucedem através do tempo, porém, por mais surpreendentes que pareçam, têm a garantia de se situarem no mesmo campo inicial”. [Renato Mezan, Freud: A Trama dos Conceitos, São Paulo, Perspectiva, 1982, p. 342].

 
Por isso, parto do pressuposto de que a Judische kopf nos últimos 1.900 anos apresentou uma hermenêutica bastante criativa de Gênesis Um. Esse midrash não ficou restrito aos círculos rabínicos, mas fez parte da tradição e da cultura do judaísmo através dos séculos. Escritores, artistas e cientistas judeus utilizaram esses conhecimentos em seus campos de trabalho. Einstein conhecia essas fontes, em parte desconhecidas para o mundo cristão, mas ricas e cheias de significados para todo intelectual judeu. Por isso, esta releitura da teoria do caos tem como roteiro a cosmogonia judaica e as idéias centrais da teoria da relatividade.

 
Albert Einstein era judeu. Foi um sionista militante durante toda sua vida, a ponto de em 1952 lhe ser oferecida a presidência de Israel. Não aceitou. Estava casado com a física. “As equações são mais importantes para mim porque a política é feita para o presente, ao passo que uma equação é algo para toda a eternidade”. [Stephen W. Hawking, Uma Breve História do Tempo, Rio de Janeiro, Rocco, 1988, pp. 240-241].

 
O tzimtzum

 
O judaísmo mostrou uma coerência em relação à hermenêutica de Gênesis Um. O retrair-se do Eterno para permitir que surgisse o vazio, o nada, e nele o universo, é desenvolvido na teoria da contração, em hebraico tzimtzum. Essa teoria formalizada pelo Rebe Luria (1534-1572) é uma das concepções mais surpreendentes do pensamento judaico. Isaac Luria, um dos maiores expoentes da tradição mística do judaísmo, nasceu no Cairo, mas desenvolveu seu ministério em Safed, na Palestina.

 
A expressão tzimtzum significa originariamente concentração, mas acabou sendo entendida como retirada. Segundo Scholem, Luria partiu de textos do Midrash, onde encontramos que o Eterno concentrou sua Shekiná, sua presença no Santo dos Santos, Assim todo seu poder retraiu-se num único ponto. Foi daí que surgiu a expressão tzimtzum. [Exod Raba ao Êx 25.10, Lev. Raba ao Lv 23.24; Pessikta de Rab Kahana, Ed. Buber 20a; Midrasch Schir Ha-Schidim, Ed. Griinhut, 1899, f. 15b, apud Gershom Scholem, A Mística Judaica, São Paulo, Perspectiva, 1972, p. 263].

 
Infelizmente, as duas idéias, concentração e retirada, que deveriam ser entendidas como complementares, já que o Eterno se retira e então concentra a sua luz sobre este ponto, dividiu os estudiosos em dois grandes grupos: os que defendem o tzimtzum como base para a doutrina da creatio ex nihilo e também para aqueles que defendem a doutrina da emanação (em hebraico atsilu) ou processio Dei ad extra.


O próprio Luria torna-se o principal expositor do processio Dei ad extra, que tem por base não um processo no tempo, mas uma estrutura da realidade, enquanto emanação, criação, formação e ação. Assim, para Luria e seus discípulos, níveis inferiores de realidade emanaram de níveis superiores que, por sua vez, tiveram origem no Eterno. Dentro dessa concepção há um midrash, a teoria do vaso quebrado, que trabalha com a hipótese de que o mundo foi feito de remanescentes de mundos anteriores, que o Eterno havia destruído. Uma conhecida lenda rabínica explica esse processo como o desprender de uma chama de carvão da roupa do Eterno.


“No princípio (Gênesis 1.1), a vontade do Rei começou a gravar signos na esfera superior. Do recesso mais oculto, uma negra chama brotou do mistério do ein sof, o Infinito, como um novelinho de massa informe, como que inserido no aro dessa esfera, nem branca nem preta, nem vermelha nem verde, de nenhuma cor. Somente depois de distender-se como um fio, produziu ela cores para luzir em si. Do âmago da chama, jorrou uma fonte da qual brotaram cores e se espalharam sobre tudo embaixo, oculto na ocultação mais misteriosa do ein sof. Mal rompeu ela, inteiramente irreconhecível, seu círculo de éter, sob o impacto da irrupção, um ponto oculto, superno fulgiu da irrupção final. Aquém desse ponto está excluído todo conhecimento e por isso ele é chamado reschit, princípio, a primeira palavra do Todo” . [O Princípio, Sefer ha-Zohar (Livro do Esplendor), apud J. Guinsburg, Do Estudo e da Oração, SP, Perspectiva, 1968, p. 605].

 
Apesar de sua riqueza teológica, podemos classificar a doutrina da emanação como um evolucionismo teísta, que define o mundo material como o desdobramento do Eterno em diferentes níveis. E porque o mundo existe dentro do Eterno, o processio Dei ad extra leva à pergunta pelo que existe de divino nos fenômenos do cotidiano.

 
Se entendermos, porém, a teoria do tzimtzum, como a relação dialética de dois movimentos, o da retirada e o da concentração ficará mais fácil aproveitar os estudos de Luria. O tzimtzum explica o recuo do Eterno para permitir que surgisse o vazio, o nada, e nele o universo. Como o Eterno é infinito, sem o tzimtzum não haveria o nada no qual pudesse produzir a estrutura espaço/tempo de uma criação separada.

 
É interessante notar, que se por um lado a dialética da autocontração e concentração divinas deu origem ao mundo material, o choque entre o movimento restritivo e o transbordante amor do eterno criou também a possibilidade do mal. Nesse sentido, a cosmogonia judaica vê o surgimento do universo em primeiro lugar como consciente autolimitação e na seqüência como revelação e julgamento. E como julgamento é a imposição de limites, julgamento faz parte da revelação, que se expressa pela primeira vez como criação do Eterno. Em outras palavras: se o mal é uma probabilidade que surge da dialética amor/ retração, o julgamento passa a ser inerente a tudo na criação, já que todas as coisas estão determinadas por seus limites.

 
A tradição do debate sobre a creatio ex nihilo é antiga no pensamento judaico. Na verdade, podemos dizer que começa a ser realizada no segundo século. Por isso, não é de estranhar que encontremos reflexões profundas sobre Gênesis Um nos séculos posteriores. Assim, em um dos textos mais representativos do pensamento caraíta, movimento medieval de retorno à letra da Escritura, considerado por muitos um protestantismo judeu de coloração pietista, a “Explanação dos Mandamentos”, de Aha Nissi ben Noah de Bassorá, que ensinou em Jerusalém na segunda metade do século IX, lemos:

“No primeiro dia, Deus criou sete coisas: o céu, a terra, as trevas, a luz, a água, o abismo e o vento (Gn.1:1-12). Primeiro criou tohu e bohu (a solidão e o caos), dos quais surgiu a terra (Gn.1:1-2). Criou as trevas: ‘Ele formou a luz e criou as trevas’ (Isaías 45:6). Criou o vento, conforme a palavra: ‘e criou o vento’. Criou a água, pois com a criação da terra havia água. Criou o abismo, para que a água tivesse uma profundidade e uma submersão. Criou a luz (Gn.1.3). Para a criação do mundo foram necessárias quatro coisas: a ordem, o trabalho, a determinação e a proclamação” [Nissi ben Noach, Explanação dos Mandamentos, apud J. Guinsburg, op. cit., p.309].

 
Nesse texto aparentemente tão simples, encontramos uma idéia fundamental: tohu (sem forma) e bohu (vazio) fazem parte da criação e para que haja criação é necessário ordem.

Outro pensador judeu, que fez oposição ao pensamento caraíta, foi Saadia Gaon (892-942). Influenciado pela efervescente teologia do Islã e pelo pensamento helenístico clássico, Gaon combateu a presença heterodoxa, de tendência maniqueísta, os remanescentes de Filo e a crítica gnóstica. Seu texto sobre a doutrina da creatio ex nihilo é de uma profunda beleza, apesar de apresentar imperfeições normais ao conhecimento da época, como, por exemplo, sua visão geocêntrica. Mas, de forma brilhante enfrenta opositores bem parecidos aos que encontramos hoje em dia.

 
“Aqueles que acreditam na eternidade do mundo procuram provar a existência de algo que não tem começo nem fim. Por certo, nunca depararam com uma coisa que percebessem, pelos sentidos, sem ser começo nem fim, mas procuram estabelecer sua teoria por meio de postulados da razão. Semelhantemente, os dualistas empenham-se em provar a coexistência de dois princípios separados e opostos, cuja mistura fez que o mundo viesse a ser. Sem dúvida, nunca testemunharam dois princípios separados e opostos, nem o pretenso processo da mistura, mas tentaram suscitar argumentos derivados da razão pura em favor de sua teoria. De maneira similar aqueles que acreditam numa matéria eterna consideram-na como um hilo, isto é, algo em que não há originalmente qualidade de quente ou frio, de úmido ou seco, mas que se transforma por uma determinada força e assim produz aquelas quatro qualidades. Indubitavelmente, seus sentidos nunca perceberam uma coisa carente de todas essas quatro quantidades, nem jamais perceberam um processo de transformação e a geração das quatro qualidades como é sugerido. (...) Assim sendo, é claro que todos concordam em admitir alguma opinião concernente à origem do mundo que não tem base na percepção sensorial” . [Saadia Gaon, Criação Ex-Nihilo apud J. Guinsburg, idem, op. cit., p. 316].

 
Para sua defesa da criação ex-nihilo, Gaon trabalhou com quatro argumentos, três dos quais muito bem expostos: de finitude do universo, estrutura e acidentalidade.

 
“Continuou a afirmar que nosso Senhor, louvado e enaltecido seja, informou-nos que todas as coisas foram criadas no tempo, e que Ele as criou do nada (...). Ele nos comprovou essa verdade por meio de sinais e milagres, e nós a aceitamos. Examino ainda mais nesta matéria com o intuito de saber se ela podia ser comprovada por especulação como foi comprovada por profecia. Achei que era este o caso por certo número de razões, da quais, devido à brevidade, selecionei as quatro seguintes: 1. A primeira prova baseia-se no caráter finito do universo (...). 2. A segunda prova é derivada da união de partes e da composição de segmentos. Vi que os corpos consistem de partes combinadas e de segmentos ajustados entre si (...). 3. A terceira prova baseia-se na natureza dos acidentes. Verifiquei que nenhum dos corpos são desprovidos de acidentes que os afetem direta ou indiretamente. Animais, por exemplo, são gerados, crescem até que alcançam sua maturidade, então, definham e se decompõem. Então eu disse a mim mesmo: Será que a terra como um todo é livre destes acidentes? (...) 4. A quarta prova baseia-se na natureza do tempo. Sei que o tempo é triplo: passado, presente, futuro. Embora o presente seja menor do que qualquer instante, tomo o instante como se toma um ponto e digo: Se um homem tentasse em seu pensamento ascender deste ponto no tempo ao ponto mais elevado, ser-lhe-ia impossível fazê-lo, porquanto o tempo é agora admitido como infinito e é impossível ao pensamento penetrar no ponto mais remoto daquilo que é infinito.” [Saadia Gaon, Quatro Argumentos para a Criação, idem, op. cit., pp. 317-320].

 
De todos os pensadores judeus medievais, talvez o mais conhecido fora dos meios judaicos, seja o talmudista francês Shlomo bar Itzhak, o rabi Rashi de Troyes (1040-1105). Exegeta, Rashi apresentou uma tradução para o versículo um de Gênesis que leva em conta estrutura e acidentalidade: “No princípio, ao criar Deus os céus e a terra, a terra era vã...” E segundo seu midrash, o texto não está preocupado em mostrar a ordem do surgimento do universo, mas em afirmar o ato criador do Eterno. Rashi mostrou-se preocupado com o sentido literal, mas definiu claramente sua hermenêutica:

 
“Todo texto se divide em muitos significados, mas, afinal nenhum texto está destituído de seu sentido literal” [Herman Hailperin, Rashi and the Christian Scholars, Pittsburgh, University of Pittsburgh Press, 1963].






 

 

jeudi 13 mai 2021

Dá para ver o caminho ?

Dá para ver o caminho?

Quando o fenômeno evangélico explodiu no Brasil, a partir dos anos 1950, a sociologia brasileira encontrava-se desarmada para analisar e entender o que estava a acontecer. Isto porque suas bases situavam-se nos séculos dezoito e dezenove. É verdade que grandes processos de revolução religiosa já tinham acontecido no mundo moderno, a começar pela Reforma na Europa, com seus desdobramentos continentais nos Estados Unidos. Isso só para falar do movimento protestante no Ocidente. 


Mas conhecemos as dificuldades de Marx para entender o fenômeno religioso como fundante e criador de contextos e novas relações dentro de determinada sociedade. Durkheim embora caminhe no sentido de entender estruturalmente o fenômeno religioso, construindo conceitos e parâmetros a partir das religiões antigas, ditas primitivas, e não monoteístas, formata leituras que até hoje são recitadas como compreensões definitivas sobre o fenômeno religioso, as estruturas dessas instituições e a relação entre líderes e fiéis. 


Depois que o pensamento marxiano entrou em crise, fato marcado nas universidades européias, Weber foi tirado do ostracismo e passou a ser reverenciado, assim como todo o historicismo alemão. Ora, se partimos daqueles que influenciaram o historicismo de Weber, em especial Ritschl e Troeltsch, vemos que eles consideravam o fenômeno religioso que estudavam típico ao Ocidente e, mais ainda, europeu. Dessa maneira, Weber entendeu o calvinismo como base para a expansão do capitalismo nos Estados Unidos, principalmente. 


O que poderia fazer a sociologia brasileira diante da explosão do fenômeno evangélico no Brasil a partir dos anos 1950? Ora, voltar aos pais da sociologia. E assim foi. E assim é. E a explosão do fenômeno evangélico passou a ser olhada como efeito de causas como a migração, a urbanização e a ruptura com a estrutura agrária e patriarcal. 


Mas, com a débâcle do marxismo, nos anos 1980, e o boom neoliberal que varreu o mundo, a sociologia trouxe o neoliberalismo travestido de espírito crítico para dentro da casa e passou a ver o fenômeno evangélico no Brasil apenas como um subproduto do mercado capitalista. 


Donde, as idéias de mercado e seus componentes se transformaram em conceitos da sociologia e instrumentos de análise para o fenômeno religioso. Vendo dessa maneira o fenômeno evangélico, a sociologia reduziu o fenômeno, jogou fora todas as experiências anteriores que ajudaram a construir o Ocidente protestante e criou outro conceito, o de trânsito religioso. E tudo que passou a acontecer no Brasil virou trânsito religioso. Mas, e antes em outras regiões do planeta? Foi o trânsito religioso que mudou a cara da Alemanha, dos países nórdicos ou mesmo da Inglaterra e Estados Unidos?


Porque lá podemos utilizar o conceito de conversão trabalhado por Weber e por que não aqui? Sabemos, claro que sabemos, que as condições são diferentes. Mas, em relação ao fenômeno evangélico brasileiro duas componentes dificultam a análise: o preconceito diante de algo que impacta e desnorteia o mundo acadêmico e a limitação de suas bases teóricas. 


Definidos assim os limites necessários, afirmamos a importância de Marx, Durkheim e Weber para a sociologia e para todos aqueles que se dedicam ao estudo da religião. Agora, no entanto, queremos utilizar como referencial um trabalho de Paul Tillich, Teologia da Cultura. Desejamos, dessa maneira, a partir da teologia da cultura, analisar a relação entre evangelicalismo, urbanização e a busca por fundamentos, e construir uma leitura própria dos caminhos transitados pelo evangelicalismo urbano brasileiro, em suas diferentes formas. Mas também, aqui neste transposto, vamos caminhar com Orlando, que vencido por Medoro na luta pelo amor de Angélica, é tomado pela loucura, segundo relata Ludovico Ariosto (1474-1533) no poema épico Orlando Furioso, em tradução de Pedro Garcez Ghirardi.

 

Cansado cai, e aflito, no
relvado,
Fita os olhos nas nuvens, e
emudece.
Sem dormir, sem comer, fica
parado
Enquanto o sol três vezes
sobe e desce.


Uma das questões que nos perguntamos quando relacionamos cidade e religião é se, de fato, o evangelicalismo outorga sentido às massas urbanas. Na verdade, podemos dizer que o ser humano é um ser potencialmente espiritual, e que essa espiritualidade pode se expressar de várias formas, mas que a religião no mundo urbano, nos grandes centros brasileiros, ocupa um espaço privilegiado enquanto tradução dessa espiritualidade, isso é verdade. Ora, a espiritualidade é a dimensão da profundidade do espírito humano, busca do sentido da vida, e no mundo urbano brasileiro essa busca, por vários fatores, é incrementada e direcionada ao evangelicalismo. Basta ver que no Brasil urbano a igreja evangélica cresceu cerca de 250%, dados de 2009, nos últimos dez anos. Assim, se a população brasileira urbana é religiosa, essa religiosidade é catalisada pelo permanente processo de evangelização protestante dos últimos cento e cinquenta anos.

 

Que a espiritualidade traduzida nas religiões das cidades da alta modernidade está presente em todas as ações do espírito humano, na ética, na estética, no conhecimento, isso é fato registrado pelas ciências da religião e pela teologia. Por isso, quando na cidade alguém conscientemente rejeita a religião, ou seja, se diz agnóstico ou ateu em nome de uma ética, de uma estética, ou por causa da busca de conhecimento, está a rejeitar a religião em nome da religião. Isto porque ela é o fundamento, a profundidade e a substância da vida espiritual do ser humano.


De forma geral, numa leitura antropológica cristã, podemos dizer que espiritualidade é aquela relação da pessoa com a transcendência. Nesse sentido, a espiritualidade é a totalidade da vida. A religião, por sua vez, traduz a dimensão dessa espiritualidade. Por exemplo, quando multidões assistiram ao filme
A paixão de Cristo, de Mel Gibson, e foram despertadas, cada qual à sua maneira, para a miserabilidade humana, temos aí uma expressão da espiritualidade. As experiências humanas com o que é sagrado envolvem escolha, disciplina e prática e levam o ser humano às experiências religiosas, porque a religião traduz o que é sagrado para a vida da pessoa. Dessa forma, a espiritualidade sempre será traduzida em religiosidade, mas na globalidade de forma mais contundente enquanto fenômeno urbano.


Em relação à realidade brasileira percebemos no cristianismo mais diversidade confessional do que religiosa. Oitenta e nove por cento dos brasileiros confessam ser cristãos, e esta espiritualidade está presente no desejo de justiça social e solidariedade. Diante dessa espiritualidade cristã diversificada, podemos dizer que quase todos os brasileiros são cristãos em alguma medida. Tomemos como exemplo a igreja católica, que não pode ser analisada como uma, pois abriga diferentes manifestações de religiosidade. Além dessa pluralidade católica, há centenas de igrejas protestantes/ evangélicas que incluem as históricas de migração e missão, as pentecostais históricas e as neopentecostais.


A dor aguda o deixa
exasperado
E tanto vai crescendo, que o
enlouquece.


Em razão disso podemos dizer que enquanto fenômeno urbano o evangelicalismo é fator de agregação e desagregação. Podemos, até explicitar essa dualidade com um exemplo recente. Durante os anos da ditadura militar no Brasil, algumas igrejas e denominações apoiaram o governo militar, a repressão, e tivemos até casos de torturadores protestantes e evangélicos, membros de igrejas importantes. Assim, o evangelicalismo é desagregador quando se liga à corrupção, ao clientelismo e às benesses. Mas agrega quando defende a vida humana. Com isso, constatamos que o evangelicalismo pode ser uma coisa ou outra ou mesmo, dialeticamente, ambas.


Essas são marcas da história protestante/evangélica recente. Mas, é claro que seria um erro uniformizar a atuação dos protestantes e evangélicos no período dos governos militares, até mesmo porque protestantes foram torturados. O certo é que pessoas, em nome da agregação, do fanatismo e de preconceitos, foram cúmplices de torturas e mortes. 


Ao quarto dia, o furor dele
se apossa,
Couraça e malha em fúria
ele destroça.

mardi 11 mai 2021

Sobre o não-ser

 Sobre o não-ser para viver o ser


Compreendi que não há nada melhor do que a gente ter prazer naquilo que faz. Esta é a recompensa. Pois como é que podemos saber sobre o não-ser? – perguntou Qohélet. 

Qoh procurou a felicidade e a paz. Foi objetivo e prático na avaliação de seu tempo e constatou que o evento humano está sujeito à lei da alternância, que vai além da explicação imediata: o humano não tem domínio sobre as dinâmicas que governam a morte e a vida. E procurou refúgio na sofia grega. O texto hebraico de Qohélet, com a presença de palavras aramaicas e persas, sugere autoria anônima, situada entre 450 e 200 antes de Cristo, e se apresentou com a apodadura de Salomão. 

Qoh procurou entender o ser e o não-ser – aquilo que está fora, além da existência – no jogo de seus movimentos. Percebeu que não tinha controle sobre o movimento dos fenômenos do universo e viu que era preciso respeitar o espaço e o tempo para poder existir dentro do ritmo dos eventos.

Mas ele não foi o único a pensar nessas coisas. A pergunta pelo não-ser, presente na história do humano desde que ele é sapiens, levou à pergunta pelo sentido do ser. Qohélet – em português Eclesiastes e, segundo Haroldo de Campos, O-que-sabe – de forma magnífica, quase à maneira de Nietzsche, trabalhou o tema da morte e da vida e nos levou a pensar sobre a única realidade a que de fato temos acesso: a existência – terreno afetivo e emocional que produz e repousa sobre a riqueza material das humanidades. Qoh numa abordagem existencial discute o ser, sua integralidade e potencialidades. 

Mas ele não foi o único a pensar a não-existência e a existência. Górgias (480-375 a.C.) traduziu no pensamento pré-socrático a dúvida sobre o não-ser e, por extensão, sobre o ser. Disse que se existisse alguma coisa, seria ser ou não-ser, ou ser e não-ser juntos. E se o não-ser existe, ele é e não-é ao mesmo tempo. Mas é absurdo dizer que alguma coisa existe e não-existe ao mesmo tempo. Para Górgias, em formulação matemática (pv¬p)v(p^¬p), a proposição “pv-p” é verdadeira. Mas “v” é verdadeiro se e somente se “p” for verdadeiro. Na lógica proposicional do filósofo pré-socrático temos, então, a negação de “p”. Donde, o não-ser não existe. Górgias disse mais do que isso, mas essa constatação, o não-ser não existe, é o que nos interessa nesse momento. 

É interessante que Qoh apresentou o não-ser, aquilo que está fora, além da existência, de uma maneira que nos lembra Górgias. Disse que ninguém se lembra do que aconteceu no passado e que até as coisas que acontecerão no futuro também vão ser esquecidas. Que ninguém se lembra dos sábios, assim como ninguém se lembra dos imbecis, pois no futuro todos seremos esquecidos. Há tempo para nascer e tempo de morrer, mas todos caminham para um mesmo lugar, pois tudo vem do pó e tudo volta ao pó. 

Disse, ainda, que felicitava os que já morreram mais do que os que estavam vivos. E considerou que mais vale o dia da morte do que o dia do nascimento. Ou, mais vale ir a uma casa em luto do que ir a uma casa em festa. Que ninguém é senhor do dia da própria morte e que nessa guerra não há trégua. Por isso, um cão vivo vale mais que um leão morto, já que os vivos sabem que irão morrer; mas os mortos não sabem de nada e não tem recompensa nenhuma: sua memória já está no esquecimento. O amor, ódio e ciúmes pereceram com eles. E nunca mais participarão de qualquer coisa que se faz debaixo do sol. 

A consciência do não-ser remete ao sentido do ser. E aqui há uma diferença básica com Górgias, porque para ele a negação do não-ser é também a negação do ser e, por isso, fez três afirmações que marcaram o pensamento lógico-matemático e balizaram o ceticismo: não dá para dizer que algo existe; se alguma coisa existe não temos como conhecer sua existência; e se o ser existe não temos como explicar sua existência aos outros. 

Já o argumento de Qoh, a partir do não-ser, afirma o sentido do ser, único conhecido. A negação do não-ser de Qoh expressa o desejo de ser em abundância, enquanto está, porque tem por limites as bordas do tempo de ser. O ser existe, mas tem espaço e tempo – hoje diríamos é existencial e histórico. Por isso, é melhor o sentido do ser, a intensidade das ações do ser do que ficar na espera do não-ser. Assim, quando o não-ser sinalizar que está chegando e se aproximar, teremos o prazer de ter sido plenamente, com intensidade, de forma abundante. 

E, por isso, Qoh nos aconselha a aproveitar a vida, a ir em frente. A comer com prazer e beber alegremente o nosso vinho, pois o Eterno já aceitou deliciado o nosso bem-fazer. Sejamos felizes, diz O-que-sabe. Enquanto vivermos na fumaça desse mundo, curtamos a vida com a pessoa amada, pois essa é a recompensa pelo nosso fazer debaixo do sol. E o que tivermos para fazer, façamos ótimo, porque o não-ser é nada e no nada nada se faz, e no não-ser não existe pensamento, nem conhecimento, nem sabedoria. E depois do ser, vamos repousar no nada. 

O fazer da existência vale a pena. O Eterno aprecia esse bem-fazer humano, que tem seu próprio tempo, que integra a existência de cada ser na história dos fazeres humanos. É por isso que Bereshit, o primeiro texto na Torah, apresenta um ponto zero. O tempo zero vai do entardecer à meia-noite. É quando o sol desilumina o nosso espaço de forma gradual. O tempo do não-ser não é uma fratura do tempo, é tempo da história. Qoh não contempla a passagem do tempo, mas a vinda do tempo. O tempo significa nada ou pouco para o Eterno, mas há um sentido de tempo para o humano. A conclusão de Qoh é que temos de ser no tempo para dar valor à eternidade que brota do nada do não-ser.

 











mercredi 5 mai 2021

A propósito de Tillich

A propósito de Tillich

Sem uma relação universal com o humano a noção de chamado profético não é a medida correta para se construir uma teologia. Ou seja, não se pode construir uma teologia apenas sobre o terreno da transcendência. É importante, porém, entender que não existe uma interpretação absoluta do humano, já que a comunidade humana não é uma grandeza estática, mas se realiza de forma dinâmica no ato de existir. Por isso, não se pode subscrever nem a construção de uma teologia absoluta, nem uma construção de tipo racionalista.

Toda compreensão do humano e como conseqüência toda teologia são concretas. Esse humano se situa no kairós, naquele momento determinado, pleno. Sua universalidade comporta riscos concretos. Ele não se move num universal abstrato, separado do tempo e da situação atual. O que é válido tanto para a pessoa, quanto para a teologia.

Exatamente por isso, toda teologia comporta dois aspectos: aquele traz o pensar teologicamente de volta à sua origem, ao fundamento do humano; e outro que indica seu caráter particular, sua inserção na finitude.

Assim, a realização do humano deve se orientar em direção a ele próprio, na medida em que essa manifestação de sua origem criativa remete ao que é transcendente. Ela exprime o que lhe próprio, suas solidariedades no plano formal e sua finitude. Por isso, a teologia transporta ao transcendente e à vida, que em última instância são o bem decisivo de nossa existência concreta.

Dessa maneira, posicionar-se por uma teologia que parte do humano é posicionar-se por uma teologia da vida. E tal compreensão leva ao desenvolvimento criativo e estratégico deste humano enquanto vida que brota na história, criadora do novo.

A chamada a um posicionamento capaz de julgar e transformar, de resistência à barbárie, deve levar à necessidade de elaborar uma mensagem para o mundo simples. Mensagem de esperança. Nesse contexto, as pessoas têm autonomia, mas estão inseguras na sua autonomia. Isto leva as religiões à tentativa de emancipá-las da autonomia através da submissão à hierarquia e à tradição. Mas não podemos esquecer que na autonomia algo já foi experimentado, e esta é uma experiência que une aquele que protesta àqueles com autonomia secular.

O conceito de situação-limite, que se traduz como ameaça final à existência, é o diferencial do protestantismo. Esse conceito nasceu em torno da leitura da justificação pela fé, já que a vida em liberdade significa a aceitação da incondicionalidade de se realizar a verdade e fazer o bem. No reconhecimento da existência da situação-limite está a diferença entre as religiões que profetizam a favor da hierarquia e da tradição e o princípio protestante. A justificação pela fé é, então, entendida a partir da situação-limite.

Na verdade, o cristianismo tem mais afinidades com determinadas formas de organização social, porque a teologia leva a uma postura crítica diante da ordem social que se apóia na opressão e na exclusão social. A teologia condena o egoísmo internacional da força, que justifica a violência e a guerra sobre continentes, nações e povos, prega a submissão das nações, ricas ou pobres, propõe a construção de uma consciência comunitária, soldada sobre a paz, que leve a um internacionalismo real entre as nacionalidades.

Muitos dirão que eliminar o egoísmo como forma de estímulo diminuirá o desenvolvimento e reduzirá a produção. A partir da teologia, vemos que a pessoa não existe para a produção, mas esta supre necessidades e, por isso, o objetivo não é a produção da maior quantidade possível de bens para uma classe em particular, mas a produção de bens necessários à vida para o maior número de pessoas.

O princípio da crítica e das ações protestantes leva a uma teologia não limitada ao sujeito, mas que se realiza na comunidade e, em última instância, na massa orgânica. É a partir desse ponto de vista universal, da teologia do humano, que remete ao finito, mas também ao incondicional , que se operam o protesto e a transformação. 

Autonomia e protestantismo são processos históricos que se complementam, mas que não são idênticos. O processo de autonomia vivido pela sociedade européia no período que se abriu a partir do Iluminismo, e que pôs em xeque a tradição e o autoritarismo, serviu de base para a ação protestante.

A autonomia é o momento supremo da razão e da imanência, e é a partir daí que o protestantismo construiu um sentimento unitário da vida e do mundo, embora sua originalidade não se limite aos conceitos, mas à experiência. 

Não devemos entender o protestantismo como confissão exclusiva, mas como brotar de fé que vê uma só humanidade, sem as barreiras internas e externas que caracterizam as comunidades. Esta fé é hostil aos domínios que se colocam como senhores da vida e da morte. Nesse sentido, é uma experiência da profundidade última e a supressão do em cima absoluto e do embaixo relativo.

O espírito que move os movimentos da contracultura traduz uma vibração de graça e fé que circula nas massas, e não deve ser negado pelo protestantismo, ao contrário, é a partir daí que o protestantismo pode fecundar a autonomia dos movimentos das comunidades. 

Estes são os fundamentos de uma unidade entre o protestantismo e os movimentos das comunidades no Brasil, que deve ser mais que uma associação, que pode traduzir um desenvolvimento de ambos através de uma nova forma de fé e vida. 

Mas há limitações na utopia da contracultura. A utopia quer realizar a eternidade no tempo, mas esquece que o transcendente abala o tempo e todos seus conteúdos. É por isso que a utopia leva, necessariamente, à decepção. O neoliberalismo no terceiro mundo, em grande parte, é o resultado da utopia desencantada.

É aí que entra o kairós, enquanto idéia que nasce da discussão com a utopia. O kairós comporta a irrupção da eternidade no tempo, o caráter decisivo desse instante histórico enquanto destino. Mas tem a consciência de que não pode existir um estado de eternidade no tempo, a consciência de que o eterno é, em sua humanidade, aquele que faz a irrupção no tempo sem, contudo, fixar-se nele.

Assim, a realização da visão profética se encontra além do tempo, lá onde a esperança utópica pode desaparecer, mas não a sua ação. 

A resistência à barbárie é tarefa protestante, que deve elaborar uma mensagem consciente, de esperança. Nesse contexto, o princípio protestante envolve um julgamento e relaciona este julgamento com a situação humana inteira, não deixando de lado nenhum aspecto da existência. Nesse sentido, crítica e necessidade de transformação levam, nesta contemporaneidade, ao princípio protestante. O que fica óbvio, em situações-limite, que ameaçam a vida. Para o princípio protestante, a situação dos trabalhadores não é algo opcional, que podemos considerar ou não. 

Metodologicamente, toda transformação exige uma compreensão do momento vivido que vá além do meramente histórico, do aqui e agora. Deve projetar-se no futuro, deve entender que há na crítica protestante um choque entre esse kairós e a utopia. Tal desafio não pode ser resolvido por uma pessoa, por mais que encarne o protestantismo. O sujeito da transformação será, em última instância, a massa.

A imediaticidade da massa faz com que desabroche nela movimentos que estavam inibidos no indivíduo, o que traz à tona um princípio imediato: a disponibilidade à compreensão do momento presente. Essa imediaticidade é o que leva a massa a ações destruidoras ou à novidade criadora. 

Ao lado da imediaticidade, os aspectos emocionais e intelectuais são amplificados. As forças do entusiasmo e da coragem são amplificadas de tal modo que podem levá-la ao sacrifício e à destruição. A massa se eleva acima das consciências individuais com intuições simples, mas com clarividência. Este processo prepara a construção de um novo momento presente. Quando a massa vive esse processo, religião e cultura se misturam, e ela se torna massa mística.

Assim, o movimento da massa torna-se dinâmico, indo da mecanicidade da industrialização em direção à transformação da sociedade, em direção à sua própria libertação. O movimento dinâmico da massa parte da massa mecânica, já existente ou em vias de aparecer, e visa a supressão da massa, visa à massa orgânica.

Temos aqui uma compreensão diferente daquela de Gramsci, que entende a vanguarda enquanto intelectualidade orgânica, mas não vê a massa em processo dinâmico que pode levar ao surgimento de uma massa orgânica. Por isso, a crítica protestante não se limita ao protestante ou ao intelectual, é um processo maior que tem na massa orgânica uma tripla ação, de protesto contra o arbítrio e a opressão, de liderança social e de transformação da situação-limite. 

Ao lado da desconfiança e da resistência há um desejo de governar de outro modo, que se situa na atitude protestante. Temos como pontos de ancoragem o retorno aos clássicos da contracultura, a invocação do direito contra a presença do arbítrio e o raciocínio científico contra o peso da autoridade. É certo que esse protesto faz prevalecer um universal contra um sistema de exclusão particular, mas o faz no interior de um dispositivo que liga estreitamente tempo presente e kairós. 

O protestar e o clamor não são vida, mas visam restaurar a vida sob ameaça na situação-limite. A luta contra o arbítrio localiza-se nas fronteiras desse próprio arbítrio. Assim, a ética se constrói no nível material do tempo presente, no confronto das relações de domínio e pessoalidades. 

A partir dessas relações de domínio se dá a passagem do campo estratégico de forças sem sujeitos em direção à razão transformadora da massa orgânica. Mas, será que a transformação social, que se dá como síntese de uma ação violenta, num primeiro momento, para depois passar a ação construtiva, tem um componente que não é instrumental, mas mediações de nível prático?

Se a estratégia de formação de uma comunidade política de trabalhadores, de massas, visa chegar a um fim exitoso é preciso perguntar se esse fim é uma mediação ou um fim. Ou, em outras palavras, quem é este sujeito das transformações e como se articula o intelectual com este sujeito histórico? 

A formação de uma comunidade política de massas como estratégia apoia-se na fórmula de que a contracultura não está ligada à organização dos trabalhadores, mas que eles próprios, os trabalhadores, são movimento que dialeticamente se confronta no dia-a-dia da vida com a sociedade de classes. Assim, o sujeito de todo movimento de contracultura é a massa orgânica ou consciência ilustrada, o povo filósofo do jovem Marx. 

O intelectual, por vir de uma classe estranha ao proletariado, adere à contracultura não por sentimentos de classe, mas por superação. Por isso, está mais exposto às oscilações oportunistas do que a massa orgânica, o proletariado ilustrado, elite e vanguarda do proletariado. Essa massa orgânica não perde o vínculo com o chão materno e encontra em seu instinto de classe um apoio mais seguro. Ora, a massa orgânica não é apenas uma massa que protesta, que simplesmente procura realizar os fins que as táticas e as circunstâncias impõem. Seu êxito é uma possibilidade, mas sempre traduz a teologia proposta. Assim, quando se trata de libertar os excluídos, o êxito dependerá de suas condições de possibilidade, ou seja, será impossível separar kairós e utopia.

A teologia deve integrar os princípios enunciados na escolha de fins, a estratégia; os meios, a tática; os métodos, os modos de organização, que devem levar ao princípio do protesto histórico de transformação. 

Se entendermos o conceito de massa enquanto movimento que caminha através do princípio da crítica e da ação transformadora, é fácil ver que chegado um determinado momento os trabalhadores reivindicariam a formação de um partido próprio. É o dinamismo revolucionário, já que o entusiasmo dessa massa dinâmica faz dela veículo do destino. E onde entra aí a questão da revolução? O discurso teológico é o elemento fundante da transformação prática, isso leva, no sentido estrito, a uma teologia de transformação não reformista, à transformação plena. Mas, a transformação caminha sempre sobre o fio da navalha: de um lado está o anarquismo contrário à unidade da massa orgânica e de outro o reformismo pró-integração. Por isso, estratégia e tática devem partir de critérios definidos e de um princípio teológico geral que possibilitem cumprir às mediações existentes.

Os fins estratégicos devem ser enquadrados dentro desses princípios teológicos gerais, a fim de que, com factibilidade, se possam negar as causas da negação dos excluídos. Esse é um momento negativo do protesto, onde os meios deveriam ser proporcionais àqueles contra os quais o protesto era feito. Mas se por um lado o protesto traduz uma ação desconstrutiva, por outro promove transformações construtivas. Leva a uma nova ordem com base num programa planejado que é realizado progressivamente, mas nunca totalmente. O kairós confronta a utopia e a fecunda, transformando-a em utopia possível.

Cabe ao intelectual enquanto pessoa levantar a teologia como protesto negativo diante de uma sociedade que vive uma situação-limite. A esse intelectual cabe a co-responsabilidade solidária, que parte do critério vida versus morte. Sem dúvida, o intelectual é desafiado a caminhar com dignidade na senda fronteiriça, entre os abismos da cínica irresponsabilidade diante dos excluídos e da paranóia fundamentalista.

Tal visão abre perspectivas para a compreensão da teologia e a análise de diferentes situações históricas – pode e deve lançar luzes sobre nossas críticas e ações diante do quadro político que temos pela frente.

Qui était Paul Tillich, par André Gounelle

https://www.youtube.com/watch?v=ehl_4Rk2ifc