O ABOLICIONISMO
PREFÁCIO
Já existe,
felizmente, em nosso país, uma consciência nacional - em formação, é certo -
que vai introduzindo o elemento da dignidade humana em nossa legislação, e para
a qual a escravidão, apesar de hereditária, é uma verdadeira mancha de Caim que
o Brasil traz na fronte. Essa consciência, que está temperando a nossa alma, e
há de por fim humanizá-la, resulta da mistura de duas correntes diversas: o
arrependimento dos descendentes de senhores, e a afinidade de sofrimento dos
herdeiros de escravos.
Não tenho,
portanto, medo de que o presente volume não encontre o acolhimento que eu
espero por parte de um número bastante considerável de compatriotas meus, a
saber: os que sentem a dor do escravo como se fora própria e, ainda mais, como
parte de uma dor maior - a do Brasil, ultrajado e humilhado; os que têm a
altivez de pensar - e a coragem de aceitar as conseqüências desse pensamento -
que a pátria, como a mãe, quando não existe para os filhos mais infelizes, não
existe para os mais dignos; aqueles para quem a escravidão, degradação
sistemática da natureza humana por interesses mercenários e egoístas, se não é
infamante para o homem educado e feliz que a inflige, não pode sê-lo para o
ente desfigurado e oprimido que a sofre; por fim, os que conhecem as
influências sobre o nosso país daquela instituição no passado, e, no presente,
o seu custo ruinoso, e prevêem os feitos de sua continuação indefinida.
Possa ser bem
aceita por eles esta lembrança de um correligionário ausente, mandada do
exterior, donde se ama mais a pátria do que no próprio país - pela contingência
de não tornar a vê-la, pelo trabalho constante da imaginação, e pela saudade
que Garret nunca teria pintado ao vivo se não tivesse sentido a nostalgia - e onde
o patriotismo, por isso mesmo que o Brasil é visto como um todo no qual homens
e partidos, amigos e adversários se confundem na superfície alumiada pelo sol
dos trópicos, parece mais largo, generoso e tolerante.
Quanto a mim,
julgar-me-ei mais do que recompensado, se as sementes de liberdade, direito e
justiça, que estas páginas contêm, derem uma boa colheita no solo ainda virgem
da nova geração; e se este livro concorrer, unindo em uma só legião os
abolicionistas brasileiros, para apressar, ainda que seja de uma hora, o dia em
vejamos a independência completada pela abolição, e o Brasil elevado à
dignidade de país livre, como o foi em 1822 à de nação soberana, perante a
América e o mundo.
Joaquim Nabuco
Londres, 8 de abril de 1863
I . QUE É O ABOLICIONISMO
A obra do presente e a do futuro
“Uma pátria
respeitada, não tanto pela grandeza do seu território como pela união dos seus
filhos; não tanto pelas leis escritas, como pela convicção de honestidade e
justiça do seu governo; não tanto pelas instituições deste ou daquele molde,
como pela prova real de que essas instituições favorecem, ou, quando menos, não
contrariam a liberdade e desenvolvimento da nação.”
Evaristo
Ferreira da Veiga
Não há muito que
se fala no Brasil em abolicionismo e partido abolicionista. A idéia de suprimir
a escravidão, libertando os escravos existentes, sucedeu à idéia de suprimir a
escravidão, entregando-lhe o milhão e meio de homens de que ela se achava de
posse em 1871 e deixando-a acabar com eles. Foi na legislatura de 1879-80 que,
pela primeira vez, se viu dentro e fora do Parlamento um grupo de homens fazer
da emancipação dos escravos,
não da limitação do cativeiro às gerações atuais, a sua bandeira política, a
condição preliminar da sua adesão a qualquer dos partidos.
A história das
oposições que a escravidão encontrara até então pode ser resumida em poucas
palavras. No período anterior à Independência e nos primeiros anos
subseqüentes, houve, na geração trabalhada pelas idéias liberais do começo do
século, um certo desassossego de consciência pela necessidade em que ela se viu
de realizar a emancipação nacional, deixando grande parte da população em
cativeiro pessoal. Os acontecimentos políticos, porém, absorviam a atenção do
povo, e com a revolução de 7 de abril de 1831, começou um período de excitação
que durou até a maioridade. Foi somente no Segundo Reinado que o progresso dos
costumes públicos tornou possível a primeira resistência séria à escravidão.
Antes de 1840 o Brasil é presa do tráfico de africanos; o estado do país é
fielmente representado pela pintura do mercado de escravos no Valongo.
A primeira
oposição nacional à escravidão foi promovida tão somente contra o tráfico.
Pretendia-se suprimir a escravidão lentamente, proibindo a importação de novos
escravos. À vista da espantosa mortalidade dessa classe, dizia-se que a
escravatura, um vez extinto o viveiro inesgotável da África, iria sendo
progressivamente diminuída pela morte, apesar dos nascimentos.
Acabada a
importação de africanos pela energia e decisão de Eusébio de Queiroz, e pela
vontade tenaz do imperador - o qual chegou a dizer em despacho que preferia
perder a coroa a consentir na continuação do tráfico -, seguiu-se à deportação
dos traficantes e à lei de 4 de setembro de 1850 uma calmaria profunda. Esse
período de cansaço, ou de satisfação pela obra realizada - em todo caso de
indiferença absoluta pela sorte da população escrava -, durou até depois da
guerra do Paraguai, quando a escravidão teve que dar e perder outra batalha.
Essa segunda oposição que a escravidão sofreu, como também a primeira,
não foi um ataque ao acampamento do inimigo para tirar-lhe os prisioneiros, mas
uma limitação apenas do território sujeito às suas correrias e depredações.
Com efeito, no
fim de uma crise política permanente que durou de 1866 até 1871, foi promulgada
a lei de 28 de setembro, a qual respeitou o princípio de inviolabilidade do
domínio do senhor sobre o escravo, e não ousou penetrar, como se fora um local
sagrado, interdito ao próprio Estado, nos ergástulos agrários; e de novo, a
esse esforço, de um organismo debilitado para minorar a medo as conseqüências
da gangrena que o invadia, sucedeu outra calmaria de opinião, outra época de
indiferença pela sorte do escravo, durante a qual o governo pode mesmo
esquecer-se de cumprir a lei que havia feito passar.
Foi somente oito
anos depois que essa apatia começou a ser modificada e se levantou uma terceira
oposição à escravidão; desta vez, não contra os seus interesses de expansão,
como era o tráfico, ou as suas esperanças, como a fecundidade da mulher
escrava, mas diretamente contra as suas posses, contra a legalidade e a
legitimidade dos seus direitos,
contra o escândalo da sua existência em uma país civilizado e a sua perspectiva
de embrutecer o ingênuo na mesma senzala onde embrutecera o escravo.
Em 1850,
queria-se suprimir a escravidão, acabando com o tráfico; em 1871, libertando-se
desde o berço, mas de fato depois dos vinte e um anos, os filhos dos escravos
ainda por nascer. Hoje quer-se suprimi-la, emancipando os escravos em massa e
resgatando os ingênuos da servidão da lei de 28 de setembro. É este último
movimento que se chama abolicionismo, e só este resolve o verdadeiro problema
dos escravos, que é a sua própria liberdade. A opinião, em 1845, julgava
legítima e honesta a compra de africanos, transportados traiçoeiramente da
África e introduzidos por contrabando no Brasil. A opinião, em 1875, condenava
as transações dos traficantes, mas julgava legítimas e honestas a matrícula
depois de 30 anos de cativeiro ilegal das vítimas do tráfico. O abolicionismo é
a opinião que deve substituir, por sua vez, esta última, e para a qual todas as
transações de domínio sobre entes humanos são crimes que só diferem no grau de
crueldade.
O abolicionismo,
porém, não é só isso e não se contenta com ser o advogado Ex officio da porção da raça negra
ainda escravizada; não reduz a sua missão a promover e conseguir - no mais
breve espaço possível - o resgate dos escravos e dos ingênuos. Essa obra - de
reparação, vergonha ou arrependimento, como a queiram chamar - da emancipação
dos atuais escravos e seus filhos é apenas a tarefa imediata do abolicionismo.
Além dessa, há outra maior, a do futuro: a de apagar todos os efeitos de um
regime que, há três séculos, é uma escola de desmoralização e inércia, de
servilismo e irresponsabilidade para a casta dos senhores, e que fez do Brasil
o Paraguai da escravidão.
Quando mesmo a
emancipação total fosse decretada amanhã, a liquidação desse regime só daria
lugar a uma série infinita de questões, que só poderiam ser resolvidas de
acordo com os interesses vitais do país pelo mesmo espírito de justiça e
humanidade que dá vida ao abolicionismo. Depois que os últimos escravos
houverem sido arrancados ao poder sinistro que representa para a raça negra a
maldição da cor, será ainda preciso desbastar, por meio de uma educação viril e
séria, a lenta estratificação de trezentos anos de cativeiro, isto é, de
despotismo, superstição e ignorância. O processo natural pelo qual a escravidão
fossilizou nos seus moldes a exuberante vitalidade do nosso povo durante todo o
período de crescimento, e enquanto a nação não tiver consciência de que lhe é
indispensável adaptar à liberdade cada um dos aparelhos do seu organismo de que
a escravidão se apropriou, a obra desta irá por diante, mesmo quando não haja
mais escravos.
O abolicionismo
é, assim, uma concepção nova em nossa história política, e dele, muito
provavelmente, como adiante se verá, há de resultar a desagregação dos atuais
partidos. Até bem pouco tempo a escravidão podia esperar que a sua sorte fosse
a mesma no Brasil que no Império Romano, e que a deixassem desaparecer sem
contorções nem mesmo violência. A política dos nossos homens de Estado foi
toda, até hoje, inspirada pelo desejo de fazer a escravidão dissolver-se insensivelmente
no país.
O abolicionismo
é um protesto contra essa triste perspectiva, contra o expediente de entregar à
morte a solução de um problema que não é só de justiça e consciência moral, mas
também de previdência política. Além disso, o nosso sistema está por demais
estragado para poder sofrer impunemente a ação prolongada da escravidão. Cada
ano desse regime que degrada a nação toda, por causa de alguns indivíduos, há
de ser-lhe fatal, e se hoje basta, talvez, o influxo de uma nova geração educada
em outros princípios, para determinar a reação e fazer o corpo entrar de novo
no processo, retardado e depois suspenso, do crescimento natural, no futuro, só
uma operação nos poderá salvar - à custa da nossa identidade nacional -, isto
é, a transfusão do sangue puro e oxigenado de uma raça livre.
O nosso caráter,
o nosso temperamento, a nossa organização toda, física, intelectual e moral,
acha-se terrivelmente afetada pelas influências com que a escravidão passou
trezentos anos a permear a sociedade brasileira. A empresa de anular essas
tendências é superior, por certo, aos esforços de uma só geração, mas, enquanto
essa obra não estiver concluída, o abolicionismo terá sempre razão de ser.
Assim como a
palavra abolicionismo, a
palavra escravidão é tomada neste
livro em sentido lato. Esta não significa somente a relação do escravo para com
o senhor; significa muito mais: a soma do poderio, influência, capital e
clientela dos senhores todos; o feudalismo, estabelecido no interior; a
dependência em que o comércio, a religião, a pobreza, a indústria, o
Parlamento, a Coroa, o Estado, enfim, se acham perante o poder agregado da
minoria aristocrática, em cujas senzalas milhares de entes humanos vivem
embrutecidos e moralmente mutilados pelo próprio regime a que estão sujeitos; e
por último, o espírito, o princípio vital que anima a instituição toda,
sobretudo no momento em que ela entra a recear pela posse imemorial em que se
acha investida, espírito que há sido em toda a história dos países de escravos
a causa do seu atraso e da sua ruína.
A luta entre o
abolicionismo e a escravidão é de ontem, mas há de prolongar-se muito, e o
período em que já entramos há de ser caracterizado por essa luta. Não vale à
escravidão a pobreza dos seus adversários, nem a própria riqueza; não lhe vale
o imenso poderio que os abolicionistas conhecem melhor talvez do que ela: o
desenlace não é duvidoso. Essas contendas não se decidem nem por dinheiro, nem
por prestígio social, nem - por mais numerosa que esta seja, por uma clientela
mercenária. “O Brasil seria o último dos países do mundo, se, tendo a
escravidão, não tivesse um partido abolicionista: seria a prova de que a
consciência moral ainda não havia despontado nele.” O Brasil seria o mais
desgraçado dos países do mundo, devemos acrescentar, hoje que essa consciência
despontou, se, tendo um partido abolicionista, esse partido não triunfasse:
seria a prova de que a escravidão havia completado a sua obra e selado o
destino nacional com o sangue dos milhões de vítimas que fez dentro do nosso
território. Deveríamos então perder, para sempre, a esperança de fundar uma dia
a pátria que Evaristo sonhou.
II. O
PARTIDO ABOLICIONISTA
“Não
há maior honra para um partido do que sofrer
pela sustentação
de princípios que ele julga serem justos”
W.E. Gladstone
O sentido em que
é geralmente empregada a expressão partido
abolicionista não corresponde ao que, de ordinário, se entende pela
palavra partido. A esse
respeito algumas explicações são necessárias.
Não há dúvida de
que já existe um núcleo de pessoas identificadas com o movimento abolicionista,
que sentem dificuldade em continuar filiadas nos partidos existentes, por causa
das suas idéias. Sob a bandeira da abolição, combatem hoje liberais,
conservadores, republicanos, sem outro compromisso - e este tácito e por assim
dizer de honra política - senão o de subordinarem a rejeição partidária a outra
maior, à consciência humana. Assim como, na passada legislatura, diversos
liberais julgaram dever votar pela idéia abolicionista de preferência a votar
pelo seu partido, também nas seguintes encontrar-se-ão conservadores prontos a
fazer outro tanto e republicanos que prefiram combater pela causa da liberdade
pessoal dos escravos a combater pela forma de governo da sua aspiração.
A simples
subordinação do interesse de qualquer dos atuais partidos ao interesse da
emancipação basta para mostrar que o partido abolicionista, quando surgir, há
de satisfazer um ideal de pátria mais elevado, compreensivo e humano, do que o
de qualquer dos outros partidos já formados, os quais são todos mais ou menos
sustentados e bafejados pela escravidão. Não se pode todavia, por enquanto,
chamar partido à corrente de
opinião, ainda não encaminhada para seu destino, a cuja expansão assistimos.
Entende-se por partido não uma opinião somente, mas
uma opinião organizada para chegar aos seus fins: o abolicionismo é por hora,
uma agitação, e é cedo ainda para se dizer se será algum dia um partido. Nós o
vemos desagregando fortemente os partidos existentes, e até certo ponto
constituindo uma igreja à parte composta dos cismáticos de todas as outras. No
Partido Liberal a corrente conseguiu, pelo menos, pôr a descoberto os alicerces
mentirosos do liberalismo entre nós. Quanto ao Partido Conservador, devemos
esperar a prova da passagem pelo poder que desmoralizou os seus adversários,
para sabermos que ação o abolicionismo exercerá sobre ele. Uma nova
dissidência, com a mesma bandeira de 1871, valeria um exército para a nossa
causa. Restam os republicanos.
O abolicionismo
afetou esse partido de um modo profundo, e a nenhum fez tanto bem. Foi a lei de
28 de setembro e a idéia, adrede espalhada entre os fazendeiros, de que o
imperador era o chefe do movimento contra a escravidão, que de repente
engrossou as fileiras republicanas com uma leva de voluntários saídos de onde
menos se imaginava. A República compreendeu
a oportunidade dourada que se lhe oferecia, e não a desprezou; o partido, não
falo da opinião, mas da associação, aproveitou largamente as simpatias que lhe
procurava a corajosa defesa, empreendida notavelmente pelo sr. Cristiano
Ottoni, dos interesses da grande propriedade. Como era natural, por outro lado,
o abolicionismo, depois de muitas hesitações, impôs-se ao espírito de grande
número de republicanos como uma obrigação maior, mais urgente, mais justa, e a
todos os respeitos mais considerável, do que a de mudar a forma do governo com
o auxílio de proprietários de homens. Foi na forte democracia escravagista de
São Paulo que a contradição desses dois estados sociais se manifestou de modo
mais evidente.
Supondo que a
República seja a forma natural da democracia, ainda assim, o dever de elevar os
escravos a homens precede a toda arquitetura democrática. O abolicionismo num
país de escravos é para o republicano de razão
a República oportunista, a que pede o que pode conseguir e o que mais precisa,
e não se esteriliza em querer antecipar uma ordem de coisas da qual o país só
pode tirar benefícios reais quando nele não houver mais senhores. Por outro lado, a teoria inventada para contornar a
dificuldade sem a resolver, de que pertence à Monarquia acabar com a
escravidão, e que o Partido Republicano nada tem com isso, lançou, para muitos
que se haviam alistado nas fileiras da República, um clarão sinistro sobre a
aliança contraída em 1871.
É, com efeito,
difícil hoje a um liberal ou conservador, convencido dos princípios cardeais do
desenvolvimento social moderno e do direito inato - no estado de civilização -
de cada homem à sua liberdade pessoal, e deve sê-lo muito mais para um
republicano, fazer parte homogênea de organizações em cujo credo a mesma
natureza humana pode servir para base da democracia e da escravidão, conferir a
um indivíduo, ao mesmo tempo, o direito de tomar parte no governo do país e o
de manter outros indivíduos - porque os comprou ou os herdou - em abjeta
subserviência forçada, durante toda a vida. Conservadores constitucionais;
liberais que se indignam contra o governo pessoal, republicanos, que consideram
degradante o governo monárquico da Inglaterra e da Bélgica, exercitando dentro
das porteiras das suas fazendas, sobre centena de entes rebaixados da dignidade
de pessoa, poder maior que o de
um chefe africano nos seus domínios, sem nenhuma lei escrita que o regule,
nenhuma opinião que o fiscalize, discricionário, suspeitoso, irresponsável: que
mais é preciso para qualificar, segundo uma frase conhecida, essa audácia com
que os nossos partidos assumem os grandes nomes que usam - de estelionato político?
É por isso que o
abolicionismo desagrega dessas organizações os que as procuram por causa
daqueles nomes históricos, segundo as suas convicções individuais. Todos os
três partidos baseiam as sua aspirações políticas sobre um estado social cujo
nivelamento não os afeta; o abolicionismo, pelo contrário, começa pelo princípio,
e, antes de discutir qual o melhor modo para um povo ser livre de governar-se a si mesmo - é
essa a questão que divide os outros -, trata de tornar livre a esse povo,
aterrando o imenso abismo que separa as duas castas sociais em que ele se
extrema.
Nesse sentido, o
abolicionismo deveria ser a escola primária de todos os partidos, o alfabeto da
nossa política, e não o é; por um curioso anacronismo, houve um partido
republicano muito anos antes de existir uma opinião abolicionista, e daí a
principal razão porque essa política é uma Babel na qual ninguém se entende.
Qual será, porem, o resultado da desagregação inevitável? Irão os
abolicionistas, separados, pela sinceridade das suas idéias de partidos, que
têm apenas interesses e ambições pessoais como razão de ser, e os princípios
somente por pretexto, agrupando-se lentamente num partido comum, a princípio
unidos pela proscrição social que estão sofrendo, e depois pela esperança de
vitória? Haverá um partido abolicionista organizado, com a intuição completa da
sua missão no presente e no futuro, para presidir à transformação do Brasil
escravo no Brasil livre, e liquidar a herança da escravidão?
Assim aconteceu
nos Estados Unidos. onde o atual Partido Republicano, ao surgir na cena
política, teve que dominar a rebelião, emancipar quatro milhões de escravos,
estabelecer definitivamente o novo regime de liberdade e da igualdade em
Estados que queriam formar, nas praias do golfo do México, a maior potência
escravocrata do mundo. É natural que isso aconteça no Brasil; mas é possível
também que - em vez de fundir-se num só partido por causa das grandes
divergências internas entre liberais, conservadores e republicanos - o
abolicionismo venha trabalhar os três partidos de forma a cindi-los sempre que
seja preciso - como o foi em 1871 para a passagem da lei Rio Branco - reunir os
elementos progressistas de cada um numa cooperação desinteressada e
transitória, numa aliança política limitada a certo fim; ou que venha mesmo a
decompor, e reconstituir diversamente os partidos existentes, sem, todavia,
formar um partido único e homogêneo.
O advento do
abolicionismo coincidiu com a eleição direta, e sobretudo com a aparição de uma
força, a qual se está solidificando em torno da imprensa- cuja barateza e
distribuição por todas as classes é um fator importante na história da
democratização do país -, força que é a opinião pública. Todos esses elementos
devem ser tomados em consideração quando se quer saber como o abolicionismo há
de, por fim, constituir-se.
Neste livro,
entretanto, a expressão partido
abolicionista significará tão somente, o movimento abolicionista, a
corrente de opinião que se está desenvolvendo do Norte ao Sul. É claro que há
no grupo de pessoas que têm manifestado vontade de aderir àquele movimento mais
do que o embrião de um partido. Caso amanhã, por qualquer circunstância, se
organizasse um gabinete abolicionista, se o que constitui um partido são
pretendentes a posições ou honras políticas, aspirantes a lugares remunerados,
clientes de ministros, caudatários do governo - aquele núcleo sólido teria uma
cauda adventícia tão grande pelo menos como a dos partidos oficiais.
Basta considerar
que, quanto mais se fracionam esses partidos no governo, mais lhes cresce o
séquito. O poder é infelizmente entre nós - e esse é um dos efeitos mais
incontestáveis do servilismo que a escravidão deixa após si - a região gerações
espontâneas. Qualquer ramo, por mais murcho e seco, deixado numa noite ao
alento desta atmosfera privilegiada, aparece na manhã seguinte coberto de folhas.
Não há como negar o influxo desse fiat:
é toda a nossa história. “O Poder é o Poder” foi uma frase que resumiu a
sabedoria da experiência de todos os nossos homens públicos, e sobre a qual
assentam todos os seus cálculos. Nenhuma opinião remotamente distante do
governo pode ostentar o pessoal numeroso dos dois partidos que se alternam no
exercício do patronado e na guarda do cofre das graças, distribuem empresas e
favores, e por isso têm em torno de si, ou às suas ordens e sob seu mando - num
país que a escravidão empobreceu e carcomeu -, todos os elementos dependentes e
necessitados da população. Isso mesmo caracteriza a diferença entre o
abolicionismo e os dois partidos constitucionais: o poder destes é,
praticamente, o poder da escravidão toda, como instituição privada e como
instituição política; o daquele é o poder tão somente das forças que começam a
rebelar-se contra semelhante monopólio - da terra, do capital e do trabalho -
que faz da escravidão um estado no Estado, cem vezes mais forte do que a própria
nação.
III. O
MANDATO DA RAÇA NEGRA
Se a inteligência nativa e a
independência dos bretões não conseguem sobreviver no clima insalubre e adverso
da escravidão pessoal, como se poderia esperar que os pobres africanos, sem o
apoio de nenhum sentimento de dignidade pessoal ou de direitos civis, não
cedessem às influências malignas a que há tanto tempo estão sujeitos e não
ficassem deprimidos mesmo abaixo do nível da espécie humana?
William Wilbeforce
O mandato abolicionista é uma dupla
delegação, inconsciente da parte dos que a fazem, mas, em ambos os casos,
interpretada pelos que a aceitam como um mandato a que não se pode renunciar.
Nesse sentido, deve-se dizer que o abolicionista é o advogado gratuito de duas
classes sociais que, de outra forma, não teriam meios de reivindicar os seus
direitos, nem consciência deles. Essas classes são: os escravos e os ingênuos.
Os motivos pelos quais essa procuração tácita impõem-nos uma obrigação
irrenunciável não são puramente - para muitos não são mesmo principalmente -
motivos de humanidade, compaixão e defesa generosa do fraco e do oprimido.
Em outros países, a propaganda da
emancipação foi um movimento religioso, pregado do púlpito, sustentando com
fervor pelas diferentes igrejas e comunhões religiosas. Entre nós, o movimento
abolicionista nada deve, infelizmente, à Igreja do Estado; pelo contrário, a
posse de homens e mulheres pelos conventos e por todo o clero secular
desmoralizou inteiramente o sentimento religiosos de senhores e escravos. No
sacerdote, estes não viam senão um homem que os podia comprar, e aqueles a
última pessoa que se lembraria de acusá-los. A deserção, pelo nosso clero, do
posto que o Evangelho lhe marcou, foi a mais vergonhosa possível: ninguém o viu
tomar a parte dos escravos, fazer uso da religião para suavizar-lhes o
cativeiro, e para dizer a verdade moral aos senhores. Nenhum padre tentou,
nunca, impedir um leilão de escravos, nem condenou o regime religiosos das
senzalas. A Igreja Católica, apesar do seu imenso poderio em um país ainda em
grande parte fanatizado por ela, nunca elevou no Brasil a voz em favor da
emancipação.
Se o que dá força ao abolicionismo
não é principalmente o sentimento religioso, o qual não é a alavanca de
progresso que poderia ser, por ter sido desnaturado pelo próprio clero, também
não é o espírito de caridade ou filantropia. A guerra contra a escravidão foi,
na Inglaterra, um movimento religioso e filantrópico, determinado por
sentimentos que nada tinham de político, senão no sentido em que se pode chamar
política à moral social do Evangelho. No Brasil, porém, o abolicionismo é antes
de tudo um movimento político, para o qual, sem dúvida, poderosamente concorre
o interesse pelos escravos e a compaixão pela sua sorte, mas que nasce de um
pensamento diverso: o de reconstruir o Brasil sobre o trabalho livre e a união
das raças na liberdade.
Nos outros países o abolicionismo
não tinha esse caráter de reforma política primordial, porque não se queria a
raça negra para elemento permanente de população, nem como parte homogênea da
sociedade. O negro, libertado, ficaria nas colônias, não seria nunca um fator
eleitoral na própria Inglaterra, ou França. Nos Estados Unidos os
acontecimentos marcharam com tanta rapidez e desenharam-se por tal forma, que o
Congresso se viu forçado a fazer dos antigos escravos do Sul, de um dia para o
outro, cidadãos americanos, com os mesmos direitos que os demais; mas esse foi
um dos resultados imprevistos da guerra. A abolição não tinha, até o momento da
Emenda constitucional, tão amplo sentido, e ninguém sonhara para o negro ao
mesmo tempo a alforria e o voto.
No Brasil, a questão não é, como nas
colônias européias, um movimento de generosidade em favor de uma classe de
homens vítimas de uma opressão injusta a grande distância das nossas praias. A
raça negra não é, tampouco, para nós, uma raça inferior, alheia à comunhão, ou
isolada desta, e cujo bem estar nos afete como o de qualquer tribo indígena
maltratada pelos invasores europeus. Para nós, a raça negra é um elemento de
considerável importância nacional, estreitamente ligada por infinitas relações
orgânicas à nossa constituição, parte integrante do povo brasileiro. Por outro
lado, a emancipação não significa tão somente a termo da injustiça de que o
escravo é mártir, mas também a eliminação simultânea dos dois tipos contrários,
e no fundo os mesmos: o escravo e o senhor.
É esse ponto de vista, da
importância fundamental da emancipação, que nos faz sub-rogar-nos nos direitos
de que os escravos e os seus filhos - chamados ingênuos por uma aplicação
restrita da palavra, a qual mostra bem o valor das ficções que contrastam com a
realidade - não podem ter consciência, ou, tendo-a, não podem reclamar, pela
morte civil a que estão sujeitos. Aceitamos esse mandato como homens políticos,
por motivos políticos, e assim representamos os escravos e os ingênuos na
qualidade de brasileiros que julgam o seu título de cidadão diminuído enquanto
houver brasileiros escravos, isto é, no interesse de todo o país e no nosso
próprio interesse.
Quem pode dizer que a raça negra não
tem direito e protestar perante o mundo e perante a história contra o
procedimento do Brasil? A esse direito de acusação, entretanto, ela própria
renunciou; ela não apela para o mundo, mas tão somente para a generosidade do
país que a escravidão lhe deu por pátria. Não é já tempo que os brasileiros
prestem ouvidos a esse apelo?
Em primeiro lugar, a parte da
população nacional que descende de escravos é, pelo menos, tão numerosa como a
parte que descende exclusivamente de senhores; a raça negra nos deu um povo. Em
segundo lugar, o que existe até hoje sobre o vasto território que se chama
Brasil foi levantado ou cultivado por aquela raça; ela construiu o nosso país.
Há trezentos anos que o africano tem sido o principal instrumento da ocupação e
da manutenção do nosso território pelo europeu, e que os seus descendentes se
misturam com o nosso povo. Onde ele não chegou ainda, o país apresenta o
aspecto com que surpreendeu os seus primeiros descobridores. Tudo o que
significa luta do homem com a natureza, conquista do solo para a habitação e
cultura, estradas e edifícios, canaviais e cafezais, a casa do senhor e a
senzala dos escravos, igrejas e escolas, alfândegas e correios, telégrafos e
caminhos de ferro, academias e hospitais, tudo, absolutamente tudo que existe
no pais, como resultado trabalho manual, como emprego de capital, como
acumulação de riqueza, não passa de uma doação gratuita da raça que trabalha à
que faz trabalhar.
Por esse sacrifícios sem número, por
esses sofrimentos, cuja terrível concatenação com o progresso lento do país faz
da história do Brasil um dos mais tristes episódios do povoamento da América, a
raça negra fundou, para outros, uma pátria que ela pode, com muito mais
direito, chamar sua. Suprima-se mentalmente essa raça e o seu trabalho, e o
Brasil não será, na sua maior parte, senão um território deserto, quando muito
um segundo Paraguai, guarani e jesuítico.
Nessas condições é tempo de
renunciarmos ao usufruto dos últimos representantes dessa raça infeliz.
Vasconcelos, ao dizer que nossa civilização viera da costa d’África, pôs
patente, sem querer, o crime do nosso país escravizando os próprios que o
civilizaram. Já vimos com que importante contingente essa raça concorreu para a
formação do nosso povo. A escravidão moderna repousa sobre uma base diversa da
escravidão antiga: a cor preta. Ninguém pensa em reduzir homens brancos ao
cativeiro: para este ficaram reservados tão somente os negros. Nós não somos um
povo exclusivamente branco, e não devemos portanto admitir essa maldição pela
cor; pelo contrário, devemos tudo fazer por esquecê-la.
A escravidão, por felicidade nossa,
não azedou nunca a alma do escravo contra o senhor - falando coletivamente -
nem criou entre as duas raças o ódio recíproco que existe naturalmente entre
opressores e oprimidos. Por esse motivo, o contato entre elas sempre foi isento
de asperezas, fora da escravidão, e o homem de cor achou todas as avenidas
abertas diante de si. Os debates da última legislatura, e o modo liberal pelo
qual o Senado assentiu à elegibilidade dos libertos, isto é, ao apagamento do
último vestígio de desigualdade da condição anterior, mostram que a cor no
Brasil não é, como nos Estados Unidos, um preconceito social contra cuja
obstinação pouco pode, o talento e o mérito de quem incorre nele. Essa boa
inteligência em que vivem os elementos, de origem diferente, da nossa
nacionalidade é um interesse público de primeira ordem para nós.
Ouvi contar que, estando Antônio
Carlos a ponto de expirar, um indivíduo se apresentava na casa onde finava o
grande orador, instando por vê-lo. Havia ordem de não admitir pessoas estranhas
no quarto do moribundo, e o amigo encarregado de executá-las teve que recusar
ao visitante esse favor - que ele implorava com água nos olhos - de contemplar
antes da morte o último dos Andradas. Por fim, notando a insistência
desesperada do desconhecido, perguntou-lhe o amigo que estava de guarda: “Mas
por que o senhor quer tanto ver o sr. Antônio Carlos?” “Por que quero vê-lo?”,
respondeu ele numa explosão de dor, “Não vê a minha cor! Pois se não fosse os
Andradas, que éramos nós no Brasil? Foram eles que nos deram esta pátria!”
Sim, foram eles que deram uma pátria
aos homens de cor livres, mas essa pátria, é preciso que nós a estendamos, por
nossa vez, aos que não o são. Só assim poder-se-á dizer que o Brasil é uma
nação demasiado altiva para consentir que sejam escravos brasileiros de
nascimento, e generosa bastante para não consentir que o sejam africanos, só
por pertencerem uns e outros à raça que fez do Brasil o que ele é.
IV. CARÁTER
DO MOVIMENTO ABOLICIONISTA
Não é por ação direta e pessoal
sobre o espírito do escravo que lhe podemos fazer algum bem. É com os livres
que devemos pleitear a causa daquele. A lei eterna obriga-nos a tomar a parte
do oprimido, e essa lei torna-se muito mais obrigatória desde que nós lhe
proibimos levantar o braço em defesa própria.
W. Channing
Estas palavras de Channing mostram,
ao mesmo tempo, a natureza e as dificuldades de uma campanha abolicionista,
onde quer que seja travada. É uma luta que tem, como teve sempre em toda a
parte, dois grandes embaraços: o primeiro, o estarem as pessoas que queremos
salvar nas mãos dos adversários, como reféns; o segundo, o se acharem os
senhores, praticamente, à mercê dos escravos. Por isso também os
abolicionistas, que querem conciliar todas as classes, e não indispor umas
contra as outras; que não pedem a emancipação no interesse tão somente do
escravo, mas do próprio senhor, e da sociedade toda; não podem querer instilar
no coração do oprimido um ódio que ele não sente, e muito menos fazer apelo a
paixões que não servem para fermento de uma causa, que não se resume na
reabilitação da raça negra, mas que é equivalente, como vimos à reconstituição
completa do país.
A propaganda abolicionista, com
efeito, não se dirige aos escravos. Seria uma covardia, inepta e criminosa, e,
além disso um suicídio político para o partido abolicionista, incitar à
insurreição, ou ao crime, homens sem defesa, e que a lei de Lynch, ou a justiça
pública, imediatamente haveria de esmagar. Covardia, porque seria expor outros
a perigos que o provocador não correria com eles; inépcia, porque todos os
fatos dessa natureza dariam como único resultado para o escravo a agravação do
seu cativeiro; crime, porque seria fazer os inocentes sofrerem pelos culpados.
além da cumplicidade que cabe ao que induz outrem a cometer um crime; suicídio
político, porque a nação inteira - vendo uma classe, e essa a mais influente e
poderosa do Estado, exposta à vindita bárbara e selvagem de uma população
mantida até hoje ao nível dos animais e cujas paixões, quebrado o freio do
medo, não conheceriam limites no modo de satisfazer-se - pensaria que a
necessidade urgente era salvar a sociedade a todo o custo por um exemplo
tremendo, e este seria o sinal de morte do abolicionismo de Wilbeforce,
Lamartine, e Garrison, que é o nosso, e do começo do abolicionismo de Catilina
ou de Espártaco, ou de John Brown.
A escravidão não há de ser suprimida
no Brasil por uma guerra servil, muito menos por insurreições ou atentados
locais. Não deve sê-lo, tampouco, por uma guerra civil, como o foi nos Estados
Unidos. Ela poderia desaparecer, talvez, depois de uma revolução, como
aconteceu na França, sendo essa revolução obra exclusiva da população livre;
mas tal possibilidade não entra nos cálculos de nenhum abolicionista. Não é,
igualmente, provável que semelhante reforma seja feita por um decreto
majestático da Coroa, como o foi na Rússia, nem por um ato de inteira
iniciativa do governo central, como foi, nos Estados Unidos, a proclamação de
Lincoln.
A emancipação há de ser feita, entre
nós, por uma lei que tenha os requisitos, externos e internos, de todas as
outras. É assim, no Parlamento e não em fazendas ou quilombos do interior, nem
nas ruas e praças das cidades, que se há de ganhar, ou perder, a causa da
liberdade. Em semelhante luta, a violência, o crime, o desencadeamento de ódios
acalentados, só pode ser prejudicial ao lado que tem por si o direito, a
justiça, a procuração dos oprimidos e os votos da humanidade toda.
A escravidão é um estado violento de
compressão da natureza humana no qual não pode deixar e haver, de vez em
quando, uma forte explosão. Não temos estatísticas dos crimes agrários, mas
pode-se dizer que a escravidão continuamente expõe o senhor ou os seus agentes,
e tenta o escravo, à prática de crimes de maior ou menor gravidade. Entretanto,
o número de escravos que saem do cativeiro pelo suicídio deve aproximar-se do
número dos que se vingam do destino da sua raça na pessoa que mais os atormenta,
de ordinário, o feitor. A vida, do berço ao túmulo, literalmente, debaixo do
chicote é uma constante provocação dirigida ao animal humano, e à qual cada um
de nós preferiria, mil vezes, a morte. Quem pode, assim, condenar o suicídio do
escravo como covardia ou deserção? O abolicionismo, exatamente porque a
criminalidade entre os escravos resulta da perpetuidade da sua condição,
concorre para diminuí-la, dando uma esperança à vítima.
Um membro do nosso Parlamento, o sr.
Ferreira Viana, lavrou na sessão passada a sua presença condenatória da
propaganda abolicionista, dizendo que era perverso quem fazia nascer no coração
do infeliz uma esperança que não podia ser realizada.
Essa frase condena por perverso
todos os que têm levantado no coração dos oprimidos, durante a vida da
humanidade esperanças irrealizáveis. Reveja bem o ilustre orador a lista dos
que assim proscreve e nela há de achar os fundadores de todas as religiões - e,
se essa classe não lhe parece respeitável, os vultos do catolicismo -, os
mártires de todas as idéias, todas as minorias esmagadas, os vencidos das
grandes causas. Para ele, pregador leigo da religião católica, perverso não é
quem oprime, viola o direito, prostitui o Evangelho, ultraja a pátria, diminui
a humanidade: mas sim o que diz ao oprimido, nesse caso o escravo:
Não
desanimes, o teu cativeiro não há de ser perpétuo, o direito há de vencer a
força, a natureza humana há de reagir em teu favor, nos próprios que a mutilam
em ti; a pátria há de alargar as suas fronteiras morais até de abranger
Este, sim, é
perverso, chamasse ele, em vez de André Rebouças, Joaquim Serra, Ferreira de
Meneses, Luís Gama, ou outro qualquer nome de abolicionista brasileiro,
Granville Sharpe, Buxton, Whittier, ou Longfellow.
Quando mesmo
essa esperança nos parecesse irrealizável, não seria perversidade fazer
penetrar no cárcere do escravo, onde reina noite perpétua, um raio de luz que o
ajudasse a ser bom e a viver. Mas a esperança não nos parece irrealizável,
graças a Deus, e nós não a afagamos só pelo escravo, afagamo-la por nós mesmos
também, porque o mesmo dia que der a liberdade àquele - e esse somente - há de
dar-nos uma dignidade, que hoje não o é - a de cidadão brasileiro.
Como se pode, de
boa fé, alegar que é socialmente perigoso esse sentimentos que nos faz reclamar
da adoção das famílias mais do que plebéias, para quais a lei achou que bastava
o contubernium; expatriar-nos
moralmente, quer estejamos fora, quer dentro do país, porque traçamos as
fronteiras da nacionalidade além da lei escrita, de forma a compreender esse
povo que não é nem estrangeiro nem nacional e, perante o Direito das gentes,
não tem pátria? Que crime seria perante um tribunal do qual Jesus Cristo e São
Francisco de Assis fossem os juizes, esse de confundirmos as nossas aspirações
com as de quantos, tendo nascido brasileiros, não fazem parte da comunhão, mas
pertencem a ela, como qualquer outra propriedade, e estão inscritos, não nos
alistamentos eleitorais, mas na matrícula das coisas sobre as quais o Estado
cobra impostos?
Os escravos, em
geral, não sabem ler, não precisam, porém, soletrar a palavra liberdade para
sentir a dureza da sua condição. A consciência neles pode estar adormecida, o
coração resignado, a esperança morta: eles podem beijar com reconhecimento os
ferros que lhes apertam os pulsos; exaltar-se, na sua triste e tocante
degradação, com a posição, a fortuna, o luxo do seu senhor; recusar a alforria
que este lhes ofereça, para não terem que se separar da casa onde foram crias;
chamar-se, quando libertos, pelo nome de seus patronos; esquecer-se de si
mesmos como o asceta, para viverem na adoração do deus que criaram, prontos a
sacrificar-lhe tudo. Que prova isso senão que a escravidão, em certos casos
isolados e domésticos, consegue criar um tipo heróico de abnegação e desinteresse,
e esse não o senhor, mas o escravo?
Pois bem, como
pode o abolicionismo que, em toda a sua vasta parte inconsciente, não é uma
renovação social, mas uma explosão de simpatia e de interesse pela sorte do
escravo, azedar a alma deste, quando trezentos anos de escravidão não o
conseguiram? Por que há de a esperança provocar tragédias como o desespero não
teve que registrar? Por que hoje, que a sua causa está afeta ao tribunal da
consciência pública, por advogados que se identificaram com ela e, para a
defenderem como ela o exige, praticamente trocaram as roupas do cidadão pelas
do hilota, hão de compreender essa defesa, fazendo o que nunca fizeram quando
não achavam em todo o país senão espectadores indiferentes ao seu suplício?
Isso, por certo,
não é natural, e, se tal porventura acontecesse, a explicação verdadeira seria:
não que esses fatos foram o resultado da disseminação das idéias abolicionistas
pelo país; mas sim que, fechados nos latifúndios, os escravos nem tinham
consciência de que a sua sorte estava preocupando a nação toda, de que o seu
cativeiro tocara por fim o coração do povo, e havia para eles uma esperança
ainda que remota, de liberdade. Quanto mais crescer a obra do abolicionismo,
mas se dissiparão os receios de uma guerra servil, de insurreições e atentados.
A propaganda
abolicionista é dirigida contra uma instituição e não contra pessoas. Não
atacamos os proprietários como indivíduos, atacamos o domínio que exercem e o
estado de atraso em que a instituição que representam mantém o país todo. As
seguintes palavras do Manifesto da
sociedade brasileira contra a escravidão expressam todo o pensamento
abolicionista:
O futuro dos escravos depende, em grande parte, dos
seus senhores; a nossa propaganda não pode, por conseqüência, tender a criar
entre senhores e escravos senão sentimentos de benevolência e solidariedade. Os
que, por motivo dela, sujeitarem os seus escravos a tratos piore, são homens
que têm em si mesmos a possibilidade de serem bárbaros e não têm a de serem
justos
Nesse caso, devo
eu acrescentar, não se teria provado a perversidade da propaganda, mas só a
impotência da lei para proteger os escravos, e os extremos desconhecidos de
crueldade a que a escravidão pode chegar. como todo o poder que não é limitado
por nenhum outro e não sabe conter a si próprio. Em outras palavras, ter-se-ia
justificado o abolicionismo no modo mais completo possível.
A não ser essa
contingência, cuja responsabilidade não poderia em caso algum caber-nos, a
campanha abolicionista só há de concorrer, pelos benefícios que espalhar entre
os escravos, para impedir e diminuir os crimes de que a escravidão sempre foi
causa, e que tanto avultaram - quando não existia ainda partido abolicionista e
as portas do Brasil estavam abertas ao tráfico de africanos - que motivaram a
lei de segurança de 10 de junho de 1835. Não é aos escravos que falamos, é aos
livres: em relação àqueles fizemos nossa divisa das palavras de sir Walter Scott: “Não acordeis o
escravo que dorme, ele sonha talvez que é livre.”
V. “A
CAUSA JÁ ESTÁ VENCIDA”
Trinta anos de escravidão com as
suas degradações, os seus castigos corporais, as suas vendas de homens,
mulheres e crianças, como animais domésticos e coisas, impostos a um milhão e
meio de criaturas humanas, é um prazo demasiado longo para que os amigos da
humanidade o aceitem resignados.
Victor
Schoelcher
“A causa que
vós, abolicionistas, advogais”, dizem-nos todos os dias, não só os que nos
insultam, mas também os que simpatizam conosco, “é uma causa vencida, há muito
tempo, na consciência pública.” Tanto quanto esta proposição tem alcance
prático, significa isto: “O país já decidiu, podeis estar descansados, os
escravos serão todos postos em liberdade; não há, portanto, necessidade alguma
de um partido abolicionista para promover os interesses daqueles enjeitados que
a nação toda perfilhou”. Mas, quem diz isso tem um único fim - desarmar os
defensores dos escravos para que o preço desses não diminua pela incerteza da
longa posse que a lei atual promete ao senhor, e conseguir que a escravidão
desapareça naturalmente, graças à mortalidade progressiva numa população que
não pode aumentar. É claro que, para quem fala assim, os ingênuos são homens
livres, não enchem anualmente os claros da escravatura, pelo que não é preciso
que alguém tome a si a proteção dessas centenas de milhares de pessoas que são
escravos somente até os vinte e um anos de idade, isto é, apenas escravos
provisórios. O repugnante espetáculo de uma massa de futuros cidadãos crescendo
nas senzalas, sujeitos ao mesmo sistema de trabalho, à mesma educação moral, ao
mesmo tratamento que os escravos, não preocupa os nossos adversários. Eles não
acrescentam à massa dos escravos a massa dos ingênuos, quando inventariam os
créditos a longo prazo da escravidão, nem quando lhe arrolam os bens
existentes: mas para nós a sorte dos ingênuos é um dos dados, como a dos
escravos, de um só problema.
Será,
entretanto, exato que esteja vencida no espírito público a idéia abolicionista?
Neste momento não indagamos os fundamentos que há para se afirmar, como nós
afirmamos, que a maioria do país está conosco sem o poder manifestar. Queremos
tão somente saber se a causa do escravo está ganha, ou pelo menos tão segura
quanto à decisão final, que possa correr à revelia; se podemos cruzar os
braços, coma certeza de ver esse milhão e meio de entes humanos emergir pouco a
pouco do cativeiro e tomar lugar ao nosso lado.
Qual é a
esperança de liberdade fundada sobre fatos - não se trata da que provém da fé
na Providência - que o escravo pode alimentar neste momento da nossa história?
Cada homem livre que se imagine naquela posição e responda a esta pergunta.
Se fosse escravo
de um bom senhor, e fosse um bom escravo - ideal que nenhum
homem livre poderia inteiramente realizar e que exige uma educação à parte -,
teria sempre esperança de alforria. Mas os bons senhores muitas vezes são
pobres e vêem-se obrigados a vender o escravo ao mau senhor. Além disso eles
têm filhos, de quem não querem diminuir a legítima. Por outro lado, se há
proprietários que forram grandes números de escravos, outros há que nunca
assinam uma carta de liberdade. Admitindo-se que o número de alforrias vá
aumentando progressivamente - o que já é um resultado incontestável do
abolicionismo, que tem formado em pouco tempo uma opinião pública interessada,
vigilante, pronta a galardoar e levar em contas tais atos de consciência -
ainda assim quantos escravos, proporcionalmente à massa total, são libertados e
quantos morrem à cada ano? A alforria como doação é uma esperança que todo
escravo pode ter, mas que relativamente é a sorte de muito poucos. Nessa
loteria quase todos os bilhetes saem brancos; a probabilidade é vaga demais
para servir de base sólida a qualquer cálculo de vida e de futuro. A
generalidade dos nossos escravos morrem no cativeiro; os libertos sempre foram
exceções.
Ponha-se de lado
essa esperança de que o senhor lhe dê a liberdade, esperança que não constitui
um direito; que porta há na lei para o escravo sair do cativeiro? A lei de 28
de setembro de 1871 abriu-lhe, mas não lhe facilitou, dois caminhos: o do
resgate forçado pelo pecúlio, e o do sorteio anual. O primeiro, infelizmente,
pelo aparelho imperfeito e desfigurado por atenções particulares que exercita
essa importante função na lei Rio Branco, está em uso nas cidades, não nas
fazendas: serve para os escravos urbanos, não para os rurais. Assim mesmo essa
aberta daria saída a grande proporção de escravos, se a escravidão não houvesse
atrofiado entre nós o espírito de iniciativa, e a confiança em contratos de
trabalho. Basta esta prova: que um escravo não acha um capital suficiente para
libertar-se mediante a locação de seus serviços, para mostrar o que é a
escravidão como sistema social e econômico. (1) Quanto ao
fundo de emancipação do Estado, sujeito, como ponderou no Senado o barão de
Cotejipe, a manipulações dos senhores interessados, ver-se-á mais longe a
insignificante porcentagem que o sorteio abate todos os anos no rol dos
escravos. Fora dessas esperanças, fugitivas todas, mas que o abolicionismo há
de converter na maior parte dos casos em realidade, que resta aos escravos?
Absolutamente nada.
Desapareça o
abolicionismo, que é a vigilância, a simpatia, o interesse da opinião pela
sorte desses infelizes; fiquem eles entregues ao destino que a lei lhes traçou,
e ao poder do senhor tal qual é, e a morte continuará a ser, como é hoje, a
maior das probabilidades, e a única certeza, que eles tem de sair um dia do
cativeiro.
Isso quanto à
duração deste: quanto à sua natureza, é hoje o que foi sempre. Nas mãos de um
bom senhor, o escravo pode ter uma vida feliz, como a do animal bem tratado e
predileto; nas mãos de um mau senhor, ou de uma má senhora (a crueldade das
mulheres é muitas vezes mais requintada e persistente do que a dos homens) não
há como escrever a vida de um desses infelizes. Se houvesse um inquérito no
qual todos os escravos pudessem depor livremente, à parte os indiferentes à
desgraça alheia, os cínicos e os traficantes, todos os brasileiros haviam de
horrorizar-se ao ver o fundo de barbárie que existe no nosso país debaixo da
camada superficial de civilização, onde quer que essa camada esteja sobreposta
à propriedade do homem pelo homem.
Na escravidão
não só quod non prohibitum licitum est,
como também praticamente nada é
proibido. Se cada escravo narrasse a sua vida desde a infância - as suas
relações e família, a sua educação de espírito e coração, as cenas que
presenciou, os castigos que sofreu, o tratamento que teve, a retribuição que
deram ao seu trabalho de tantos anos para aumentar a fortuna e o bem estar de
estranhos -, que seria A cabana do pai
Tomás, de Mrs.
Beecher Stowe, ou a Vida,
de Frederick Douglas, ao lado de algumas narrações que nós teríamos de escutar?
Dir-se-á que a escravidão dá lugar a abusos,
como todas as outras instituições, e com abusos não se argumenta. Mas esses
abusos fazem parte das defesas e exigências da instituição e o fato de serem
necessários à sua existência basta para condenar o regime. O senhor que tem
pelos seus escravos sentimentos de família é uma exceção, como é o senhor que
lhes tem ódio e os tortura. O geral dos senhores trata de tirar do escravo todo
o usufruto possível, explora a escravidão sem atender particularmente a
natureza moral da propriedade servil. Mas, exceção ou regra, basta ser uma
realidade, bastaria ser uma hipótese, o mau
senhor, para que a lei que permite a qualquer indivíduo - nacional ou
estrangeiro, ingênuo ou liberto e mesmo escravo,
inocente ou criminoso, caritativo ou brutal - exercer sobre outros, melhores
talvez do que ele, um poder que ela nunca definiu nem limitou, seja a negação
absoluta de todo o senso moral.
Diariamente
lemos anúncios de escravos fugidos denunciados à sede de dinheiro dos
capitães-do-mato com detalhes que não ofendem o pudor humano da sociedade que
os lê; nas nossas cidades há casas de comissões abertas, mercados e verdadeiros
lupanares, sem que a polícia tenha olhos para essa mácula asquerosa;
ainda está recente na memória pública a oposição corajosa de um delegado de
polícia da cidade do Rio ao tráfico de escravas para a prostituição; os
africanos transportados de Angola e Moçambique depois da lei de 7 de
novembro de 1831 estão sempre no cativeiro; as praças judiciais de escravos
continuam a substituir os antigos leilões públicos; em suma, a carne humana
ainda tem preço. À vista desses fatos, quem ousa dizer que os escravos não
precisam de defensores, como se o cativeiro em que eles vivem fosse condicional
e não perpétuo, e a escravidão uma coisa obsoleta ou, pelo menos, cujas piores
feições pertencessem já à história?
Quem sabe ao
certo quantos milhares mais de escravos morrerão no cativeiro? Quando será
proibida a compra e venda de homens, mulheres e crianças? Quando não terá mais
o Estado que levantar impostos sobre essa espécie de propriedade? Ninguém. O
que todos sabem é que o senhor julga ainda perpétuo o seu direito sobre o
escravo e, como o colocava à sombra do paládio constitucional - o artigo 179 -
coloca-se hoje sob a proteção da lei de 28 de setembro.
O escravo ainda
é uma propriedade como qualquer
outra, da qual o senhor dispõe como de um cavalo ou de um móvel. Nas cidades,
em contato com as diversas influências civilizadoras, ele escapa de alguma
forma àquela condição; mas no campo, isolado do mundo, longe da proteção do
Estado, sem ser conhecido de nenhum
dos agentes deste, tendo apenas o seu nome de batismo matriculado, quando o
tem, no livro da coletoria local, podendo ser fechado num calabouço durante
meses - nenhum autoridade visita esses cárceres privados - ou ser açoitado
todos os dias pela menor falta, ou sem falta alguma; à mercê do temperamento e
do caráter do senhor, que lhe dá de esmola a roupa e alimentação que quer,
sujeito a ser dado em penhor, a ser hipotecado, a ser vendido, o escravo
brasileiro literalmente falando só tem de seu uma coisa - a morte.
Nem a esperança,
nem a dor, nem as lágrimas o são. Por isso não há paralelo algum para esse ente
infeliz, que não é uma abstração nem uma criação da fantasia dos que se
compadecem dele, mas que existe em milhares e centenas de milhares de casos,
cujas histórias podiam ser contadas cada uma com piores detalhes. Ninguém
compete em sofrimento com esse órfão do destino, esse enjeitado da humanidade,
que antes de nascer estremece sob o chicote vibrado nas costas da mãe, que não
tem senão os restos do leite que esta, ocupada em amamentar outras crianças,
pode salvar para o seu próprio filho, que cresce no meio da abjeção da sua
classe, corrompido, desmoralizado, embrutecido pela vida da senzala, que
aprende a não levantar os olhos para o senhor, a não reclamar a mínima parte do
seu próprio trabalho, impedido de ter uma afeição, uma preferência, um
sentimento que possa manifestar sem receio, condenado a não possuir a si mesmo
inteiramente uma hora só na vida e que por fim morre sem um agradecimento
daqueles para quem trabalhou tanto, deixando no mesmo cativeiro, na mesma
condição, cuja eterna agonia ele conhece, a mulher, os filhos, os amigos, se os
teve!
Comparado à
história de tantos milhares de famílias escravas, o infortúnio imerecido dos
outros homens torna-se uma incógnita secundária do grande problema dos destinos
humanos. Só eles com efeito sentem uma dor ao lado da qual a de tantos
proletários - de não ter nada e ninguém no mundo que se possa chamar de seu - é até suave: a dor de ser de
outrem. “Somente o escravo é infeliz” é uma frase que poderia ser escrita com
verdade no livro das consolações humanas. Ao lado da tragédia da esperança e do
desespero que são fluxo e o refluxo diário da sua alma - e essa esperança e
esse desespero o ser livre -, todas as outras vidas que correm pelo leito da
liberdade, quaisquer que sejam os embaraços e as quedas que encontrem, são
relativamente privilegiadas. Somente o escravo, de todos os homens - ele, pela
falta de consciência livre, o extremo oposto na escala humana do Prometeu de
Shelley - tem como esse o destino de “sofrer desgraças que a esperança julga
serem infinitas e de perdoar ofensas mais negras que a morte ou a noite”.
Entretanto, não
é menos certo que de alguma forma se pode dizer: “A vossa causa, isto é a dos
escravos, que fizestes vossa, está moralmente ganha”. Sim, está ganha, mas
perante a opinião pública, dispersa, apática, intangível, e não perante o
parlamento e o governo, órgãos concretos da opinião; perante a religião, não
perante a Igreja, nem no sentido de comunhão dos fiéis, nem no de sacerdócio
constituído; perante a ciência, não perante os corpos científicos, os
professores, os homens que representam a ciência; perante a justiça e o
direito, não perante a lei que é a sua expressão, nem perante os magistrados,
administradores da lei; perante a mocidade irresponsável, protegida por
“benefício macedoniano” político, que não reconhece as dívidas de opinião que
ela contrai, não para a mocidade do outro lado da emancipação civil; perante os
partidos, não perante os ministros, os deputados, os senadores, os presidentes
de província, os candidatos todos à direção desses partidos, nem perante os
eleitores que formam a plebe daquela aristocracia; perante a Europa, mas não
perante os europeus estabelecidos no país, que, em grande proporção, ou possuem
escravos ou não crêem num Brasil sem escravos e temem pelos seus interesses;
perante a popularidade, não perante o povo; perante o imperador como
particular, não perante o chefe do Estado; perante os brasileiros em geral, não
perante os brasileiros individualmente; isto é, resumindo-me, perante
jurisdições virtuais, abstrações políticas, forças que ainda não estão no
seio do possível, simpatias generosas e impotentes, não perante o único
tribunal que pode executar a sentença da liberdade da raça negra, isto é, a
nação brasileira constituída.
A vitória
abolicionista será fato consumado no coração e na simpatia da grande maioria do
país; mas enquanto essa vitória não se traduzir pela liberdade, não afiançada
por palavras, mas lavrada em lei, não provada
por sofistas mercenários, mas sentida pelo próprio escravo, semelhante triunfo
sem resultados práticos, sem a reparação esperada pelas vítimas da escravidão,
não passará de um choque na consciência humana em um organismos paralisado -
que já consegue agitar-se, mas ainda não caminhar.
Notas:
1- Esse fato mostra também como a escravidão é a usura da pior espécie,
a usura de Shylock exigindo cada onça de carne hipotecada no seu título de
dívida. Com efeito, desde que o escravo pode, em qualquer tempo que tenha o seu
preço em dinheiro, depositá-lo e requerer a sua liberdade, cada escravo
representa uma dívida para com o senhor, que ele não pode pagar e à qual serve
de penhor. É assim um escravo a dívida. Aqui entra a usura do modo mais
extraordinário e que reclamaria o ferro em brasa de um Shakespeare para ser
punida como merece.
O escravo de um ano, quando passou a lei (1871), podia ser resgatado
pela mãe por um preço insignificante; como ela, porém, não tinha esse dinheiro,
a cria, não foi libertada e é
hoje um moleque (o triste
vocabulário da escravidão usado em nossa época, e que é a vergonha da nossa
língua, há de reduzir de muito no futuro as pretensões liberais da atual
sociedade brasileira), de treze anos, valendo muito mais; em pouco tempo será
um preto de dobrado valor. Quer
isso dizer que a dívida do escravo para com o senhor quadruplicou e mais ainda,
porque ele não teve meios de pagá-la quanto era menino. Tomemos um escravo
moço, forte, e prendado (na
escravidão quanto mais vale física, intelectual e moralmente o homem, mais
difícil é resgatar-se, por ser maior o seu preço. O interesse do escravo é
assim ser estúpido, estropiado, indolente e incapaz). Esse escravo tinha vinte
e um anos em 1871 e valia 1500$. Não representava capital algum empregado
porque era filho de uma escrava, também cria
da casa. Suponhamos, porém, que representasse esse mesmo capital e que
fora comprado naquele ano. Ele era assim uma letra de 1500$ resgatável pelo
devedor à vista, porquanto lhe bastava depositar essa quantia para ser forro
judicialmente. Em 1871, porém, esse homem não tinha pecúlio algum, nem achou
quem lhe emprestasse. Durante os doze anos seguintes viu-se na mesma situação
pecuniária. O aluguel, no caso de estar alugado, o serviço não remunerado no
caso de servir em casa, não lhe deixavam sobra alguma para o começo de um
pecúlio. Nesses doze anos o salário desse homem nunca foi menor de 30$00 por
mês (servindo em casa, poupava igual despesa ao senhor) o que dá um total de 4:320$000,
desprezando-se os juros. Deduzida desta quantia o preço original do escravo,
restam 2:820$000 que ele pagou ao senhor por não ter podido pagar-lhe a dívida
de 1:500$000 em 1871, além de amortizar toda a dívida sem nenhum proveito para
si. Se em 1871 alguém lhe houvesse emprestado aquela soma a juros de doze por
cento ao ano para a sua liberdade, ele a teria pago integralmente, dando uma
larga margem para doenças e vestuário, em 1880, e estaria hoje desembaraçado.
Como não achou, porém, esse banqueiro, continua a pagar sempre juros de mais e
vinte por cento sobre um capital que não diminui nunca. Feito o cálculo sobre o
capital todo empregado em escravos e o juro desse capital representado pelos
salários pagos ou devidos ter-se-á idéia do que é a usura da escravidão. É
preciso não esquecer também que grande parte dos escravos é propriedade
gratuita, isto é, doação das mães escravas ao seus senhores. A lei de 28 de
setembro reduziu a escravidão a uma dívida pignoratícia: os altos juros
cobrados sobre essa caução, que é o próprio devedor, fazem dessa especulação o
mais vantajoso de todos os empregos de capital. Esse mesmo estado que não se
importa com essa onzena levantada sobre a carne humana e extorquida à ponta de
açoite, esteve muito tempo preocupado em conseguir sobre a sua fiança para os
proprietários territoriais, dinheiro a sete por cento ao ano garantido pela
hipoteca desses mesmos escravos.
VI. ILUSÕES
ATÉ A INDEPENDÊNCIA
Generosos cidadãos do Brasil, que
amais a vossa pátria, sabei que sem a abolição total do infame tráfico da
escravatura africana, e sem a emancipação sucessiva dos atuais cativos, nunca o
Brasil firmará sua independência nacional e segurará e defenderá a sua liberal
Constituição.
José Bonifácio (1825)
Os abolicionistas, animando os
escravos a confiarem no progresso da moralidade social, não lhes incutem uma
esperança positiva, definida, a prazo certo, de cujo naufrágio possa resultar o
desespero que se receia; mas quando o governo, ou quem os escravos supõem ser o
governo, afiança ao mundo e ao país que emancipação é questão de forma e oportunidade, essa perspectiva de liberdade,
que lhes passa diante dos olhos, tem para eles outra realidade e certeza, e
nesse caso a desilusão pode ter conseqüências temerosas.
A animação dos abolicionistas é para
o escravo como o desejo, o sonho dourado da sua pobre mãe, recordação indelével
de infância dos que foram criados no cativeiro; é como as palavras que lhe
murmuram ao ouvido os seus companheiros mais resignados, para dar-lhe coragem.
A promessa dos poderes públicos, porém, é coisa muito diversa: entre as suas
crenças está a de que palavra de rei
não volta atrás, a confiança na honra dos “brancos” e na seriedade dos
que tudo podem, e por isso semelhante promessa vinda de tão alto é para ele
como a promessa de alforria que lhe faça o senhor e desde a qual, por mais
longo que seja o prazo, ele se considera um homem livre.
O que as vítimas da escravidão
ignoram é que semelhantes compromissos tomados por esses personagens são
formulados de modo a nunca serem exigíveis, e que não são tomados senão porque
é preciso, ao mesmo tempo, manter o escravo em cativeiro para não alienar o
senhor, e representá-lo como a ponto de ficar livre para encobrir a vergonha do
país. A palavra de rei podia
valer no regime absoluto - não valia sempre como adiante se verá -, mas no
constitucional é a máscara antiga em que os atores se substituíam no proscênio.
A “honra dos brancos” é a superstição de uma raça atrasada no seu
desenvolvimento mental, que adora a cor pela força que esta ostenta e lhe
empresta virtudes que ela por si só não tem.
Que importa que essas promessas,
letras sacadas sobre outra geração, sejam protestadas, perante o Deus em que
acreditam, por tantas escravos no momento de morrer? Quem lhes ouve esse
protesto? Os que ficam continuam a esperar indefinidamente, e o mundo a
acreditar que a escravidão está acabando no Brasil, sem refletir que isso se dá
porque os escravos estão morrendo. É difícil reproduzir todas as declarações
feitas por agentes dos poderes públicos que a emancipação dos escravos no
Brasil estava próxima, resolvida em princípio, só dependente para ser realizada
de uma ocasião favorável. Algumas dessas declarações, entretanto, ainda estão
vivas na memória de todos e bastam para documentar a queixa que fazemos.
A primeira promessa solene de
que a escravidão, a qual se tornou e é ainda um estado perpétuo,
seria um estado provisório, encontra-se na legislação portuguesa do século
passado.
Por honra de Portugal, o mais
eminente dos seus jurisconsultos não admitiu que o direito romano na sua parte
mais bárbara e atrasada, dominica
potestas, pudesse ser ressuscitado por um comércio torpe, como parte
integrante do direito pátrio, depois de um tão grande intervalo de tempo como o
que separa a escravidão antiga da escravidão dos negros. A sua frase: “servi nigri in Brasilia, et quaesitis aliis
dominationibus tolerantur: sed quo jure et titulo me penitus ignorare fateor
(Escravos negros são tolerados no Brasil e outros domínios, mas por que direito
e com que título, confesso ignorá-lo completamente.), é a repulsa do
traficante pelo jurisconsulto e a demolição legal do edifício inteiro levantado
pela pirataria dos antigos assentos.
É o vexame da confissão de Melo Freire que dá um vislumbre da dignidade do
alvará de 6 de junho de 1755 em que se contém a primeira das promessas solenes
feitas à raça negra.
Aquele alvará, estatuindo sobre a
liberdade dos índios do Brasil, fez esta exceção significativa: “Desta geral
disposição excetuo somente os oriundos de pretas escravas, os quais serão
conservados nos domínios dos seus atuais senhores, enquanto eu não der outra providência sobre esta matéria. A providência assim expressamente
prometida nunca foi dada. Não podia, porém, deixar de repercutir no ultramar
português outro alvará com força de lei relativo aos escravos de raça negra do
reino. Esse documento é um libelo formidável e que se justifica por si só, mas
também reverte com toda a força sobre o rei que denuncia por essa forma a
escravidão e a tolera nos seus domínios da América e da África.
Essa distinção na sorte dos escravos
nas colônias e no Reino e ilhas vizinhas é a mesma que entre a sorte e a
importância das colônias e a do Reino. Para o Brasil, a escravidão era
ainda muito boa, para Portugal, porém, era a desonra. A área desse imenso
Império posta em relação com o pudor e a vergonha nacional era muito limitada,
de fato não se estendia além do Reino e não o abrangia todo. Mas apesar disso o
efeito daquela impugnação enérgica à imoralidade e aos abusos da escravidão não
podia ser recebido pelos senhores e pelos escravos no Brasil senão como o
prenúncio da mesma providência para o ultramar.
Depois veio o período da agitação
pela Independência. Nessa fermentação geral dos espíritos, os escravos enxergavam
uma perspectiva mais favorável de liberdade. Todos eles desejavam
instintivamente a Independência. A sua própria cor os fazia aderir com todas as
forças ao Brasil como pátria. Havia nele para a raça negra um futuro; nenhum em
Portugal. A sociedade colonial era por sua natureza uma casa aberta para todos
os lados onde tudo era entrada; a sociedade da mãe pátria era aristocrática,
exclusiva, e de todo fechada à cor preta. Daí a conspiração perpétua dos
descendentes de escravos pela formação de uma pátria que fosse também sua. Esse
elemento poderoso de desagregação foi o fator anônimo da Independência. As
relações ente os cativos, ou libertos, e os homens de cor, entre estes e os
representantes conhecidos do movimento, formam a cadeia de esperanças e simpatias
pela qual o pensamento político dos últimos infiltrou-se até as camadas sociais
constituídas primeiros. Aliados de coração dos brasileiros, os escravos esperaram e saudaram a Independência
como o primeiro passo para a sua alforria, como uma promessa tácita de
liberdade que não tardaria a ser cumprida.
Uma prova que no espírito não só
desses infelizes como também no dos senhores, no dos inimigos da Independência,
a idéia estava associada com a de emancipação, é o documento dirigido ao povo
de Pernambuco, depois da Revolução e 1817, pelo governo provisório. Esta
proclamação, notável por mais de um título, não é tão conhecida quanto o
patriotismo brasileiro tem interesse em que o seja, e por isso a transcrevo em
seguida. Ela é hoje um monumento político elevado em 1817 a uma província que
representa na história do Brasil o primeiro papel, pela sua iniciativa, seu
heroísmo, seu amor à liberdade e seu espírito cavalheiroso, mas em cuja face a
escravidão imprimiu a mesma nódoa que em todas as outras:
Patriotas
pernambucanos! A suspeita tem se insinuado nos proprietários rurais: eles crêem
que a benéfica tendência da presente liberal revolução tem por fim a
emancipação indistinta dos homens de cor e escravos. O governo lhes perdoa uma suspeita que o honra. Nutrido em
sentimentos generosos não pode jamais acreditar que os homens, por mais ou
menos tostados degenerassem do original tipo de igualdade; mas está igualmente
convencido de que a base de toda sociedade regular é a inviolabilidade de
qualquer espécie de propriedade. Impelido destas duas forças opostas, deseja
uma emancipação que não permita mais lavrar entre eles o cancro da escravidão;
mas a deseja lenta, regular e legal. O governo não engana ninguém; o coração se
lhe sangra ao ver tão longínqua uma época tão interessante, mas não a quer
prepóstera. Patriotas: vossas propriedades, ainda as mais opugnantes ao ideal
da justiça serão sagradas; o governo porá meios de diminuir o mal, não o fará
cessar pela força. Crede na palavra do governo, ela é inviolável, ela é santa.
Essas palavras
são as mais nobres que até hoje foram ditas por um governo brasileiro em todo o
decurso da nossa história. Nem a transação que nelas parece haver com o direito
de propriedade do senhor sobre o escravo desfigura-lhe a nobreza. Está-se vendo
que essa “propriedade” não tem legitimidade alguma perante os autores da
proclamação, que esse fato os envergonha e humilha. Os revolucionários de
Pernambuco compreenderam e sentiram a incoerência de um movimento nacional
republicano que se estreava reconhecendo a propriedade do homem sobre o homem,
e não há dúvida que essa contradição deslustrou para eles a independência que
proclamaram. Essa revolução que no dizer dos seus adeptos “mais pareceu festejo
de paz que tumulto de guerra”, essa alvorada do patriotismo brasileiro que tem
a data de 6 de março de 1817, foi o único de todos os nossos movimentos
nacionais em que os homens que representavam o país coraram de pejo, ou melhor,
choraram de dor, ao ver que a escravidão dividia a nação em duas castas, das
quais uma, apesar de partilhar a alegria e o entusiasmo de outra, não teria a
mínima parte nos despojos da vitória. Que significa, porém, aquele documento em
que a necessidade de aliciar proprietários rurais não impediu o governo de
dizer que desejava a emancipação,
lenta, regular e legal, que o coração
se lhes sangrava, que a propriedade escrava era a mais opugnante ao
ideal de justiça e que ele poria meios
de diminuir o mal? Significa que os mártires da Independência se viram
colocados entre a escravidão e o cadafalso; temendo que a união dos
“proprietários rurais” com as forças portuguesas afogasse em sangue esse
primeiro sonho realizado de um Brasil independente, se o fim da colônia se lhes
afigurasse como o fim da escravidão.
Isso dava-se no Norte.
Que no Sul a causa da Independência esteve intimamente associada com a da
emancipação, prova-a a atitude da Constituinte e de José Bonifácio. Aquela em
um dos artigos do seu projeto de Constituição inscreveu o dever da assembléia
de criar estabelecimentos para a “emancipação lenta dos negros e sua educação
religiosa e industrial”. A Constituição do Império não contém semelhante
artigo. Os autores desta última entenderam não dever nodoar o foral da
emancipação política do país, aludindo à existência da escravidão, no presente.
A palavra libertos do
artigo pelo qual esse são declarados cidadãos brasileiros e do artigo 94,
felizmente revogado, que os declarava inelegíveis para deputados, podia
referir-se a uma ordem anterior à Constituição e destruída por esta. No mais os
estatutos da nossa nacionalidade não fazem referência à escravidão. Essa única
pedra, posta em qualquer dos recantos daquele edifício, teria a virtude de
convertê-lo com sua fachada monumental do artigo 179 num todo monstruoso.
Por isso os organizadores da Constituição não quiseram deturpar a sua obra
descobrindo-lhes os alicerces. José Bonifácio, porém, o chefe desses Andradas -
Antônio Carlos tinha estado muito perto do cadafalso no movimento de Pernambuco
- em quem os homens de cor, os libertos, os escravos mesmos, todos os humildes
da população que sonhavam a Independência tinham posto a sua confiança,
redigira para ser votado pela Constituinte um projeto de lei sobre os escravos.
Esse projeto
para o abolicionismo atual é insuficiente, apesar de que muitas das suas
providências seriam ainda hoje um progresso humanitário em nossa lei; mas se
houvesse sido adotado naquela época, e sobretudo se o “patriarca da
Independência” houvesse podido insuflar nos nossos estadistas desde então o espírito
largo e generoso de liberdade e justiça que o animava, a escravidão teria por
certo desaparecido do Brasil há mais de meio século.
Artigos como
estes, por exemplo - os quais seriam repelidos pela atual legislatura com
indignação -, expressam sentimentos que, se houvesse impulsado e dirigido séria
e continuamente os poderes públicos, teriam feito mais do que nenhuma lei para
moralizar a sociedade brasileira.
Artigo 5. Todo escravo, ou alguém por ele, que oferecer ao senhor o valor por que foi vendido, ou por que for avaliado, será
imediatamente forro. — Artigo 6.
Mas se o escravo ou alguém por ele, não puder pagar todo o peço por inteiro,
logo que apresentar a sexta parte dele, será o senhor obrigado a recebê-la, e
lhe dará um dia livre na semana, e assim à proporção mais dias quando for
recebendo as outras sextas partes até o valor total. — Artigo 10. Todos os homens de cor forros, que não tiverem ofício
ou modo certo de vida, receberão do Estado uma pequena sesmaria de terra para
cultivarem, e receberão, outrossim, dele os socorros necessários para se
estabelecerem, cujo valor irão pagando com o andar do tempo. — Artigo 16. Antes da idade de doze
anos não deverão os escravos ser empregados em trabalhos insalubres e
demasiados; e o Conselho [o Conselho Superior Conservador dos Escravos,
proposto no mesmo projeto] vigiará sobre a execução deste artigo para o bem do
Estado e dos mesmos senhores. — Artigo
17. Igualmente os conselhos conservadores determinarão em cada
província, segundo a natureza dos trabalhos, as horas de trabalho, e o sustento
e o vestuário dos escravos. — Artigo
31. Para vigiar na estrita execução da lei e para se promover por todos
os modos possíveis o bom tratamento. morigeração e emancipação sucessiva dos
escravos, haverá na capital de cada província um Conselho Superior Conservador dos Escravos.
E assim diversos
outros artigos sobre penas corporais, serviços das escravas no tempo, e logo
depois da gravidez, casamentos e instrução moral dos escravos, mercês públicas
aos senhores que dessem alforria a famílias, posse de escravos por
eclesiásticos.
Não há na lei de
28 de setembro nada nesse sentido que revele cuidados e desvelos pela natureza
humana no escravo: o legislador neste caso cumpriu apenas um dever, sem amor,
quase sem simpatia; naquele, em falta da liberdade imediata que lhe pesava não
poder decretar, ele mostrou pelas vítimas da injustiça social o mais entranhado
interesse, carinho mesmo, que não podia deixar de ir-lhes direto ao coração.
É entretanto no
magnífico, e - lido hoje à luz da experiência dos últimos sessenta anos -
melancólico apelo dirigido aos brasileiros por José Bonifácio do seu exílio na
França (3) que se pode achar a concepção do estadista de que o
Brasil com a escravidão não era uma pátria digna de homens livres:
Sem a emancipação dos atuais cativos nunca o Brasil
firmará sua independência nacional e segurará e defenderá a sua liberal
constituição. Sem liberdade individual não pode haver civilização, nem sólida
riqueza; não pode haver moralidade e justiça, e sem estas filhas do céu, não há
nem pode haver brio, força e poder entre as nações.
Essa defesa
ardente, essa promoção espontânea e apaixonada dos direitos dos escravos pelo
mais ilustre de todos os brasileiros, teve origem nos extremos do seu
patriotismo, no desejo de completar a sua grande obra, porém não foi de certo
estranha a convicção de que a Independência, com o cativeiro indefinido, isto
é, perpétuo, dos escravos, era um golpe cruel na esperança de que estavam
possuídos todos eles, nos anos que precederam e nos que seguiram aquele
acontecimento, instintivamente, só por serem testemunhas do entusiasmo da
época, e por terem respirado o mesmo ar que dilatava todos os corações. A
independência não foi uma promessa formal, escrita, obrigatória, feita pelos brasileiros
aos escravos; não podia porém deixar de ser, e foi, e assim o entenderam os
mártires pernambucanos e os Andradas, uma promessa resultante da afinidade
nacional, da cumplicidade revolucionária, e da aliança tácita que reunia em
torno da mesma bandeira todos os que sonhavam e queriam o Brasil independente
por pátria.
Notas
1 . “Escravos
negros são tolerados no Brasil e outros domínios; mas por que direito e com que
título, confesso ignorá-lo completamente.
2. Estes
são os termos do alvará: “Eu el-rei faço saber aos que este alvará com força de
lei virem, que depois de ter obviado pelo outro alvará de 19 de novembro de
1761 [o qual declarou livres os escravos introduzidos em Portugal depois de
certa época] aos grandes inconvenientes que a estes reinos se seguiam de
perpetuar neles a escravidão dos homens pretos, tive certas informações de que
em todo o reino do Algarve, e em algumas províncias de Portugal, existem ainda
pessoas tão faltas dos sentimentos de humanidade e religião, que guardando nas suas
casas escravas, umas mais brancas do
que eles, com nomes de - pretas e negras - para, pela repreensível propagação
delas, perpetuarem os cativeiros por um abominável comércio de pecados e
de usurpações das liberdades dos
miseráveis nascidos daqueles sucessivos e lucrosos concubinatos; debaixo
do pretexto de que os ventres das mães escravas não podem produzir filhos
livres conforme o direito civil. E não permitindo nem ainda o mesmo direito
civil, de que se tem feito um
tão grande abuso, que aos descendentes de escravos em que não há
mais culpa que a da sua infeliz condição de cativos, se atenda à infâmia do
cativeiro, além do termo que as leis determinam contra os que descendem dos
mais abomináveis réus dos atrocíssimos crimes de lesa-majestade divina e
humana. E considerando as grandes
indecências que as ditas escravidões inferem aos meus vassalos, as confusões e
os ódios que entre eles causam, e os prejuízos que resultam ao Estado de ter
tantos vassalos lesos, baldados e inúteis quanto são aqueles miseráveis que a
sua infeliz condição faz incapazes para os ofícios públicos, para o comércio,
para a agricultura e para os tratos e contratos de todas espécies. Sou
servido obviar a todos os sobreditos absurdos, ordenando, como por este ordeno:
Quanto ao pretérito, que todos aqueles escravos ou escravas, ou sejam nascidos
dos sobreditos concubinatos, ou ainda de legítimos matrimônios, cujas mães e
avós são ou houverem sido escravas, fiquem no cativeiro em que se acham durante
a sua vida somente; que porém aqueles
cujo cativeiro vier das bisavós fiquem livres e desembargados, posto que
as mães e as avós tenham vivido em cativeiro: que, quanto ao futuro, todos os que nascerem, do dia da
publicação dessa lei em diante, nasçam por benefício dela inteiramente livres, posto
que as mães e as avós hajam sido escravas; e que todos os sobreditos, por
efeito desta minha paternal e pia providência libertados, fiquem hábeis para todos os ofícios, honras
e dignidades sem a nota distintiva de - libertos - que a superstição dos
romanos estabeleceu nos seus costumes, e que a união cristã e a sociedade civil
faz hoje intolerável no meu reino, como o tem sido em todos os outros da
Europa” A data do alvará é de 16 de janeiro de 1773.
Nenhum brasileiro pode ler esse
notável documento publicado há mais de um século, sobretudo as frases impressas
em itálico, sem reconhecer com pesar e humilhação:
I - Que se esse alvará fosse
estendido ao Brasil a escravidão teria acabado no começo do século, antes da
sua Independência.
II - Que apesar de ser lei no século
passado, e anterior à Revolução Francesa, semelhante alvará é mais generoso,
compreensivo e liberal do que a nossa lei de 28 de setembro: (a) porque liberta inteiramente desde a sua data
os nascituros, e esta os liberta depois de vinte e um anos de idade; (b) porque
declara livres e desembargados os bisnetos de escravas, e a lei de 28 de
setembro não levou em conta aos escravos sequer as gerações do cativeiro; (c)
porque isentou os escravos que
declarou livre da nota distintiva de libertos - “superstição dos romanos que a união cristão e a sociedade civil”
fazia já nesse tempo (“faz hoje”)
“intolerável no reino”, ao passo que a nossa lei de 1871 não se lembrou
de apagar tal nódoa, e sujeitou os libertos
de qualquer dos seus parágrafos por cinco anos à inspeção do governo e à
obrigação de exibir contrato de serviço sob pena de trabalhar nos
estabelecimentos públicos. O visconde do Rio Branco disse mesmo no Conselho de
Estado, antes de ler esse alvará, cujas palavras qualificou de memoráveis, que a lei portuguesa
“estendeu esse favor (o de declará-los livres
e ingênuos) aos infantes que fossem libertados no ato de batismo, e aos
libertos que se achassem em certa classe”, e acrescentou - “o que não se
poderia fazer entre nós sem ferir a Constituição do Império”. A ser assim, isso
mostra somente a diferença entre a compreensão das exigências da união cristã (a Constituição foi
feita em nome da Santíssima Trindade) e da sociedade civil que tinha o imperador constitucional em 1824 e
que tinha o rei absoluto em 1773.
III - Que apesar de ser a escravidão
no Brasil resultado exclusivo, além do tráfico, das mesmas causas apontadas no
alvará, “das usurpações das liberdades
de miseráveis nascidos de sucessivos e lucrosos concubinatos” da
repreensível propagação das escravas, de pretextos tirados do direito civil, “de que se tem feito um tão grande abuso”; e
apesar de ser infinitamente maior o número de vassalos (os escravos nem mesmo são hoje assim chamados, isto os
faria subir na escala social) ou, seguindo a evolução daquela palavra, de
súditos do chefe do Estado “lesos,
baldados e inúteis”, tornados pela “sua infeliz condição incapazes para os tratos e contratos de todas as
espécies”; ainda assim essas duras verdades não são mais ditas à
escravidão do alto do trono. “A
infâmia do cativeiro” continua a recair não sobre o que o inflige
podendo não o infligir, mas sobre o que o sofre, sem poder evitá-lo. Esse
alvará antiquado e que deverá ser obsoleto parece representar um período de
moralidade pública, religiosa, social e política, muito mais adiantado do que o
período, que é o atual, representado pela matrícula geral dos escravos.
3. Até
que ponto as idéias conhecidas de José Bonifácio sobre a escravidão concorreram
para fechar ao estadista que planejou e realizou a Independência a carreira
política em seu próprio país, é um ponto que merece ser estudado. Talvez quem
empreender esse estudo, venha a descobrir que a escravidão não teve pequena
parte nesse ostracismo, como também provavelmente foi ela que entregou os
nacionalistas pernambucanos ao cadafalso. Em todo o caso nas seguintes palavras
escritas por Antônio Carlos ver-se-á mais um efeito político do regime que,
assentando sobre ela, só pode ser o do servilismo e da ingratidão. “Tal foi
José Bonifácio, viveu e morreu pobre; não recebeu da sua Nação distinção
alguma; no Senado que a lei criara para o mérito e a virtude, e onde tem achado
assento até o vício, a crápula, a inépcia, a intriga e a traição (não
esquecendo o tráfico) não houve nunca um lugar para o criador do Império”.
“Talvez por isso”, acrescenta Antônio Carlos, “mais sobressairá seu nome, como
os de Bruto e Cássio mais lembrado eram por não aparecerem suas estátuas nas
pombas fúnebres das famílias a que pertenciam”. Esboço biográfico e necrológico do conselheiro José Bonifácio de
Andrada e Silva. p. 16
VII - ANTES DA LEI DE 1871
Por cinco anos choveu sobre as almas
dos míseros cativos, como o maná sobre os israelitas no deserto, a esperança da
liberdade bafejada do trono.
Cristiano Ottoni
As promessas de liberdade do segundo
e extenso período desde a Independência do Brasil até a lei Rio Branco datam de
poucos anos, relativamente a certa parte da população escrava, e no fim do
Primeiro Reinado, relativamente à outra.
Os direitos desta última - que vem a
ser os africanos importados depois de 1831 e os seus descendentes - são
discutidos mais longe. Por ora basta-nos dizer que esses direitos não se fundam
sobre promessas mais ou menos contestáveis, mas sobre um tratado internacional
e em lei positiva e expressa. O simples fato de achar-se pelo menos metade da
população escrava do Brasil escravizada com postergação manifesta da lei e
desprezo das penas que ela fulminou, dispensar-nos-ia de levar por diante este
argumento sobre os compromissos públicos tomados para com os escravos.
Quando a própria lei, como se verá
exposto com toda a minudência, não basta para garantir, à metade, pelo menos,
dos indivíduos escravizados, a liberdade que decretou para eles; quando um
artigo tão claro como este: “Todos os escravos que entraram no território ou
portos do Brasil, vindos de fora, ficam livres” (1) nunca foi
executado, e a referenda de Diogo Antônio Feijó nunca foi honrada nem pelos
ministros da Regência nem pelos do Segundo Reinado: que valor obrigatório podem
ter movimentos nacionais de caráter diverso, atos na aparência alheios à sorte
dos escravos, declarações oficiais limitadas ao efeito que deviam produzir? Em
outras palavras, de que servem tais apelos à consciência, à lealdade, ao
sentimento de justiça da nação, quando metade dos escravos estão ilegalmente em
cativeiro? Para que apresentar ao Estado a pagamento uma dívida de honra, da
qual ele nunca teve consciência ou de todo se esqueceu, quando ele próprio
ousadamente repudiou, alegando coação do estrangeiro, essa escritura pública
solene lavrada pela assembléia geral, e rubricada pela Regência Trina?
Útil ou inútil, o protesto dos
escravos deve entretanto ser feito em cada uma das suas partes conforme a
natureza das obrigações contraídas para com eles. Numa proporção enorme essa
obrigação do Estado é para eles uma lei, e uma lei feita em desempenho de um
tratado internacional. Por isso mais tarde veremos de que modo e em que termos
esse direito dos escravos foi reivindicado perante o governo brasileiro pela
diplomacia inglesa. Há infinitamente mais humilhação para nós nesse evidente
denegação de justiça por parte daquele. do que no apresamento de navios
negreiros em nossos portos por ordem desta. O nosso argumento, feita essa
ressalva importante - que é toda a questão, por assim dizer - refere-se por
enquanto aos escravos que nem por si nem por suas mães têm direito à liberdade
fundados numa lei expressa. É escusado dizer-se que estes são todos - exceto
raros africanos ainda em cativeiro importados no Primeiro Reinado - brasileiros
de nascimento.
Os fatos em que estes podem haver
fundado uma esperança, e que certamente obrigam a honra do país, datam de pouco
antes da lei de 28 de setembro. Esses compromissos nacionais com relação aos
escravos existentes são principalmente os seguintes: a alforria de escravos
para a guerra do Paraguai; a Fala do Trono de 1867, e a correspondência entre
os abolicionistas europeus e o governo imperial; a ação pessoal do conde D’Eu
no Paraguai como general em chefe do Exército; a conexão da emancipação
anunciada com o fim da guerra; a elaboração do projeto de emancipação no
Conselho de Estado; a agitação do Partido Liberal consecutivamente à
organização do ministério Itaboraí, a queda desse ministério e a subida do gabinete
São Vicente; a oposição à proposta Rio Branco; os vaticínios da dissidência; a
guerra organizada contra o governo e o imperador pela lavoura do Sul; a própria
lei de 28 de setembro de 1871, interpretada pelos que a defenderam e a
sustentaram, e as perspectivas de futuro abertas durante a discussão.
Sem entrar nos detalhes de cada um
desses pontos históricos, é possível apontar de modo que não admita nenhuma
dúvida de boa fé a relação entre todos eles e a sorte dos escravos.
O efeito do decreto de 6 de novembro
de 1866 que concedeu gratuitamente liberdade aos escravos da nação que pudessem
servir ao Exército, e estendeu o mesmo benefício sendo eles casados às suas
mulheres, foi um desses efeitos que se não podem limitar ao pequeno círculo
onde diretamente se exercem. Além disso, nas condições difíceis em que o Brasil
se achava então, quando a onda dos voluntários
espontâneos estava sendo a custo suprida pelo recrutamento, odioso à
população, porque era sorrateiro, vexatório, político, e sujeito a empenhos, é
certo que o governo pensou em armar, resgatando-os, grande número de escravos. (2)
Os títulos de nobreza concedidos aos senhores que forneciam escravos para
o Exército mostram o interesse que tinha o Estado em achar soldados entre os
escravos.
Essa cooperação dos escravos com o
Exército era o enobrecimento legal e social daquela classe. Nenhum povo, a
menos que haja perdido o sentimento da própria dignidade, pode intencionalmente
rebaixar os que estão encarregados de defendê-lo, os que fazem profissão de
manter a integridade, a independência e a honra nacional. Por isso não era o
Exército que o governo humilhava indo buscar soldados nas fileiras ínfimas dos
escravos; eram os escravos todos que ele elevava. Entre o senhor que ele fazia
titular , e o escravo que fazia soldado, a maior honra era para este. A
significação de tais fatos não podia ser outra para a massa dos escravos
brasileiros senão que o Estado, por sua própria dignidade, procuraria no futuro
fazer cidadãos os companheiros daqueles que tinham ido morrer pela pátria no
mesmo dia em que tiveram uma. A influência, na imaginação dessa classe, de
semelhantes atos dos poderes públicos, aos quais ela atribui, na sua ignorância
supersticiosa, mais coerência, memória, respeito próprio e sentimento de
justiça de que eles com efeito têm, devia ter sido muito grande. Desde esse dia
pelo menos o governo deu aos escravos uma classe social por aliada: o Exército.
(3)
A Fala do Trono de 22 de maio de
1867 foi para a emancipação como um raio, caindo de um céu sem nuvens.(4) Esse
oráculo sibilino em que o engenhoso eufemismo elemento servil amortecia o efeito da referência do chefe de
Estado à escravidão e aos escravos - a instituição podia existir no país, mas o
nome não devia ser pronunciado do alto do trono em pleno Parlamento - foi como
a explosão de uma cratera. Aquele documento prende-se intimamente a dois outros
que representam importante papel em nossa história: a mensagem da junta de
emancipação em França ao imperador e a resposta do ministro da Justiça em nome
deste e do governo brasileiro. A segunda dessas peças humanitárias foi assinada
pelo conselheiro Martim Francisco e a primeira pelos seguintes abolicionistas
franceses: o duque de Broglie, Guizot, A. Cochin, Andaluz, Borsier, príncipe de
Broglie, Gaumont, Léon Lavedan, Henri Martin, conde de Montalemberg, Henri
Moreaum Edouard de Pressensém Wallon, Eugène Yung.
Nessa mensagem diziam esses homens,
a maior parte deles conhecido do mundo inteiro: “Vossa Majestade é poderoso no
seu Império; uma vontade de Vossa Majestade pode produzir a liberdade de dois milhões de homens”.
Não era assim a emancipação das gerações futuras que eles reclamavam em nome da
humanidade e da justiça; era a
emancipação dos próprios escravos existentes, esses e não outros. Na resposta
do ministro não há uma só reserva quanto ao modo de entender a abolição da
escravatura; o imperador agradece o alto apreço em que é tido por homens tão
notáveis, e não insinua a mínima divergência de vistas com eles. A resposta
deve ser explicada de acordo coma pergunta; o que se promete com o que foi
pedido. É só assim que as palavras finais do ministro da Justiça terão o seu
verdadeiro relevo:
A
emancipação dos escravos, conseqüência necessária da abolição do tráfico, é somente uma questão de forma e
oportunidade. Quando as penosas circunstâncias em que se acha o país o
consentirem, o governo brasileiro considerará como objeto de primeira
importância a realização do que o espírito do cristianismo desde há muito
reclama do mundo civilizado. (5)
Aí está um
compromisso claro e terminante, tomado solenemente perante a Europa em 1867 a
favor de dois milhões de homens, os quais estão ainda - os que existem dentre
eles - esperando que o Estado descubra a forma
e encontre a oportunidade de
realizar o que o espírito do
cristianismo desde há muito reclama do mundo civilizado, e que este já
realizou com exceção apenas do Brasil.
A iniciativa
tomada contra a escravidão no Paraguai pelo conde d’Eu, marido da princesa
imperial, como general em chefe do nosso Exército, foi outro compromisso aceito
à face do mundo. Como poderia este acreditar que o ato do general brasileiro
exigindo do vencido a abolição da escravatura, não envolvia para o vencedor a
obrigação moral de fazer outro tanto no seu próprio território? Esse exército,
cuja coragem e perseverança habilitou o príncipe que o comandava a impor ao
inimigo o seu desejo humanitário, como uma ordem que foi logo obedecida, era
composto em parte de homens que tinham passado pelo cativeiro. Talvez o conde
d’Eu não tenha se lembrado disso ao reclamar a emancipação dos escravos na
República, nem que os havia em número incomparavelmente maior no Império; mas o
mundo não podia esquecer um e outro fato, ao ter conhecimento daquela nobre
exigência e do modo como foi satisfeita.
“Se vós lhe
concederdes (aos escravos) a liberdade que eles pedem”, escrevia o príncipe ao
governo provisório do Paraguai em Assunção, “tereis rompido solenemente com uma
instituição que foi infelizmente legada a muitos povos da livre América por
séculos de despotismo e de deplorável ignorância”. A resposta a esse apelo foi
um decreto em 2 de outubro de 1869, cujo artigo 1º dizia: “Fica desde hoje
abolida totalmente a escravidão no território da República”. O compromisso
nacional de fazer tudo o que estivesse ao alcance do Império para imitar o
procedimento do Paraguai foi tão claramente tomado por aquele episódio final da
campanha, como se houvesse sido exarado no próprio Tratado de Paz. Essa dívida
de honra só pode ser negada, admitindo-se o princípio de que é legítimo e
honesto para uma nação derribar no território inimigo, por ela ocupado e à sua
completa mercê, com o pretexto de humanidade do cristianismo, uma instituição
da qual está firmemente resolvida a tirar dentro das suas fronteiras todo o lucro
possível até a extinção das últimas vítimas. Semelhante noção, porém, reduziria
a guerra à pirataria, o comandante de um exército a um chefe de salteadores, e
é de todo inaceitável para os que julgam, na frase de John Brigth. “ a lei
moral tão obrigatória para as nações como o é para os indivíduos”.
Quanto à
esperança proveniente da agitação antes e depois da campanha parlamentar que
deu em resultado a lei de 1871, e às promessas depois de feitas, baste-nos
dizer em geral, por ora, que a oposição levantada contra aquele ato devia ter
espelhado entre os escravos a crença de que o fim do seu cativeiro estava
próximo. Os acessos de furor de muitos proprietários; a linguagem de descrédito
usada contra a monarquia nas fazendas, cujas paredes também têm ouvidos; a
representação do imperador, cujo nome é para os escravos sinônimo de força
social e até de providência, como sendo o protetor de sua causa; e por fim o
naufrágio total da campanha contra o governo; cada uma das diferentes emoções
daquela época agitada parecia calculada para infundir no barro do escravo o
espírito do homem e insuflar-lhe a liberdade.
Desde o dia em
que a Fala do trono do gabinete Zacarias inesperadamente, sem que nada o
anunciasse, suscitou a formidável questão do elemento servil, até o dia em que passou no Senado, no meio de
aclamações populares e ficando o recinto coberto de flores, a lei Rio Branco,
houve um período de ansiedade, incômoda para a lavoura; e para os escravos,
pela razão contrária, cheia de esperança. A subida do visconde de Itaboraí em
1868, depois dos compromissos tomados naquela Fala e na célebre carta aos
abolicionistas europeus, significava: ou que o imperador ligava então, por
causa da guerra, maior importância ao estado do Tesouro que é a reforma servil,
ou que em política, na experiência de Dom Pedro II, a linha reta não era o
caminho mais curto de um ponto a outro. Como se sabe também, aquele ministro
caiu sobretudo pela atitude assumida nesta mesma questão pelos seus
adversários, e pelos amigos que o queriam ver por terra. A chamada do visconde
de São Vicente para substituí-lo foi sinal que a reforma da emancipação, que
ficará para sempre associada entre outros com o nome daquele estadista, ia de
fato ser tentada; infelizmente o presidente do Conselho organizou um ministério
dividido entre si, e que por isso teve que ceder o seu lugar a uma combinação
mais homogênea para o fim que a nação e a Coroa tinham em vista. Foi esse o
ministério Rio Branco.
Durante todo
esse tempo de retrocesso e hesitação, o Partido Liberal, que inscrevera no seu
programa em 1869 “a emancipação dos escravos”, agitou por todos os modos o
país, no Senado, na imprensa, em conferências públicas. “Adiar indefinidamente
a questão”, dizia no Senado aos conservadores naquele ano o senador Nabuco, presidente
do Centro liberal, “não é possível que nisto consente o Partido Liberal, que
desenganado de que nada fareis há de agitar a questão”. E em 1870, com mais
força, insistia aquele estadista:
Senhores, este negócio é muito grave; é a questão mais
importante da sociedade brasileira, e é imprudência abandoná-la ao azar.
Quereis saber as conseqüências? Hei de dizê-lo com toda a sinceridade, com toda
a força das minhas convicções: o pouco serve hoje, e o mundo amanhã não basta.
As coisas políticas têm por principal condição a oportunidade. As reformas por
poucas que sejam valem muito na ocasião, não satisfazem depois, ainda que sejam
amplas. Não quereis os meios graduais; pois bem, haveis de ter os meios
simultâneos; não quereis as conseqüências de uma medida regulada por vós,
pausadamente, haveis de ter a incerteza da imprevidência; não quereis ter os
inconvenientes econômicos por que passaram as Antilhas inglesas e francesas,
correis o risco de ter os horrores de São Domingos.
Como podia a
agitação de um dos grandes partidos nacionais, havia pouco ainda no poder, em
favor dos escravos, deixar de inspirar-lhes a confiança de que a sua liberdade,
talvez próxima, talvez distante, era em todo caso certa? O grito de combate que
repercutia no país não era “a emancipação dos nascituros”, nem há senão
figuradamente emancipação de
indivíduos não existentes; mas sim “a emancipação dos escravos”. Os direitos
alegados, os argumentos produzidos, eram todos aplicáveis às gerações atuais.
Semelhante terremoto não podia restringir o seu tremendo abalo à área marcada,
desmoronava o solo não edificado sem fender a parte contígua. O impulso
não era dado aos interesses de partido, mas à consciência humana, e quando de
uma revolução se quer fazer uma reforma, é preciso pelo menos que esta tenha o
leito bastante largo para deixar passar a torrente. Tudo o que se disse durante
o período da incerteza, quando a oposição tratava de arrancar ao Partido
Conservador a reforma que este lhe sonegava (6) constitui outras
tantas promessas feitas solenemente aos escravos. Na agitação não se teve o
cuidado de dizer a estes que a medida não era a seu favor, mas somente em favor
de seus filhos; pelo contrário, falava-se das gerações atuais e das gerações
futuras conjuntamente, e na bandeira levantada do Norte ao Sul não havia
artigos de leis inscritos, havia apenas o sinal do combate em uma palavra, emancipação.
Agora vejamos as
promessas que se podiam legitimamente deduzir dessa mesma lei de 28 de setembro
de 1871, que foi, e não podia deixar de ser, uma tremenda decepção para os
escravos, os quais ouviam antes dizer que o imperador queria a emancipação e que a emancipação ia ser feita. Considerado
a princípio como uma espoliação pela aristocracia territorial, aquele ato
legislativo que não lhe restringiu de modo algum os direitos adquiridos,
tornou-se com o tempo o seu melhor baluarte. Mas não é o que se diz hoje, que
tem valor para nós; é o que se dizia antes da lei. Para medir-lhe o alcance é
preciso atendermos ao que pensavam então, não os que a fizeram, mas os que a
combateram. Nesse caso, a previdência, curioso resultado, da cegueira moral,
esteve do lado destes; foram eles que mediram verdadeiramente as conseqüências
reais da lei, que lhe apontaram as incoerências e os absurdos, e que vaticinaram
que essa não podia ser, e não havia de ser, a solução de tão grande problema.
Notas
1. Art.
1º da lei de 7 de novembro de 1831
2. Sobre
a questão se o governo devia forrar escravos de particulares para servirem no
Paraguai como soldados, foi este no Conselho de Estado em novembro de 1866 o
parecer do senador Nabuco: “Este meio seria odioso se os escravos fossem tais
depois de soldados, se eles continuassem escravos como os oito mil escravos que
Roma depois da batalha de Canas comprou e armou. Mas não é assim, os escravos
comprados são libertos e por conseqüência cidadãos antes de serem soldados; são
cidadãos-soldados. É a Constituição do Império que faz o liberto cidadão, e se
não há desonra em que ele concorde com o seu voto para constituir os poderes políticos,
porque haverá em ser ele soldado, em defender a pátria que o libertou e à qual
ele pertence? Assim ao mesmo tempo e pelo mesmo ato se faz um grande serviço à
emancipação, que é a causa da humanidade e outro grande serviço à guerra, que é
a causa nacional... Se empregamos os escravos na causa da nossa Independência,
por que não os empregaremos nesta guerra?”
3. “As
medidas a que o governo recorreu ultimamente, impelido pelas necessidades da
guerra, libertando escravos da nação e da Coroa, e premiando os cidadãos que
ofereciam libertos para o exército, não só deve ter estimulado os espíritos
mais sôfregos por essa reforma, como
também derramado essa esperança entre os escravos. Todos nós podemos dar
testemunho de que estes efeitos se vão sentindo”. Palavras do
conselheiro Paranhos no Conselho de Estado, Sessão de 2 de abril de 1867. - Trabalhos sobre a extinção da escravatura no
Brasil, p. 50
4. “O elemento servil no Império não pode
deixar de merecer oportunamente a vossa consideração, provendo-se de modo que,
respeitada a propriedade atual, e sem abalo profundo em nossa primeira
indústria - a agricultura - sejam atendidos os altos interesses que se ligam à
emancipação.”
5. Vide
integra dos dois documentos. O
Abolicionista, Rio de Janeiro, 1880, número de novembro
6. Deu-se
em 1870 um fato muito curioso. A comissão especial de que era relator o sr.
Teixeira Júnior requereu, e a Câmara votou que se solicitasse com urgência do
governo cópia dos projetos submetidos ao Conselho de Estado em 1867 e 1868 e
dos pareceres dos membros do Conselho: a esse pedido responderam os ministros
da Justiça. (J.O. Nebias) e do Império (Paulino de Souza) que não havia papéis
alguns nas suas respectivas secretarias. No parecer disse a comissão: “Sob
caráter confidencial e com
recomendação reiterada da maior
reserva foi mostrada à comissão por um dos dignos membros do gabinete
uma cópia de quatro atas das sessões do Conselho de Estado e do último projeto
ali examinado. Nestas condições, pois, a comissão não pode revelar nenhuma das
opiniões exaradas nesses documentos.” Art. 7º da lei de 15 de outubro de 1827:
“Os conselheiros de estado são responsáveis pelos conselhos que derem, etc.” Os
grifos são do parecer.
VIII - AS
PROMESSAS DA ‘LEI DE EMANCIPAÇÃO’
“A grande
injustiça da lei é não ter cuidado das gerações atuais.”
J. A. Saraiva
Não pretendo
neste capítulo estudar a lei Rio Branco senão de um ponto de vista: o das
esperanças razoáveis que pode deduzir do seu conjunto, e das condições em que
foi votada, que atribua ao nosso Poder Legislativo firmeza de propósito,
seriedade de motivos, pundonor nacional e espírito de eqüidade. Não se o
julgando resoluto, refletido, patriótico e justo, não se pode derivar da lei
esperança alguma, e deve-se mesmo temer que ela não seja pontualmente
executada, como não foi a de 7 de novembro de 1831, feita quando a nação estava
ainda à mercê dos agentes do tráfico.
A lei de 28 de
setembro de 1871, (1) seja dito incidentemente, foi um passo
de gigante dado pelo país. Imperfeita, incompleta, impolítica, injusta, e até
absurda, como nos parece hoje, essa lei foi nada menos que o bloqueio moral da
escravidão. A sua única parte definitiva e final foi este princípio: “Ninguém
mais nasce escravo”. Tudo o
mais, ou foi necessariamente transitório, como a entrega desses mesmos ingênuos
ao cativeiro até aos vinte e um anos; ou incompleto, como o sistema de resgate
forçado; ou insignificante, como as classes de escravos libertados: ou absurdo,
como o direito do senhor da escrava à indenização de uma apólice de 600$000
pela criança de oito anos que não deixou morrer; ou injusto, como a separação
do menor e da mãe, em caso de alienação desta. Isso quanto ao que se acha
disposto na lei; quanto ao que foi esquecido o índice de omissões não teria
fim. Apesar de tudo, porém, o simples princípio fundamental em que ela se
assenta basta para fazer dessa lei o primeiro ato de legislação humanitária da
nossa história.
Reduzida à
expressão mais simples, a lei quer dizer a extinção da escravatura dentro de um
prazo de meio século; mas essa extinção não podia ser decretada para o futuro
sem dar lugar à aspiração geral de vê-la decretada para o presente. Não são os
escravos somente que não se contentam com a liberdade dos seus filhos e querem
também ser livres; somo nós todos que queremos ver o Brasil desembaraçado e
purificado da escravidão, e não nos contentamos com a certeza de que as
gerações futuras hão de ter esse privilégio. A lei de 28 de setembro, ao dizer
aos escravos: “Os vossos filhos dora em diante nascerão livres, e chegando à idade da emancipação civil serão cidadãos”,
esqueçamos por enquanto os serviços,
disse implicitamente a todos os brasileiros: “Os vossos filhos, ou os vossos
netos, hão de pertencer a um país regenerador.”
Essa promessa
dupla poderia parecer final aos escravos, não porém aos livres. O efeito dessa
perspectiva de uma pátria respeitada e honesta para os que vierem depois de
nós, não podia ser outro senão o de despertar em nós mesmos a ambição de
pertencer-lhe. Quando um Estado qualquer aumenta para o futuro a honra e a
dignidade dos seus nacionais, nada mais natural do que reclamarem contra esse
adiamento os que se vêem na posse do título diminuído. Não é provável que os
escravos tenham inveja da sorte dos seus filhos; mas que outro sentimento nos
pode causar, a nós cidadãos de um país de escravos, a certeza de que a geração
futura há de possuir essa mesma pátria moralmente engrandecida - por ter a
escravidão de menos?
É nesse
sentimento de orgulho, ou melhor de pundonor nacional, inseparável do
verdadeiro patriotismo, que se funda a primeira esperança de que a lei de 28 de
setembro não seja a solução do problema individual de cada escravo e de cada
brasileiro.
As acusações
levantadas contra o projeto, se não deviam prevalecer para fazê-lo cair -
porque as imperfeições, deficiências, absurdos, tudo o que se queira, da lei
são infinitamente preferíveis à lógica da escravidão -, mostravam os pontos em
que, pela opinião mesma dos seus adversários, a reforma, uma vez promulgada,
precisaria ser moralizada, alargada e desenvolvida.
A lei de 28 de
setembro não deve ser tomada como uma transação entre o Estado e os
proprietários de escravos; mas como um ato de soberania nacional. Os
proprietários tinham tanto direito de impor a sua vontade ao país quanto
qualquer outra minoria dentro dele. A lei não é um tratado com a cláusula
subentendida que não poderá ser alterado sem o acordo das partes contratantes.
Pelo contrário, foi feita com a inteligência dos dois lados, seguramente com a
previsão da parte dos proprietários, de que seria somente um passo. Os que a
repeliram, dizia que ela eqüivalia à abolição imediata; (2) dos que
a votaram, muitos qualificaram-na de deficiente e expressaram o desejo de vê-la
completada por outras medidas, notavelmente pelo prazo. Quando, porém, o Poder
Legislativo fosse unânime em dar à lei Rio Branco o alcance e a significação de
uma solução definitiva da questão, aquela legislatura não tinha delegação
especial para ligar as futuras Câmaras, nem o direito de fazer leis que não pudessem
ser ampliadas ou revogadas por estas. Mais tarde veremos que profecias
terríveis foram feitas então, que medidas excepcionais foram julgadas
precisas.
Outra pretensão
singular é a de que esse ato legalizou todos os abusos que não proscreveu, anistiou
todos os crimes que não puniu, revogou todas as leis que não mencionou.
Pretende-se mesmo, que essa lei, que aboliu expressamente as antigas revogações
de alforria, foi até revogar por sua vez a carta de liberdade que a lei de 7 de
novembro de 1831 dera a todos os africanos importados depois dela. Não admira
que essa hermenêutica em matéria de escravidão - matéria em que na dúvida, aí
não há dúvida alguma, é o princípio da liberdade que prevalece - quando lemos
ainda hoje editais para a venda judicial de ingênuos. (3)
Essa
interpretação, todavia - séria como é, por ser a nossa magistratura na sua
generalidade cúmplice da escravidão, como o foi, por tanto tempo, do
tráfico - aparta-se demasiado da opinião pública para por verdadeiramente em
perigo o caráter da lei de 28 de setembro. Vejamos, deixando de parte a
construção escravagista da lei, em que pontos, pelos próprios argumentos dos
que a combateram, estava indicada desde o princípio a necessidade de
reformá-la, e, pelos argumentos dos que a promoveram, a necessidade de
alargá-la e de aumentar-lhe o alcance. Comecemos pelos últimos.
Em geral pode-se
dizer que a lei foi deficiente em omitir medidas propostas muito antes no
Parlamento, como, por exemplo, o projeto Wanderlei (de 1854) que proibia o tráfico
interprovincial de escravos. A lei que libertou os nascituros podia bem ter
localizado a escravidão nas províncias. Igualmente pontos capitais sustentados
com toda a força no Conselho de Estado, como, por exemplo, a fixação do preço
máximo para a alforria, a revogação da pena bárbara de açoites e da lei de 10
de junho de 1835, a proibição de dividir a família escrava, incompletamente
formulada na lei de 15 de setembro de 1869, foram deixados de parte na proposta
do governo e por isso o Código negro
brasileiro, civil e penal, continua, depois da lei chamada de
emancipação, a ser em geral tão bárbaro quanto antes.
A direção
principal entretanto, em que se propôs o alargamento da lei, foi a do prazo.
Nessa matéria, Souza Franco teve a maior parte, e o prazo por mim proposto na
Câmara dos Deputados em 1880 não foi senão a execução do plano delineado por
aquele estadista na seguinte proposta que apresentou no Conselho de Estado em
1867:
Que a declaração do dia em que cessa a escravidão no
Império deve ficar para o décimo ano da execução da lei supra sendo o artigo
seguinte: — Art. 23. No décimo ano da execução desta lei, o governo, tendo
colhido todas as informações as apresentará à Assembléia Geral Legislativa, com
a estatística dos libertados, em virtude de sua execução, e do número dos
escravos então existentes no Império para que, sob proposta também sua, se fixe
o prazo em que a escravidão cessará completamente.
A
disposição (acrescentava ele em 1868) cuja falta é mais sensível (no projeto em
discussão no Conselho de Estado) é a do prazo em que a escravidão cesse em todo
o Império. O projeto, calando-se sobre esse ponto muito importante, parece ter
tido por fim evitar reclamações de prazo muito breve, que assuste os
proprietários de escravos, e também a melindrosa questão da indenização. Não satisfaria porém a opinião que exige
compromisso expresso da extinção da escravidão.
O prazo, por
outro lado, era combatido no grupo liberal mesmo, por demasiado extenso.
Pimenta Bueno, depois marquês de São Vicente, propusera o dia 31 de dezembro de
1899 para a abolição completa no Império com indenização. Foi esse o prazo
discutido no Conselho de Estado, (5) onde foi julgado por uns muito
longo para os escravos, e por outros afastado demais para ser marcado em 1867.
A extensão do prazo era com efeito absurda.
Não
concordoa com o artigo do projeto (São Vicente) - foi o voto do Conselheiro
Nabuco - que marca como termo da escravidão o último dia do ano de 1899. Se não
podemos marcar um prazo mais breve, é melhor nada dizer: cada um calcule pela
probabilidade dos fatos naturais dos nascimentos e óbitos, e pelas medidas do
projeto, quando acabará a escravidão: a
declaração de um quarto de século não é lisonjeira ao Brasil.
No Senado,
porém, na discussão da lei, foi apresentado um prazo mais curto - o de vinte
anos - pelo senador Silveira da Mota. Esse prazo levava a escravidão até o ano
de 1891 do qual ela vai se aproximando sem
limitação alguma. Ainda esse prazo pareceu longo demais ao senador
Nabuco, o qual disse no Senado: Eu não
sou contrário à idéia do prazo, não como substitutiva da idéia do projeto, mas
como complementar dela.
O prazo dado à
escravidão pela lei proposta era de cinqüenta ou sessenta anos, mas havia, além
da liberdade pelo nascimento, as medidas da lei e esperança de que, uma vez
votada essa, “a porfia dos partidos seria para que a emancipação gradual fosse a mais ampla e a mais breve possível”.
(6) Por isso o prazo era um meio apenas de proteger os interesses
das gerações existentes de escravos, de preencher de alguma forma a lacuna que
faz a grande injustiça na lei, na frase do sr. Saraiva, que serve de epígrafe a
este capítulo.
A lei não cuidou das gerações atuais; mas
foi feita em nome dessas, arrancada pela compaixão e pelo interesse que a sua
sorte inspirava dentro e fora do país, espalhando-se pelo mundo a notícia de
que o Brasil havia emancipado seus escravos; e por isso durante toda a
discussão o sentimento predominante era de pesar, por se fazer tanto pelos que
ainda não tinham nascido e tão pouco pelos que haviam passado a vida no
cativeiro.
Aqui entram os
argumentos dos inimigos do projeto. A injustiça de libertar os nascituros,
deixando entregues à sua sorte os escravos existentes, não podia escapar, nem
escapou, aos amigos da lei, e foi-lhes lançada em rosto pelos contrários. O
interesse destes pelos velhos escravos vergados ao peso dos anos não podia ser
expresso de modo mais patético do que, por exemplo, pela lavoura de Piraí nas
palavras que vou grifar:
Fundada
na mais manifesta injustiça relativa entre os escravos - diziam os agricultores
daquele município -, a proposta concede o favor da liberdade aos que, pelo cego
acaso, nasceram depois de tal dia, conservando entretanto na escravidão os indivíduos que por longos, proveitosos e
relevantes serviços mais jus têm à liberdade.
Esse era o
grande, o formidável grito dos inimigos da proposta: “Libertais, diziam eles,
as gerações futuras, e nada fazeis pelos que estão, há trinta, quarenta,
cinqüenta anos, e mais, mergulhados na degradação do cativeiro”. A isso
respondiam os partidários da reforma: “Não nos esquecemos das gerações atuais;
para elas há a liberdade gradual”, ou na frase do senador Nabuco: “Confiem os
escravos na emancipação gradual”. O compromisso do país para com estes não
podia ser mais solene. Dizia-se-lhes:
Por ora decretamos a liberdade dos vossos filhos ainda
não nascidos, mas a vossa não há de tardar: a lei estabeleceu meios, criou um
fundo de emancipação que vos libertará a todos, providenciou para encontrardes
nas sociedades de emancipação o capital preciso para a vossa alforria.
Por outro lado,
a lei foi antes denunciada como devendo ser o fim da escravidão. Já vimos o que
se disse na Câmara. Em toda a parte se repetia que viria a abolição logo após
ela. Os receios do marquês de Olinda de que o Estado fosse “posto em
convulsão”, (7) não se verificaram; mas esses receios provinham do
conhecimento da lógica das coisas humanas que esta frase do visconde de
Itaboraí revela:
Nem é preciso terem os escravos muito atilamento para
compreender que os mesmos direitos dos filhos devem ter os seus progenitores,
nem se pode supor que vejam com indiferença esvaecerem-se-lhes as esperanças de
liberdade, que têm afagado em seus corações
Está aí
claramente um ponto da lei de 28 de setembro no qual os seus adversários tinham
razão em querer harmonizá-la com a justiça. O grito: “Deveis fazer pelas
gerações atuais pelo menos tanto quanto baste ou seja preciso para que não se
torne para elas uma decepção o que fizestes pelas gerações futuras”, partiu dos
inimigos da proposta; se esse grito nenhum valor moral tinha para impedir as
Câmaras de votá-la, hoje que essa proposta é lei do Estado, os próprios que o
levantaram estão obrigados a moralizar a lei.
O sr. Cristiano
Ottoni disse há dois anos da tribuna do Senado ao que combateram a reforma de
1871: “O que o patriotismo aconselha é que nos coloquemos dentro da lei de 28
de setembro; mas para estudar seus defeitos e lacunas, para corrigi-los e
suprimi-los.” Ora esses defeitos e lacunas denunciados pela oposição eram
principalmente o abandono da geração presente e a condição servil dos ingênuos
até os vinte e um anos. O mais estrênuo dos adversários da lei reconheceu então
que “a nação brasileira tinha assumido sérios compromissos perante as nações”,
e que a promessa de libertação dos escravos por um fundo de amortização era uma
dívida de honra. “Por cinco anos, disse ele, choveu sobre as almas dos míseros
cativos, como o maná sobre os israelitas no deserto, a esperança da liberdade,
bafejada do trono.” (8)
Quanto aos
ingênuos, por exemplo, com que aparência de lógica e de sentimento da dignidade
cívica não denunciavam os adversários da lei a criação dessa classe de futuros
cidadãos educados na escravidão e com todos os vícios dela. Ainda o mesmo sr.
Cristiano Ottoni, num discurso no Clube da Lavoura e do Comércio, expressava-se
assim a respeito dessa classe:
E
que cidadãos são esses? Como vêm eles depois para a sociedade, tendo sido
cativos de fato, não sabendo ler nem escrever, não tendo a mínima noção dos direitos
e deveres do cidadão, inçados de todos o vícios da senzala? (Apoiados.) Vícios da inteligência e
vícios do coração? (Apoiados.)
Esses apoiados
dos próprios diretamente responsáveis pelos vícios da senzala são pelos menos inconscientes.
O argumento é
por sua natureza abolicionista: formulado pelos mesmos que queriam manter esses
ingênuos na condição de escravos, é uma compaixão mal colocada e a condenação
apenas da capacidade política dos libertos.
Apesar disso,
porém, quando o sr. Paulino de Sousa exprobava ao visconde do Rio Branco
“essa classe predileta dos novos ingênuos (que o visconde de Itaboraí chamara escravos-livres), educados na
escravidão até aos vinte e um anos, isto é, durante o tempo em que se formam o
caráter moral, a inclinação e os hábitos dos indivíduos”, aquele chefe
conservador, sem o querer por certo, mostrava um dos defeitos capitais da lei,
que precisava ser emendado de acordo com o sentimento da dignidade cívica. Não
há razão, e a nossa lei constitucional não permite dúvida, para que o liberto,
o que foi escravo, não seja cidadão; mas há sérios motivos para que os
ingênuos, cidadãos como quaisquer outros, não sejam educados no cativeiro. Já
que esses ingênuos existem, não será dever estrito dos que viram tão claramente
esse erro da lei concorrer para que o “o caráter moral, a inclinação e os
hábitos” de centenas de milhares de cidadãos brasileiros sejam formados longe
da atmosfera empestada da senzala que, segundo a confissão dos que melhor a
conhecem, é uma verdadeira Gruta do Cão para todas as qualidades nobres?
É assim que tudo
quanto foi dito contra a lei do ponto de vista da civilização torna obrigatório
para os que a combateram o modificá-la e desenvolvê-la. Nesse sentido o sr.
Cristiano Ottoni deu um belo exemplo. Por outro lado as esperanças, as
animações, as expectativas de que os partidários e entusiastas da reforma,
encheram a alma e a imaginação dos escravos, constituem outras tantas promessas
de que estes têm o direito de exigir o cumprimento. A lei não foi o repúdio vergonhoso
do compromisso tomado com o mundo em 1866 pelo ministro de Estrangeiros do
Brasil. Pelo contrário foi os eu reconhecimento, a sua ratificação solene.
Que se tem feito
até hoje para saldar essa dívida de honra? No correr destas páginas ver-se-ão quais
foram e quais prometem ser os efeitos da lei comparativamente aos da morte; a
bondade e afeição dos senhores pelos escravos, assim como a iniciativa
particular tem feito muito mais que o Estado, mas dez vezes menos que a morte.
“A morte liberta 300.000”, disse no Senado a autoridade insuspeita que tenho
tanto citado, o sr. Cristiano Ottoni, “os particulares 35.000, o Estado que se obrigou à emancipação 5.000 no
mesmo período.” O mercado de escravos continua, as famílias são divididas, as
portas delineadas na lei não foram ainda rasgadas, a escravidão é a mesma
sempre, os seus crimes e as suas atrocidades repetem-se freqüentemente, e os
escravos vêem-se nas mesmas condições individuais, com o mesmo horizonte e o
mesmo futuro de sempre, desde que os primeiros africanos foram internados no
sertão do Brasil. A não se ir além da lei, esta ficaria sendo uma mentira
nacional, um artifício fraudulento pra enganar o mundo, os brasileiros, e, o
que é mais triste ainda, os próprios escravos. A causa destes, porém, assenta
sobre outra base, que todavia não deverá ser considerada mais forte do que
esses compromissos nacionais: a ilegalidade da escravidão. Para se verificar
até que ponto a escravidão entre nós é ilegal, é preciso conhecer-lhe as
origens, e a pirataria da qual ela deriva os seus direitos por uma série de
endossos tão válidos como a transação primitiva.
Notas
1 . Não sou
suspeito falando dessa lei. Além de ter pessoalmente particular interesse no
renome histórico do visconde do Rio Branco, ninguém contribuiu mais para
preparar aquele ato legislativo e mover a opinião em seu favor do que meu pai,
que de 1866 a 1871 fez dele a sua principal questão política. “No Conselho de
Estado” disse no Senado, em 1871, sr. F. Otaviano, falando do senador Nabuco,
“na correspondência com os fazendeiros, e na tribuna por meio de eloqüentes
discursos, foi ele que fez a idéia amadurecer e tomar proporções de vontade
nacional.” Em todo esse período em que a resolução conhecida do imperador
serviu de núcleo à formação de uma força constitucional capaz de vencer o poder
da escravidão, isto é, de 66 a 71, aquele estadista, como Sousa Franco,
Otaviano, Tavares Bastos, preparou o Partido Liberal, ao passo que São Vicente
e Tales Torres-Homem prepararam o partido Conservador para a reforma, à qual
coube ao visconde do Rio Branco a honra de ligar merecidamente o seu nome com o
aplauso de todos eles.
2. “Há de
acontecer o que prevejo: se passar a proposta do governo, a emancipação estará
feita no país dentro de um ou dois anos (Apoiados)
O SR. ANDRADE FIGUEIRA: E eles sabem disso. O SR. C. MACHADO: É a véspera do
dia da emancipação total. O SR. ANDRADE FIGUEIRA: O sr. presidente do Conselho
declarou no seu parecer no Conselho de Estado que esta seria a conseqüência” -
Discurso do Sr. Almeida Pereira na Câmara dos Deputados em agosto de 1971
3 . A respeito
de um desses editais, tive a honra de dirigir um protesto ao visconde de
Paranaguá, presidente do Conselho, no qual dizia: “A lei de 7 de novembro de
1831 está de fato revogada; chegou o momento de o governo mostrar que
essa não pode ser a sorte da lei de 28 de setembro de 1871. É preciso impedir
esse tráfico de ingênuos que
desponta. Não é abafando escândalos dessa ordem que se o pode conseguir. Esse
edital de Valença abre uma página tristíssima na história do Brasil, e cabe a
V. Exa. rasgá-la quanto antes. A começar a venda, por editais ou sem eles, dos
serviços dos ingênuos, a lei de 28 de setembro de 1871 será em breve reputada
pelo mundo como a mais monstruosa mentira a que uma nação jamais recorreu para
esconder um crime. A questão é a seguinte: Podem ou não os ingênuos ser vendidos? Pertence ao governo
salvar a dignidade de toda essa imensa classe criada pela lei de 28 de
setembro”.
4. O
ilustre chefe liberal acreditava assim que, na sessão legislativa de 1879, se
poderia “decretar a extinção total da escravidão” para o 1º ou o 2º qüinqüênio
de 1880-90.
5. “Num
projeto apresentado a 17 de maio de 1865 o visconde de Jequitinhonha
propôs, entre outras medidas, o prazo de quinze anos para a abolição da
escravidão civil no Brasil. Esse prazo, caso fosse adotado teria acabado a
escravidão em 1880. Dois anos depois, porém, no Conselho de Estado,
pronunciando-se sobre o prazo-Pimenta Bueno (ia até o fim do século) aquele
estadista condenou-o, tendo-se decidido a adotar o sistema da liberdade dos que
nascessem depois da lei promulgada. Jequitinhonha, de quem disse o visconde de
Jaguari, “foi ele o primeiro homem de Estado que se empenhou pela emancipação
dos escravos entre nós” - a homenagem seria mais justa dizendo-se: no Segundo
reinado, - era um abolicionista convicto, franco e declarado. Na questão
extravagante todavia, que mais ocupou o Conselho de Estado: - se os filhos
livres de mãe escrava seriam ingênuos
ou libertos? - e na qual o princípio: o parto segue o ventre,
representou tão importante papel, aquele estadista deixou-se enlear por uma
teia de aranha do romanismo, e uniu-se aos que queriam declarar liberto a quem
nunca havia sido escravo. Esses e outros erros, porém, em nada diminuem o
renome do abolicionista de Montezuma, cuja atitude frente à escravidão sempre
foi a de um adversário convencido de que ela era literalmente, na sua frase, o
“cancro” do Brasil.
6. Nabuco,
discurso na discussão do projeto de lei sobre o elemento servil.
7. “A
não se seguir o plano que acabo de indicar (o de não se fazer absolutamente
nada) não vejo providências que não ponha o Estado em convulsão... Uma só
palavra que deixe perceber a idéia de emancipação por mais adornada que
ela seja”, - isto é, disfarçada - “abre a porta a milhares de desgraças”. Trabalho sobre a extinção da escravatura no
Brasil, p. 38 e 41.
8. José
de Alencar, ministro do gabinete Itaboraí, denunciou aquele período de gestação
em termos que hoje, em vez de serem uma censura, fazem honra a Dom Pedro II:
“Não se trata”, disse o notável escritor cearense, o qual nessa questão se
deixou guiar, não pelos seus melhores sentimentos, mas por prevenções pessoais,
“de uma lei, trata-se de uma conjuração do poder. Desde 1867 que o Poder conspira,
fatigando a relutância dos estadistas chamados ao governo, embotando a
resistência dos partidos; desde 1867 que se prepara nas sombras este golpe de
Estado, que há de firmar no país o absolutismo ou antes desmascará-lo.” Que a
ação individual do imperador foi empregada, sobretudo depois de 1845 até 1850,
em favor da supressão do tráfico, resultando naquele ano nas medidas de Eusébio
de Queiroz, e de 1866 a 1871 em favor da emancipação dos nascituros, resultando
neste último ano na lei Rio Branco, é um fato que o imperador, se quisesse
escrever memórias e contar o que se passou com os diversos gabinetes dos dois
períodos , poderia firmar historicamente com um sem número de provas. A sua
parte no que se tem feito é muito grande, e quase a essencial, porquanto ele
poderia ter feito o mesmo com outros homens e por outros meios, sem receio de
revolução. O que eu digo porém é que se Dom Pedro II, desde que subiu ao trono,
tivesse como Norte invariável do seu reinado o realizar a abolição como seu pai
realizou a Independência, sem exercer mais poder pessoal do que exerceu,
por exemplo, para levar a guerra do Paraguai até a destruição total do governo
de Lopez, a escravidão já teria a esta hora desaparecido do Brasil. É verdade
que se não fosse o imperador, os piores traficantes de escravos teriam sido
feitos condes e marqueses do Império, e que Sua Majestade sempre mostrou
repugnância pelo tráfico, e interesse pelo trabalho livre; mas comparado à soma
de poder que ele exerce ou possui, o que se tem feito em favor dos escravos no
seu reinado já de quarenta e três anos, é muito pouco. Basta dizer que ainda
hoje a capital do Império é um mercado de escravos! Veja-se por outro lado o
que fez o Czar Alexandre II, dentro de seis anos de reinado. Não temos que nos
incomodar com os que nos chamam de contraditórios, porque fazemos apelo ao
imperador sendo opostos, pelo menos na maior parte, ao governo pessoal. O uso do prestígio e da força acumulada que o
imperador representa no Brasil, em favor da emancipação dos escravos, seria no
mais lato sentido da palavra expressão da vontade nacional. Com a escravidão
não há governo livre, nem democracia verdadeira; há somente governo de casta e
regime de monopólio. As senzalas não podem ter representantes, e a população
avassalada e empobrecida não ousa tê-los.
IX. O TRÁFICO DE AFRICANOS
Andrada!
arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares!
Castro Alves
A escravidão
entre nós não teve outra fonte neste século senão o comércio de africanos.
Têm-se denunciado diversos crimes no Norte contra as raças indígenas, mas
semelhantes fatos são raros. Entre os escravos há, por certo, descendentes de
caboclos remotamente escravizados, mas tais exceções não tiram à escravidão
brasileira o caráter de puramente africana. Os escravos são os próprios
africanos importados, ou os seus descendentes.
O que foi, e
infelizmente ainda é, o tráfico de escravos no continente africano, os
exploradores nos contam em páginas que horrorizam; o que era nos navios
negreiros, nós o sabemos pela tradição oral das vítimas; o que por fim se
tornava depois do desembarque em nossas praias, desde que se acendiam as
fogueiras anunciativas, quando se internava a caravana e os negros boçais
tomavam os seus lugares ao lado dos ladinos nos quadros das fazendas,
vê-lo-emos mais tarde. Basta-me dizer que a história não oferece no seu longo
decurso um crime geral que, pela perversidade, horror e infinidade dos crimes
particulares que o compõem, pela sua duração, pelos seus motivos sórdidos, pela
desumanidade do seu sistema complexo de medidas, pelos proventos dele tirados,
pelo número das suas vítimas, e por todas as suas conseqüências, possa de longe
ser comparado à colonização africana na América.
Ao
procurar descrever o tráfico de escravos na África Oriental, foi-me necessário
manter-me bem dentro da verdade para não se me argüir de exagerado; mas o
assunto não consentia que eu o fosse. Pintar com cores por demais carregadas os
seus efeitos, é simplesmente impossível. O espetáculo que presenciei, apesar de
serem incidentes comuns ao tráfico, são tão repulsivos que sempre procuro
afastá-los da memória. No caso das mais desagradáveis recordações, eu consigo
por fim adormecê-las no esquecimento; mas as cenas do tráfico voltam-me ao
pensamento sem serem chamadas, e fazem-me estremecer no silêncio da noite,
horrorizado com a fidelidade com que se reproduzem.
Estas palavras
são do dr. Livingstone e dispensam quaisquer outras sobre a perseguição de que
a África é vítima há séculos, pela cor dos seus habitantes.
Castro Alves na
sua Tragédia no mar não pintou
senão a realidade do suplício dantesco, ou antes romano, a que o tombadilho dos
navios negreiros (1) servia de arena, e o porão de subterrâneo. Quem
ouviu descrever os horrores do tráfico tem sempre diante dos olhos um quadro
que lembra a pintura de Géricault, O
Naufrágio da Medusa. A balada de Southey, do marinheiro que tomara parte
nesta navegação maldita, e a quem o remorso não deixará mais repouso e a
consciência perseguia de dentro implacável e vingadora, expressa a agonia
mental de quantos, tendo um vislumbre de consciência, se empregaram nesse
contrabando de sangue.
Uma vez
desembarcados, os esqueletos vivos eram conduzidos para o eito das fazendas,
para o meio dos cafezais. O tráfico tinha completado a sua obra, começava a da
escravidão. Não entro neste volume na história do tráfico e, portanto, só
incidentemente me refiro às humilhações que impôs ao Brasil a avidez insaciável
e sanguinária daquele comércio. De 1831 até 1850 o governo brasileiro achou-se,
com efeito, empenhado com o inglês numa luta diplomática do mais triste caráter
para nós, por não poder executarmos os nossos tratados e as nossas leis. Em vez
de patrioticamente entender-se com a Inglaterra, como nesse tempo haviam feito
quase todas as potências da Europa e da América para a completa destruição da
pirataria que infestava os seus portos e costas; em vez de aceitar, agradecido,
o concurso do estrangeiro para resgatar a sua própria bandeira do poder dos
piratas, o governo deixou-se aterrar e reduzir à impotência por estes. A
Inglaterra esperou até 1845 que o Brasil entrasse em acordo com ela; foi
somente em 1845, quando em falta de um tratado conosco ela ia perder o fruto de
vinte e oito anos de sacrifícios, que lorde Aberdeen apresentou o seu bill. O bill Aberdeen, pode-se dizer, foi uma afronta ao encontro da
qual a escravidão forçou o governo brasileiro a ir. A luta estava travada entre
a Inglaterra e o tráfico, e não podia, nem devia acabar por honra da humanidade
recuando ela. Foi isso que os nossos estadistas não pensaram. A cerração que os
cercava não lhes permitia ver que em 1845 o sol do nosso século já estava alto
demais para alumiar ainda tal pirataria neste hemisfério.
Só por um
motivo, essa lei Aberdeen, não foi um título de honra para a Inglaterra. Como
se disse, por diversas vezes, no Parlamento inglês, a Inglaterra fez com uma
nação fraca o que não faria contra uma nação forte. Uma das últimas carregações
de escravos para o Brasil, a dos africanos chamados do Bracuhy, internados em
1852 no Bananal de São Paulo, foi levada à sombra a bandeira dos Estados
Unidos. Quando os cruzadores ingleses encontravam um navio negreiro que içava o
pavilhão das estrelas deixavam-no passar. A atitude do Parlamento inglês
votando a lei que deu jurisdição aos seus tribunais sobre navios e súditos
brasileiros, empregados no tráfico, apreendidos ainda mesmo em águas
territoriais do Brasil, teria sido altamente gloriosa para ela se essa lei
fizesse parte de um sistema de medidas iguais contra todas as bandeiras usurpadas pelos agentes daquela pirataria.
Mas qualquer que
fosse a fraqueza da Inglaterra em não proceder contra os fortes como procedia
contra os fracos, o brasileiro, que lê a nossa história diplomática durante o
período militante do tráfico, o que sente é ver o poderio que a soma de
interesses englobada nesse nome exercia sobre o país.
Esse poderio era
tal que Eusébio de Queirós, ainda em 1849, num memorandum que redigiu, para ser presente ao Ministério sobre a
questão, começava assim:
Para
reprimir o tráfico de africanos no país sem
excitar uma revolução faz-se necessário: 1º atacar com vigor as novas
introduções, esquecendo e anistiando as anteriores à lei; 2º dirigir a
repressão contra o tráfico no mar, no momento do desembarque, enquanto os
africanos estão em mãos dos introdutores.
O mesmo
estadista, no seu célebre discurso de 1852, procurando mostrar como o tráfico
somente acabou pelo interesse dos agricultores, cujas propriedades estavam
passando para as mãos dos especuladores e dos traficantes, por causa das
dívidas contraídas pelo fornecimento de escravos, confessou a pressão exercida
de 1831 a 1850, pela agricultura consorciada com aquele comércio, sobre todos
os governos e todos os partidos.
Sejamos
francos (disse ele): o tráfico, no Brasil, prendia-se a interesses, ou para
melhor dizer, a presumidos interesses dos nossos agricultores; e num país em
que a agricultura tem tamanha força era natural que a opinião pública se
manifestasse em favor do tráfico; a opinião pública que tamanha influência tem,
não só nos governos representativos, como até nas próprias monarquias
absolutas. O que há pois para admirar em que nossos homens políticos se
curvassem a essa lei da necessidade? O que há para admirar em que nós todos,
amigos ou inimigos do tráfico, nos curvássemos a essa necessidade? Senhores, se
isso fosse crime, seria um crime geral no Brasil; mas eu sustento que, quando
em uma nação todos os partidos políticos ocupam o poder, quando todos os seus
homens políticos têm sido chamados a exercê-lo, e todos eles estão concordes em
uma conduta, é preciso que essa conduta seja apoiada em razões muito fortes;
impossível que ela seja um crime e haveria temeridade em chamá-la de erro.
Trocada a
palavra tráfico pela palavra escravidão, esse trecho de eloqüência,
calorosamente aplaudido pela Câmara, poderá servir de apologia no futuro aos
estadistas de hoje que quiserem justificar a nossa época. A verdade, porém, é
que houve sempre diferença entre os inimigos declarados do tráfico e os seus
protetores. Feita essa reserva, a favor de um ou outro homem público que nenhuma cumplicidade teve nele, e
outra quanto à moralidade da doutrina, de que se não pode chamar crime nem erro à violação da lei moral, quando é uma nação inteira
que a comete, as palavras justificativas do grande ministro da Justiça de 1850
não exageram a degradação a que chegou a nossa política até uma época ainda
recente. Algumas datas bastam para prova. Pela Convenção de 1826, o comércio de
africanos devia, no fim de três anos, ser equiparado à pirataria, e a lei que
os equiparou tem a data de 4 de setembro de 1850. A liberdade imediata dos
africanos legalmente capturados foi garantida pela mesma convenção, quando
ratificou a de 1817 entre Portugal e a Grã-Bretanha, e o decreto que emancipou os africanos livres foi de 24 setembro de
1864. Por último, a lei de 7 de novembro de 1831 está até hoje sem execução, e
os mesmos que ela declarou livres acham-se ainda em cativeiro. Nessa questão do
tráfico bebemos as fezes todas do cálice.
É por isso que
nos envergonha ler as increpações que nos faziam homens como sir Robert Peel, lorde Palmerston e
lorde Brougham, e ver os ministros ingleses reclamando a liberdade dos
africanos que a nossa própria lei declarou livres sem resultado algum. A
pretexto da dignidade nacional ofendida, o nosso governo, que se achava na
posição coata em que o descreveu Eusébio, cobria praticamente com a sua
bandeira e a sua soberania as expedições dos traficantes organizadas no Rio e
na Bahia. Se o que se fez em 1859 houvesse sido feito em 1844, não teria por
certo havido bill Aberdeen.
A questão nunca
devera ter sido colocada entre o Brasil e a Inglaterra, mas ente o Brasil, com
a Inglaterra, de um lado e o tráfico do outro. Se jamais a história deixou de
registrar uma aliança digna e honesta, foi essa, a que não fizemos com aquela
nação. O princípio: que o navio negreiro não tem direito à proteção do
pavilhão, seria muito mais honroso para nós do que todos os argumentos tirados
do direito internacional para consumar definitivamente o cativeiro perpétuo de
estrangeiros introduzidos à força em nosso país.
O poder, porém,
do tráfico era irresistível e até 1851 não menos de um milhão de africanos
foram lançados em nossas senzalas. A cifra de cinqüenta mil por ano não é
exagerada.
Mais tarde,
teremos que considerar a soma que o Brasil empregou desse modo. Esse milhão de
africanos não lhe custou menos que quatrocentos mil contos. Desses quatrocentos
mil contos que sorveram as economias da lavoura durante vinte anos, cento e
trinta e cinco mil contos representam a despesa total dos negreiros, e duzentos
e sessenta mil os seus lucros. (2)
Esse imenso
prejuízo nacional não foi visto durante anos pelos nossos estadistas, os quais
supunham que o tráfico enriquecia o país. Grande parte, seguramente, desse
capital voltou para a lavoura quando as fazendas caíram em mãos dos negociantes
de escravos que tinham hipotecas sobre elas por esse fornecimento, e assim se
tornaram senhores perpétuos do
seu próprio contrabando. Foi Eusébio quem o disse no seguinte trecho do seu
discurso de 16 de julho de 1852, a que já me referi:
A
isto (o desequilíbrio entre as duas classes de livres e escravos produzidos
“pela progressão ascendente do tráfico” que nos anos de 1846, 1847 e 1848 havia
triplicado) veio juntar-se o interesse dos nossos lavradores: a princípio,
acreditando que na compra do maior número de escravos consistia o aumento dos
seus lucros, os nossos agricultores, sem advertirem no gravíssimo perigo
ameaçava o país, só tratavam da aquisição de novos braços comprando-os a crédito, a
pagamento de três a quatro anos,
vencendo no intervalo juros mordentes. (Aqui, segue-se a frase sobre a
mortalidade dos africanos citada em outro capítulo.) Assim os escravos morriam,
mas as dívidas ficavam, e com elas os terrenos hipotecados aos especuladores,
que compravam os africanos aos traficantes para revender aos lavradores (Apoiados) Assim a nossa propriedade territorial ia passando da mão dos
agricultores para os especuladores e traficantes (Apoiados) Esta experiência despertou
os nossos lavradores, e faz-lhes conhecer que achavam sua ruína, onde
procuravam a riqueza, e ficou o tráfico desde esse momento definitivamente
condenado.
Grande parte do
mesmo capital realizado foi empregada na edificação do Rio de Janeiro e da
Bahia, mas o restante foi exportado para Portugal, que tirou assim do tráfico,
como tem tirado da escravidão no Brasil não menores lucros do que a Espanha
tirou dessas mesmas fontes em Cuba.
Ninguém,
entretanto, se lembra de lamentar o dinheiro desperdiçado nesse ignóbil
comércio, porque os seus prejuízos morais deixaram na sombra todos os lucros
cessantes e toda a perda material do país. O brasileiro que lê hoje os papéis
do tráfico, para sempre preservados como o arquivo de uma das empresas mais sombrias
a que jamais se lançou a especulação sem consciência que deslustra as
conquistas civilizadoras do comércio, não atende senão à monstruosidade do
crime e aos algarismos que dão medida dele. O lado econômico é secundário, e o
fato de haver sido este o principal, segundo a própria demonstração de Eusébio,
tanto para triplicar de 1846 a 1848 o comércio, como para extingui-lo dois anos
depois, prova somente a cegueira com que o país todo animava essa revoltante
pirataria. Os poucos homens a quem esse estado de coisas profundamente
revoltava, como por exemplo os Andradas, nada podiam fazer para
modificá-lo. Os ousados traficantes de negros novos encastelados na sua riqueza
mal adquirida eram onipotentes, e levantavam contra quem ousava erguer a voz
para denunciar-lhes o comércio as acusações de estrangeiros, de aliados da Inglaterra, de cúmplices da
humilhações infligidas ao país.
O verdadeiro
patriotismo, isto é, o que concilia a pátria com a humanidade, não pretende
mais que o Brasil tivesse o direito de ir com a sua bandeira, à sombra do
direito das gentes, criado para a proteção e não para a destruição da nossa
espécie, roubar homens na África e transportá-los para o seu território.
Sir James Hudson qualificou uma vez o argumento “da dignidade nacional”,
que o nosso governo sempre apresentava, nos seguintes termos: “Uma dignidade
que se procura manter à custa da honra nacional, da deterioração dos interesses
do país, da degradação gradual, mas certa do seu povo;” Estas palavras não era
merecidas em 1850 quando foram escritas; mas aplicam-se, com maior justiça, ao
longo período de 1831 até aquele ano.
Esse é o
sentimento da atual geração. Todos nós fazemos votos para que, se alguma outra
vez em nossa história, aterrando o governo, prostituindo a justiça, corrompendo
as autoridades e amordaçando o parlamento, algum outro poder, irresistível como
foi o tráfico, se senhorear da nossa bandeira e subjugar as nossas leis, para
infligir um longo e atroz martírio na mesmas condições a um povo de outro
continente ou de outro país, essa pirataria não dure senão o tempo de ser
esmagada, com todos os seus cúmplices por qualquer nação que o possa fazer.
A soberania
nacional, para ser respeitada, deve conter-se nos seus limites; não é ato de
soberania o roubo de estrangeiros para o cativeiro. Cada tiro dos cruzadores
ingleses que impedia tais homens de serem internados nas fazendas e os livrava
da escravidão perpétua era um serviço à honra
nacional. Esse pano verde-amarelo, que os navios negreiros içavam à
popa, era apenas uma profanação da nossa bandeira. Essa, eles não tinham o
direito de a levantar nos antros flutuantes que prolongavam os barracões da
costa de Angola e Moçambique até a costa da Bahia e do Rio de Janeiro., A lei
proibia semelhante insulto ao nosso pavilhão, e quem o fazia não tinha
direito algum de usar dele.
Estas idéias
podem hoje ser expressas com a nobre altivez de um patriotismo que não confunde
os limites da pátria com o círculo das depredações traçado no mapa do globo por
qualquer bando de aventureiros; a questão é se a geração atual, que a odeia
sinceramente o tráfico e se acha tão longe dele como da Inquisição e do
Absolutismo, não deve pôr-lhe efetivamente termo, anulando aquela parte da suas
transações que não tem o menor vislumbre de legalidade. Se o deve, é preciso
acabar com a escravidão que não é senão o tráfico, tornado permanente e
legitimado, do período em que a nossa lei interna já o havia declarado
criminoso e no qual todavia ele foi levado por diante em escala e proporções
nunca vistas.
Notas
1 . Esses navios
chamados túmulos flutuantes, e
que o eram em mais de um sentido, custavam relativamente nada. Uma embarcação
de cem toneladas, no valor de sete contos, servia para o transporte de mais de
350 escravos (depoimento de Sir
Charles Hotham, adiante citado, sec. 604). O custo total do transporte desse
número de escravos (navios, salários da equipagem, mantimentos, comandantes,
etc.) não excedia de dez contos de réis, ou em números redondos, trinta mil
réis por cabeça. (O mesmo, secs.
604-611). Um brigue de 167 toneladas capturado tinha a bordo 852 escravos,
outro de 59, 400. Muitos desses navios foram destruídos depois de apressados
como impróprios para a navegação.
2. “Sendo £ 6 o
custo do escravo em África, e calculando sobre a base de que sobre três venha a
ser capturado, o custo de transportar os dois outros seria de £ 9 por pessoa, £
18, às quais devem-se acrescentar £ 9 da perda do que foi capturado, perfazendo
no Brasil o custo total dos dois escravos transportados £ 27 ou £13 10s por
cabeça. Se o preço do escravo no desembarque é de £ 60 haverá um lucro, não
obstante a apreensão e um terço e incluindo o custo dos dois navios que
transportam os dois terços de £46 10s por cabeça? - Eu penso assim”. Depoimento
de sir Charles Hotham, comandante
da esquadra inglesa na África Ocidental, Abril, 1849. First
Report from the Select Commitee (House of Commons), 1849 § 614. O meu cálculo é
esse mesmo tomando £40 como preço médio do africano no Brasil.
X . ILEGALIDADE
DA ESCRAVIDÃO
“As
nações como os homens devem muito prezar a sua reputação”
Eusébio de
Queiroz
Vimos o que foi
o tráfico. Pois bem, essa trilogia infernal, cuja primeira cena era a África, a
segunda o mar, a terceira o Brasil, é toda a nossa escravidão. Que semelhante
base é perante a moral monstruosa; que a nossa lei não podia reduzir africanos,
isto é, estrangeiros, a escravos; que os filhos desses africanos continuam a
sofrer a mesma violência que seus pais, e por isso o título porque são
possuídos, o fato do nascimento, não vale mais perante qualquer direito, que
não seja a legalização brutal da pirataria, do que o título de propriedade
sobre aqueles: são princípios que estão para a consciência humana fora de
questão. Mas, mesmo perante a legalidade estrita, ou perante a legalidade
abstraindo da competência e da moralidade da lei, a maior parte dos escravos
entre nós são homens livres criminosamente escravizados.
Com efeito, a
grande maioria desses homens, sobretudo no Sul, ou são africanos, importados
depois de 1831, ou descendentes destes. Ora, em 1831 a lei de 7 de novembro
declarou no seu artigo 1º: “Todos os escravos que entrarem no território ou
portos do Brasil vindos de fora ficam livres.” Como se sabe, essa lei nunca foi
posta em execução, porque o governo brasileiro não podia lutar contra os
traficantes; mas nem por isso deixa ela de ser a carta de liberdade de todos os
importados depois da sua data.
Que antes de
1831, pela facilidade de aquisição de africanos, a mortalidade dos nossos
escravos, ou da Costa ou crioulos, era enorme, é um fato
notório.
É
sabido - dizia Eusébio de Queiroz em 1852 na Câmara dos Deputados - que a maior
parte desses infelizes (os escravos importados) são ceifados logo nos primeiros
anos, pelo estado desgraçado a que os reduzem os maus tratos da viagem, pela
mudança de clima, de alimentos e todos os hábitos que constituem a vida.(1)
Desses
africanos, porém - quase todos eram capturados na mocidade -, introduzidos
antes de 1831, bem poucos restarão hoje, isto é, depois de cinqüenta anos de
escravidão na América a juntar aos anos com que vieram da África; e, mesmo sem
a terrível mortalidade, de que deu testemunho Eusébio, entre os recém-chegados,
pode-se afirmar que quase todos os africanos vivos foram introduzidos
criminosamente no país.
Vejamos, porém,
um depoimento altamente insuspeito relativamente à mortalidade das “crias” até
à época mais ou menos em que o tráfico transatlântico foi efetivamente
suprimido.
É
fato incontestável (depõe o sr. Cristiano Ottoni) que, enquanto era baixo o
preço dos escravos, raras crias vingavam nas fazendas. Viajava-se pelos
municípios de Piraí, Vassouras, Valença. Paraíba do Sul, observando os eitos do
serviço... quase tudo africanos. Notava-se uma exceção, e não havia muitas
outras, de uma grande fazenda cujo proprietário órfão se educava em um país
estrangeiro: esta povoava-se notavelmente de crioulos: por quê? Por contrato
uma parte dos que vingavam pertenciam ao administrador: sempre o interesse. Em
todas as palestras entre os fazendeiros se ouvia este cálculo: “Compra-se um
negro por 300$000: colhe no ano 100 arrobas de café que produzem líquido pelo
menos o seu custo; daí em diante tudo é lucro. Não vale a pena aturar as crias
que só depois de dezesseis anos darão igual serviço. E em conseqüência as
negras pejadas e as que amamentavam não eram dispensadas da enxada: duras
fadigas impediram em umas o regular desenvolvimento do feto, em quase todas
geravam o desmazelo pelo tratamento dos filhos e daí as doenças e morte às
pobres crianças. Quantos cresciam? Não há estatísticas que o digam, mas, se dos
expostos da Corte só vingavam 9 a 10%, como então provou no Senado o visconde
de Abaeté, dos nascidos na escravidão não escapavam certamente mais de 5%. (2)
Devemos
falar com a maior franqueza - disse na Câmara um deputado, ex-ministro de
Estrangeiros, insuspeito à lavoura - porque a questão é grave. Cumpre que se
diga: a maior parte dos proprietários, no interesse de evitar dúvidas que
de futuro se pudessem dar a respeito, trataram de dar os escravos à matrícula como
tendo sido importado antes de 1831.
Esse mesmo
orador encarregou-se de demonstrar em seguida a ilegalidade da escravidão:
Demais
a proceder a opinião dos nobres deputados, pois que o feto, segundo o direito
romano transplantado para o nosso, segue a condição do ventre, serão livres não
só os escravos importados depois daquela data, como toda a sua descendência.
Coloquemos a questão no seu verdadeiro terreno. Se, como demonstrei, somente no
período de dez anos, de 1842 a 1852, como consta dos documentos oficiais, foram
importados 326.317 africanos, e não sabendo nós quantos teriam sido importados
no período anterior de 11 anos depois da lei de 1831, pergunto: quantos dos
atuais escravos poderiam rigorosamente ser considerados como tais, a prevalecer
a opinião que combato? (3)
Menos da metade,
seguramente, a prevalecer a lei
de 7 de novembro. Mas a história dessa lei é uma página triste do nosso passado
e do nosso presente. Os africanos, que o pirata negreiro, navegando sob a
bandeira brasileira - a maior parte dos traficantes e os mais célebres dentre
eles, os que têm a seu crédito nos livros
azuis ingleses maior número de vítimas, eram estrangeiros e, para
vergonha de Portugal e nossa também, portugueses - ia buscar aos depósitos da
África e desembarcava nos da costa do Brasil, não acharam quem os pusesse em
liberdade, como a lei o exigia. As únicas reclamações a favor deles eram feitas
pelos ministros ingleses, e ouvidas no Parlamento da Inglaterra. Leia-se o
seguinte trecho de um discurso de lorde Brougham em 1842: não seria mais
honroso para nós se, em vez de ser proferido na Câmara dos Lordes da Inglaterra
pelo grande orador - lorde Brougham pediu mais tarde a revogação do chamado bill Aberdeen, ou Brazilian Act - aquele discurso
houvesse ecoado em nossas Câmaras?
Em
primeiro lugar, disse ele, temos a declaração expressa de um homem de bem no
Senado do Brasil, de que a lei que aboliu o tráfico é notoriamente letra morta,
tendo caído em desuso. Em segundo lugar temos uma petição ou memorial da
Assembléia Provincial da Bahia ao Senado urgindo pela revogação da lei; não que
ela os incomode muito, mas porque a cláusula que os escravos importados depois
de 1831 são livres embaraça a transação da venda e torna inconveniente possuir
negros há pouco introduzidos no país. Eu encontro outra Assembléia Provincial,
a de Minas Gerais, pedindo a mesma coisa com iguais fundamentos. Depois de
insistir nos perigos para o país da falta de negros, o memorial acrescenta:
“Acima de tudo, o pior de todos esses males, é a imoralidade que resulta de
habituarem-se os nossos cidadãos a violar as leis debaixo das vistas das
próprias autoridades!” Eu realmente acredito que a história toda de desfaçatez
humana não apresente uma passagem que possa rivalizar com essa - nenhum outro
exemplo de ousadia igual. Temos nesse caso uma legislatura provincial que se
apresenta por parte dos piratas e dos seus cúmplices, os agricultores, que
aproveitam com a pirataria comprando-lhe os frutos, e em nome desses grandes
criminosos insta pela revogação da lei que o povo confessa estar violando todos
os dias, e da qual eles declaram que não hão de fazer caso enquanto continuar
sem ser revogada; pedindo a revogação dessa lei com o fundamento de que,
enquanto ela existir, resolvidos como estão a violá-la, eles se vêem na dura
necessidade de cometer essa imoralidade adicional debaixo das vistas dos juízes
que prestaram o juramento de executar as leis. (1842)
Fato curioso, a
lei de 7 de novembro de 1831 que não pôde ser executada, senão muito
excepcionalmente, não pôde também ser abolida.
No nosso direito
não se revogam cartas de liberdade, e qualquer governo, que ousasse propor às
Câmaras a legalização do cativeiro dos africanos importados depois de 1831,
teria a prova de que a nação não está inclinada a fazer o que não consente que
outros façam. O escândalo continua, mas pela indiferença dos poderes públicos e
impotência da magistratura, composta também, em parte de proprietários de
africanos; e não porque se pretendia seriamente que a lei de 1831 fosse jamais
revogada.
Grande número
dos nossos homens públicos, compreendendo que essa era a chaga maior da nossa
escravidão, pretenderam validar de alguma forma a posse de africanos
ilegalmente escravizados, receando a bancarrota a lavoura pela verificação dos
seus títulos de propriedade legítima. Não devemos condenar os nossos estadistas
pelas opiniões que emitiram em relação à escravidão, quando os vemos dominados
pelo receio de uma catástrofe social; mas nós, hoje, sabemos que tais receios
não têm mais razão de ser, e que a moralização do país só pode dar em resultado
o seu desenvolvimento progressivo e o seu maior bem estar.
Até ontem, por
outro lado, temia-se que a execução pela magistratura da lei de 7 de novembro
desse lugar a ações intentadas por africanos importados antes de 1831,
pretendendo havê-lo sido depois; mas neste momento os africanos legalmente
importados tem todos cinqüenta e dois anos no mínimo, e salvo uma exceção,
havendo sido importados com mais de quinze anos, são quase septuagenários. Se
algum desses infelizes, enganado a justiça, conseguisse servir-se da lei de 7
de novembro para sair de um cativeiro que se estendeu além da média da vida
humana, a sociedade brasileira não teria muito que lamentar nesse abuso isolado
e quase impossível, de uma lei um milhão de vezes violada.
Não há dúvida
que a geração de 1850 entendia como o disse Eusébio, que “deixar
subsistir essa legislação (a lei de 7 de novembro) para o passado, era
anistiá-lo”, e que “os escravos depois de internados e confundidos com os
outros” não poderiam mais apelar para os benefícios que ela concedia; não há
dúvida, também, que esse pensamento político predominante em 1850, de legitimar
a propriedade sobre os africanos introduzidos depois de 1831, aquela geração
não teve a coragem de exará-lo na lei, e confiou-o inteiramente à passividade
cúmplice da magistratura, e ao consenso do país. Aconteceu assim o que era
natural. À geração educada na tolerância do tráfico sucedeu outra que o
considera o maior de todos os crimes, e que, se não desenterra o livro negro da
Secretaria da Justiça os nomes e os atos dos traficantes, para não causar pena
desnecessária a pessoas que anda têm com isso, não julga menos dignos da maior
de todas as censuras da consciência humana os atos pelos quais, por dinheiro, e
só por dinheiro, bandidos do comércio ensoparam durante meio século as mãos no
sangue de milhões de desgraçados que nenhum mal lhes haviam feito. Por sua vez,
a atual geração, desejosa de romper definitivamente a estreita solidariedade
que ainda existe entre o país e o tráfico de africanos, pede hoje a execução de
uma lei que não podia ser
revogada, e não foi, e que todos os africanos ainda em cativeiro sendo bona piratarum, têm direito de
considerar como a sua carta de liberdade rubricada pela Regência em nome do
imperador.
Admitindo-se a
mortalidade em larga escala dos escravos, não há só probabilidade, há certeza,
de que as atuais gerações são, na sua
grande maioria constituídas por africanos do último período, quando
acabou legalmente o tráfico e os braços adquiriram maior valor, e por
descendentes desses. Por isso Sales Torres-Homem disse no Senado aos que
sustentavam a legalidade da propriedade
escrava, num trecho de elevada
eloqüência:
Ao ouvir-se os peticionários falarem tão alto em
direito de propriedade, fica-se surpreendido de que se olvidassem tão depressa
de que a máxima parte dos escravos que lavram suas terras são os
descendentes desses que um tráfico desumano introduziu criminosamente neste
país com afronta das leis e dos tratados! Esqueçam-se de que no período de 1830
a 1850 mais de um milhão de africanos foram assim entregues à lavoura, e que
para obter essa quantidade de gado humano era necessário duplicar e triplicar o
número de vítimas, alastrando-se de seu sangue e de seus cadáveres a superfície
dos mares que nos separam da terra do seu nascimento.
Identificada
assim a escravidão, como sendo na sua máxima parte a continuação do tráfico
ilegal que de 1831 a 1852 introduziu no Brasil, aproximadamente, um milhão de
africanos; provada a sua ilegalidade manifesta em escala tão grande que “a
simples revisão dos títulos da propriedade escrava bastaria para extingui-la” (4)
(isto é, reduzindo o número dos escravos a proporções que os recursos do Estado
poderiam liquidar), é nossa vez de perguntar se não chegou ainda o momento de
livrar as vítimas do tráfico, do cativeiro em que vivem até hoje. Pensem os
brasileiros que esses africanos estão há cinqüenta anos trabalhando sem
salário, em virtude do ato de venda efetuado na África por menos de noventa mil
réis. Pensem eles que até hoje esses infelizes estão esperando do
arrependimento honesto do Brasil a reparação pelo crime praticado contra eles,
sucessivamente pelos apresadores de escravos nos seus países, pelo exportador
da costa, pelos piratas do Atlântico, pelos importadores e armadores, na maior
parte estrangeiros, do Rio de Janeiro e da Bahia, pelos traficantes do nosso
litoral a soldo daqueles, pelos comissários de escravos, e por fim pelos
compradores, cujo dinheiro alimentava e enriquecia aquelas classes todas.
“As nações como
os homens devem prezar a sua reputação”; mas, a respeito do tráfico, a verdade
é que não salvamos um fio sequer da nossa. O crime nacional não podia ter sido
mais escandaloso, e a reparação não começou ainda. No processo do Brasil um
milhão de testemunhas hão de levantar-se contra nós, dos sertões da África, do
fundo do oceano, dos barracões da praia, dos cemitérios das fazendas, e esse
depoimento mudo há de ser mil vezes mais valioso para a história do que todos
os nossos protestos de generosidade e nobreza dalma da nação inteira.
Notas
1. Discurso
de 16 de julho. A essas causas deve-se acrescentar a nostalgia, segundo os
depoimentos oficiais.
2. A Emancipação dos Escravos. Parecer de
C. B. Ottoni, 1871, p. 66-68
3. Sessão
de 22 de novembro de 1880, discurso do sr. Moreira Barros. - Jornal do Commércio de 23 de novembro
4. Manifesto
da Sociedade Brasileira contra a escravidão.
XI - FUNDAMENTOS
GERAIS DO ABOLICIONISMO
“Pouco tempo
falta para que a humanidade inteira estabeleça, proteja e garanta por meio do
direito internacional o princípio seguinte: Não há propriedade do homem sobre o
homem. A escravidão está em contradição com os direitos que confere a natureza
humana, e com os princípios reconhecidos por toda a humanidade”.
Bluntschli
Não me era
necessário provar a ilegalidade de um regime que é contrário aos princípios
fundamentais do direito moderno e que viola a noção mesma do que é o homem perante a lei internacional.
Nenhum Estado deve ter a liberdade de pôr-se assim fora da comunhão civilizada
do mundo, e não tarda, com efeito, o dia em que a escravidão seja considerada
legalmente como já o é moralmente, um atentado contra a humanidade toda. As
leis de cada país são remissivas a certos princípios fundamentais, base das
sociedades civilizadas, e cuja violação em uma importa uma ofensa a todas as
outras. Esses princípios formam uma espécie de direito natural, resultado das
conquistas do homem na sua longa evolução; eles são a soma dos direitos com que
nasce em cada comunhão o indivíduo por mais humilde que seja. O direito de
viver, por exemplo, é protegido por todos os códigos, ainda mesmo antes do
nascimento. Na distância que separa o mundo moderno do antigo, seria tão fácil
na Inglaterra, ou na França, legalizar-se o infanticídio como reviver a
escravidão. De fato, a escravidão pertence ao número das instituições fósseis,
e só existe em nosso período social numa porção retardatária do globo, que
escapa por infelicidade à sua coesão geral. Como a antropofagia, o cativeiro da
mulher, a autoridade irresponsável do pai, a pirataria, as perseguições
religiosas, as proscrições políticas, a mutilação dos prisioneiros, a poligamia
e tantas outras instituições ou costumes, a escravidão é um fato que não
pertence naturalmente ao estádio a que já chegou o homem.
A teoria da
liberdade pessoal, aceita por todas as nações é a que Bluntschli, o eminente
publicista suíço, discípulo de Sauvigny, define nestes quatro parágrafos do seu
Direito internacional codificado:
1. “Não há propriedade do homem sobre o homem. Todo homem é uma pessoa, isto é,
um ente capaz de adquirir e possuir direitos” (1) — 2. “O direito
internacional não reconhece a nenhum Estado e a nenhum particular o direito de
ter escravos.” — 3. “Os escravos estrangeiros tornam-se livres de pleno direito
desde que pisam o solo de um Estado livre, e o Estado que os recebe é obrigado
a respeitar-lhes a liberdade.” — 4. “O comércio de escravos e os mercados de
escravos não são tolerados em parte alguma. Os Estados civilizados têm o
direito e o dever de apressar a destruição desses abusos onde quer que se
encontrem.” (2)
Esses princípios
cardeais da civilização moderna reduzem a escravidão a um fato brutal que não
pode socorrer-se à lei particular do Estado, porque a lei não tem autoridade
alguma para sancioná-la. A lei de um país só poderia, em tese, sancionar a
escravidão dos seus nacionais, não a de estrangeiros. A lei brasileira não tem
moralmente poder para autorizar a escravidão de africanos, que não são súditos
do Império. Se o pode fazer com africanos, pode fazê-lo com ingleses,
franceses, alemães. Se não o faz com estes, mas somente com aqueles, é porque
eles não gozam de proteção de nenhum Estado. Mas, quanto à competência que tem
o Brasil para suprimir a liberdade pessoal de pessoas existentes dentro do seu
território, essa nunca poderia ir além dos seus próprios nacionais.
Se os escravos
fossem cidadãos brasileiros, a
lei particular do Brasil poderia talvez, e em tese, aplicar-se a eles; de fato
não poderia, porque, pela Constituição, os cidadãos brasileiros não podem ser
reduzidos à condição de escravos. Mas os escravos não são cidadãos brasileiros, desde que a Constituição só
proclama tais os ingênuos e os libertos. Não sendo cidadãos brasileiros eles ou
são estrangeiros ou não têm pátria, e a lei do Brasil não pode autorizar a
escravidão de uns nem de outros, que não estão sujeitos a ela pelo direito
internacional no que respeita à liberdade pessoal. A ilegalidade da escravidão
é assim insanável, quer se a considere no texto e nas disposições da lei, quer
nas forças e na competência da mesma lei.
Mas os
fundamentos do abolicionismo não se reduzem às promessas falsificadas na
execução, aos compromissos nacionais repudiados, nem ao sentimento de honra do
país compreendida como a necessidade moral de cumprir os seus tratados e as
suas leis com relação à liberdade e de conformar-se com a civilização no que
ela tem de mais absoluto. Além de tudo isso, e da ilegalidade insanável da
escravidão perante o direito social moderno e a lei positiva brasileira, o
abolicionismo funda-se nume série de motivos políticos, econômicos, sociais e
nacionais, da mais vasta esfera e do maior alcance. Nós não queremos acabar com
a escravidão somente porque ela é ilegítima em face do progresso das idéias
morais de cooperação e solidariedade; porque é ilegal em face da nossa
legislação do período do tráfico; porque é uma violação da fé pública, expressa
em tratados como a convenção de 1826, em leis como a de 7 de novembro, em
empenhos solenes como a carta de Martim Francisco, a iniciativa do conde d’Eu
no Paraguai, e as promessas dos estadistas responsáveis pela marcha dos
negócios públicos.
Queremos acabar
com a escravidão por esses motivos seguramente, e mais pelos seguintes:
1. Porque
a escravidão arruina economicamente o país, impossibilita o seu progresso
material, corrompe-lhe o caráter, desmoraliza-lhe os elementos constitutivos,
tira-lhe a energia e a resolução, rebaixa a política; habitua-o ao servilismo,
impede a imigração, desonra o trabalho manual, retarda a aparição das
indústrias, promove a bancarrota, desvia os capitães do seu curso natural,
afasta as máquinas, excita o ódio entre classes, produz uma aparência ilusória
de ordem, bem estar e riqueza, a qual encobre os abismos de anarquia moral, de
miséria e destituição, que do Norte ao Sul margeiam todo o nosso futuro.
2. Porque
a escravidão é um peso enorme que atrasa o Brasil no seu crescimento em
comparação com os outros Estados sul-americanos que a não conhecem; porque, a
continuar, esse regime há de forçosamente dar em resultado o desmembramento e a
ruína do país; porque a conta dos seus prejuízos e lucros cessantes reduz a
nada o seu apregoado ativo, e importa em uma perda nacional enorme e contínua;
porque, somente quando a escravidão houver sido de todo abolida, começará a
vida normal do povo, existirá mercado para o trabalho, os indivíduos tomarão o
seu verdadeiro nível, as riquezas se tornarão legítimas, a honradez cessará de
ser convencional, os elementos de ordem se fundarão sobre a liberdade, e a
liberdade deixará de ser privilégio de classe.
3. Porque
só com a emancipação total podem concorrer para a grande obra de uma pátria
comum, forte e respeitada, os membros todos da comunhão que atualmente se acham
em conflito com os outros, ou consigo mesmo: os escravos os quais estão fora do
grêmio social; os senhores, os quais se vêem atacados como representantes de um
regime condenado; os inimigos da escravidão, pela sua incompatibilidade com
esta; a massa, inativa, da população, a qual é vítima desse monopólio da terra
e dessa maldição do trabalho; os brasileiros em geral que ela condena a
formarem, como forma, uma nação de proletários.
Cada um desses
motivos, urgentes por si só, bastaria par fazer refletir sobre a conveniência
de suprimir, depois de tanto tempo, um sistema social tão contrário aos
interesses de toda a ordem de um povo moderno, como é a escravidão.
Convergentes, porém, e entrelaçados, eles impõem tal supressão como uma reforma
vital que não pode ser adiada sem perigo. Antes de estudar-lhe as influências
fatais exercidas sobre cada uma das partes do organismo, vejamos o que é ainda
hoje, no momento em que escrevo, sem perspectiva de melhora imediata, a
escravidão no Brasil.
Notas
1. §
360. Esta é a nota que acompanha o parágrafo: “Este princípio, indicado pela
natureza e conhecido dos jurisconsultos romanos, foi todavia desprezado durante
séculos pelos povos, com grande prejuízo próprio. Sendo a escravidão contra a
natureza, procurava-se na antigüidade justificá-la, fundando-a no uso admitido
por todas as nações. A civilização européia atenuou esse abuso vergonhoso de
poder, que se decorava com o nome de propriedade e se assimilava à propriedade
sobre animais domésticos; a escravidão foi abolida, e o direito natural do homem
acabou por triunfar. A servidão foi abolida na Itália, na Inglaterra, na
França, mais tarde na Alemanha e em nossos dias na Rússia. Formou-se assim
pouco a pouco um Direito Europeu
proibindo a escravidão na Europa, e elevando a liberdade pessoal à classe
do direito natural do homem. Os Estados Unidos da América do Norte tendo-se
pronunciado igualmente contra a escravidão dos negros, e havendo constrangido
os Estados recalcitrantes a conceder a liberdade individual e os direitos
políticos aos homens de cor, e tendo o Brasil, em 1871, assentado as bases
legais da libertação dos escravos, esse direito humanitário penetrou na América
e é hoje reconhecido por todo o mundo cristão. A civilização chinesa havia
proclamado desde há muito esse princípio na Ásia Oriental. Não se deverá mais
no futuro deixar os Estados, sob o pretexto de que são soberanos, introduzir ou
conservar a escravidão no seu território; dever-se-á entretanto respeitar as
medidas transitórias tomadas por um Estado para fazer os escravos chegarem
gradualmente à liberdade. A soberania dos Estados não se pode exercer de modo a
anular o direito mais elevado, e mais geral da humanidade, porque os Estados
são um organismo humano e devem respeitar os direitos em toda a parte
reconhecidos aos homens. Le Droit international
codifié.,
tradução de M. C. Lardy, 2ª ed. Nesta
nota se diz com razão que o mundo civilizado não deve empregar a sua força
coletiva contra um país, como o Brasil, que já tomou medidas transitórias e em
princípio condenou a escravidão; mas, enquanto esta durar, está claro que
continuaremos a exercer a nossa
soberania para anular o direito mais elevado e mais geral da humanidade:
a liberdade pessoal.
2. Infelizmente,
seja dito de passagem, o comércio e os mercados de escravos existem ainda
(1883) em nossas capitais, sob as vistas dos estrangeiros, sem limitação nem
regulamento algum de moralidade, tão livres e bárbaros como nos viveiros
da África Central que alimentam os haréns do Oriente.
XII - A
ESCRAVIDÃO ATUAL
“Bárbara na
origem; bárbara na lei; bárbara em todas as suas pretensões, bárbara nos
instrumentos de que se serve; bárbara em suas conseqüências; bárbara de
espírito; bárbara onde quer que se mostre; ao passo que cria bárbaros e
desenvolve em toda a parte, tanto no indivíduo como na sociedade a que ele
pertence os elementos essenciais dos bárbaros”.
Charles Sumner
Desde que foi
votada a lei de 28 de setembro de 1871, o governo brasileiro tratou de fazer
acreditar ao mundo que a escravidão havia acabado no Brasil. Uma propaganda
voltada para ele começou a espalhar que os escravos iam sendo gradualmente
libertados em proporção considerável e que os filhos das escravas nasciam completamente livres. A mortalidade
dos escravos é um detalhe que nunca aparece nessas estatísticas falsificadas,
cuja idéia é que a mentira no exterior habilita o governo a não fazer nada no
país e a deixar os escravos entregues à sua própria sorte.
Todos os fatos
de manumissão - honrosíssimos para o Brasil - formam um admirável alto-relevo
no campo da mortalidade que nunca atrai atenção, ao passo que os crimes contra
os escravos, o número de africanos ainda em cativeiro, a caçada de negros
fugidos, os preços flutuantes da carne humana, a educação dos ingênuos na
escravidão, o aspecto mesmíssimo dos ergástulos rurais: tudo o que é
indecoroso, humilhante, triste para o governo, é cuidadosamente suprimido.
A esse respeito
citarei um único resultado desse sistema, talvez o mais notável.
Na biografia de
Augustin Cochin, pelo conde de Falloux, há um trecho relativo ao artigo daquele
ilustre abolicionista sobre a nossa lei de 28 de setembro. Depois de referir-se
aos votos que Cochin fizera, anteriormente, no seu livro L’Abolition de l’esclavage, pela
abolição no Brasil, diz o seu biógrafo e amigo:
Esse
voto foi ouvido; a emancipação foi decretada em 1870 (sic), e M. Cochin pôde
legitimamente reivindicar a sua parte nesse grande ato. O seu livro produzira
viva sensação na América; os chefes do movimento abolicionista tinham-se posto
em comunicação com o autor; ele mesmo havia dirigido respeitosas, mas urgentes
instâncias ao governo brasileiro. O imperador, que as não havia esquecido,
quando veio à Europa, conversou muito com M. Cochin. Este não aprovava
inteiramente a nova lei; achava-a muito lenta, muito complicada; ela não
satisfazia inteiramente suas vastas aspirações; mas apesar de defeitos, marcava
um progresso bastante real para merecer ser assinalado. M. Cochin consagrou-lhe
um artigo inserido na Revue de Deux
Mondes, talvez o último escrito que lhe saiu da pena. Hoje (1875) a lei
d emancipação começa a dar fruto; o desenvolvimento da produção aumenta com o
desenvolvimento do trabalho livre; o governo, surpreendido com os prodigiosos
resultados obtidos, procura acelerá-los consagrando seis milhões por ano à libertação
dos últimos escravos.
Estas últimas
palavras, das quais grifei uma, são significativas, e realmente expressam o que
o governo queria desde então que se acreditasse na Europa. Em 1875 apenas o
fundo de emancipação havia sido distribuído pela primeira vez; e já o desenvolvimento da produção aumentava
com o desenvolvimento do trabalho livre; o governo estava surpreendido com os
prodigiosos resultados da lei, e consagrava seis milhões de francos por anos
(2.400 contos) à liberdade dos últimos escravos. Quem escrevia isso era um
homem da autoridade do conde Falloux, cujas relações com a família de Órleans
provavelmente lhe deram alguma vez ensejo de ter informações oficiais, num
assunto que particularmente interessa à biografia da princesa imperial. Era preciso
todo o sentimento abolicionista de Cochin para ver através de todas elas o
destino sempre o mesmo dos escravos, e foi isso que o levou a escrever: “A nova
lei era necessária, mas é incompleta e inconseqüente, eis a verdade”.
O país, porém,
conhece a questão toda, e sabe que depois da lei de 28 de setembro a vida dos
escravos não mudou nada, senão na pequena porção dos que têm conseguido
forrar-se esmolando pela sua liberdade. É preciso, todavia, para se não dizer
que em 1883, quando este livro estava sendo escrito, os abolicionistas tinham
diante de si não a escravidão antiga, mas outra espécie de escravidão,
modificada para o escravo por leis humanas e protetoras, e relativamente
justas, que definamos a sorte e a condição do escravo hoje em dia perante a
lei, a sociedade, a justiça publica, o senhor e finalmente ele próprio.
Fá-lo-ei em traços talvez rápidos demais para um assunto tão vasto.
Quem chega ao
Brasil e abre um dos nossos jornais encontra logo uma fotografia da escravidão
atual, mais verdadeira do que qualquer pintura. Se o Brasil fosse destruído por
um cataclismo, um só número, ao acaso, de qualquer dos grandes órgãos da
Imprensa, bastaria para conservar para sempre as feições e os caracteres da
escravidão, tal qual existe em nosso tempo. Não seriam precisos outros
documentos para o historiador restaurá-la em toda a sua estrutura e segui-la em
todas as suas influências.
Em qualquer
número de um grande jornal brasileiro - exceto, tanto quanto sei, na Bahia,
onde a imprensa da capital deixou de inserir anúncios sobre escravos -
encontram-se, com efeito, as seguintes classes de informações que definem
completamente a condição presente dos escravos: anúncios, de compra, venda e
aluguel de escravos, em que sempre figuram as palavras mucama, moleque, bonita peça, rapaz, pardinho. rapariga de casa de
família (as mulheres livres anunciam-se como senhoras a fim de melhor se diferenciarem das escravas); editais
para praças de escravos, espécie curiosa e da qual o último espécime de Valença
é um dos mais completos; (1) anúncios de negros fugidos acompanhados
em muitos jornais da conhecida vinheta do negro descalço com a trouxa ao ombro,
nos quais os escravos são descritos muitas vezes pelos sinais de castigos que
sofreram, e se oferece uma gratificação, não raro de um conto de réis, a quem o
apreender e o levar a seu dono - o que é um estímulo à profissão de
capitães-do-mato; notícias de manumissões, bastante numerosas; narrações de
crimes cometidos por escravos contra os senhores, mas sobretudo contra os agentes
dos senhores, e de crimes cometidos por estes contra aqueles, castigos bárbaros
e fatais, que formam, entretanto, uma insignificantíssima parte dos abusos do
poder dominical, porque estes raro chegam ao conhecimento das autoridades, ou
da imprensa, não havendo testemunhas nem denunciantes nesse gênero de crime.
Encontram-se,
por fim, declarações repetidas de que a escravidão entre nós é um estado muito
brando e suave para o escravo, de fato melhor para este do que para o senhor,
tão feliz pela descrição, que se chega a supor que os escravos, se fossem
consultados, prefeririam o cativeiro à liberdade; o que tudo prova, apenas, que
os jornais e os artigos não são escritos por escravos, nem por pessoas que se
hajam mentalmente colocado, por um segundo, na posição deles.
Mais de um livro
estrangeiro de viagens, em que há impressões do Brasil, trazem a reprodução
desses anúncios, como o melhor meio de ilustrar a escravidão local. Realmente
não há documento antigo, preservado em hieróglifos nos papiros egípcios ou em
caracteres góticos nos pergaminhos da Idade Média, em que se revele uma ordem
social mais afastada da civilização moderna que esses tristes anúncios da
escravidão, os quais nos parecem efêmeros, e forma, todavia, a principal feição
da nossa História. A posição legal do escravo resume-se nestas palavras: a
Constituição não se ocupou dele. Para poder conter princípios como estes:
Nenhum
cidadão pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em
virtude da lei... Todo o cidadão tem em sua casa um asilo inviolável... A lei
será igual para todos... Ficam abolidos todos os privilégios... Desde já ficam
abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as mais penas
cruéis... Nenhuma pena passará da pessoa do delinqüente; nem a infâmia do réu
se transmitirá aos parentes em qualquer grau que seja... É garantido o direito de propriedade em toda a sua
plenitude.
Era preciso que
a Constituição não tivesse uma só palavra que sancionasse a escravidão.
Qualquer
expressão que o fizesse incluiria naquele código de liberdade a seguinte
restrição:
Alem
de cidadãos a quem são garantidos esses direitos, e dos estrangeiros a quem
serão tornados extensivos, há no país uma classe sem direito algum: a dos
escravos. O escravo será obrigado a fazer, ou a não fazer, o que lhe for
ordenado pelo seu senhor, seja em virtude da lei, seja contra lei, que não lhe
dá o direito de desobedecer. O escravo não terá um único asilo inviolável, nem
nos braços da mãe, nem à sombra da cruz, nem no leito de morte; no Brasil não
há cidades de refúgio. Ele será objeto de todos os privilégios, revogados para
os outros; a lei não será igual para ele porque está fora da lei, e o seu
bem-estar material e moral será tão regulado por ela como o é o tratamento dos
animais; para ele continuará de fato a existir a pena, abolida, de açoites e a tortura, exercida senão com os mesmos instrumentos medievais,
com maior constância ainda em arrancar a confissão, e a devassa diária de tudo
o que há de mais íntimo nos segredos humanos. Nessa classe a pena da
escravidão, a pior de todas as penas, transmite-se, com a infâmia que a
caracteriza, de mãe a filhos, sejam esses filhos do próprio senhor.
Está assim uma
nação livre, filha da Revolução
e dos Direitos do Homem, obrigada a empregar os seus juízes, a sua polícia, se
preciso for o seu exército e a sua armada, para forçar homens, mulheres e
crianças a trabalhar noite e dia sem salário.
Qualquer palavra
que desmascarasse essa triste constituição social reduziria o foral das
liberdades do Brasil, e o seu regime de completa igualdade na Monarquia
democratizada, a uma impostura transparente; por isso a Constituição não falou
em escravos, nem regulou a condição desses. Isso mesmo era uma promessa a esses
infelizes, de que o seu estado era todo transitório, a atribuir-se a lógica à
vergonha mostrada pelos que nos constituíram por aquele decreto.
Em 1855 o
governo encarregou um dos mais eminentes dos nossos jurisconsultos, o sr.
Teixeira de Freitas, de consolidar o direito pátrio. Esse trabalho, que é Consolidação das Leis Civis, e já
teve três edições, apareceu, apareceu sem nenhum artigo referente a escravos.
Pela Constituição não existia a
escravidão no Brasil: A primeira codificação geral do nosso direito continuou
essa ficção engenhosa. A verdade é que ofende a suscetibilidade nacional o
confessar que somos - e não o sermos - um país de escravos, e por isso não se
tem tratado de regular a condição destes.
Cumpre
advertir - dizia o autor da Consolidação
- que não há um só lugar do nosso texto, onde se trate de escravos.
Temos, é verdade, a escravidão entre nós; mas esse mal é uma exceção que
lamentamos, condenada a extinguir-se em época mais ou menos remota, façamos
também uma exceção, um capítulo avulso na reforma das nossas Leis civis; não as
maculemos com disposições vergonhosas, que não podem servir para a posteridade;
fique o estado de liberdade sem
o seu correlativo odioso. As leis concernentes à escravidão (que não são
muitas) serão pois classificadas à parte e formarão o nosso Código negro.
Tudo isso seria
muito patriótico se melhorasse
de qualquer forma a posição dos escravos. Mas quando não se legisla sobre estes
porque a escravidão é repugnante, ofende o patriotismo, (2) é uma
vista que os nervos de uma nação delicada não podem suportar sem crise, e
outros motivos igualmente ridículos, desde que no país noite e dia se pratica a
escravidão e todos se habituaram, até a mais completa indiferença, a tudo o que
ela tem de desumano e cruel, à vivissecção moral a que ela continuamente
submete as suas vítimas, esse receio de macular
as nossa leis civis com disposições vergonhosas só serve para conservar
aquelas no estado bárbaro em que se acham.
As disposições
do nosso Código negro são muito
poucas. A escravidão não é um contrato de locação de serviços que imponha
ao que se obrigou certo número de deveres definido para com o locatário. É a
posse, o domínio, o seqüestro de um homem corpo, inteligência, forças,
movimentos, atividades - e só acaba com a morte. Como se há de definir
juridicamente o que o senhor pode sobre o escravo, ou que este não pode contra
o senhor? Em regra o senhor pode tudo.
Se quiser ter o escravo fechado perpetuamente dentro de casa, pode fazê-lo; se,
tendo ele mulher e filhos, quiser que eles não se vejam e não se falem, se quiser
mandar que o filho açoite a mãe, apropriar-se da filha para fins imorais, pode
fazê-lo. Imaginem-se todas as mais extraordinárias perseguições que um homem
pode exercer contra outro, sem o matar, sem separá-lo por venda de sua mulher e
filhos menores de quinze anos - e ter-se-á o que legalmente é a escravidão ente nós. A Casa de Correção é, ao
lado desse outro estado, um paraíso. Exceto a idéia do crime - que é pior que a
sorte do escravo mais infeliz, tomando-se por exemplo um condenado inocente - não
há comparação ente um regime de obrigações certas, de dependência a lei e dos
seus administradores, e um regime de sujeição como sua propriedade, a um indivíduo, que pode ser um louco ou um
bárbaro.
Quanto à
capacidade civil, pela lei de 28 de setembro de 1871, é permitido ao escravo a
formação de um pecúlio do que lhe provier de doações, legados e heranças, e com
o que, por consentimento do senhor,
obtiver do seu trabalho e economias, Mas a aplicação da lei depende
inteiramente do senhor, o qual está de posse do escravo, e, portanto, de tudo o
que ele tem, num país onde a proteção da magistratura aos escravos não é
espontânea nem efetiva. Quanto à família, é proibido, sob pena de nulidade da
venda separar o marido da mulher, o filho do pais ou mãe, salvo sendo os filhos
maiores de quinze anos (lei n.º 1695 de 15 de setembro de 1869, artigo 2); mas
depende do senhor autorizar o casamento, e se não pode separar por venda,
separa quando o quer, pelo tempo que quer, por uma simples ordem. Para resumir
fixarei alguns dos principais traços do que é legalmente a escravidão em 1883 no Brasil.
1. Os
escravos, nascidos antes do dia 28 de setembro de 1871, hoje com onze anos e
meio de idade no mínimo, são até a morte tão
escravos como os das gerações anteriores; o número desses, como adiante se
verá, é de mais de um milhão.
2. Essa
escravidão consiste na obrigação, de quem está sujeito a ela, de cumprir, sem
ponderar, as ordens que recebe; de fazer o que se lhe manda, sem direito de
reclamar coisa alguma, sem salário, nem vestuário, nem melhor alimentação, nem
descanso, nem medicamento, nem mudança de trabalho.
3. Esse
homem, assim escravizado, não tem deveres para com Deus, para com pais, mulher
ou filhos, para consigo mesmo, que o senhor seja obrigado a respeitar e deixá-lo cumprir.
4. A
lei não marca máximo de horas de trabalho, mínimo de salário, regime higiênico,
alimentação, tratamento médico, condições de moralidade, proteção às mulheres,
em uma palavra, interfere tanto na sorte da fábrica de uma fazenda quanto na
dos animais do serviço.
5. Não
há lei alguma que regule as obrigações e os direitos do senhor; qualquer que
seja o número de escravos que possua, ele exerce uma autoridade limitada,
apenas, pelo seu arbítrio.
6. O
senhor pode punir os escravos com castigos moderados, diz o Código criminal que equipara a
autoridade dominical ao poder paterno; mas, de fato, à sua vontade, porque a
justiça não lhe penetra no feudo; a queixa do escravo seria fatal a este, como
já tem sido, (3) e a prática tornou o senhor soberano.
7. O
escravo vive na completa incerteza da sua sorte; se pensa que vai ser vendido.
hipotecado ou dado em penhor, não tem o direito de interrogar o seu dono.
8. Qualquer
indivíduo que saia da Casa de Correção ou esteja dentro dela, por mais perverso
que seja, brasileiro ou estrangeiro, pode possuir ou comprar uma família de
escravos respeitáveis e honestos, e sujeitá-los aos seus caprichos.
9. Os
senhores podem empregar escravas na prostituição, recebendo os lucros desse
negócio, sem que isso lhes faça perder a propriedade que têm sobre elas; assim
como o pai pode ser senhor do filho.
10. O
Estado não protege os escravos de forma alguma, não lhes inspira confiança na
justiça pública; mas entrega-o sem
esperança ao poder implacável que pesa sobre eles, e que, moralmente, os
prende ou magnetiza, lhe tira o movimento, em suma os destrói.
11. Os
escravos são regidos por leis de exceção. O castigo de açoites existe contra
eles, apesar de ter sido abolido pela Constituição; os seus crimes são punidos
por uma lei bárbara, a lei de 10 de junho de 1835, cuja pena uniforme é a
morte. (4)
12; Tem-se espalhado no país a
crença de que os escravos, muitas vezes, cometem crimes para se tornarem servos
da pena e escaparem assim do cativeiro (5), porque preferem o serviço
das galés ao da fazenda, como os escravos romanos preferiam lutar com as feras,
pela esperança de ficar livres se não morressem. Por isso, o júri no interior
tem absolvido escravos criminosos para serem logo restituídos aos seus
senhores, e a lei de Lynch há sido posta em vigor em mais de um caso.
13. Todos
os poderes, como vemos, praticamente sem limitação alguma, do senhor, não são
exercitados diretamente por ele, que se ausenta das suas terras e não vive em
contato com os seus escravos; mas, são delegados a indivíduos sem educação
intelectual ou moral, que só sabem guiar homens por meio do chicote e da
violência.
É curioso que os senhores, que
exercem esse poder ilimitado sobre os seus escravos, considerem uma opressão
intolerável contra si a mínima intervenção da lei em favor destes. A
resistência, entretanto, que a lavoura opôs à parte da lei de 28 de setembro
que criou o direito do escravo de ter pecúlio próprio e o de resgatar-se por
meio deste, prova que nem essa migalha de liberdade ela queria deixar cair de
sua mesa, Os lavradores do Bananal, por exemplo, representando pelos seus nomes
a lavoura de São Paulo e dos limites das províncias do Rio, diziam em uma
petição às Câmaras:
Ou existe a propriedade com suas qualidades
essenciais, ou então não pode decididamente existir. A alforria forçada com a
série de medidas que lhe são relativas, é a vindita armada sobre todos os
tetos, a injúria suspensa sobre todas as famílias, o aniquilamento da lavoura,
a morte do país.
Quando se tratou
no Conselho de Estado de admitir o direito de pecúlio, o marquês de Olinda
serviu-se desta frase significativa: Não
estamos fazendo lei de moral.
O pior da
escravidão não é todavia os seus grandes abusos e cóleras, nem as suas vinditas
terríveis; não é mesmo a morte do escravo: é sim a pressão diária que ela
exerce sobre este; a ansiedade de cada hora a respeito de si e dos seus; a
dependência em que está da boa vontade do senhor; a espionagem e a traição que
o cercam por toda a parte, e o fazem viver eternamente fechado numa prisão de
Dionísio, cujas paredes repetem cada palavra, cada segredo que ele conta a
outrem, ainda mais, cada pensamento que a sua expressão somente denuncia.
Diz-se que entre
nós a escravidão é suave, e os senhores são bons. A verdade, porém, é que toda
escravidão é a mesma, e quanto à bondade dos senhores esta não passa de
resignação dos escravos. Quem se desse ao trabalho de fazer uma estatística dos
crimes ou de escravos ou contra os escravos; quem pudesse abrir um inquérito
sobre a escravidão e ouvir as queixas dos que a sofrem; veria que ela no Brasil
ainda hoje é tão dura, bárbara e cruel, como foi em qualquer outro país da
América. Pela sua própria natureza a escravidão é tudo isso, e quando deixa de
o ser, não é porque os senhores se tornem melhores, mas sim, porque os escravos
se resignaram completamente à anulação de toda a sua personalidade.
Enquanto existe,
a escravidão tem em si todas as barbaridades possíveis. Ela só pode ser
administrada com brandura relativa quando os escravos obedecem cegamente e
sujeitam-se a tudo; a menor reflexão destes, porém, desperta em toda a sua
ferocidade o monstro adormecido. É que a escravidão só pode existir pelo terror
absoluto infundido na alma do homem.
Suponha-se que
os duzentos escravos de uma fazenda não queiram trabalhar; que pode fazer um bom senhor para forcá-los a ir para o
serviço? castigos estritamente moderados talvez não dêem resultado: o tronco, a
prisão, não preenchem o fim, que é o trabalho; reduzi-los pela fome, não é
humano, nem praticável; está assim o bom senhor colocado entre a alternativa de
abandonar os seus escravos, e a de subjugá-los por um castigo exemplar
infligido aos principais dentre eles.
O limite da
crueldade do senhor está, pois, na passividade do escravo. Desde que esta cessa,
aparece aquela; e como a posição do proprietário de homens no meio do seu povo
sublevado seria a mais perigosa, e, por causa da família, a mais aterradora
possível, cada senhor em todos os momentos da sua vida, vive exposto à
contingência de ser bárbaro, e, para evitar maiores desgraças, coagido a ser
severo. A escravidão não pode ser com efeito outra coisa. Encarreguem-se os
homens mais moderados de administrar a intolerância religiosa e teremos novos
autos-de-fé tão terríveis como os da Espanha. É a escravidão que é má, e obriga
o senhor a sê-lo. Não se lhe pode mudar a natureza. O bom senhor de um mau
escravo seria mais do que um acidente
feliz; o que nós conhecemos é o bom senhor do escravo que renunciou à
própria individualidade, e é um cadáver moral; mas esse é bom porque trata bem, materialmente
falando, o escravo - não porque procure levantar nele o homem aviltado nem
ressuscitar a dignidade humana morta.
A escravidão é
hoje no Brasil o que era em 1862 nos estados do Sul da União, o que foi em Cuba
e nas Antilhas, o que não pode deixar de ser, como a guerra não pode deixar de
ser sanguinolenta: isto é, bárbara, e bárbara como a descreveu Charles Sumner. (6)
Notas
1. “Valença.
Praça. Em praça do juízo da provedoria deste termo que terá lugar no dia 26 de
outubro do corrente ano, no paço da Câmara Municipal desta cidade, depois da
audiência do costume, e de conformidade com o Decreto n.º 1695 de 15 de
setembro de 1869, serão arrematados os escravos seguintes” - segue-se a lista
de mais de cem escravos, da qual copio os seguintes itens: - “Joaquim Mina, quebrado, 51 anos, avaliado por 300$;
Agostinho, preto, morfético, avaliado por 300$; Pio, Moçambique, tropeiro, 47
anos, avaliado por 200$; Bonifácio, Cabinda, 47 anos, doente, avaliado por
1:600$; Marcelina, crioula, 10 anos, filha de Emiliana, avaliada por 800$;
Manuel, Cabinda, 76 anos, cego, avaliado por 50$; João, Moçambique, 86 anos,
avaliado por 50$”; seguem-se as avaliações dos serviços de diversos ingênuos
também postos em almoeda. Nesse edital são oferecidos africanos importados depois de 1831, crianças nascidas depois de 1871, cegos, morféticos e
velhos de mais de oitenta anos, e por fim ingênuos como tais. É um resumo da
escravidão, em que nenhuma geração foi esquecida e nenhum abuso escapou, e por
isso merece ser arquivado como um documento de paleontologia moral muito
preciosos para o futuro. Em Itaguaí acaba-se de pôr em praça judicial um
escravo anunciado dessa forma: Militão, de 50 anos, está doido, avaliado por
100$. Edital de 23 de abril de 1883.
2. A
escravidão nos coloca muitas vezes em dificuldades exteriores mal conhecidas
aliás do país - apesar de conhecidas nas chancelarias estrangeiras. Uma dessas
ocorreu com a França a propósito da celebração de um tratado de
extradição de criminosos. Em 1857 não se pode celebrar um tal tratado porque o
Brasil fez questão da devolução de escravos prófugos. Em 1868 tratou-se
novamente de fazer um tratado, e surgiu outra dificuldade: a França exigia que
se lhe garantisse que os escravos cuja extradição fosse pedida seriam tratados
como os outros cidadãos brasileiros. “Não fiz menção no projeto, escrevia o sr.
Paranhos ao sr. Roquette, transmitindo-lhe um projeto de tratado, dos casos
relativos a escravos porque não havia necessidade uma vez que entram na regra
geral. Demais tenho grande repugnância
em escrever esta palavra em documento internacional.” O governo francês,
porém, tinha também a sua honra a zelar, não partilhava essa repugnância, e
precisava garantir a sorte dos antigos escravos que extraditasse. Daí a
insistência do sr. Gobineau em ter um protocolo estabelecendo que, quando
se reclamasse a extradição de um escravo, o governo francês teria a
inteira faculdade de conceder ou recusar a entrega do acusado, examinando cada
caso, pedindo as justificações que lhe parecessem indispensáveis. Semelhante
protocolo, declarou ainda o ministro de Napoleão III, não constituiriam uma
cláusula secreta, mas, sem ter nenhuma intenção de dar-lhe publicidade inútil,
a França conservaria toda liberdade a esse respeito. Esse documento nunca foi
publicado ao que me conste; Até quando teremos uma instituição que nos
obriga a falsificar a nossa Constituição, as nossas leis, tratados,
estatísticas e livros, para escondermos a vergonha que nos queima o rosto e que
o mundo inteiro está vendo?
3. Em
1852 o Conselho de Estado teve que considerar os meios de proteger o escravo
contra a barbaridade do senhor. Diversos escravos no Rio Grande do Sul
denunciaram o seu senhor comum pela morte de um dos seus escravos da casa. O
senhor fora preso e estava sendo processado, e tratava-se garantir aos
informantes contra qualquer vingança futura da família. A seção de Justiça
propôs que se pedisse ao Poder Legislativo uma medida para que a ação do
escravo, em caso de sevícias, para obrigar o senhor a vendê-lo, fosse intentada
ex officio. O Conselho de
Estado (Olinda, Abrantes, José Clemente, Holanda Cavalcanti, Alves Branco e
Lima e Silva) votou contra a proposta da seção ( Limpo de Abreu, Paraná, Lopes
Gama) “por ter em consideração o perigo que pode ter o legislar sobre a
matéria, pondo em risco a segurança, ou ao menos a tranqüilidade da família;
por convir nada alterar a respeito da escravidão ente nós, conservando-se tal
qual se acha; e por evitar a discussão no Corpo Legislativo sobre quaisquer
novas medidas a respeito de escravos, quando já se tinha feito quanto se podia
e convinha fazer na efetiva repressão do tráfico.” Paraná cedeu à maioria,
Araújo Viana também, e os conselheiros Maia, Lopes Gama e Limpo e Abreu
formaram a minoria. É justo não omitir que Holanda Cavalcanti sugeriu a
desapropriação do escravo seviciado, pelo governo e o Conselho de Estado. O
imperador deu razão à maioria. As idéias de 1852 são as de 1883. Era tão
perigoso então, por ser igualmente inútil, queixar-se um escravo às autoridades
como é hoje. O escravo precisa ter para queixar-se do senhor a mesma força de
vontade e resolução que para fugir ou suicidar-se, sobretudo se ele deixa algum
refém no cativeiro.
4. No
Conselho de Estado foi proposta a revogação do artigo 60 do Código Criminal que criou a pena de
açoites e a da lei de 10 de junho. Sustentando uma e outra abolição, iniciada
pela Comissão da qual era relator, o conselheiro Nabuco fez algumas
considerações assim resumidas na ata da sessão de 30 de abril de 1868: “O
conselheiro Nabuco sustenta a necessidade da abolição da lei excepcional de 10
de junho de 1835. Que ela tem sido ineficaz está provado pela estatística
criminal; os crimes que ela previne têm aumentado. É uma lei injusta porque
destrói todas as regras da imputação criminal, toda a proporção das penas,
porquanto os fatos graves e menos graves são confundidos, e não se consideram
circunstâncias agravantes e atenuantes, como se os escravos não fossem homens,
não tivessem paixões e o instinto de conservação. Que a pena de morte, e sempre
a morte, não é uma pena exemplar para o escravo que só vê nela a cessação dos
males da escravidão. Que o suicídio freqüente entre os escravos, e a facilidade
com que confessam os crimes, e se entregam depois de cometê-los, provam
bem que eles não temem a morte”. “Diz que a pena de açoites não pode existir na
nossa lei penal, desde que a Constituição, artigo 179 § 19, aboliu esta pena e
a considerou pena cruel. É um castigo que não corrige, mas desmoraliza. É além
disso uma pena que não mantém o princípio da proporção das penas, sendo que o
mesmo número de açoites substitui a prisão perpétua, a prisão por 30, 20 e 10
anos. As forças do escravo é que regulam o máximo de açoites e pois o máximo
vem a ser o mesmo para os casos graves e os mais graves. Que a execução dessa
pena dá lugar a muitos abusos, sendo que em muitos caos é iludida, em outros
tem causado a morte”. O barão do Bom Retiro disse combatendo a abolição da pena
de açoites: “Abolida a de açoites ficarão as penas de galés e prisão com
trabalho, e penso que nenhuma destas será eficaz com relação ao escravo. Para
muitos, a prisão com trabalho, sendo este, como deve ser, regular, tronar-se-á até um melhoramento de condição,
senão um incentivo para o crime”. Aí está a escravidão como ela é! O
suicídio, a morte parecem ao escravo a cessação
dos males da escravidão, a prisão com trabalhos um melhoramento de condição, tal que
pode ser um incentivo para o crime!
No entanto, nós, nação humana e civilizada, condenamos mais de um milhão de
homens, como foram condenados tantos outros, a uma sorte ao lado da qual a
penitenciária ou a forca parece preferível!
5. A
preferência que muitos escravos dão à vida das galés à que levam os cárceres
privados induziu o governo em 1879 (o conselheiro Lafayette Rodrigues
Pereira) a propor a substituição da pena de galés pela de prisão celular.
Tranqüilizando aqueles senadores que se mostravam assustados quanto à eficácia
desta última pena, o presidente do Conselho convenceu-os com este argumento:
“Hoje está reconhecido que não há pessoa, ainda a mais robusta que possa
resistir a uma prisão solitária de 10 a 12 anos, o que quase equivale a uma nova pena de morte.”
6. Discurso
de Boston (outubro, 1862)
XIII -
INFLUÊNCIA DA ESCRAVIDÃO SOBRE A NACIONALIDADE
“(Com a
escravidão) nunca o Brasil aperfeiçoará as raças existentes”.
José Bonifácio
O Brasil, como é
sabido, é um dos mais vastos países do globo, tendo uma área de mais de oito
milhões de quilômetros quadrados; mas esse território em grandíssima parte
nunca explorado, e, na sua porção conhecida, acha-se esparsamente povoado. A
população nacional é calculada entre dez e doze milhões; não há porém base
séria para se a computar, a não ser que se acredite nas listas de recenseamento
apuradas em 1876, listas e apuração que espantariam a qualquer principiante de
estatística. Sejam, porém, dez ou doze milhões, essa população na sua maior
parte descende de escravos, e por isso a escravidão atua sobre ela como herança
do berço.
Quando os primeiros
africanos foram importados no Brasil, não pensaram os principais habitantes - é
verdade que se o pensassem, isso não os impediria de fazê-lo, porque não tinham
o patriotismo brasileiro - que preparavam para o futuro um povo composto na sua
maioria de descendentes de escravos. Ainda hoje, muita gente acredita que cem
ou duzentos mil chins seria um fato sem conseqüências étnicas e sociais
importantes, mesmo depois de cinco ou seis gerações. O principal efeito da
escravidão sobre a nossa população foi, assim, africanizá-la, saturá-la de
sangue preto, como o principal efeito de qualquer empresa de imigração da China
seria mongolizá-la, saturá-la de sangue amarelo.
Chamada para a
escravidão, a raça negra, só pelo fato de viver e propagar-se, foi-se tornando
um elemento cada vez mais considerável da população. A célebre frase que tanto
destoou no parecer do padre Campos em 1871 - “Vaga Vênus arroja aos maiores
excessos aquele ardente sangue Líbico” - traduzida em prosa, é a gênese
primitiva de grande parte do nosso povo. Foi essa a primeira vingança das
vítimas. Cada ventre escravo dava ao senhor três ou quatro crias que ele reduzia dinheiro; essas
por sua vez multiplicavam-se, e assim os vícios do sangue africano acabavam por
entrar na circulação geral do país.
Se,
multiplicando-se a raça negra sem nenhum do seus cruzamento, se multiplicasse a
raça branca por outro lado mais rapidamente, como nos Estados Unidos, o
problema das raças seria outro, muito diverso - talvez mais sério, e quem sabe
se solúvel somente pela expulsão da mais fraca e inferior por incompatíveis uma
com a outra; mas isso não se deu no Brasil. As duas raças misturaram-se e
confundiram-se; as combinações mais variadas dos elementos de cada uma tiveram
lugar, e a esses juntaram-se os de uma terceira, a dos aborígenes. Das três
principais correntes de sangue que se confundiram nas nossas veias - o
português, o africano e o indígena - a escravidão viciou sobretudo os dois
primeiros. Temos aí um primeiro efeito sobre a população: o cruzamento dos
caracteres do raça negra com os da branca, tais como se apresentam na
escravidão a mistura da degradação servil de uma com a imperiosidade brutal da
outra.
No princípio da
nossa colonização, Portugal descarregava no nosso território os seus
criminosos, as suas mulheres erradas, (1)
as suas fezes sociais todas, no meio das quais excepcionalmente vinham
emigrantes de outras posição, e, por felicidade, grande número de judeus. O
Brasil se apresentava então como até ontem o Congo. No século XVI ou XVII o espírito
de emigração não estava bastante desenvolvido em Portugal para mover o povo,
como desde o fim do século passado até hoje, a procurar na América portuguesa o
bem estar e a fortuna que não achavam na Península. Os poucos portugueses que
se arriscavam a atravessar o oceano à vela e a ir estabelecer-se nos terrenos
incultos do Brasil, representavam a minoria dos espíritos aventureiros,
absolutamente destemidos, indiferentes aos piores transes na luta da vida,
minoria que em Portugal, hoje mesmo, não é grande e não podia sê-lo, há dois ou
três séculos. Apesar de se haver estendido pelo mundo todo o domínio português
Á América do Sul, à África ocidental, austral e oriental, à Índia e até à
China, Portugal não tinha corpo nem forças, para possuir mais do que
nominalmente esse imenso império. Por isso, o território do Brasil foi
distribuído entre donatários sem meios, nem capitais, nem recursos de ordem
alguma, para colonizar as suas capitanias, isto é, de fato entregue aos
jesuítas. A população européia era insignificante para ocupar essas ilimitadas
extensões de terra, cuja fecundidade a tentava. Estando a África nas mãos de
Portugal, começou então o povoamento da América por negros; lançou-se, por
assim dizer, uma ponte entre a África e o Brasil, pela qual passaram milhões de
africanos, e estendeu-se o hábitat da raça negra das margens do Congo e do
Zambeze às do São Francisco e do Paraíba do Sul.
Ninguém pode ler
a história do Brasil no século XVI, no século XVII, e em parte do século XVIII
(excetuada unicamente a de Pernambuco), sem pensar que a todos os respeitos
houvera sido melhor que o Brasil fosse descoberto três séculos mais tarde. Essa
imensa região, mais favorecida que outra qualquer pela natureza, se fosse
encontrada livre e desocupada há cem anos, teria provavelmente feito mais
progressos até hoje do que a sua história recorda. A população seria menor,
porém mais homogênea; a posse do solo talvez não se houvesse estendido tão
longe, mas não houvera sido uma exploração ruinosa e esterilizadora; a nação
não teria ainda chegado ao grau de crescimento que atingiu, mas também não
mostraria já sintomas de decadência prematura.
Pretende um dos
mais eminentes espíritos de Portugal que “a escravidão dos negros foi o duro
preço da colonização da América, porque, sem ela, o Brasil não se teria tornado
no que vemos”.(2) Isso é exato, “sem ela o Brasil não se teria
tornado no que vemos”; mas esse preço quem o pagou, e está pagando, não foi
Portugal, fomos nós; e esse preços a todos os respeitos é duro demais, e caro
demais, para o desenvolvimento inorgânico, artificial, e extenuante que
tivemos. A africanização do Brasil pela escravidão é uma nódoa que a mãe pátria
imprimiu na sua própria face, na sua língua, e na sua única obra nacional
verdadeiramente duradoura que conseguiu fundar. O eminente autor daquela frase
é o próprio que nos descreve o que eram as carregações do tráfico:
Quando o navio chegava ao porto de destino - uma praia
deserta e afastada - o carregamento desembarcava; e, à luz clara do sol dos
trópicos, aparecia uma coluna de esqueletos cheios de pústulas, com o ventre
protuberante, as rótulas chagadas, a pele rasgada, comidos de bichos, com o ar
parvo e esgazeado dos idiotas. Muitos não se tinham em pé: tropeçavam, caíam e
eram levados aos ombros como fardos.
Não
é com tais elementos que se vivifica moralmente uma nação.
Se Portugal
tivesse tido no século XVI a intuição de que a escravidão é sempre um erro, e
força bastante para puni-la como crime, o Brasil “não se teria tornado no que
vemos”; seria talvez ainda uma colônia portuguesa, o que eu não creio, mas
estaria crescendo sadio, forte e viril como o Canadá e a Austrália. É possível
que nesse caso ele não houvesse tido forças para repelir o estrangeiro, como
repeliu os holandeses, e seja a afirmação de que, a não serem os escravos, o
Brasil teria passado para outras mãos e não seria português. Ninguém pode dizer
o que teria sido a história se acontecesse o contrário do que aconteceu. Entre
um Brasil arrebatado aos portugueses no século XVII, por estes não consentirem
o tráfico, e explorado como escravos por holandeses ou franceses, e o Brasil,
explorado com escravos pelos mesmos portugueses, ninguém sabe o que teria sido
melhor para história da nossa região. Entre o Brasil, explorado por meio de africanos
livres por Portugal, e o mesmo Brasil, explorado com escravos também por
portugueses, o primeiro a esta hora seria uma nação muito mais robusta do que é
o último. Mas entre o que houve - a exploração da América do Sul por alguns
portugueses cercados de um povo de escravos importados da África - e a
proibição severa da escravidão na América portuguesa, a colonização gradual do
território por europeus, por mais lento que fosse o processo, seria
infinitamente mais vantajosa para o destino dessa vasta região do que o foi, e
o será, o haverem-se espalhado por todo o território ocupado as raízes quase
inextirpáveis da escravidão.
Diz-se que a
raça branca não se aclimaria no Brasil, sem a imunidade que lhe proveio do
cruzamento com os indígenas e os africanos. Em primeiro lugar, o mau elemento
da população não foi a raça negra, mas essa raça reduzida ao cativeiro; em
segundo lugar, nada prova que a raça branca, sobretudo as raças meridionais,
tão cruzadas de sangue mouro e negro, não possam existir e desenvolver-se nos
trópicos. Em todo o caso, se a raça branca não se pode adaptar aos trópicos em
condições de fecundidade ilimitada, essa raça não há de indefinidamente
prevalecer no Brasil: o desenvolvimento vigoroso dos mestiços há de por fim
sobrepujá-la, a imigração européia não bastará para manter o predomínio
perpétuo de uma espécie de homens à qual o sol e o clima são infensos. A ser
assim, o Brasil ainda mesmo hoje, como povo europeu, seria uma tentativa de
adaptação humana, forçosamente, efêmera; mas nada está menos provado do que
essa incapacidade orgânica da raça branca para existir e prosperar em uma zona
inteira da terra.
Admitindo-se,
sem a escravidão, que o número dos africanos fosse o mesmo, e maior se se
quiser, os cruzamentos teriam sempre ocorrido; mas a família teria aparecido
desde o começo. Não seria o cruzamento pelo concubinato, pela promiscuidade das
senzalas, pelo abuso da força do senhor; o filho não nasceria debaixo do
açoite, não seria levado para a roça ligado às costas da mãe, obrigada à tarefa
da enxada; o leite desta não seria utilizado, como o da cabra, para alimentar
outras crianças, ficando para o próprio filho as últimas gotas que ela pudesse
forçar do seio cansado e seco; as mulheres não fariam o trabalho dos homens,
não iriam para os serviço do campo ao sol ardente do meio-dia, e poderiam
durante a gravidez, atender ao seu estado. Não é do cruzamento que se trata;
mas sim da reprodução do cativeiro, em que o interesse verdadeiro da mãe é que
o filho não vingasse. Calcule-se o que a exploração dessa bárbara indústria -
expressa em 1871 nas seguintes palavras dos fazendeiros do Piraí “a parte mais
produtiva a propriedade escrava é o ventre gerador” - deva ter sido durante
três séculos sobre milhões de mulheres. Tome-se a família branca, como
ser moral, em três gerações, e veja-se qual foi o rendimento para essa família
de uma só escrava comprada pelo seu fundador.
A história da
escravidão africana na América é um abismo de degradação e miséria que se não
pode sondar, e, infelizmente, essa é a história do crescimento do Brasil. No
ponto a que chegamos, olhando para o passado, nós, brasileiros, descendentes ou
da raça que escreveu essa triste página da humanidade, ou da raça com cujo
sangue ela foi escrita, ou da fusão de uma e de outra, não devemos perder tempo
a envergonhar-nos desse longo passado que não podemos lavar, dessa
hereditariedade que não há como repelir. Devemos fazer convergir todos os
nossos esforços para o fim de eliminar a escravidão do nosso organismo, de
forma que essa fatalidade nacional diminua em nós e se transmita às gerações
futuras, já mais apagada, rudimentar e atrofiada.
Muitas das
influências da escravidão podem ser atribuídas à raça negra, ao seu
desenvolvimento mental atrasado, aos seus instintos bárbaros ainda, às suas
superstições grosseiras. A fusão do catolicismo, tal como o apresentava ao
nosso povo o fanatismo dos missionários, com a feitiçaria africana, influência
ativa e extensa nas camadas inferiores, intelectualmente falando, da nossa
população, e que pela ama-de-leite, pelos contatos da escravidão doméstica,
chegou até aos mais notáveis dos nossos homens; a ação de doenças africanas
sobre a constituição física de parte do nosso povo; a corrupção da língua, das
maneiras sociais. da educação e outros tantos efeitos resultantes do cruzamento
com uma raça num período mais atrasado de desenvolvimento; podem ser
consideradas isoladamente do cativeiro. Mas, ainda mesmo no que seja mais
característico dos africanos importados, pode afirmar-se que, introduzidos
no Brasil, em um período no qual não se desse o fanatismo religioso, a cobiça,
independente das leis, a escassez da população aclimada, e sobretudo a
escravidão, doméstica e pessoal, o cruzamento entre brancos e negros não teria
sido acompanhado do abastardamento da raça mais adiantada pela mais atrasada,
mas de gradual elevação da última.
Não pode, para
concluir, ser objeto de dúvida que a escravidão transportou da África para o
Brasil mais de dois milhões de africanos; que, pelo interesse do senhor na
produção do ventre escravo, ela favoreceu quanto pôde a fecundidade das
mulheres negras; que os descendentes dessa população formam pelo menos dois
terços do nosso povo atual; que durante três séculos a escravidão, operando
sobre milhões de indivíduos, em grande parte desse período sobre a maioria da
população nacional, impediu o aparecimento regular da família nas camadas
fundamentais do país; reduziu a procriação humana a um interesse venal dos
senhores; manteve toda aquela massa pensante em estado puramente animal; não a
alimentou, não a vestiu suficientemente; roubou-lhe a suas economias, e nunca
lhe pagou os seus salários; deixou-a cobrir-se de doenças, e morrer ao
abandono; tornou impossíveis para ela hábitos de previdência, de trabalho
voluntário, de responsabilidade própria, de dignidade pessoal; fez dela o jogo
de todas as paixões baixas, de todos os caprichos sensuais, de todas as
vinditas cruéis de um outra raça;
É quase
impossível acompanhar a ação de tal processo nessa imensa escala - inúmeras vezes
realizado por descendentes de escravos - em todas as direções morais e
intelectuais em que ele operou e opera; nem há fator social que exerça a mesma
extensa e profunda ação psicológica que a escravidão quando faz parte
integrante da família. Pode-se descrever essa influência, dizendo que a
escravidão cercou todo o espaço ocupado do Amazonas ao Rio Grande do Sul de um
ambiente fatal a todas as qualidades viris e nobres, humanitárias e
progressivas, da nossa espécie; criou um ideal de pátria grosseiro, mercenário,
egoísta e retrógrado, e nesse molde fundou durante séculos as três raças
heterogêneas que hoje constituem a nacionalidade brasileira. Em outras palavras
ela tornou, na frase do direito medievo, em nosso território o próprio ar - servil, como o ar das aldeias da
Alemanha que nenhum homem livre podia habitar sem perder a liberdade. Die Luft leibeigen war é uma frase
que aplicada ao Brasil todo, melhor que outra qualquer, sintetiza a obra nacional da escravidão: ela criou uma
atmosfera que nos envolve e abala a todos, e isso no mais rico e admirável dos
domínios da terra.
Notas
1. Padre
Manuel da Nóbrega. No seu romance abolicionista Os herdeiros de Caramuru, o dr, Jaguaribe Filho, um dos mais
convictos propugnadores da nossa causa, transcreve a carta daquele célebre
jesuíta, de 9 de agosto de 1549, em que se vê como foi fabricada apela
escravidão a primitiva célula nacional.
2. Oliveira
Martins, O Brasil e as colônias,
2ª ed., p. 50.
XIV - INFLUÊNCIA
SOBRE O TERRITÓRIO E A POPULAÇÃO DO INTERIOR
Não há um senhor
de escravos nesta casa ou fora dela que não saiba perfeitamente bem que se a
escravidão ficar fechada dentro de certos limites especificados, a sua
existência futura estará condenada. A escravidão não pode encerrar-se dentro de
limites certos sem produzir a destruição não só do senhor como também do
escravo”
Palavras do juiz
Warner, da Geórgia,
citadas em The Proposed Slave Empire, de C. S. Mial.
Em 1880 a
Assembléia Provincial do Rio de Janeiro dirigiu à Assembléia Geral uma
representação em que se lê o seguinte trecho:
É desolador o quadro que se oferece às vistas do
viajante que percorre o interior da província, e mais precária é sua posição
nos municípios de serra abaixo, onde a fertilidade primitiva do solo já se
esgotou e a incúria deixou que os férteis vales se transformassem em
lagoas profundas que intoxicam todos aqueles que delas se avizinham. Os
infelizes habitantes do campo, sem direção, sem apoio, sem exemplos, não fazem
parte da comunhão social, não consomem, não produzem. Apenas tiram da terra
alimentação incompleta quando não encontram a caça e a pesca das coutadas e
viveiros dos grandes proprietários. Desta arte são considerados uma verdadeira
praga, e convém não esquecer que mais grave se tornará a situação quando a
esses milhões de párias se adicionar o milhão e meio de escravos, que hoje
formam o núcleo das grandes fazendas.
Essas palavras
insuspeitas, de uma assembléia escravagista, descrevem a obra da escravidão:
onde ela chega queima as florestas, minera e esgota o solo, e quando levanta as
suas tendas deixa após de si um país devastado em que consegue vegetar uma
população miserável de proletários nômades.
O que se dá no
Rio de Janeiro, dá-se em todas as outras províncias onde a escravidão se
implantou. André Rebouças, descrevendo o estado atual do Recôncavo da Bahia,
esse antigo paraíso do tráfico, fez o quadro da triste condição dos terrenos,
ainda os mais férteis, por onde passa aquela praga, (1) Quem vai
embarcado a Nazaré, e pára em Jaguaripe e Maragojipinho, ou vai pela estrada de
ferro a Alagoinhas, e além, vê que a escravidão, ainda mesmo vivificada e
alentada pelo vapor e pela locomotiva, é em si um princípio de morte
inevitável mais ou menos lenta. Não há à margem do rio, nem da estrada,
senão sinais de vida decadente e de atrofia em começo. A indústria grosseira do
barro é explorada, em alguns lugares, do modo mais primitivo; em Jaguaripe os
edifícios antigos, como a igreja, do período florescente da escravidão,
contrastam com a paralisia de hoje.
A verdade é que
as vastas regiões exploradas pela escravidão colonial têm um aspecto único de
tristeza e abandono: não há nelas o consórcio do homem com a terra, as feições
da habitação permanente, os sinais de crescimento natural. O passado está aí
visível, não há porém, prenúncio do futuro: o presente é o definhamento gradual
que precede a morte. A população não possui definitivamente o solo: o grande
proprietário conquistou-o à natureza com os seus escravos, explorou-o,
enriqueceu por ele extenuando-o, depois faliu pelo emprego extravagante que tem
quase sempre a fortuna mal adquirida, e, por fim, esse solo voltou à natureza,
estragado e exausto.
É assim que nas
províncias do Norte a escravidão se liquidou, ou está liquidando, pelas ruína
de todas as suas antigas empresas. O ouro realizado pelo açúcar foi largamente
empregado em escravos, no luxo desordenado da vida senhorial; as propriedades,
com a extinção dos vínculos, passaram das antigas famílias da terra, por
hipoteca ou pagamento de dívidas, para outras mãos; e os descendentes dos
antigos morgados e senhores territoriais acham-se hoje reduzidos à mais
precária condição imaginável, na Bahia, no Maranhão, no Rio e em Pernambuco,
obrigados a recolher-se ao grande asilo das fortunas desbaratadas da
escravidão, que é o funcionalismo público. Se, por acaso, o Estado despedisse
todos os seus pensionistas e empregados, ver-se-ia a situação real que a
escravidão reduziu os representantes das famílias que a exploraram no século
passado e no atual, isto é, como ela liquidou-se, quase sempre pela bancarrota
das riquezas que produziu. E o que temos visto é nada em comparação do que
havemos de ver.
O Norte todo do
Brasil há de recordar, por muito tempo, que o resultado final daquele sistema é
a pobreza e a miséria do país. Nem é de admirar que a cultura do solo por uma
classe sem interesse algum no trabalho que lhe é extorquido dê esses
resultados. Como se sabe, o regime da terra sob a escravidão consiste na
divisão de todo o solo explorado em certo número de grades propriedades. (2)
Esses feudos são logo isolados de qualquer comunicação com o mundo exterior;
mesmo os agentes do pequeno comércio, que neles penetram, são suspeitos ao
senhor, e os escravos que nascem e morrem dentro dos horizontes do engenho ou
da fazenda são praticamente galés. A divisão de uma vasta província em
verdadeiras colônias penais, refratárias ao progresso, pequenos ashantis em que
impera uma só vontade, entregue, às vezes, a administradores saídos da própria
classe dos escravos, e sempre a feitores, que em geral são escravos sem
entranhas, não pode trazer benefício permanente à região parcelada, nem à
população livre que nela mora, por favor dos donos da terra, em estado de
contínua dependência.
Por isso também,
os progressos do interior são nulos em trezentos anos de vida nacional. As
cidades, a que a presença dos governos provinciais não dá uma animação
artificial, são por assim dizer mortas. Quase todas são decadentes. A capital
centraliza todos os fornecimentos para o interior; é com o correspondente do
Recife, da Bahia ou do Rio, que o senhor de engenho e o fazendeiro se entendem,
e, assim, o comércio dos outros municípios da província é nenhum. O que se dá
na Bahia e em Pernambuco, dá-se em toda a parte, A vida provincial está
concentrada nas capitais, e a existência que essas levam, o pouco progresso que
fazem, o lento crescimento que têm, mostram que essa centralização, longe de
derramar vida pela província, fá-la definhar. Essa falta de centros locais é
tão grande que o mapa de cada província poderia ser feito sem se esconder
nenhuma cidade, notando-se apenas as capitais. Muitas destas constam mesmo de
insignificantes coleções de casas, cujo material todo, e tudo o que nelas se
contém, não bastaria para formar uma cidade norte-americana de décima ordem. A
vida nas outras é precária, falta tudo o que é bem estar; não há água encanada
nem iluminação a gás, a municipalidade não tem a renda de um particular
medianamente abastado, não se encontra o rudimento, o esboço sequer, dos órgãos
funcionais de uma cidade. São
esses os grandes resultados da
escravidão em trezentos anos.
Ao lado dessa
velhice antecipada de povoações, que nunca chegaram a desenvolver-se, e muitas
das quais hão de morrer sem passar do que são hoje, imagine-se a improvisação
de uma cidade americana do Far West,
ou o crescimento rápido dos estabelecimentos da Austrália. Em poucos anos nos
Estados Unidos uma povoação cresce, passa pelos sucessivos estados, levanta-se
sobre uma planta na qual foram antes marcados os locais de edifícios necessários
à vida moral da comunhão, e quando chega a ser uma cidade é um todo cujas
diversas partes desenvolveram-se harmonicamente.
Mas essas
cidades são o centro de uma pequena zona que se desenvolveu, também, de modo
radicalmente diverso da nossa zona agrícola. Fazendas ou engenhos isolados, com
uma fábrica de escravos, com os moradores das terras na posição de agregados do
estabelecimento, de camaradas ou capangas; onde os proprietários não permitem
relações entre o seu povo e estranhos; divididos, muitas vezes, entre si por
questões de demarcações de terras, tão fatais num país onde a justiça não tem
meios contra os potentados; não podem dar lugar à aparição de cidades internas,
autônomas, que vivifiquem com os seus capitais e recursos a zona onde se estabeleçam.
Tome-se o Cabo, ou Valença, ou qualquer outra cidade do interior de qualquer
província, e há de ver-se que não tem vida própria, que não preenche função
alguma definitiva na economia social. Uma ou outra que apresenta, como Campinas
ou Campos, uma aparência de florescimento, é porque está na fase do brilho
meteórico que as outras também tiveram, e da qual a olho desarmado pode
reconhecer-se o caráter transitório.
O que se observa
no Norte, observa-se no Sul, e observar-se-ia melhor ainda se o café fosse
destronado pela Hemilea vastatrix.
Enquanto durou a idade do ouro do açúcar, o Norte apresentava um espetáculo que
iludia a muitos. As casas, os chamados palacetes, da aristocracia territorial
na Bahia e no Recife, as librés dos lacaios, as liteiras, as cadeirinhas, e as
carruagens nobres marcaram o monopólio florescente da cana - quando a beterraba
ainda não havia aparecido no horizonte. Assim também as riquezas da lavoura do
Sul, de fato muito exageradas, de liquidação difícil, mas apesar de tudo consideráveis,
e algumas, para o país, enormes, representa a prosperidade temporária do café.
A concorrência há de surgir, como surgiu para o açúcar, É certo que este pode
ser extraído de diversas plantas, ao passo que o café só é produzido pelo
cafezeiro; mas diversos países o estão cultivando e hão de produzi-lo mais
barato, sobretudo pelo custo do transporte, além de que o Ceilão já mostrou os
pés de barro dessa lavoura única.
Quando passar o
reinado do café, e os preços baixos já serviram de prenúncio, o Sul há de
ver-se reduzido ao estado do Norte. Ponhamos São Paulo e o extremo sul de lado,
e consideremos Rio de Janeiro e Minas Gerais. Sem o café, uma e outra são duas
províncias decrépitas. Ouro Preto não representa hoje na vida nacional maior
papel do que representou Vila Rica nos dias em que a casa de Tiradentes foi
arrasada por sentença; Mariana, São João del Rei, Barbacena, Sabará, Diamantina
ou estão decadentes, ou, apenas, conseguem não decair. É nos municípios do café
que está a parte opulenta de Minas Gerais.
Com São Paulo
dá-se um fenômeno particular, Apesar de ser São Paulo o baluarte atual da
escravidão, em São Paulo e nas províncias do Sul ela não causou tão grandes
estragos; é certo que São Paulo empregou grande parte do seu capital na compra
de escravos do Norte, mas a lavoura não depende tanto quanto a do Rio de
Janeiro e a de Minas Gerias da escravidão para ser reputada solvável.
Tem-se exagerado
muito a iniciativa paulista nos últimos anos, por haver a província feito
estrada de ferro sem socorro do Estado, depois que viu os resultados da estrada
de ferro de Santos à Jundiaí; mas, se os paulistas não são, como foram
chamados, os ianques do Brasil, o qual não tem ianques - nem São Paulo é a
província mais adiantada, nem a mais americana, nem a mais liberal de espírito
do país; será a Louisiana do Brasil, não o Massachusets - não é menos certo que
a província, por ter entrado no seu período florescente no fim do domínio da
escravidão, há de revelar na crise maior elasticidade do que as suas vizinhas.
No Paraná, em
Santa Catarina, no Rio Grande, a emigração européia infunde sangue novo nas
veias do povo, reage contra a escravidão constitucional, ao passo que a
virgindade das terras e a suavidade do clima abrem ao trabalho livre horizontes
maiores do que teve o escravo. No vale do Amazonas, igualmente, a posse da
escravidão sobre o território foi até hoje algo nominal; a pequena população
formou-se diversamente. longe de senzalas; a navegação a vapor do grande
mediterrâneo brasileiro só começou há trinta anos, e a imensa bacia do
Amazonas, cujos tributários são como o Madeira, o Tocantins, o Purus, o
Tapajós, o Xingu, o Juruá, o Javari, o Tefé, o Japurá, o rio Negro, cursos de
água de mais de mil, dois mil e mesmo três mil quilômetros, está assim ainda
por explorar, em grande parte em poder dos indígenas, perdida para a indústria,
para o trabalho, para a civilização. O atraso dessa vastíssima área pode ser
imaginada pela descrição que faz dela o sr. Couto de Magalhães, o explorador do
Araguaia, no seu livro O selvagem.
É um território, conta-nos ele, ou coberto de florestas alagadas, nas quais se
navega em canoas como nos pantanais do Paraguai, ou de campinas abertas e
despovoadas com algum arvoredo rarefeito.
Os três milhões
de quilômetros quadrados de duas das províncias em que se divide a bacia do
Amazonas, o Pará e o Amazonas, com espaço para quase seis países como a França,
e com o território vazio limítrofe para toda a Europa menos a Rússia, não tem
uma população de quinhentos mil habitantes. O estado dessa região é tal que em
1878 o governo brasileiro fez concessão por vinte anos do vale do alto Xingu,
um tributário do Amazonas cujo curso é calculado em cerca de dois mil
quilômetros, com todas as suas produções e tudo o que nele se achasse, a alguns
negociantes do Pará! O Parlamento não ratificou essa doação; mas o fato de ter
sido ela feita mostra como, praticamente, ainda é res nullius a bacia do Amazonas. Os seringais. apesar da sua
imensa extensão, têm sido grandemente destruídos, e essa riqueza natural do
grande vale está ameaçada de desaparecer, porque o caráter da industria
extrativa é tão ganancioso, e por isso esterilizador, no regime da escravidão
como o da cultura do solo. O regatão é o agente da destruição no Amazonas como
o senhor de escravos o foi no Norte e no Sul.
Por
toda a parte - dizia no seu relatório à Assembléia Provincial do Pará em 1862 o
presidente Brusque (3) - onde penetra o homem civilizado nas margens
dos rios inabitados, ali encontra os traços não apagados dessa população (os
indígenas) que vagueia sem futuro. E a pobre aldeia, às mais das vezes por eles
mesmos erguidas em escolhida paragem, onde a terra lhes oferece a mais ampla
colheita da pouca mandioca que plantam, desaparece de todo, pouco tempo depois
da sua lisonjeira fundação. O regatão, formidável cancro que corrói as artérias
naturais do comércio lícito das povoações centrais, desviando delas a
concorrência dos incautos consumidores, não contente com os fabulosos lucros
que assim aufere, transpõe, audaz, enormes distâncias e lá penetra também na
choça do índio. Então, a aldeia se converte para logo num bando de servidores,
que distribui a seu talante, mais pelo rigor do que pela brandura, nos diversos
serviços que empreendem na colheita dos produtos naturais. Pelo abandono da
aldeia, se perde a roça, a choça desaparece, e o mísero índio em recompensa de
tantos sacrifícios e trabalhos, recebe muitas vezes uma calça e uma camisa.
Esses regatões,
de quem disse o bispo do Pará, (4) que “embriagam os chefes das
casas para mais facilmente desonrar-lhes as famílias”, que “não há imoralidade
que não pratiquem”, não são mais do que o produto da escravidão, estabelecida
nas capitais, atuando sobre o espírito cupido e aventureiro de homens sem
educação moral.
Como a aparência
de riqueza, que a extração da borracha dá ao vale do Amazonas, foi a do açúcar
e do café cultivado pelos processos e com o espírito da escravidão. O
progresso e crescimento da capital contrasta com a decadência do interior. É o
mesmo em toda a parte. Com a escravidão não há centros locais, vida de
distrito, espírito municipal; as paróquias não tiram benefícios da vizinhança
de potentados ricos; a aristocracia que possui a terra não se entrega a ela,
não trata de torná-la a morada permanente, saudável, e cheia de conforto de uma
população feliz; as famílias são todas nômades enquanto gravitam para o mesmo
centro, que é a Corte. A fazenda ou o engenho serve para cavar o dinheiro que
se vai gastar na cidade, para a hibernação, e o aborrecimento de uma parte do ano.
A terra não é fertilizada pelas economias do pobre, nem pela generosidade do
rico; a pequena propriedade não existe senão por tolerância,(5) não
há as classes médias que fazem a força das nações. Há o opulento senhor de
escravos, e proletários. A nação, de fato, é formada de proletários, porque os
descendentes dos senhores logo chegam a sê-lo.
É um triste
espetáculo essa luta do homem com o território por meio do trabalho escravo. Em
parte alguma o solo adquire vida; os edifícios que nele se levantam são uma
forma de luxo passageiro e extravagante, destinada a pronta decadência e
abandono. A população vive em choças onde o vento e a chuva penetram, sem
soalho nem vidraças, sem móveis nem conforto algum, com a rede do índio ou o
estrado do negro por leito, a vasilha de água e a panela por utensílios, e a
viola suspensa ao lado da imagem. Isso é no campo; nas pequenas cidades e vilas
do interior, as habitações dos pobres, dos que não têm empregos nem negócio,
são pouco mais que essas miseráveis palhoças do agregado ou do morador. Nas
capitais de ruas elegantes e subúrbios aristocráticos, estende-se, como nos
Afogados de Recife, às portas da cidade, o bairro da pobreza com sua linha de
cabanas que parecem, no século XIX, residências de animais, como nas calçadas
mais freqüentadas da Bahia, e nas praças do Rio, ao lado da velha casa nobre,
que fora de algum antigo morgado, ou de algum traficante enobrecido, vê-se o
miserável e esquálido antro do africano, como a sombra grotesca dessa riqueza
efêmera e do abismo que a atrai.
Quem vê os
caminhos de ferro que temos construído, a imensa produção de café que
exportamos, o progresso material que temos feito, pensa que os resultados da
escravidão não são assim tão funestos ao território. É preciso, porém, lembrar
que a aparência atual de riqueza e prosperidade provém de um produto só -
quando a população do país excede dez milhões - e que a liquidação
forçada desse produto seria nada menos do que uma catástrofe financeira. A
escravidão está no Sul no apogeu, no seu grande período industrial, quando tem
terras virgens, como as de São Paulo a explorar, e um gênero de exportação
precioso a produzir. A empresa, neste momento, porque ela não é outra coisa,
está dando algum lucro aos associados. Lucro, de que partilham todas as classes
intermédias do comércio, comissários, ensacadores, exportadores; cujas migalhas
sustentam uma clientela enorme de todas as profissões, desde o camarada que faz
o serviço de votante, até ao médico, ao advogado, ao vigário, ao juiz de paz; e
do qual por fim uma parte, e não pequena, é absorvida pelo tesouro para
manutenção da cauda colossal do nosso orçamento - o funcionalismo público. Com
essa porcentagem dos proventos da escravidão, o Estado concede garantia de
juros de sete por cento a companhias inglesas que constroem estradas de ferro
no país, e assim o capital estrangeiro, atraído pelos altos juros e pelo
crédito intato de uma nação que parece solvável, vai tentar fortuna em empresas
como a Estrada de Ferro de São Paulo, que têm a dupla garantia do Brasil e do
Café.
Mas essa ilusão
toda de riqueza, de desenvolvimento nacional, criada por este, como a do açúcar
e a do algodão no Norte, como a da borracha no vale do Amazonas, como a do ouro
em Minas Gerais, não engana a quem a estuda e observa nos seus contrastes, na
sombra que ela projeta. A realidade é um povo antes escravo do que senhor do
vasto território que ocupa; a cujos olhos o trabalho foi sistematicamente
aviltado; ao qual se ensinou que a nobreza está em fazer trabalhar; afastado da
escola; indiferente a todos os sentimentos, instintos, paixões e necessidades,
que formam nos habitantes de uma mesmo país, mais do que uma simples sociedade
- uma nação. Quando o sr. Silveira Martins disse ao Senado: “O Brasil é o café,
e o café é o negro” - não querendo por certo dizer o escravo - definiu o Brasil
como fazenda, como empresa comercial de uma pequena minoria de interessados, em
suma, o Brasil da escravidão atual. Mas basta que um país, muito mais vasto do
que a Rússia da Europa, quase o dobro da Europa sem a Rússia, mais de um terço
do Império britânico nas cinco partes do mundo, povoado por mais de dez milhões
de habitantes, possa ser descrito daquela forma, para se avaliar o que a
escravidão fez dele.
Esse terrível
azorrague não açoitou somente as costas do homem negro, macerou as carnes de um
povo todo. Pela ação de leis sociais poderosas, que decorrem da moralidade
humana, essa fábrica de espoliação não podia realizar bem algum, e foi, com
efeito, um flagelo que imprimiu na face da sociedade e da terra todos os sinais
da decadência prematura. A fortuna passou das mãos dos que a fundaram às dos
credores; poucos são os netos de agricultores que se conservam à frente das
propriedades que seus pais herdaram; o adágio “pai rico, filho nobre, neto
pobre” expressa a longa experiência popular dos hábitos da escravidão, que
dissiparam todas as riquezas, não raro no exterior e, como temos visto, em
grande parte, eliminaram da reserva nacional o capital acumulado naquele
regime.
A escravidão
explorou parte do território estragando-o, e não foi além, não o abarcou todo,
porque não tem iniciativa para migrar, e só avidez para estender-se. Por isso,
o Brasil é ainda o maior pedaço e terra incógnito no mapa do globo.
Num
estado de escravos - diz o sr. T. R. Cobb, da Geórgia (6) - a maior
prova de riqueza no agricultor é o número dos escravos. A melhor propriedade a
deixar aos filhos, e da qual se separam com maior relutância, são os escravos.
Por isso, o agricultor emprega o excesso de sua renda em escravos. O resultado
natural é que as terras são uma consideração secundária. Não fica saldo para
melhorá-las. O estabelecimento tem valor somente enquanto as terras adjacentes
são proveitosas para o cultivo. Não tendo o agricultor afeições locais, os
filhos não as herdam. Pelo contrário, ele mesmo os anima a irem em busca de
novas terras. O resultado é que, como classe, nunca estão estabelecidos. Essa
população é quase nômade. É inútil procurar excitar emoções patrióticas em
favor da terra do nascimento, quando o interesse próprio fala tão alto. Por
outro lado, onde a escravidão não existe, e os lucros do agricultor não podem
ser empregados em trabalhadores, são aplicados em melhorar ou estender a sua
propriedade e aformosear o seu solar.
Foi isso o que
aconteceu entre nós, sendo que em parte alguma a cultura do solo foi mais
destruidora. A última seca do Ceará pôs, de modo mais calamitoso, em evidência
uma das maldições que sempre acompanharam, quando não precederam, a marcha da
escravidão, isto é, a destruição das florestas pela queimada.
O
machado e o fogo são os cruéis instrumentos, escreve o senador Pompeu. com que
uma população, ignara dos princípios rudimentares da economia rural, e herdeira
dos hábitos dos aborígenes, há dois séculos desnuda sem cessar as nossa serras
e vales dessas florestas virgens, só para aproveitar-se o adubo de um roçado em
um ano. (7)
A cada passo
encontramos e sentimos os vestígios desse sistema, que reduz um belo país
tropical da mais exuberante natureza ao aspecto das regiões onde já se esgotou
a força criadora da terra.
Para resumir-se,
num campo de observação que exigiria um livro à parte, a influência da
escravidão, sobre o território e a população que vive dele, foi em todos os
sentidos desastrosa. Como exploração do país, os seus resultados são visíveis
na carta geográfica do Brasil, na qual os pontos negros do seu domínio
comparada à área desconhecidas ou despovoada; como posse do solo explorado, nós
vimos o que ela foi e é. O caráter da sua cultura é a improvidência, a rotina, a
indiferença pela máquina, o mais completo desprezo pelos interesses do futuro,
a ambição de tirar o maior lucro imediato com o menor trabalho próprio
possível, qualquer que seja o prejuízo das gerações seguintes. O parcelamento
feudal do solo que ela instituiu, junto ao monopólio do trabalho que possui,
impede a formação de núcleos de população industrial, e a extensão do comércio
no interior. Em todos os sentidos foi ela, e é, um obstáculo ao desenvolvimento
material dos municípios; explorou a terra sem atenção à localidade, sem
reconhecer deveres para com o povo de fora das suas porteiras, queimou, plantou
e abandonou; consumiu os lucros na compra de escravos e no luxo da cidade; não
edificou escolas, nem igrejas, não construiu pontes, nem melhorou rios, não
canalizou a água nem fundou asilos, não fez estradas, não construiu casas,
sequer para os seus escravos, não fomentou nenhuma indústria, não deu valor
venal à terra, não fez benfeitorias, não granjeou o solo, não empregou
máquinas, não concorreu para progresso algum da zona circunvizinha. O que fez
foi esterilizar o solo pela sua cultura extenuativa, embrutecer os escravos,
impedir o desenvolvimento dos municípios, e espalhar em torno dos feudos
senhoriais o aspecto das regiões miasmáticas, ou devastadas pelas instituições
que suportou, aspecto que o homem livre instintivamente reconhece. Sobre a
população toda do nosso interior, ou às orlas das capitais ou nos páramos do
sertão, os seus efeitos foram: dependência, miséria, ignorância, sujeição ao
arbítrio dos potentados - para os quais o recrutamento foi o principal meio de
ação; a falta de um canto de terra que o pobre pudesse chamar seu, ainda que
por certo prazo, e cultivar como próprio; de uma casa que fosse para ele o
asilo inviolável e da qual não o mandassem esbulhar à vontade; da família -
respeitada e protegida. Por último, essa população foi por mais de três séculos
acostumada a considerar o trabalho do campo como próprio de escravos; Saída
quase toda das senzalas, ela julga aumentar a distância que a separa daqueles,
não fazendo livremente o que eles fazem forçados.
Mais de uma vez,
tenho ouvido referir que se oferecera dinheiro a um dos nossos sertanejos por
um serviço leve e que esse recusara prestá-lo. Isso não me admira. Não se lhe
oferecia uma salário certo. Se lhe propusessem um meio de vida permanente, que
melhorasse a sua condição, ele teria provavelmente aceito a oferta. Mas, quando
não a aceitasse, admitindo-se que os indivíduos com quem se verificaram tais
fatos represente uma classe de brasileiros que se conta por milhões, como
muitos pretendem, a dos que se recusam a trabalhar por salário, que melhor
prova da terrível influência da escravidão? Durante séculos ela não consentiu
mercado de trabalho, e não se serviu senão de escravos; o trabalhador livre não
tinha lugar na sociedade, sendo um nômade, um mendigo, e por isso em parte
nenhuma achava ocupação fixa; não tinha em torno de si o incentivo que desperta
no homem pobre a vista do bem-estar adquirido por meio do trabalho por indivíduos
da sua classe, saídos das mesmas camadas que ele. E como vivem, como se nutrem,
esse milhões de homens, porque são milhões que se acham nessa condição
intermédia, que não é o escravo, mas também não é o cidadão; cuja único
contingente para o sustento da comunhão, que aliás nenhuma proteção lhes
garante, foi sempre o do sangue, porque essa era a massa recrutável, os feudos
agrícolas roubando ao exército os senhores e suas famílias, os escravos, os
agregados, os moradores e os brancos?
As habitações já
as vimos. São quatro paredes, separadas no interior por uma divisão em dois ou
três cubículos infectos, baixas e esburacadas, abertas à chuva e ao vento,
pouco mais do que o curral, menos do que a estrebaria. É nesses ranchos que
vivem as famílias de cidadãos brasileiros! A alimentação corresponde à
independência de hábitos sedentários causada pelas moradas. É a farinha de
mandioca que forma a base da alimentação, na qual entra, como artigo de luxo, o
bacalhau da Noruega ou o charque do Rio da Prata.
Eles
vivem diretamente - diz o sr. Milet, referindo-se à população, que está “fora
do movimento geral das trocas internacionais”, avaliada por ele na quinta parte
da população do Brasil, e que faz parte desses milhões de párias livres da
escravidão - da caça e da pesca, dos frutos imediatos do seu trabalho agrícola,
da criação do gado e dos produtos de uma indústria rudimentar. (8)
Foi essa
população que se foi internando, vivendo como ciganos, aderindo às terras das
fazendas ou dos engenhos onde achava agasalho, formando-se em pequenos núcleos
nos interstícios das propriedades agrícolas, edificando as suas quatro paredes
de barro onde se lhe dava permissão para fazê-lo, mediante condições de
vassalagem que constituíam os moradores em servos da gleba.
Para qualquer lado
que se olhe, esses efeitos foram os mesmos. Latifundia perdidere Italian, é uma frase que soa como verdade
tangível aos ouvidos do brasileiro. Compare por um momento, quem viajou nos
Estados Unidos ou na Suíça, o aspecto do país, da cultura, da ocupação do solo
pelo homem. Diz-se que o Brasil é um país novo; sim, é um país novo em algumas
partes; virgem mesmo, mas em outras é um país velho; há mais de trezentos anos
que as terras foram primeiras desbastadas, as florestas abatidas, e plantados
os canaviais. Tome-se Pernambuco, por exemplo, onde no século XVI João Paes
Barreto fundou o morgado do Cabo; que tinha no século XVII durante a ocupação
holandesa bom número de engenhos de açúcar; que lutou palmo a palmo contra a
Companhia das Índias Ocidentais para seguir a sorte de Portugal e compare-se
essa província heróica de mais de trezentos anos com países, por assim dizer,
de ontem, como as colônias da Austrália e a Nova Zelândia; com os últimos
estados que entraram para a União Americana. Se não fora a escravidão, o nosso
crescimento por certo não seria tão rápido como os dos países ocupados pela
raça inglesa; Portugal não poderia vivificar-nos, desenvolver-nos com os seus
capitais, como faz a Inglaterra com as suas colônias; o valor do homem seria
sempre menor, e portanto o do povo e o do Estado. Mas, por outro lado, sem a
escravidão não teríamos hoje em existência um povo criado fora da esfera da
civilização, e que herdou grande parte das suas tendências, por causa das
privações que lhe foram impostas e do regime brutal a que o sujeitaram, da raça
mais atrasada e primitiva, corrigindo assim, felizmente, a hereditariedade da
outra, é certo mais adiantada, porém cruel, desumana, ávida de lucros ilícitos,
carregada de crimes atrozes: aquela que responde pelos milhões de vítimas de
três séculos escravatura.
Onde quer que se
estude, a escravidão passou sobre o território e os povos que acolheram
como um sopro de destruição. Ou se a veja nos ergástulos da antiga Itália, nas
aldeias da Rússia, nas plantações dos Estados do Sul, ou nos engenhos e
fazendas do Brasil, ela é sempre a ruína, a intoxicação e a morte. Durante um
certo período ela consegue esconder, pelo intenso brilho metálico do seu
pequeno núcleo, a escuridão que o cerca por todos os lados; mas, quando esse
pequeno período de combustão acaba, vê-se que a parte luminosa era um ponto
insignificante comparado à massa opaca, deserta e sem vida do sistema todo.
Dir-se-ia que, assim como a matéria não faz senão transformar-se, os
sofrimentos, as maldições, as interrogações mudas a Deus, do escravo, condenado
ao nascer a galés perpétuas, criança desfigurada pela ambição do dinheiro, não
se extinguem de todo com ele, mas espalham nesse vale de lágrimas da escravidão, em que ele viveu, um fluído
pesado, fatal ao homem e à natureza.
É
uma terrível pintura - diz o grande historiador alemão de Roma - essa pintura
da Itália sob o governo da oligarquia. Não havia nada que conciliasse ou
amortecesse o fatal contraste entre o mundo dos mendigos e o mundo dos ricos. A
riqueza e a miséria ligadas estreitamente uma com a outra expulsaram os
italianos da Itália, e encheram a península em parte com enxames de escravos,
em parte com silêncio sepulcral. É uma terrível pintura, não, porém, uma que
seja particular à Itália; em toda a parte onde o governo dos capitalistas, num
país de escravos, se desenvolveu completamente, devastou o belo mundo de Deus
da mesma forma. A Itália ciceroniana, como a Hélade de Políbio, como a Cartago
de Aníbal. Todos os grandes crimes, de que o capital é culpado para com a nação
e a civilização no mundo moderno, ficam sempre tão abaixo das abominações dos
antigos, Estados capitalistas, como o homem livre, por mais pobre que seja,
fica superior ao escravo, e só quando a semente de dragão da América do Norte
houver amadurecido, terá o mundo que colher frutos semelhantes. (9)
No Brasil essas
sementes espalhadas por toda a parte germinaram há muito. E se o mundo não
colheu os mesmos frutos, nem sabe que estamos colhendo, é porque o Brasil não
representa nele papel algum, e está escondido à civilização “pelos últimos
restos do escuro nevoeiro que pesa ainda sobre a América”. (10)
Notas
1. Garantia
de juros, p. 202
2. “O
antigo e vicioso sistema de sesmarias e do direito de posse produziu o fenômeno
de achar-se ocupado quase todo o solo por uma população relativamente
insignificante, que não o cultiva e nem consente que seja cultivado. O imposto
territorial é o remédio que a comissão encontra para evitar esse mal, ou antes
abuso, que criou uma classe proletária no meio de tanta riqueza
desaproveitada”. Essa classe
proletária é a grande maioria da nação. Parecer de uma comissão nomeada
em 1874 para estudar o estado da lavoura na Bahia, assinado em primeiro lugar
pelo Barão de Cotegipe.
3. Comissão do Madeira, pelo cônego F.
Bernardino de Souza, p. 139.
4. Comissão
do Madeira, p. 132
5. “Em
regra o fazendeiro enxerga no colono ou agregado, a quem cede ou vende alguns
palmos e terreno, um princípio de antagonismo, um inimigo que trabalha por lhe
usurpar a propriedade; que lhe prepara e tece rixas e litígios; que lhe seduz
os escravos para fugir, roubar-lhe os gêneros de fazenda e vendê-los, a resto
de barato, à taberna do mesmo ex-agregado estabelecido, que assim se locupleta
com a jactura alheia. O resultado disso é que o trabalhador, perdendo a
esperança de se tornar proprietário, não se sujeita a lavrar os campos da
fazenda, nem a lhe preparar os produtos”. Parecer das comissões de Fazenda e
especial da Câmara dos Deputados sobre a criação do crédito territorial. (1875)
p. 21
6. Citado
em England, the United States, the Sourthen Confederacy, by F. W. Sargent, 110
7. Memórias
sobre o clima e as secas do Ceará, pelo senador Pompeu, p. 42
8. Miscelânea
econômica, p. 36
9. Mommsen,
História romana, Livro V, cap.
XI
10. Antônio
Cândido, sessão de 8 de janeiro de 1881, (Câmara dos Deputados de Portugal)
XV - INFLUÊNCIAS
SOCIAIS E POLÍTICAS DA ESCRAVIDÃO
“Não é somente
como instrumento produtivo que a escravidão é apreciada pelos que a sustentam.
É ainda mais pelos seus resultados políticos e sociais, como o meio de manter
uma forma de sociedade na qual os senhores de escravos são os únicos
depositários do prestígio social e poder político, como a pedra angular de um
edifício do qual eles são os donos, que esse sistema é estimado. Aboli a
escravidão e introduzireis uma nova ordem de coisas”
Professor
Cairnes.
Depois da ação
que vimos do regime servil, sobre o território e a população, os seus efeitos
sociais e políticos são meras conseqüências. Um governo livre, edificado sobre
a escravidão, seria virgem na história. Os governos antigos não foram baseados
sobre os mesmos alicerces da liberdade individual que os modernos, e
representam uma ordem social muito diversa. Só houve um grande fato de
democracia combinadas com a escravidão, depois da Revolução Francesa - os
Estados Unidos; mas os estados do sul nunca foram governos livres. A liberdade
americana, tomada a União como um todo, data, verdadeiramente, da proclamação
de Lincoln que declarou livre os milhões de escravos do Sul. Longe de serem
países livres, os estados ao sul do Potomac eram sociedades organizadas sobre a
violação de todos os direitos da humanidade. Os estadistas americanos, como
Henry Clay e Calhoum, que transigiram ou se identificaram com a escravidão, não
calcularam a força do antagonismo que devia, mais tarde, revelar-se tão
formidável. O que aconteceu - a rebelião na qual o Sul foi salvo pelo braço do
Norte do suicídio que ia cometer, separando-se da União para formar uma
potência escravagista, e o modo pelo qual ela foi esmagada - prova que nos
Estados Unidos a escravidão não afetara a constituição social toda, como entre
nós; mas deixara a parte superior do organismo intacta, e forte ainda bastante
para curvar a parte até então dirigente à sua vontade, apesar de toda a
cumplicidade com essa.
Entre nós, não
há linha alguma divisória. Não há uma seção do país que seja diversa da outra.
O contato foi sinônimo de contágio. A circulação geral, desde as grandes
artérias até aos vasos capilares, serve de canal às mesmas impurezas. O corpo
todo - sangue, elementos constitutivos, respiração, forças e atividade,
músculos e nervos, inteligência e vontade, não só o caráter, senão o
temperamento, e mais do que tudo a energia - acha-se afetado pela mesma causa.
Não se trata,
somente, no caso da escravidão no Brasil, de um instituição que ponha fora da
sociedade um imenso número de indivíduos, como na Grécia ou na Itália antiga, e
lhes dê por função social trabalhar para os cidadãos; trata-se de uma sociedade
não só baseada, como era a
civilização antiga, sobre a escravidão, e permeada em todas as classes por ela,
mas também constituída, na sua maior parte, de secreções daquele vasto
aparelho.
Com a linha
divisória da cor, assim era, por exemplo, nos estados do Sul da União. Os
escravos e os seus descendentes não faziam parte da sociedade. A escravidão
misturava, confundia, a população em escala muito pequena. Estragava o solo,
impedia as indústrias, preparava a bancarrota econômica, afastava a imigração,
produzia, enfim, todos os resultados dessa ordem que vimos no Brasil; mas a
sociedade americana não era formada de unidades criadas por esse processo. A
emenda constitucional, alterando tudo isso incorporou os negros na comunhão
social, e mostrou como são transitórias as divisões que impedem artificialmente
as raças ou classes de tomar o seu nível natural.
Mas, enquanto
durou a escravidão, nem os escravos nem os seus descendentes livres
concorreram, de forma alguma, para a vida mental ou ativa dessa sociedade
parasita que eles tinham o privilégio de sustentar com o seu sangue.
Quando veio a abolição, e depois dela a igualdade de direitos políticos, a
Virgínia e a Geórgia viram, de repente, todas as altas funções do Estado
entregues a esses mesmos escravos, que eram, até então, socialmente falando,
matéria inorgânica, e que, por isso, só podiam servir nesse primeiro ensaio de
vida política para instrumentos de especuladores adventícios, como os carpetbaggers. Esse período,
entretanto, pode ser considerado como a continuação da guerra civil. A
separação das duas raças, que fora o sistema adotado pela escravidão
norte-americana - mantida por uma antipatia à cor preta, que foi sucessivamente
buscar fundamentos na maldição de Cham e na teoria da evolução pitecóide, e por
princípios severos de educação -, continua a ser o estado das relações entre os
dois grandes elementos de população nos estados do Sul.
No Brasil deu-se
exatamente o contrário. A escravidão, ainda que fundada sobre a diferença das
duas raças, nunca desenvolveu a prevenção da cor, e nisso foi infinitamente
mais hábil. Os contatos entre aquelas, desde a colonização primitiva dos
donatários, e os escravos, ao receberem sua carta de alforria, recebiam também
a investidura de cidadão. Não há assim, entre nós, castas sociais perpétuas,
não há mesmo divisão fixa de classes. O escravo, que, como tal, praticamente não existe para a sociedade, porque o
senhor pode não o ter matriculado e, se o matriculou, pode substituí-lo, e a
matrícula mesmo nada significa, desde que não há inspeção do Estado nas
fazendas, nem os senhores são obrigados a dar contas dos seus escravos às
autoridades. Esse ente, assim equiparado, quanto à proteção social, a qualquer
outra coisa de domínio particular, é, no dia seguinte à sua alforria, um cidadão
como outro qualquer, com todos os direitos políticos, e o mesmo grau de
elegibilidade. Pode mesmo, ainda na penumbra do cativeiro, comprar escravos.
talvez, quem sabe? - algum filho do seu antigo senhor. Isso prova a confusão de
classes e indivíduos, e a extensão ilimitada dos cruzamentos sociais entre
escravos e livres, que fazem da maioria dos cidadãos brasileiros, se se pode
assim dizer, mestiços políticos, nos quais se combatem duas naturezas opostas:
a do senhor de nascimento e a do escravo domesticado.
A escravidão,
entre nós, manteve-se aberta e estendeu os seus privilégios a todos
indistintamente: brancos ou pretos, ingênuos ou libertos, escravos mesmo,
estrangeiros ou nacionais, ricos ou pobres; e, dessa forma, adquiriu, ao mesmo
tempo, uma força de absorção dobrada e uma elasticidade incomparavelmente maior
do que houvera tido se fosse um monopólio de raça, como nos estados do Sul.
Esse sistema de igualdade absoluta abriu, por certo, um melhor futuro à raça
negra, do que era o seu horizonte na América do Norte. Macaulay disse na Câmara
dos Comuns em 1845, ano do bill
Aberdeen: “Eu não julgo improvável que a população preta do Brasil seja livre e
feliz dentro de oitenta ou cem anos. Não vejo porém perspectiva razoável de
igual mudança nos Estados Unidos”. Essa intuição da felicidade relativa da raça
nos dois países parece hoje ser tão certa quanto provou ser errada a suposição
de que os Estados Unidos tardariam mais do que nós a emancipar os seus
escravos. O que enganou, nesse caso, o grande orador inglês foi o preconceito
de cor, que se lhe afigurou ser uma força política e social para a escravidão,
quando, pelo contrário, a força desta consiste em banir tal preconceito e em
abrir a instituição a todas as classes. mas, por isso mesmo, entre nós, o caos
étnico foi o mais gigantesco possível, e a confusão reinante nas regiões em que
se está elaborando, com todos esses elementos heterogêneos, a unidade nacional
faz pensar na soberba desordem dos mundos incandescentes.
Atenas, Roma, a
Virgínia, por exemplo, foram, tomando uma comparação química, simples misturas
nas quais os diversos elementos guardavam as suas propriedades particulares; o
Brasil, porém, é um composto, do qual a escravidão representa uma afinidade
casual. O problema que nós queremos resolver é o de fazer desse composto de
senhor e escravo um cidadão. O dos estados do Sul foi muito diverso, porque
essas duas espécies não se misturaram. Entre nós a escravidão não exerceu toda
a sua influência apenas abaixo da linha romana da libertas; exerceu-a, também, dentro e acima da esfera da civitas; nivelou, exceção feita dos
escravos, que vivem sempre nos subterrâneos sociais, todas as classes; mas
nivelou-as degradando-as. Daí a dificuldade, ao analisar-lhe a influência, de
descobrir um ponto qualquer, ou na índole do povo, ou na face do país, ou mesmo
nas alturas mais distantes das emanações das senzalas, sobre que, de alguma
forma, aquela afinidade não atuasse, e que, não deva ser incluída na síntese
nacional da escravidão. Vejam-se as diversas classes sociais. Todas elas
apresentam sintomas de desenvolvimento ou retardado ou impedido, ou, o que é
ainda pior, de crescimento prematuro artificial. Estudem-se as diversas forças,
ou que mantêm a hereditariedade nacional ou que lhe dirigem a evolução, e ver-se-á
que as conhecidas se estão todas enfraquecendo, e que tanto a conservação, como
o progresso do país são problemas atualmente insolúveis, dos quais a
escravidão, e só ela, é a incógnita. Isso tudo, tenho apenas espaço para
apontar, não para demonstrar.
Uma classe
importante, cujo desenvolvimento se acha impedido pela escravidão, é a dos
lavradores que não são proprietários, e, em geral, dos moradores do campo ou do
sertão. Já vimos a que se acha, infelizmente, reduzida essa classe, que forma a
quase totalidade da nossa população. Sem independência de ordem alguma, vivendo
ao azar do capricho alheio, as palavras da oração dominical: O pão nosso de cada dia, nos daí hoje
têm para ela uma significação concreta e real. Não se trata de operários, que,
expulsos de uma fábrica, achem lugar em outra; nem de famílias que possam
emigrar; nem de jornaleiros que vão ao mercado de trabalho oferecer os seus
serviços; trata-se de uma população sem meios, nem recurso algum, ensinada a
considerar o trabalho com uma ocupação servil, sem ter onde vender os seus
produtos, longe da região do salário - se existe esse Eldorado, em nosso país -
e que por isso tem que resignar-se a viver e criar os filhos, nas condições de
dependência e miséria em que se lhe consente vegetar.
Esta é uma
pintura que, com verdadeiro sentimento humano, fez de uma porção, e a mais
feliz, dessa classe, um senhor de engenho no Congresso Agrícola do Recife em
1878:
O plantador não fabricante leva vida precária; seu
trabalho não é remunerado, seus brios não são respeitados; seus interesses
ficam à mercê dos caprichos do fabricante em cujas terras habita. Não há ao
menos um contrato escrito, que obrigue as partes interessadas; tudo tem base na
vontade absoluta do fabricante. Em troca de habitação, muitas vezes péssima, e
de algum terreno que lhe é dado para plantações de mandioca, que devem ser
limitadas, e feitas em terreno sempre o menos produtivo; em troca disto, parte
o parceiro todo o açúcar de suas canas em quantidades iguais; sendo propriedade
do fabricante todo mel de tal açúcar, toda a cachaça delas resultante, todo o
bagaço, que é excelente combustível para o fabrico do açúcar, todos os olhos
das canas, suculento alimento para o seu gado. É uma partilha leonina, tanto
mais injusta quanto todas as despesas de plantação, trato da lavoura, corte,
arranjo das canas e seu transporte à fábrica, são feitas exclusivamente pelo
plantador meeiro.
À
parte os sentimentos do que são eqüitativos e generosos, o pobre plantador de
canas da classe a que me refiro, nem habitação segura tem: de momento para
outro pode ser caprichosamente despejado, sujeito a ver estranhos até a porta
da cozinha de sua triste habitação, ou a precipitar a sua saída, levando à
família o último infortúnio (1)
Essa é ainda uma
classe favorecida, a dos lavradores meeiros, abaixo da qual há outras que nada
têm de seu, moradores que nada têm para vender ao proprietário, e que levam uma
existência nômade e segregação de todas as obrigações sociais, como fora de
toda a proteção do Estado.
Tomem-se outras
classes, cujo desenvolvimento se acha retardado pela escravidão, as classes
operárias e industriais, e, em geral, o comércio.
A escravidão não
consente, em parte alguma, classes operárias propriamente ditas, nem é
compatível com o regime do salário e a dignidade pessoal do artífice. Este
mesmo, para não ficar debaixo do estigma social que ela imprime nos seus
trabalhadores, procura assinalar o intervalo que o separa do escravo, e
imbui-se assim de um sentimento de superioridade, que é apenas baixeza de alma,
em quem saiu da condição servil, ou esteve nela por seus pais. Além disso, não
há classes operárias fortes, respeitadas, e inteligentes, onde os que empregam
trabalho estão habituados a mandar escravos. Também os operários não exercem
entre nós a mínima influência política. (2)
Escravidão e
indústria são termos que se excluíram sempre, como escravidão e colonização. O
espírito da primeira, espalhando-se por um país, mata cada uma das faculdades
humanas, de que provém a indústria: a iniciativa, a invenção, a energia
individual; e cada um dos elementos de que ela precisa: a associação de
capitais, a abundância de trabalho, a educação técnica dos operários, a
confiança no futuro. No Brasil, a indústria agrícola é a única que tem
florescido em mãos de nacionais. O comércio só tem prosperado nas de
estrangeiros. Mesmo assim, veja-se qual é o estado da lavoura, como adiante o
descrevo. Está, pois, singularmente retardado em nosso país o período
industrial, no qual vamos apenas agora entrando.
O grande comércio
nacional não se dispõe de capitais comparáveis aos do comércio estrangeiro,
tanto de exportação como de importação, ao passo que o comércio a retalho, em
toda a sua porção florescente, com vida própria, por assim dizer consolidada, é
praticamente monopólio de estrangeiros. Esse fato provocou, por diversas vezes
em nossa história, manifestações populares, com a bandeira da nacionalização do
comércio a retalho. Mas, tal grito caracteriza o espirito de exclusivismo e
ódio à concorrência, por mais legítima que sejam em que a escravidão educou o
nosso povo, e, em mais de um lugar, foi acompanhado de sublevações do mesmo
espírito atuando em outra direção, isto é, do fanatismo religioso. Não sabiam
os que sustentavam aquele programa do fechamento dos portos do Brasil, e da
anulação de todo o progresso que temos feito desde 1808, que, se tirassem o
comércio a retalho aos estrangeiros, não o passariam para os nacionais, mas
simplesmente o reduziriam a uma carestia de gêneros permanente - porque é a
escravidão, e não a nacionalidade, que impede o comércio a retalho de ser em
grande parte brasileiro.
Em relação ao
comércio, a escravidão procede desta forma: fecha-lhe, por desconfiança e
rotina, o interior, isto é, tudo o que não é a capital da província; exceto em
Santos e Campinas, em São Paulo; Petrópolis e Campos no Rio de Janeiro;
Pelotas, no Rio Grande do Sul; e alguma outra cidade mais, não há casa de
negócio senão nas capitais, onde se encontre mais do que um pequeno
fornecimento de artigos necessários à vida, esses mesmos ou grosseiros ou
falsificados. Assim como nada se vê que revele o progresso intelectual dos
habitantes - nem livrarias, nem jornais - não se encontra o comércio, senão na
antiga forma rudimentar, indivisa ainda, da venda-bazar. Por isso, o que não
vai diretamente da Corte, como encomenda, só chega ao consumidor pelo mascate ,
cuja história é a da civilização do nosso interior todo, e que, de fato, é o pioneer do comércio, e representa os
limites em que a escravidão é compatível com a permuta local. O comércio,
entretanto, é o manancial da escravidão, e o seu banqueiro. Na geração passada,
em toda a parte, ele a alimentou de africanos boçais ou ladinos; muitas das
propriedades agrícolas caíram em mãos de fornecedores de escravos; as fortunas
realizadas pelo tráfico (para o qual a moeda falsa teve por vezes grande
afinidade) foram, na parte não exportada, nem convertida em pedra e cal,
empregadas em auxiliar a lavoura pela usura. Na atual geração, o vínculo entre
o comércio e a escravidão não é assim desonroso para aquele; mas a dependência
mútua continua a ser a mesma. Os principais fregueses do comércio são
proprietário de escravos, exatamente como os leaders da classe; o café é sempre rei nas praças do Rio e de
Santos, e o comércio, faltando a indústria e o trabalho livre, não pode servir
senão para agente da escravidão, comprando-lhe tudo o que ela oferece e
vendendo-lhe tudo de que ela precisa. Por isso também no Brasil ele não se
desenvolve, não abre horizontes ao país; mas é uma força inativa, sem
estímulos, e cônscia de que é, apenas, um prolongamento da escravidão, ou antes
o mecanismo pelo qual a carne humana é convertida em ouro e circula, dentro e
fora do país, sob a forma de letras de câmbio. Ele sabe que, se a escravidão o
receia, como receia todos os condutores do progresso, seja este a loja do
negociante, a estação da estrada de ferro, ou a escola primária, também precisa
dele, como por certo não precisa, nem quer saber desta última, e trata de viver
com ela nos melhores termos possíveis. Mas, com a escravidão, o comércio será
sempre o servo de uma classe, sem a independência de um agente nacional; ele
nunca há de florescer num regime que não lhe consente entrar em relações
diretas com os consumidores, e não eleva a população do interior a essa
categoria.
Das classes que
esse sistema fez crescer artificialmente a mais numerosa é a dos empregados
públicos. A estreita relação entre a escravidão e a epidemia do funcionalismo
não pode ser mais contestada que a relação ente ela e a superstição do
Estado-providência. Assim como, nesse regime, tudo se espera do Estado, que,
sendo a única associação ativa, aspira e absorve pelo imposto e pelo empréstimo
todo o capital disponível e distribui-o, entre os seus clientes, pelo emprego
público, sugando as economias do pobre pelo curso forçado, e tornando precária
a fortuna do rico; assim também, como conseqüência , o funcionalismo é a
profissão nobre e a vocação de todos. Tomem-se, ao acaso, vinte ou trinta
brasileiros em qualquer lugar onde se reuna a nossa sociedade mais culta; todos
eles ou foram ou são, ou hão de ser, empregados públicos; se não eles, seus
filhos.
O funcionalismo
é, como já vimos, o asilo dos descendentes das antigas famílias ricas e
fidalgas, que desbarataram as fortunas realizadas pela escravidão, fortunas a
respeito das quais pode-se dizer, em regra, como se diz das fortunas feitas no
jogo, que não medram nem dão felicidade. É além disso o viveiro político,
porque abriga todos os pobres inteligentes, todos os que tem ambição e capacidade,
mas não tem meios, e que são a grande maioria dos nossos homens de merecimento.
Faça-se uma lista dos nossos estadistas pobres, de primeira e de segunda ordem,
que resolveram o seu problema individual pelo casamento rico, isto é, na maior
parte dos casos, tornando-se humildes clientes da escravidão; e outra dos que o
resolveram pela acumulação de cargos públicos, e ter-se-ão, nessas duas listas,
os nomes de quase todos eles. Isso significa que o país está fechado em todas
as direções; que muitas avenidas que poderiam oferecer um meio de vida a homens
de talento, mas sem qualidades mercantis, como a literatura, a ciência, a
imprensa, o magistério, não passam ainda de vielas, e outras, em que homens
práticos, de tendências industriais, poderiam prosperar, são por falta de
crédito, ou pela estreiteza do comércio, ou pela estrutura rudimentar da nossa
vida econômica, outras tantas portas muradas.
Nessas condições
oferecem-se ao brasileiro que começa diversos caminhos, os quais conduzem todos
ao emprego público. As profissões chamadas independentes, mas que dependem em
grande escala do favor da escravidão, como a advocacia, a medicina, a
engenharia, têm pontos de contato importantes com o funcionalismo, como sejam
os cargos políticos, as academias, as obras públicas. Alem desses, que recolhem
por assim dizer as migalhas do orçamento, há outros, negociantes, capitalistas,
indivíduos inclassificáveis, que querem contratos, subvenções do Estado,
garantias de juro, empreitadas de obras, fornecimentos públicos.
A classe dos que
assim vivem com os olhos voltados para a munificência do governo é extremamente
numerosa, e diretamente filha da escravidão, porque ele não consente outra
carreira aos brasileiros, havendo abarcado a terra, degradado o trabalho,
corrompido o sentimento de altivez pessoal em desprezo por quem trabalha em
posição inferior a outro, ou não faz trabalhar. Como a necessidade é
irresistível, essa fome de emprego público determina uma progressão constante
do nosso orçamento, que a nação, não podendo pagar com a sua renda, paga com o
próprio capital necessário à sua subsistência e que, mesmo assim, só é afinal
equilibrado por novas dívidas.
Além de ser
artificial e prematuro, o atual desenvolvimento da classe dos remunerados pelo
Tesouro, sendo, como é a cifra da despesa nacional, superior às nossas forças,
a escravidão, fechando todas as outras avenidas, como vimos, da indústria, do
comércio, da ciência, das letras, criou em torno desse exército ativo uma
reserva de pretendentes, cujo número realmente não se pode contar, e que, com
exceção dos que estão consumindo, ociosamente, as fortunas que herdaram e dos
que estão explorando a escravidão com alma do proprietário de homens, pode
calcular-se, quase exatamente, pelo recenseamento dos que sabem ler e escrever.
Num tempo em que o servilismo e a adulação são a escala pela qual se sobe, e a
independência e o caráter a escada pela qual se desce; em que a inveja é uma
paixão dominante; em que não há outras regras de promoção, nem provas de
suficiência, senão o empenho do patronato; quando ninguém, que não se faça
lembrar, é chamado para coisa alguma, e a injustiça é ressentida apenas pelo
próprio ofendido: os empregados públicos são os servos da gleba do governo;
vivem com suas famílias em terras do Estado, sujeitos a uma evicção sem aviso,
que equivale à fome, numa dependência da qual só para os fortes não resulta a
quebra do caráter. Em cada um dos sintomas característicos da séria hipertrofia
do funcionalismo, como ela se apresenta no Brasil, quem tenha estudado a
escravidão reconhece logo um dos seus efeitos. Podemos nós, porém, ter a
consolação de que abatendo as diversas profissões, reduzindo a nação ao
proletariado, a escravidão todavia conseguiu fazer do senhores, da lavoura, uma classe superior, pelo menos
rica, e, mais do que isso, educada, patriótica, digna de representar o país
intelectual e moralmente.
Quanto à
riqueza, já vimos que a escravidão arruinou uma geração de agricultores, que
ela mesma substituiu pelos que lhes forneciam os escravos. De 1853 a 1857,
quando se deviam estar liquidando as obrigações do tráfico, a dívida
hipotecária da Corte e província do Rio de Janeiro subia a sessenta e sete mil
contos. A atual geração não tem sido mais feliz. Grande parte dos seus lucros
foram convertidos em carne humana, a alto preço, e, se hoje uma epidemia
devastasse os canaviais, o capital que a lavoura toda do Império poderia apurar
para novas culturas havia de espantar os que a reputam florescente. Além disso,
há quinze anos que não se fala senão em auxílios
à lavoura. Tem a data de 1868 um opúsculo do sr. Quintino Bocaiúva, A crise da lavoura, em que esse
notável jornalista escrevia:
A lavoura não se pode restaurar senão pelo efeito
simultâneo de dois socorros que não podem mais ser demorados - o da instituição
do crédito agrícola e o da aquisição e braços produtores.
O primeiro
socorro era “uma vasta emissão” sobre a propriedade predial do Império, que
assim seria convertida em moeda corrente; o segundo era a colonização chinesa.
Há quinze anos
que se nos descreve de todos os lados a lavoura como estando em crise, necessitando de auxílio, agonizante, em bancarrota
próxima. O Estado é, todos os dias, denunciado por não fazer empréstimos e
aumentar os impostos para habilitar os fazendeiros a comprar ainda mais
escravos. Em 1875 uma lei, a de 6 de novembro, autorizou o governo a dar a
garantia nacional ao banco estrangeiro - nenhum outro poderia emitir na Europa
- que emprestasse dinheiro à lavoura mais barato do que o mercado monetário
interno. Para terem fábricas centrais de açúcar, e melhorarem o seu produto, os
senhores de engenho precisaram que a nação as levantasse sob sua
responsabilidade. O mesmo tem-se pedido para o café. Assim como dinheiro a juro
barato e engenhos centrais, a chamada grande
propriedade exige fretes de estrada de ferro à sua conveniência,
exposições oficiais de café, dispensa de todo e qualquer imposto direto,
imigração asiática, e uma lei de localização de serviços que faça do colono,
alemão, ou inglês, ou italiano, um escravo branco. Mesmo a população nacional
tem que ser sujeita a um novo recrutamento agrícola, (3) para
satisfazer diversos Clubs, e,
mais que tudo, o câmbio, por uma falência econômica, tem que ser conservado tão
baixo quanto possível, para o café, que é pago em ouro, valer mais papel.
Também a
horrível usura de que é vítima a lavoura em diversas províncias, sobretudo no
Norte, é a melhor prova do mau sistema que a escravidão fundou, e do qual duas
características principais - a extravagância e o provisório - são incompatíveis com o crédito agrícola que ela
reclama. “A taxa dos juros dos empréstimos à lavoura pelos seus
correspondentes” é o extrato oficial das informações prestada pelas
presidências de províncias em 1874, “regula em algumas províncias de 7 a 17%; em
outras sobre de 18 a 24%”, e “há exemplo de se cobrar de 48 a 72% anualmente!”
Como não se pretende que a lavoura renda mais de 10%, e toda ela precisa de
capitais a juro, essa taxa quer simplesmente dizer - a bancarrota. Não é, por
certo, essa a classe que se pode descrever em estado próspero e florescente, e
que se pode chamar rica.
Quanto às suas
funções sociais, uma aristocracia territorial pode servir ao país de diversos
modos: melhorando e desenvolvendo o bem estar da população que a cerca e o
aspecto do país em que estão encravados os seus estabelecimentos; tomando a
direção do progresso nacional; cultivando, ou protegendo, as letras e as artes;
servindo no exército e na armada, ou distinguindo-se nas diversas carreiras;
encarnando o que há de bom no caráter nacional, ou as qualidades superiores do
país, o que mereça ser conservado como tradição. Já vimos o que a nossa lavoura
conseguiu em cada um desses sentidos, quando notamos o que a escravidão
administrada por ela há feito do território e do povo, dos senhores e dos
escravos. Desde que a classe única, em proveito da qual ela foi criada e
existe, não é a aristocracia do dinheiro, nem a do nascimento, que papel
permanente desempenha no Estado uma aristocracia heterogênea e que nem mesmo
mantém a sua identidade por duas gerações?
Se, das diversas
classes, passamos às forças sociais, vemos que a escravidão ou as apropriou aos
seus interesses, quando transigentes, ou fez em torno delas o vácuo, quando
inimigas, ou lhes impediu a formação, quando incompatíveis.
Entre as que se
identificaram, desde o princípio, com ela, tornando-se um dos instrumentos da
suas pretensões, está, por exemplo, a Igreja. No regime da escravidão
doméstica, o cristianismo cruzou-se com o fetichismo, como se cruzaram as duas
raças. Pela influência da ama-de-leite e dos escravos de casa sobre a educação
da criança, os terrores materialistas do fetichista convertido, isto é, que
mudou de inferno, exercem, sobre a fortificação do cérebro e a coragem da alma
daquelas, a maior depressão. O que resulta como fé, e sistema religioso, dessa
combinação das tradições africanas como o ideal anti-social do missionário
fanático, é um composto de contradições, que só a inconsciência pode conciliar.
Como a religião, a Igreja.
Nem os bispos,
nem os vigários, nem os confessores, estranham o mercado de entes humanos; as
bulas que o condenam são hoje obsoletas. Dois dos nossos prelados foram
sentenciados a prisão com trabalho, pela guerra que moveram à Maçonaria; nenhum
deles, porém, aceitou ainda a responsabilidade de descontentar a escravidão.
Compreende-se que os exemplos dos profetas, penetrando no palácio dos reis de
Judá para exprobar-lhes os seus crimes, e os sofrimentos dos antigos mártires
pela verdade moral, pareçam aos que representam a religião entre nós
originalidades tão absurdas como a de São Simeão Estelita vivendo no tope de
uma coluna para estar mais perto de Deus. mas, se o regime da côngrua e dos
emolumentos, mais do que isso, das honras oficiais e do bem estar, não consente
esses rasgos de heroísmo religioso, hoje próprios, tão somente, de um faquir do
Himalaia, apesar desse resfriamento glacial de uma parte da alma outrora
incandescente, a escravidão e o Evangelho deviam mesmo hoje ter vergonha de se
encontrarem na casa de Jesus e de terem o mesmo sacerdócio.
Nem quanto aos
casamentos dos escravos, nem por sua educação moral, tem a Igreja feito coisa
alguma. Os monges de São Bento forraram seus escravos, e isso produziu entre os
panegiristas dos conventos uma explosão de entusiasmo. Quando mosteiros possuem
rebanhos humanos, quem conhece a história das fundações monásticas, os votos
dos noviços, o desinteresse das suas aspirações, a sua abnegação pelo mundo, só
pode admirar-se de que esperem reconhecimento e gratidão por terem deixado de tratar
homens como animais, e de explorar mulheres como máquinas de produção.
Se
em relação ás pessoas livres mesmo - oficiou em 1864 ao governo o cura da
freguesia do Sacramento da Corte - se observa o abandono, a indiferença atinge
o escândalo em relação aos escravos. Poucos senhores cuidam em proporcionar aos
seus escravos em vida os socorros espirituais; raros são aqueles que cumprem
com o caridoso dever de lhes dar os derradeiros sufrágios da Igreja. (4)
Grande número de
padres possuem escravos, sem que o celibato clerical o proíba. Esse contato, ou
antes contágio, da escravidão, deu à religião, ente nós, o caráter materialista
que ela tem, destruiu-lhe a face ideal, e tirou-lhe toda a possibilidade de
desempenhar na vida social do país o papel de uma força consciente.
Tome-se outro
elemento de conservação que também foi apropriado dessa forma, o patriotismo. O
trabalho todo dos escravagistas consistiu sempre em identificar o Brasil com a
escravidão. Quem a ataca é logo suspeito de conivência com o estrangeiro, de
inimigo das instituições do seu próprio país. Antônio Carlos foi acusado nesse
interesse de não ser brasileiro. Atacar a monarquia, sendo o país monárquico, a
religião sendo o país católico, é lícito a todos; atacar, porém, a escravidão,
é traição nacional e felonia. Nos Estados Unidos, “a instituição particular”
por tal forma criou em sua defesa essa confusão, entre si e o país, que pôde
levantar uma bandeira sua contra a de Washington, e produzir, numa loucura
transitória, um patriotismo separatista desde que se sentiu ameaçada de cair
deixando a pátria de pé. Mas, como com todos os elementos morais que avassalou,
a escravidão ao conquistar o patriotismo brasileiro fê-lo degenerar. A guerra
do Paraguai é a melhor prova do que ela fez ao patriotismo das classes que a
praticavam, e do patriotismo dos senhores. Muito pouco desses deixaram os seus
escravos para atender ao seu país; muitos alforriaram alguns “negros” para
serem eles feitos titulares do Império. Foi nas camadas mais necessitadas da população
descendente de escravos na maior parte, nessas mesmas que a escravidão condena
à dependência e à miséria, entre os proletário analfabetos cuja emancipação
política ela adiou indefinidamente, que se sentiu bater o coração de uma nova
pátria. Foram elas que produziram os soldados dos batalhões de voluntários. Com
a escravidão, disse José Bonifácio em 1825, “nunca o Brasil formará, como
imperiosamente o deve, um exército brioso e uma marinha florescente”, e isso
porque com a escravidão, não há patriotismo nacional, mas somente patriotismo
de casta, ou de raça; isto é, um sentimento que serve para unir todos os
membros da sociedade, é explorado para o fim de dividi-los. Para que o
patriotismo se purifique, é preciso que a imensa massa da população livre, mantida
em estado de subserviência pela escravidão, atravesse, pelo sentimento da
independência pessoal, pela convicção da sua força e do seu poder, o longo
estádio que separa o simples nacional - que hipoteca tacitamente, por amor, a
sua vida à defesa voluntária da integridade material e da soberania externa da
pátria - do cidadão que quer ser uma unidade ativa e pensante na comunhão a que
pertence.
Entre as forças
em torno de cujo centro de ação o escravagismo fez o vácuo, por lhe serem
contrárias, forças de progresso e transformação, está novamente a imprensa, não
só o jornal, mas também o livro, tudo que diz respeito à educação. Por honra do
nosso jornalismo, a imprensa tem sido a grande arma de combate contra a
escravidão e o instrumento da propagação das idéias novas; os esforços tentados
para a criação de um órgão negro
naufragaram sempre. Ou se insinue timidamente, ou se afirme com energia, o
pensamento dominante no jornalismo todo, de Norte ao Sul, é a emancipação. Mas,
para fazer o vácuo em torno do jornal e do livro, e de tudo que pudesse
amadurecer antes do tempo a consciência do abolicionista, a escravidão por
instinto procedeu repelindo a escola, a instrução pública, e mantendo o país na
ignorância e escuridão, que é o meio em que ela pode prosperar. A senzala e a
escola são pólos que se repelem.
O que é a
educação nacional num regime interessado na ignorância de todos, o seguinte
trecho do notável parecer do sr. Rui Barbosa, relator da Comissão de Instrução
Pública da Câmara dos Deputados, o mostra bem:
A
verdade - e a vossa Comissão quer ser muito explícita a seu respeito, desagrade
a quem desagradar - é que o ensino público está à orla do limite possível a uma
nação que se presume livre e civilizada; é que há decadência em vez de
progresso; é que somos um povo de analfabetos, e que a massa deles, se
decresce, é numa proporção desesperadamente lenta; é que a instrução acadêmica
está infinitamente longe do nível científico desta idade; é que a instrução
secundária oferece ao ensino superior uma mocidade cada vez menos preparada
para o receber; é que a instrução popular, na Corte como nas províncias, não
passa de um desideratum.
Aí está o
efeito, sem aparecer a causa, como em todos os inúmeros casos em que os
efeitos da escravidão são apontados entre nós. Um lavrador fluminense, por
exemplo, o sr. Paes Leme, foi em 1876 aos Estados Unidos comissionado pelo
nosso governo. Escreveu relatórios sobre o que viu e observou na América do
Norte, pronunciou discursos na Assembléia Provincial do Rio de Janeiro, que são
ainda o resultado daquela viagem, e nunca lhe ocorreu nos diferentes paralelos
que fez entre o Estado do Brasil e o da grande República, atribuir à escravidão
um parte sequer do nosso atraso. O mesmo dá-se com toda a literatura
política. liberal ou republicana, em que um fator da ordem da escravidão figura
como um órgão rudimentar e inerte.
Entre as forças
cuja aparição ela impediu está a opinião pública, a consciência de um destino
nacional. Não há, com a escravidão, essa força poderosa chamada opinião
pública, ao mesmo tempo alavanca e o ponto de apoio das individualidades que
representam o que há de mais adiantado no país. A escravidão, como é
incompatível com a imigração espontânea, também não consente o influxo das
idéias novas. Incapaz de invenção, ela é, igualmente, refratária ao progresso.
Não é dessa opinião pública que sustentou os negreiros contra os Andradas, isto
é, da soma dos interesses coligados que se trata, porque essa é uma força bruta
e inconsciente como a do número por si só. Duzentos piratas valem tanto quanto
um pirata, e não ficarão valendo mais se os cercarem da população toda que eles
enriquecem e da que eles devastam. A opinião pública, de que falo, é
propriamente a consciência nacional, esclarecida, moralizada, honesta, e
patriótica; essa é impossível com a escravidão, e desde que apareça, esta trata
de destruí-la.
É por não haver
entre nós essa força de transformação social que a política é a triste e
degradante luta por ordenados, que nós presenciamos; nenhum homem vale nada,
porque nenhum é sustentado pelo país. O presidente do Conselho vive à mercê da
Coroa, de quem deriva a sua força, e só tem aparência do poder quando se o
julga um lugar tenente do imperador e se acredita que ele tem no bolso o
decreto de dissolução, isto é, o direito de eleger uma câmara de apaniguados
seus. Os ministros vivem logo abaixo, à mercê do presidente do Conselho, e os
deputados no terceiro plano, à mercê dos ministros. O sistema representativo é,
assim, um enxerto de formas parlamentares num governo patriarcal, e senadores e
deputados só tomam a sério o papel que lhes cabe nessa paródia da democracia
pelas vantagens que auferem. Suprima-se o subsídio, e forcem-nos a não se
servirem de sua posição para fins pessoais e de família, e nenhum homem que
tenha o que fazer se prestará a perder o seu tempo em tais skiamaxiai, em combates com sombras,
para tomar uma comparação com Cícero.
Ministros, sem
apoio na opinião, que ao serem despedidos caem no vácuo; presidentes do
Conselho que vivem, noite e dia, a perscrutar o pensamento esotérico do
imperador; uma Câmara cônscia da sua nulidade e que só pede tolerância; um
Senado que se reduz a um ser pritaneu; partidos que são apenas sociedades
cooperativas de colocação ou de seguro contra a miséria. Todas essas aparências
de um governo livre são preservadas por orgulho nacional, como foi a dignidade
consular no Império Romano; mas, no fundo, o que temos é um governo de uma
simplicidade primitiva, em que as responsabilidades se dividem ao infinito, e o
poder está concentrado nas mãos de um só. Este é o chefe do Estado. Quando
alguém parece ter força própria, autoridade efetiva, prestígio individual, é
porque lhe acontece, nesse momento, estar exposto à luz do trono: desde que der
um passo, ou à direita ou à esquerda, e sair daquela réstia, ninguém mais o
divisará no escuro.
Foi a isso que a
escravidão, como causa infalível de corrupção social, e pelo seu terrível
contágio, reduziu a nossa política. O povo como que sente um prazer cruel em
escolher o pior, isto é, em rebaixar-se a si mesmo, por ter consciência de que
é uma multidão heterogênea, sem disciplina a que se sujeite, sem fim que se
proponha. A municipalidade da Corte, do centro da vida atual da nação toda, foi
sempre eleita por esse princípio. Os capangas
no interior, e nas cidades os capoeiras,
que também têm a sua flor, fizeram até ontem das nossas eleições o jubileu do
crime. A faca de ponta e a navalha, exceto quando a baioneta usurpava essas
funções, tinham sempre a maioria nas urnas. Com a eleição direta, tudo isso
desapareceu na perturbação do primeiro momento, porque houve um ministro de
vontade, que disse aspirar à honra de ser derrotado nas eleições. O sr.
Saraiva, porém, já foi canonizado pela sua abnegação; já tivemos bastante
ministros-mártires para formar o hagiológico da reforma, e ficou provado que
nem mesmo é preciso a candidatura oficial para eleger câmaras governistas. A
máquina eleitoral é automática, e, por mais que mudem a lei, o resultado há de
ser o mesmo. O capoeira conhece
o seu valor, sabe que não passam tão depressa como se acredita os dias de
Clódio, e em breve a eleição direta será o que foi a indireta: a mesma orgia
desenfreada a que nenhum homem decente devera, sequer, assistir.
Autônomo, só há
um poder entre nós, o poder irresponsável; só esse tem a certeza do dia
seguinte; só esse representa a permanência da tradição nacional. Os ministros
não são mais que as encarnações secundárias, e às vezes grotescas, dessa
entidade superior. Olhando em torno de si, o imperador não encontra uma só
individualidade que limite a sua, uma vontade individual ou coletiva, a que ele
se deva sujeitar: nesse sentido ele é absoluto como o czar e o sultão, ainda
que se veja no centro de um governo moderno e provido de todos os órgãos
superiores, como o parlamento, que não tem a Rússia nem a Turquia, a supremacia
parlamentar, que não tem a Alemanha, a liberdade absoluta da imprensa, que
muitos poucos países conhecem. Quer isso dizer, em vez de soberano absoluto, o
imperador deve antes ser chamado o primeiro-ministro permanente do Brasil. Ele
não comparece perante as Câmaras, deixa grande latitude, sobretudo em matéria
de finanças e legislação, ao gabinete; mas nem um só dia perde de vista a
marcha da administração, nem deixa de ser o árbitro dos seus ministros.
Esse chamado governo pessoal é explicado pela
teoria absurda de que o imperador corrompeu um povo inteiro; desmoralizou por
meio de tentações supremas, à moda de Satanás, a honestidade dos nossos
políticos; desvirtuou, intencionalmente partidos que nunca tiveram idéias e
princípios, senão como capital de exploração. A verdade é que esse governo é o
resultado, imediato , da prática da escravidão pelo país. Um povo que se
habitua a ela não dá valor à liberdade, nem aprende a governar-se a si mesmo.
Daí a abdicação geral das funções cívicas. o indiferentismo político, o desamor
pelo exercício obscuro e anônimo da responsabilidade pessoal, sem a qual nenhum
povo é livre, porque um povo livre é somente um agregado de unidades livres:
causas que deram em resultado a supremacia do elemento permanente e perpétuo,
isto é, a Monarquia. O imperador não tem culpa, exceto, talvez, por não ter
reagido contra essa abdicação nacional, de ser tão poderoso como é, tão
poderoso que nenhuma delegação da sua autoridade, atualmente, conseguiria criar
no país uma força maior que a Coroa.
Mas, por isso
mesmo, Dom Pedro II será julgado pela História como o principal responsável
pelo seu longo reinado; tendo sido o seu próprio valido durante quarenta e três
anos, ele nunca admitiu presidentes do Conselho superiores à sua influência e,
de fato, nunca deixou o leme (com relação a certos homens que ocuparam aquela
posição, foi talvez melhor para eles mesmos, o serem objetos desse liberum veto). Não é assim, como
soberano constitucional, que o futuro há de considerar o imperador, mas como
estadista; ele é um Luís Felipe, e não uma rainha Vitória - e ao estadista hão
de ser tomadas estreitas contas da existência da escravidão, ilegal e
criminosa, depois de um reinado de quase meio século. O Brasil despendeu mais
de seiscentos mil contos em uma guerra politicamente desastrosa, e só tem
despendido, até hoje, nove mil contos em emancipar os seus escravos: tem um
orçamento seis vezes apenas menor do que a Inglaterra, e desse orçamento menos
de um por cento é empregado em promover a emancipação.
Qualquer, porém,
que seja, quanto à escravidão, a responsabilidade pessoal do imperador, não há
dúvida de que a soma do poder que foi acrescendo à sua prerrogativa foi uma
aluvião devida àquela causa perene. No meio da dispersão das energias
individuais e das rivalidades dos que podem servir à pátria, levanta-se,
dominado as tendas dos agiotas políticos e os antros dos gladiadores
eleitorais, que cercam o nosso Forum,
a estátua do imperador, símbolo do único poder nacional independente e forte.
Mas em toda essa
dissolução social, na qual impera o mais ávido materialismo, e os homens
de bem e patriotas estão descrentes e tudo e de todos, quem não vê a forma
colossal da raça maldita, sacudindo os ferros dos seus pulsos, espalhando sobre
o país as gotas do seu sangue? Essa é a vingança da raça negra. Não importa que
tantos dos seus filhos espúrios tenham exercido sobre irmãos o mesmo jugo, e se
tenham associado como cúmplices aos destinos da instituição homicida, a
escravidão na América é sempre o crime da raça branca, elemento predominante da
civilização nacional, e esse miserável estado, a que se vê reduzida a sociedade
brasileira, não é senão o cortejo da Nêmesis africana que visita, por fim, o túmulo
de tantas gerações.
Notas
1. Congresso Agrícola do Recife, p.
323-324, observações do sr. A. Vitor de Sá Barreto.
2. A
seguinte distribuição dos eleitores do Município Neutro em 1881 mostra bem qual
é a representação de operários que temos. Dos 5.928 eleitores que representavam
a capital do país, havia 2.211 empregados públicos, civis ou militares, 1.076
negociantes ou empregados do comércio, 516 proprietários, 398 médicos, 211
advogados, 207 engenheiros, 179 professores, 145 farmacêuticos, 236 artistas, dividindo-se o resto por
diversas profissões, como clérigos (76), guarda-livros (58), despachantes (56),
solicitadores (27), etc. Esses algarismos dispensam qualquer comentário.
3. O Club da Lavoura e Comércio de
Taubaté, por exemplo, incumbiu uma comissão de estudar a lei de locação de
serviços, e o resultado desse estudo foi um projeto cujo primeiro artigo
obrigava a contratação de serviços todo o nacional de doze anos para cima que fosse encontrado sem ocupação honesta.
Esse nacional teria a escolha de ser recrutado
para o exército, ou de contratar seus serviços com algum lavrador de sua aceitação. O art. 6º
dispunha: “O locador que bem cumprir seu contrato durante os cinco anos terá
direito, afinal, a um prêmio pecuniário que não excederá os 500$000. Parágrafo
1º. Este prêmio será pago pelo governo em dinheiro ou em apólice da dívida
pública”. A escravidão tem engendrado tanta extravagância que não sei dizer se
essa é a maior de todas. Mas assim como Valença se obstina em ser a Esparta, a
Corte a Delos, a Bahia a Corinto, dir-se-á, à vista desse prêmio de 500$, que
se quer fazer de Taubaté, que J. M. de Macedo nos descreve como “antiga,
histórica e orgulhosa do seu passado” - a Beócia, da escravidão.
4. Consultas
do Conselho de Estado sobre Negócios Eclesiásticos. Consulta de 18 junho de
1864
XVI -
NECESSIDADE DA ABOLIÇÃO
PERIGO DA DEMORA
“Se os seus (do
Brasil) dotes morais e intelectuais crescerem em harmonia com a sua admirável
beleza e riqueza natural, o mundo não terá visto uma terra mais bela. Atualmente
há diversos obstáculos a este progresso; obstáculos que atuam como uma doença
moral sobre o seu povo. A escravidão ainda existe no meio dele”.
Agassiz
Mas
- dir-se-á - se a escravidão é
como acabamos de ver uma influência que afeta todas as classes; o molde em que
se está fundindo, há séculos, a população toda: em primeiro lugar, que força
existe fora dela que possa destruí-la tão depressa como quereis sem, ao mesmo
tempo, dissolver a sociedade que é, segundo vimos, um composto de
elementos heterogêneos do qual ela é a finidade química? Em segundo
lugar, tratando-se de um interesse de tamanha importância, de que dependem tão
avultado número de pessoas e a produção nacional - a qual sustenta a fábrica e
o estabelecimento do Estado, por mais artificiais que proveis serem as suas
proporções atuais - e quando não contestais, nem podeis contestar, que a
escravidão esteja condenada a desaparecer num período que pelo progresso moral
contínuo do país nunca poderá exceder de vinte anos; por que não esperais que o
fim de uma instituição, que já durou em vosso país mais de trezentos anos, se
consuma naturalmente, sem sacrifício da fortuna pública nem das fortunas
privadas, sem antagonismo de raças ou classes, sem uma só das ruínas que em
outros países acompanharam a emancipação forçada dos escravos?
Deixo para o
seguinte capítulo a resposta à primeira questão. Aí mostrarei que, apesar de
toda a influência retardativa da escravidão, há dentro do país forças morais
capazes de suprimi-las como posse de homens, assim como não há, por enquanto -
e a primeira necessidade do país é criá-las -, forças capazes de eliminá-la
como principal elemento da nossa constituição. Neste capítulo respondo
tão-somente à objeção, politicamente falando formidável, de impaciência, de cegueira
para os interesses da classe de proprietários de escravos, tão brasileiros,
pelo menos, como estes, para as dificuldades econômicas de um problema - a
saber, se a escravidão deve continuar indefinidamente - que, no ponto de vista
humanitário ou patriótico, o Brasil todo já resolveu pela mais solene e
convencida afirmativa.
Essas
impugnações têm tanto mais peso, para mim, quanto - e por todo este livro se
terá visto - eu não acredito que a escravidão deixe atuar, como até hoje, sobre
o nosso país quando os escravos forem todos emancipados. A lista de subscrição,
que resulta na soma necessária para a alforria de um escravo, dá um cidadão mais ao rol dos brasileiros;
mas é preciso muito mais do que as esmolas dos compassivos, ou a generosidade
do senhor para fazer desse novo cidadão uma unidade, digna de concorrer, ainda
mesmo infinitesimalmente, para a formação de uma nacionalidade americana. Da
mesma forma com o senhor. Ele pode alforriar os seus escravos, com sacrifício
dos seus interesses materiais, ainda que sempre em benefício da educação dos
seus filhos, quebrando assim o último vínculo aparente, ou de que tenha
consciência, das relações em que se achava para com a escravidão; mas, somente
por isso, o espírito não deixará de incapacitá-lo para cidadão de um país
livre, e para exercer as virtudes que tornam as nações mais poderosas pela
liberdade individual do que pelo despotismo.
Em um e outro
caso, é preciso mais do que a cessação do sofrimento, ou da inflição do
cativeiro, para converter o escravo e o senhor em homens animados do espírito
de tolerância, de adesão aos princípios de justiça, quando mesmo sejam contra
nós, de progresso e de subordinação individual aos interesses da pátria, sem os
quais nenhuma sociedade nacional existe senão no grau de molusco, isto é, sem
vértebras nem individualização.
Os que olham
para os três séculos e meio de escravidão que temos no passado e medem o largo
período necessário para apagar-lhe os últimos vestígios, não consideram, pelo
menos, à primeira vista, de cumprimento intolerável o espaço de vinte ou trinta
anos que ainda lhe reste de usufruto. Abstraindo-se da sorte individual dos
escravos e tendo em vista tão-somente o interesse geral da comunhão - não se
deve, com efeito, exigir que atendamos ao interesse particular dos
proprietários, que são uma classe social muito menos numerosa do que os
escravos, mais do que ao interesse dos escravos somado com o interesse da nação
toda - não será o prazo de vinte anos curto o bastante para que não procuremos
abreviá-lo mais, comprometendo o que de outra forma se salvaria?
“Vós dizeis que
sois políticos - acrescentarei complementando o argumento sério e refletido dos
homens tão inimigos como eu da escravidão, mas que se recusam a desmoroná-la de
uma só vez, supondo que esse, a não ser o papel de um Erostrato, seria o de um
Sansão inconsciente - dizeis que não encarais a escravidão principalmente do
ponto de vista do escravo, ainda que tenhais feito causa comum com ele para
melhor moverdes a generosidade do país; mas, sim do ponto de vista nacional,
considerando que a pátria deve proteção igual a todos os seus filhos e não pode
enjeitar nenhum. Pois bem, como homens políticos, que entregais a vossa defesa
ao futuro, e estais prontos a provar que não quereis destruir ou empecer o
progresso do país, nem desorganizar o trabalho, ainda mesmo por sentimentos de
justiça e humanidade, não vos parece que cumprireis melhor o vosso dever para
com os escravos, para com os senhores - os quais têm pelo menos direito à vossa
indulgência pelas relações que o próprio abolicionismo, de uma forma ou outra,
pela hereditariedade nacional comum, tem com a escravidão, - e finalmente para
com a nação toda, se em vez de propordes medidas legislativas que irritam os
senhores e que não serão adotadas, estes não querendo; em vez de quererdes
proteger os escravos pela justiça pública e arrancá-los do poder dos seus
donos; começásseis por verificar até onde e de que forma estes, pelo menos na
sua porção sensata e, politicamente falando, pensante, estão dispostos a
concorrer para a obra que hoje é confessadamente nacional - da emancipação? Não
seríeis mais políticos, oportunistas, e práticos, e, portanto, muito mais úteis
aos próprios escravos, se em vez de vos inutilizardes como propagandistas e
agitadores, correndo de risco de despertar, o que não quereis por certo, entre
escravos e senhores. entre senhores e abolicionistas, sentimentos contrários à
harmonia das diversas classes - que mesmo na escravidão é um dos títulos de
honra do nosso país - vos associásseis, como brasileiros, à obra pacífica da
liquidação desse regime?”
Cada uma dessas
observações, e muitas outras semelhantes, eu as discuti seriamente comigo
mesmo, antes de queimar os meus navios, e cheguei, de boa fé e contra mim
próprio, à convicção de que deixar à escravidão o prazo de vida que ela tem
pela lei de 28 de setembro, seria abandonar o Brasil todo a contingência das
mais terríveis catástrofes; e por outro lado, de que nada se havia de conseguir
para limitar de modo sensível aquele prazo senão pela agitação abolicionista,
isto é, procurando-se concentrar a atenção do país no que tem de horrível,
injusto e fatal ao seu desenvolvimento, uma instituição com a qual ele se
familiarizou e confundiu, a ponto de não poder mais vê-la objetivamente.
Há três anos que
o país está sendo agitado, como nunca havia sido antes, em nome da abolição, e
os resultados dessa propaganda ativa e patriótica têm sido tais que hoje
ninguém mais dá à escravatura a duração que ela prometia ter quando, em 1878, o
sr. Sinimbu reuniu o Congresso Agrícola, essa Arca de Noé, em que devia
salvar-se a “grande propriedade”.
Pela lei de 28
de setembro de 1871, a escravidão tem por limite a vida do escravo nascido na
véspera da lei. Mas essas águas mesmas não estão ainda estagnadas, porque a
fonte do nascimento não foi cortada, e todos os anos as mulheres escravas dão
milhares de escravos por vinte e um
anos aos seus senhores. Por uma ficção de direito, eles nascem livres, mas, de fato, valem por lei aos oito anos de idade 600$, cada um.
A escrava nascida a 27 de setembro de 1871 pode ser mãe em 1911 de um desses
ingênuos que assim ficaria em cativeiro provisório até 1932. Essa é a lei, e o
período de escravidão que ela ainda permite.
O ilustre homem
de Estado que a fez votar, se hoje fosse vivo, seria o primeiro a reconhecer
que esse horizonte de meio século aberto ainda à propriedade escrava é um
absurdo, e nunca foi o pensamento íntimo do legislador. O visconde do Rio
Branco, antes de morrer, havia já recolhido como sua recompensa a melhor parte
do reconhecimento dos escravos: a gratidão das mães. Esse é um hino à sua
memória que a posteridade nacional há de ouvir, desprendendo-se como uma nota
suave e límpida do delírio de lágrimas e soluços do vasto coro trágico. Mas,
por isso mesmo que o visconde de Rio Branco foi o autor daquela lei, ele seria
o primeiro a reconhecer que, pela deslocação das forças sociais produzidas há
treze anos e pela velocidade ultimamente adquirida, depois do torpor de um
decênio, pela idéia abolicionista, a lei de 1871 já deverá ser obsoleta. O que
nós fizemos em 1871 foi o que a Espanha fez em 1870: a nossa lei Rio Branco de
28 de setembro daquele ano é a lei Moret espanhola de 4 de julho deste último;
mas, depois disso a Espanha já teve outra lei - a de 13 de fevereiro de 1880 -
que aboliu a escravidão, desde logo nominalmente, convertendo os escravos em patrocinados, mas de fato depois de
oito anos decorridos, ao passo que nós estamos ainda na primeira lei.
Pela ação do
nosso atual direito, o que a escravatura perde por um lado, adquire por outro.
Ninguém tem a loucura de supor que o Brasil possa guardar a escravidão por mais
vinte anos, qualquer que seja a lei; portanto o serem os ingênuos escravos por
vinte e um anos, e não por toda a vida, não altera o problema que temos diante
de nós: a necessidade de resgatar do cativeiro um milhão e meio de pessoas.
Comentando, este
ano, a redução pela mortalidade e pela alforria da população escrava desde
1873, escreve o Jornal do Commercio:
Dado que naquela data haviam sido matriculados em todo
o Império 500.000 escravos, algarismo muito presumível, é lícito estimar que a
população escrava do Brasil assim como diminuiu de uma sexta parte no Rio de
Janeiro, haja diminuído no resto do Império em proporção pelo menos igual,
donde a existência presumível de 1.250.000 escravos. Esse número pode
entretanto descer por estimativa a 1.200.000 escravos, atentas às causas que
têm atuado em vários pontos do Império para maior proporcionalidade nas
alforrias.
A esses é
preciso somar os ingênuos, cujo número excede de 250 mil. Admitindo-se que
desse milhão e meio de pessoas, que hoje existem, sujeitas à servidão, sessenta
mil saiam dela anualmente, isto é, o dobro da média do decênio, a escravidão
terá desaparecido, com grande remanescente de ingênuos, é certo, a liquidar, em
vinte e cinco anos, isto é em 1908. Admito mesmo que a escravidão desapareça
dora em diante à razão de 75 mil pessoas por ano, ou cinco por cento da massa
total, isto é, com uma velocidade duas vezes e meia maior do que a atual. Por
este cálculo a instituição ter-se-á liquidado em 1903, ou dentro de vinte anos.
Esse cálculo é otimista, e feito sem contar com a lei, mas por honra dos bons
impulsos nacionais eu o aceito como exatos.
“Por
que não esperais esses vinte anos?” é a pergunta que nos fazem. (1)
Este livro todo
é uma resposta àquela pergunta. Vinte anos mais de escravidão, é a morte do
país. Esse período é com efeito curto na história nacional, como por sua vez a
história nacional é um momento na vida da humanidade, e esta um instante no da
Terra, e assim por diante; mas, vinte anos de escravidão quer dizer a ruína de
duas gerações mais: a que pouco entrou na vida civil, e a que for educada por
essa. Isto é o adiamento por meio século da consciência livre do país.
Vinte anos de
escravidão quer dizer o Brasil celebrando em 1892, o quarto centenário do
descobrimento da América, com a sua bandeira coberta de crepe! A ser assim,
toda a atual mocidade estaria condenada a viver com a escravidão, a servi-la
durante a melhor parte da vida, a manter um exército e uma magistratura para
torná-la obrigatória, e, pior talvez do que isso, a ver as crianças que hão de
tomar os seus lugares dentro de vinte anos, educadas na mesma escola que ela. Maxima debetur puero reverentia é um
princípio de que a escravidão escarneceria vendo-o aplicado a simples crias; mas ele deve ter alguma
influência aplicado aos próprios filhos do senhor. (2)
Vinte anos de
escravidão, por outro lado, quer dizer durante todo esse tempo o nome do Brasil
inquinado, unido com o da Turquia, arrastado pela lama da Europa e da América,
objeto de irrisão na Ásia de tradições imemoriais, e na Oceania, três séculos
mais jovem do que nós. Como há de uma nação, assim atada ao pelourinho do
mundo, dar ao seu exército e à sua marinha, que amanhã podem ser empregados em
dominar uma insurreição de escravos, virtudes viris e militares, inspirar-lhes
o respeito da pátria? Como pode ela, igualmente, competir, ao fim desse prazo
de enervação com as nações menores que estão crescendo ao seu lado, a República
Argentina à razão de quarenta mil imigrantes espontâneos e trabalhadores por
ano, e o Chile homogeneamente pelo trabalho livre, com todo o seu organismo
sadio e forte? Manter, por esse período todo, a escravidão como instituição
nacional equivale a dar mais vinte anos para que exerça toda a sua influência
mortal à crença de que o Brasil precisa da escravidão para existir; isso,
quando o Norte, que era considerado a parte do território que não poderia
dispensar o braço escravo, está vivendo sem ele, e a escravidão floresce apenas
em São Paulo que pode pelo seu clima atrair o colono europeu, e com o seu
capital pagar o salário do trabalho que empregue, nacional ou estrangeiro.
Estude-se a ação
sobre o caráter e a índole do povo de uma lei do alcance e da generalidade da
escravidão; veja-se o que é o Estado entre nós, poder coletivo que representa
apenas os interesses de uma pequena minoria e, por isso, envolve-se e intervêm
em tudo o que é da esfera individual, como a proteção à indústria, o emprego da
reserva particular, e por outro lado, abstém-se de tudo o que é da sua esfera,
como a proteção à vida e segurança individual, a garantia da liberdade dos
contratos: por fim, prolongue-se pela imaginação por um tão longo prazo a situação
atual das instituições minadas pela anarquia e apenas sustentadas pelo
servilismo, com que a escravidão substitui, ao liquidar-se respectivamente, o
espírito de liberdade e o de ordem, e diga o brasileiro que ama a sua pátria se
podemos continuar por mais vinte anos com esse regime corruptor e dissolvente.
Se esperar vinte
anos quisesse dizer preparar a transição por meio da educação do escravo;
desenvolver o espírito de cooperação; promover indústrias; melhorar a sorte dos
servos da gleba; repartir com eles a terra que cultivam na forma desse nobre
testamento da condessa do Rio Novo; suspender a venda e a compra de homens;
abolir os castigos corporais e a perseguição privada; fazer nascer a família,
respeitada, apesar da sua condição, honrada em sua pobreza; importar colonos
europeus: o adiamento seria por certo um progresso; mas, tudo isso é
incompatível com a escravidão no seu declínio, na sua bancarrota, porque tudo
isso significaria aumento de despesa, e ela só aspira a reduzir o custo das
máquinas humanas de que se serve e a dobrar-lhes o trabalho.
Dar dez, quinze,
vinte anos ao agricultor para preparar-se para o trabalho livre, isto é,
condená-lo à previsão com tanta antecedência, encarregá-lo de elaborar uma
mudança, é desconhecer a tendência nacional de deixar para o dia seguinte o que
se deve fazer na véspera. Não é prolongando os dias da escravidão que se há de
modificar essa aversão à previdência; mas sim destruindo-a, isto é, criando a
necessidade, que é o verdadeiro molde do caráter.
Tudo o mais
reduz-se a sacrificar um milhão e meio de pessoas ao interesse privado dos seus
proprietários, interesse que vimos ser moralmente e fisicamente homicida, por
maior que seja a inconsciência desses dois predicados, por parte de quem o
explora. Em outras palavras, para que alguns milhares de indivíduos não fiquem
arruinados, para que essa ruína não se consuma, eles precisam não somente do
trabalho, certo e permanente, que o salário lhes pode achar, mas também de que
a sua propriedade humana continue a ser permutável, isto é, a ter valor na
carteira dos bancos e desconto nas praças do comércio. Um milhão e meio e
pessoas tem que ser oferecidas ao Minotauro da escravidão, e nós temos que
alimentá-lo durante vinte anos mais, com o sangue das nossas novas gerações.
Pior ainda do que isso, dez milhões de brasileiros, que, nesse decurso de
tempo, talvez cheguem a ser quatorze, continuarão a suportar os prejuízos
efetivos e os lucros cessantes que a escravidão lhes impõe, e vítimas do mesmo
espírito retardatário que impede o desenvolvimento do país, a elevação das
diversas classes, e conserva a população livre do interior em andrajos, e, mais
triste do que isso, indiferente à sua própria condição moral e social. Que
interesse ou compaixão podem inspirar ao mundo dez milhões de homens que
confessam que, em faltando-lhes o trabalho forçado e gratuito de poucos
centenas de milhares de escravos agrícolas, entre eles velhos, mulheres e
crianças, se deixarão morrer de fome no mais belo, rico e fértil território que
até hoje nação alguma possuiu? Essa mesma atonia do instinto de conservação
pessoal e da energia que ele demanda, não estará mostrando a imperiosa
necessidade de abolir a escravidão sem perda de um momento?
Notas
1 .Há pessoas de
má fé que pretendem que, sem propaganda alguma, pela marcha natural das coisas,
pela moralidade e liberalidade particular uma propriedade que no mínimo excede
em valor a quinhentos mil contos se eliminará espontaneamente da economia
nacional se o Estado não intervier. Há outras pessoas também capazes de
reproduzir a multiplicação dos pães, que esperam que os escravos sejam
resgatados em vinte anos pelo fundo de emancipação cuja renda anual não chega a
dois mil contos.
2. “O resultado
há sido este: em onze anos o Estado não logrou manumitir senão 11.000 escravos,
ou a média anual de 1.000, que equivale aproximadamente a 0,7% sobre o
algarismo médio da população escrava existente no período de 1871 a 1882. É
evidentemente obra mesquinha que não condiz à intensidade do intuito que a
inspirou. Com certeza, ninguém suspeitou em 1871 que, ao cabo de tão largo
período, a humanitária empresa do Estado teria obtido esse minguado fruto”. Jornal do Commercio, artigo editorial
de 28 de setembro de 1882.
XVII - RECEIOS E
CONSEQÜÊNCIAS - CONCLUSÃO
“A história do
mundo, e especialmente a dos Estados desta União, mostra do modo mais
concludente que a prosperidade pública está sempre em uma proporção quase
matemática para o grau de liberdade de que gozam todos os habitantes do
Estado.”
The Wheeling Inteligencer,
parágrafo citado por Olmstead -
A Journey in the Back
Country
Admitida a
urgência da abolição para todos os que não se contentam com o ideal de Java da
América sonhado para o Brasil, e provada a necessidade dessa operação, tanto
quanto pode provar-se em cirurgia a necessidade de amputar a extremidade
gangrenada para salvar o corpo, devemos considerar os receios e as predições
dos adversários da reforma.
Em primeiro
lugar, porém, é preciso examinar se há no país forças capazes de lutar com a
escravidão e de vencê-la. Vemos como ela possui o solo e por esse meio tem ao
seu serviço a população do interior, que se compõe de moradores proletários,
tolerados em terras alheias; sabemos que ela está senhora do capital
disponível, tem à sua mercê o comércio das cidades, do seu lado a propriedade
toda do país, e, por fim, às suas ordens uma clientela formidável de todas as
profissões, advogados, médicos, engenheiros, clérigos, professores, empregados
públicos; além disto, a maior parte das forças sociais constituídas, e
seguramente, dessas todas as que são resistentes e livres, sustentam-na quanto
podem.
Por outro lado,
é sabido que a escravidão, assim defendida, com esse grande exército alistado
sob a sua bandeira, não está disposta a capitular; não está mesmo sitiada,
senão por forças morais, isto é, por forças que, para atuarem, precisam ter um
ponto de apoio dentro dela mesma, em sua própria consciência. Pelo contrário, é
certo que a escravidão se oporá, com a maior tenacidade - e resolvida a não
perder um palmo de terreno por lei - a qualquer tentativa do Estado para
beneficiar os escravos.
Palavras vagas,
promessas mentirosas, declarações inofensivas, tudo isso ela admite: desde,
porém, que se trate de fazer uma lei de pequeno ou grande alcance direto para
aqueles, o chacal há de mostrar as presas a quem penetrar no seu ossário.
Infelizmente
para a escravidão, ao enervar o país todo, ela enervou-se também; ao corromper,
corrompeu-se. Esse exército é uma multidão indisciplinada, heterogênea, ansiosa
por voltar-lhe as costas; essa clientela tem vergonha de viver das suas
migalhas, ou de depender do seu favor; a população que vive nômade em terras de
outrem, no dia em que se lhe abra uma perspectiva de possuir legitimamente a
terra, em que se lhe consente viver como párias, abandonará a sua presente
condição de servos; quanto às diversas forças sociais, o servilismo as tornou
tão fracas, tímidas e irresolutas, que ela serão as primeiras a aplaudir
qualquer renovação que as destrua, para reconstruí-las com outros elementos.
Senhora de tudo e de todos, a escravidão não poderia levantar, em parte alguma
do país, um bando de guerrilhas que um batalhão de linha não bastasse para
dispersar. Habituada ao chicote, ela não pensa em servir-se da espingarda, e,
assim como está resolvida a empregar todos os seus meios de 1871 - os Clubes da
Lavoura, as cartas anônimas, a difamação pela imprensa, os insultos no
Parlamento, as perseguições individuais, - que dão a medida da sua energia
potencial, está também decidida, de antemão, a resignar-se à derrota. O que há
de mais certo, em semelhante campanha, é que dez anos depois, como aconteceu
com a de 1871, os que nela tomarem parte contra a libertação hão de ter
vergonha da distinção que adquiriram, e se hão de por a mendigar o voto daqueles
a quem fizeram o maior mal que um homem pode infligir a outro: o de afundá-lo
na escravidão, a ele ou aos seus filhos, quando um braço generoso luta para
salvá-los.
Por tudo isso, o
poder das escravidão, como ela própria, é uma sombra. Ela, porém, conseguiu
produzir outra sombra, mais forte, resultado, como vimos, da abdicação geral da
função cívica por parte do nosso povo: o governo. O que seja essa força, não se
o pode melhor definir do que o fez, na frase já uma vez citada, o eloqüente
homem de Estado que mediu pessoalmente com o seu olhar de águia o vasto
horizonte desse pico - “o Poder é o Poder”. Isso diz tudo. Do alto dessa
fantasmagoria colossal, dessa evaporação da fraqueza e do entorpecimento do
país, dessa miragem da própria escravidão, no deserto que ela criou, a casa da
fazenda vale tanto quanto a senzala do escravo. Sem dúvida alguma, o
Parlamento, no novo regime eleitoral, está impondo a vontade dos seus pequenos
corrilhos, sobre os quais a lavoura exerce a maior coação: mas, ainda assim, o
governo paira acima das Câmaras, e, quando seja preciso repetir o fenômeno de
1871, as Câmaras hão de se sujeitar, como então fizeram.
Essa é a força
capaz de destruir a escravidão, da qual aliás dimana, ainda que, talvez, venham
a morrer juntas. Essa força, neste momento, está avassalada pelo poder
territorial, mas todos vêem que um dia entrará em luta com ele, e que a luta
será desesperada, quer este peça a abolição imediata, quer peça medidas
indiretas, quer queira suprimir a escravidão de um jato ou, somente fechar o
mercado de escravos.
A opinião
pública, tal qual está se formando, tem influência e ação sobre o governo. Ele
representa o país perante o mundo, concentra em suas mãos a direção de um vasto
todo político, que estaria pronto para receber sem abalo a notícia da
emancipação, se não fossem os distritos de café nas províncias de São Paulo,
Minas e Rio de Janeiro, e assim é sempre impedido pela consciência nacional a
afastar-se cada vez mais da órbita que a escravidão lhe traçou.
Por maior que seja
o poder desta, o seu crédito nos bancos, o valor da sua propriedade, ela está
como o erro dogmático para a verdade demonstrada. Uma onça de ciência vale, por
fim, mais do que uma tonelada de fé. Assim também o mínimo dos sentimentos
nobres da humanidade acaba por destruir o maior de todos os monopólios dirigido
contra ele. Sem atribuir força alguma metafísica aos princípios, quando não há
quem os imponha, ou quando a massa humana, a que nós queremos aplicá-los, lhes
é refratária, não desconto alto demais o caráter, os impulsos, as aspirações da
nação brasileira dizendo que todas as suas simpatias, desprezados os
interesses, são pela liberdade contra a escravidão.
Todavia, é
forçoso reconhece-lo: a atitude relutante da única força capaz de destruir esta
última, isto é, o governo, a medida, insignificante ainda, em que ela é
acessível à opinião, e o progresso lento desta, não nos deixam esperar que se
realiza tão cedo o divórcio. Se não existisse a pressão abolicionista, todavia
ele seria ainda mais demorado. O nosso esforço consiste, pois, em estimular a
opinião, em apelar para a ação que deve exercer, entre todas as classes, a
crença de que a escravidão não avilta somente o nosso país: arruina-o
materialmente. O agente está aí, é conhecido, é o Poder. O meio de produzi-lo
é, também, conhecido: é a opinião pública. O que resta é inspirar a esta
energia precisa, tirá-la do torpor que a inutiliza, mostrar-lhe como a inércia
prolongada é o suicídio.
Vejamos, agora,
os receios que a reforma inspira. Teme-se que a abolição seja a morte da
lavoura, mas a verdade é que não há outro modo de aviventá-la. Há noventa anos,
Noah Webster escreveu num opúsculo acerca dos efeitos da escravidão sobre a
moral e a indústria o seguinte:
A
um cidadão da América parece estranho e admira-lhe que no século XVIII (e a nós
brasileiros quase cem anos depois?) tal questão seja objeto de dúvida em
qualquer parte da Europa; e mais ainda assunto de discussão séria (A questão:
“Se é mais vantajoso para um Estado que o camponês possua terra ou outros
quaisquer bens, e até que limite deve ser admitida essa propriedade no
interesse público?) posta em concurso pela Sociedade Econômica de São
Petersburgo. Entretanto não somente na Rússia e grande parte da Polônia, mas
também na Alemanha e Itália, onde há muito a luz da ciência dissipou a noite da
ignorância gótica, os barões se ofenderiam com a simples idéia de dar liberdade
aos seus camponeses. Esta repugnância deve nascer da suposição de que, se os
libertassem, os seus estabelecimentos sofreriam materialmente; porque o orgulho
só não seria obstáculo ao interesse. Mas isto é um engano fatalíssimo, e
americanos não deverão ser os últimos a convencer-se de que o é; homens livres
não só produzem mais, mas gastam menos do que escravos; não só são mais
trabalhadores, são mais providos também, e
não há um proprietários de escravos na Europa e na América, que não possa
dobrar em poucos anos o valor do seu estabelecimento agrícola, alforriando os
seus escravos e ajudando-os no manejo das suas culturas.(1)
As palavras
finais que eu grifei são tão exatas e verdadeiras hoje como eram quando foram
escritas; tão exatas então como seriam, no fundo, ao tempo em que a Sicília
romana estava coberta de ergástulos e os escravos viviam a mendigar ou a
roubar.
A esse respeito,
a prova mais completa possível é a transformação material e econômica da
lavoura nos estados do Sul, depois da guerra: a agricultura é hoje muitas vezes
mais rica, próspera e florescente, do que no tempo em que a colheita do algodão
representava os salários sonegados à raça negra, e as lágrimas e misérias do
regime bárbaro que se dizia necessário àquele produto. Não é mais rica somente
por produzir maior colheita e dar maior renda; é mais rica porque a
estabilidade é outra, porque as indústrias estão afluindo, as máquinas
multiplicando-se, e a população vai crescendo, em desenvolvimento moral,
intelectual e social desimpedido.
Em data de 1º de
setembro de 1882, escrevia o correspondente do Times em Filadélfia:
No fim da guerra - disse enfaticamente um dos
representantes do Sul na recente Convenção dos Banqueiros em Saratoga - o sul
ficou apenas com terras e dívidas. Contudo o povo começou a trabalhar para
desenvolver as primeiras e libertar-se das segundas, e depois de alguns anos de
inteligente dedicação a esses grandes deveres, ele conseguiu resultados que o
surpreendem tanto, como ao resto do mundo. Assim a abolição da escravidão com a
queda dos sistemas de agricultura que ela sustentava, foi da maior vantagem
para o Sul. Nenhum país do globo passou por uma revolução social mais completa
- e todavia pacífica e quase despercebida - do que os estados do Sul desde
1865. O fim da rebelião encontrou o Sul privado de tudo menos a terra, e
carregado de uma dívida contraída principalmente pelo crédito fundado no valor
da propriedade escrava, No maior estado do Sul - a Geórgia - esse valor subia a
$30,000,000 (60 mil contos). A abolição destruiu a garantia, mas deixou de pé a
dívida, e quando cessaram as hostilidades o Sul estava exaurido, meio faminto e
falido, nacionalmente e individualmente, com os libertos feito senhores, e
induzidos a toda a sorte de excessos políticos pelos brancos sem escrúpulos que
se puseram à frente deles.
Depois
da restauração da paz, o alto preço do algodão incitou os lavradores a cultivá-lo,
quanto possível, e como a nova condição do negro impedia o seu antigo senhor de
dispor do trabalho dele, tornou-se a princípio costume, quase invariável, dos
proprietários arrendarem as plantações aos libertos e procurarem tirar dela o
mesmo rendimento que antes da rebelião, e isso sem trabalho pessoal. Muitos dos
agricultores mudaram-se para as cidades, deixando a administração das suas
terras aos libertos, e uma vez que lhes fosse paga a renda do algodão, não se
importavam com os métodos empregados. Os negros, livres de toda fiscalização,
lavravam imensas áreas, remexendo a flor da terra com pequenos arados, não
empregando adubo, mas deixando o solo descansar, e seguindo do modo mais fácil
os métodos de cultura que aprenderam quando escravos. Desta forma, cedo as
plantações ficaram exaustas na superfície do solo, e os libertos não puderam
mais conseguir colheita bastante, nem para pagar a renda, nem para o seu
próprio sustento. Os proprietários, que viviam na ociosidade, acharam-se assim
com os seus rendimentos suspensos e as suas terras estragadas, ao passo que,
estando o país cheio de estabelecimentos nas mesmas condições, a venda era
quase impossível a qualquer preço. A necessidade, então, forçou-os a voltar às
suas plantações, de modo que, por administração pessoal, elas pudessem ser
restauradas na sua força produtiva anterior; mas esses processos, negligentes e
atrasados, mantiveram o Sul por diversos anos em uma condição
extremamente precária.
Durante
a última década os agricultores convenceram-se de que tal sistema não devia
continuar indefinidamente; que o estilo de lavoura lhes estava arruinando as
terras; que os fabricantes e os banqueiros, com juros altos, lucros enormes e
dispondo, incontestavelmente das colheitas eram os únicos a colher benefícios;
e que, por falta de capital bastante para dirigirem os seus negócios, pelo
sistema de pagamento à vista, eles se conservavam pobres e trabalhavam as suas
plantações com desvantagem sempre crescente. Isso determinou mudanças que foram
todas para o bem duradouro do Sul. As plantações estão sendo cortadas em
pequenos sítios, e a classe mais inteligente está cultivando o menor número de
jeiras, alternado as safras, descansando a terra, adaptando um melhor sistema
de lavrar, e fazendo uso em grande escala de estrumes. Eles agora conseguem, em
muitos casos onde este sistema adiantado está há anos em prática, um fardo de
algodão por jeira onde antes aram precisos cinco ou seis jeiras para produzir
um fardo de qualidade inferior. Eles estão, também, plantando mais trigo e
aveia, produzindo mais carne para os trabalhadores, e mais forragem de diversas
espécies para os animais. A grande colheita é sempre o algodão - que dá uma
safra maior proporcionalmente à superfície do que anos atrás - o algodão já não
é tão rei absoluto como antes foi. O Sul pode, hoje, sustentar-se por si em
quase toda a parte, no que concerne à alimentação. Os mantimentos e o trigo no
Norte e do Oeste não encontram mais ali o mesmo mercado de antes da guerra.
Trabalhando por sistemas sensatos, os plantadores estão tirando muito melhores
resultados; em geral livraram-se das dívidas, e sentem-se em condição mais
vantajosa, ao passo que o trabalho do Sul está tão contente que não se tem
ouvido falar dele esse verão. Esta é a grande revolução pacífica - social e
industrial - que se realizou nesta década, todavia de modo tão quieto a
surpreender a todos, quando as publicações do recenseamento a revelaram.
O mesmo
correspondente, em data de 1º de abril de 1880, havia transmitido algumas observações
de Jefferson Davis, o presidente da Confederação, sobre os resultados da medida
que emancipou os escravos:
As
suas opiniões, ele confessou, mudaram inteiramente com referência à cultura do
algodão e do açúcar. Essas mercadorias principais, do Sul, podem ser produzidas
em maior abundância, e com mais economia, pagando-se o trabalho do que por
escravos. Isto, disse ele, está demonstrado, e serve para mostrar como foi
vantajosa para os brancos a abolição da escravidão. O Sul depende menos do
Norte do que antes da guerra. Ao passo que ele continua a exportar os seus
grandes produtos (o algodão e o açúcar), o povo está produzindo maior variedade
de colheitas para uso próprio, e há de eventualmente competir com o Norte em
manufaturas e nas artes mecânicas. (2)
Ambas essas
citações encerram, com a autoridade da experiência, e da História, elaborada
debaixo de nossas vistas, grandes avisos aos nossos agricultores, assim como a
maior animação para o nosso país. Não há dúvida de que o trabalho livre é mais
econômico, mais inteligente, mais útil à terra, benéfico ao distrito onde ela
está encravada, mais próprio para gerar indústrias, civilizar o país, e elevar
o nível de todo o povo. Para a agricultura, o trabalho livre é uma vida nova,
fecunda, estável, e duradoura. Buarque de Macedo entreviu a pequena lavoura dos
atuais escravos, em torno dos engenhos centrais de açúcar, e deu testemunho
disso para despertar a energia individual. A todos os respeitos, o trabalho
livre é mais vantajoso que o escravo. Não é a agricultura que há de sofrer por
ele.
Sofrerão, porém,
os atuais proprietários, e se sofrerem terão o direito de queixar-se do Estado?
Acabamos de ler que a Guerra Civil americana só deixou em mãos dos antigos
senhores terras e dívidas. Mas, entre nós, não se dá o mesmo que nos Estados
Unidos. Ali, a emancipação veio depois de uma rebelião, a qual nenhuma outra
pode ser comparada; depois de um bloqueio ruinoso, e muito mais cedo do que os
abolicionistas mais esperançosos de Boston ou Nova York podiam esperar. No
Brasil, fez-se há doze anos, uma lei que, para os atuais possuidores, não podia
senão significar que a nação estava desejosa de pôr termo à escravidão, que
tinha vergonha de ser um país de escravos, e só não decretava em vez da
alforria dos nascituros a dos próprios escravos, para não prejudicar os
interesses dos senhores. O Brasil, em outras palavras, para não ferir de leve a
propriedade de uma classe de indivíduos, muitos deles estrangeiros, filhos de
países onde a escravidão não existe, e nos quais a proibição de possuir
escravos, qualquer que seja a latitude, já devera ser parte do estatuto pessoal
da nacionalidade, assentiu a continuar responsável por um crime.
O
argumento dos proprietários de escravos, é com efeito, este:
O meu escravo vale um conto de réis, empregado nele de
boa fé, ou possuído legalmente, pelo princípio da acessão do fruto. Se tendes
um conto de réis para dar-me por ele, tendes o direito de libertá-lo. Mas se
não tendes essa quantia ele continuará a ser meu escravo.
Eu admito este regulamento
o qual significa isto: desde que uma geração consentiu ou tolerou um crime
qualquer, seja a pirataria, seja a escravidão, outra geração não pode suprimir
esse crime, sem indenizar os que cessarem de ganhar por ele; isto é, enquanto
não tiver o capital que esse crime representa, não poderá, por mais que a sua
consciência se revolte e ela queira viver honestamente, desprender-se da
responsabilidade de cobri-lo com a sua bandeira e de prestar-lhe o auxílio das
suas tropas, em caso de necessidade. À vista dessa teoria nenhum país pode
subir um degrau na escada da civilização e da consciência moral se não tiver
com que desapropriar a sua imoralidade e o seu atraso. Adoto, entretanto, esse
ponto de vista para simplificar a questão, e conceder o princípio que o Estado
deva entrar em acordo para indenizar a propriedade escrava, legalmente
possuída.
Em 1871, porém,
a nação brasileira deu o primeiro aviso à escravidão de que a consciência a
vexava, e ela estava ansiosa por liquidar esse triste passado e começar vida
nova. Pode alguém, que tenha adquirido escravos depois dessa data, queixar-se
de não ter sido informado de que a reação do brio e do pudor começava a atingir
as faces da nação? O preço dos escravos subiu depois da lei; chegou em São
Paulo a três contos de réis, como subira depois de acabado o tráfico, sendo o
efeito de cada lei humanitária que restringe a propriedade humana aumentar-lhe
o valor como o de qualquer outra mercadoria, cuja produção diminui quando a
procura continua ser a mesma. Mas tem o Estado que responder pelo incremento de
valor do escravo, sátira pungente de cada medida de moralidade social, e que
mostra como o comércio da carne humana gira todo fora da ação do patriotismo?
Não é só do que a lei proíbe, que o cidadão cioso do nome do seu país deve
abster-se, conscienciosamente, mas de tudo quanto ele sabe que a lei só não
proíbe porque não pode, e que envergonha a lei, sobretudo depois que a nação
lhe dá um aviso de que é preciso acabar, quanto antes com esse abuso, cada
brasileiro ajudando o Estado a fazê-lo. Haverá entre nós, quem desconheça que a
Constituição teve vergonha da escravidão, e que a lei de 28 de setembro de 1871
foi um solene aviso nacional, um apelo ao patriotismo?
Durante
cinqüenta anos a grande maioria da propriedade escrava foi possuída
ilegalmente. Nada seria mais difícil aos senhores, tomado coletivamente, do que
justificar perante um tribunal escrupuloso a legalidade daquela propriedade,
tomada também em massa. Doze anos, porém, depois da lei de 28 de setembro, como
fundariam eles quaisquer acusações de má fé, espoliação e outras, contra o
Estado por transações efetuadas sobre escravos?
Ninguém,
infelizmente, espera que a escravidão acabe de todo no Brasil antes de 1890.
Não há poder, atualmente conhecido, que nos deixe esperar uma de duração menor,
e uma lei que hoje lhe marcasse esse prazo aplacaria de repente as ondas
agitadas. Pois bem, não há escravo que dentro de cinco anos não tenha pago o
seu valor, sendo os seus serviços inteligentemente aproveitados. Pense
entretanto a lavoura, faça cada agricultor a conta dos seus escravos: do que
eles efetivamente lhe custaram e do que lhe renderam, das crias que produziram - descontando os
africanos importados depois de 1831 e seus filhos conhecidos, pelos quais seria
um ultraje reclamarem uma indenização pública - e vejam se o país, depois de
grandes e solenes avisos para que descontinuassem essa indústria cruel, não tem
o direito de extingui-la, de chofre, sem ser acusado de os sacrificar.
Se eles não
conseguem reunir as suas hipotecas, pagar as suas dívidas, a culpa não é dos
pobres escravos, que os ajudam quanto podem, e não devem responder pelo que o
sistema da escravidão tem de mau e de contrário aos interesses do agricultor.
Dê cada senhor hoje uma papeleta a cada um dos seus escravos, inscrevendo na
primeira página, não já o que ele custou - somente esse processo eliminaria
metade da escravatura legal -,
mas o que cada um vale no mercado, e lance ao crédito desse escravo cada
serviço que ele preste; dentro de pouco tempo a dívida estará amortizada. Se
alguma coisa o escravo lhe ficar restando, ele mesmo fará honra à sua firma,
servindo-o depois de livre: tudo o que não for isso, é usura e a pior de todas,
a de Shylock, levantada sobre a carne humana, e, pior do que a de Shilock,
executada pelo próprio usurário.
Se a
agricultura, hoje, não dá rendimento para a amortização da dívida hipotecária,
e não há probabilidade de que em tempo algum a lavoura, com o presente sistema,
possa libertar os seus escravos, sem prejuízo, não há vantagem alguma para o
Estado em que a propriedade territorial continue em mãos de quem não pode
fazê-la render, e isso mediante a conservação por lei de um sistema
desacreditado, de seqüestro pessoal. Nesse caso, a emancipação teria ainda a vantagem
de introduzir sangue novo na agricultura, promovendo a liquidação do atual
regime. A lavoura, quer a do açúcar, quer a do café, nada tem que temer do
trabalho livre. Se hoje o trabalho é escasso; se uma população livre, válida e
desocupada, que já se calculou, em seis províncias somente, em cerca de três
milhões de braços,(3) continua inativa; se o próprio liberto recusa
trabalhar na fazenda onde cresceu; tudo isso é resultado da escravidão, que faz
do trabalho ao lado do escravo um desar para o homem livre, desar que não o é
para o europeu, mas que o liberto reconhece e não tem coragem de sobrepujar.
Tudo nessa
transição, tão fácil havendo boa inteligência entre o país e a lavoura, como
difícil resistindo esta ao fato consumado, depende dos nossos agricultores. Se
a escravidão não houvesse, por assim dizer, esgotado os recursos do nosso
crédito; se a guerra do Paraguai, cujas origens distantes são tão desconhecidas
ainda, não nos tivesse murado o futuro por uma geração toda; nada seria mais
remunerador para o Estado do que ajudar por meio de seu capital a rápida
reconstrução da nossa agricultura. Auxílios à lavoura para outro fim, diverso
da emancipação - para mobilizar e fazer circular pela Europa, em letras
hipotecárias, como o pretendia a lei de 6 de novembro de 1875, a propriedade
escrava - seria, além de um plano injusto de socorros à classe mais favorecida
à custa de todas as outras, complicar a falência da lavoura com a do Estado, e
arrastá-los a mesma ruína. Nem “auxílios à lavoura” pode significar, em um país
democratizado como o nosso e que precisa do imposto territorial para abrir
espaço à população agrícola, um subsídio à grande propriedade, com o desprezo
dos pequenos lavradores que aspiram possuir o solo onde são rendeiros. Mas, por
outro lado, de nenhum modo poderia o Estado usar melhor do seu crédito do que
para, numa contingência, facilitar à agricultura a transição do regime romano
dos ergástulos ao regime moderno do salário e do contrato livre.
Não há em todo o
movimento abolicionista, e no futuro que ele está preparando, senão benefício
para a agricultura, como indústria nacional; e, como classe, para os
agricultores solváveis, ou que saibam aproveitar as condições transformadas do
país. O exemplo dos estados do Sul deve servir-lhe de farol; cada um dos
escolhos em que seria possível naufragar foram cuidadosamente iluminados. Nem
rebelião contra uma consciência nacional superior, nem desconfiança dos seus
antigos escravos, nem abandono completo das suas terras aos libertos, nem absenteísmo, nem a rotina da velha
cultura, nem desânimo; mas, reconhecimento do fato consumado como um progresso
para o país, a criação de novos laços de gratidão e amizade ente eles e os que
os serviram como cativos e estão presos às suas terras, a elevação dessa classe
pela liberdade, a melhor educação dos seus filhos, a indústria, a perseverança,
a agronomia.
Nós não estamos
combatendo a lavoura contra o seu próprio interesse: não só a influência
política dos nossos agricultores há de aumentar quando se abaterem essas
muralhas de preconceitos e suspeitas, que lhes cercam as fazendas e os
engenhos, senão também a sua segurança individual será maior, e os seus
recursos crescerão pari passu
com o bem estar, a dignidade, o valor individual da população circunvizinha. O
trabalho livre, dissipando os últimos vestígios da escravidão, abrirá o nosso
país à imigração européia; será o anúncio de uma transformação viril, e
far-nos-á entrar no caminho do crescimento orgânico e portanto homogêneo. O
antagonismo latente das raças - a que a escravidão é uma provocação constante,
e que ela não deixa morrer, por mais que isso lhe convenha - desaparecerá de
todo. Tudo isso servirá para reconstruir, sobre bases sólidas, o ascendente
social da grande propriedade, para abrir-lhe altas e patrióticas ambições, para
animá-la do espírito de liberdade, que nunca fez a desgraça de nenhum povo e de
nenhuma classe. Volte a nossa lavoura resolutamente as costas à escravidão,
como fez com o tráfico, e dentro de vinte anos de trabalho livre os proprietários
territoriais brasileiros formarão uma classe a todos os respeitos mais rica,
mais útil, mais poderosa, e mais elevada na comunhão do que hoje.
Quem fala
sinceramente esta linguagem só deve ser considerado inimigo da lavoura, se
lavoura e escravidão são sinônimos. Mas, quando, pelo contrário, esta é a
vítima daquela; quando, humilhado o escravo, a escravidão não consegue senão
arruinar o senhor, entregar depois de duas gerações as suas terras à usura, e
atirar os seus descendentes ao hospício do Estado; quem denuncia honestamente a
escravidão, não denuncia a lavoura, mas trata de separá-la da influência que a
entorpece, ainda que para salvá-la seja preciso descrever com toda a verdade o
que a escravidão faz dela.
Foi sempre a
sorte de quantos se opuseram à loucura de uma classe ou de uma nação, e
procuraram convencê-las de que se sacrificaram perseverando num erro ou num
crime, serem tidos por inimigos de uma ou de outra. Cobden foi considerado
inimigo da agricultura inglesa porque pediu que o pobre tivesse o direito de
comprar o pão barato; e Thiers foi acusado de traidor à França porque quis
detê-la no caminho de Sedan. Pensem, porém, os nossos lavradores no futuro.
Dois meninos
nasceram na mesma noite de 27 de setembro de 1871, nessa fazenda cujo regime se
pretende conservar: um é senhor do outro. Hoje eles têm, cada um, perto de doze
anos. O senhor está sendo objeto de uma educação esmerada; o escravo está
crescendo na senzala. Quem haverá tão descrente do Brasil a ponto de supor que
em 1903, quando ambos tiverem trinta e dois anos, esses dois homens estarão um
para o outro na mesma relação de senhor e escravo? Quem negará que essas duas
crianças, uma educada para grandes coisas, outra embrutecida para o cativeiro,
representam duas correntes sociais que já não correm paralelas - e se
corressem, uma terceira, a dos nascidos depois daquela noite, servir-lhes-ia de
canal -, mas se encaminham para um ponto dado em nossa história na qual devem
forçosamente confundir-se? Pois bem, o abolicionismo o que pretende é que essas
duas correntes não se movam uma para outra mecanicamente, por causa do declive
que se encontram; mas espontaneamente, em virtude de uma afinidade nacional
consciente. Queremos que se ilumine e se esclareça toda aquela parte do
espírito do senhor, que está na sombra: o sentimento de que esse, que ele chama
de escravo, é um ente tão livre
como ele pelo direito do nosso século; e que se levante todo o caráter,
edificado abaixo do nível da dignidade humana, do que chama o outro senhor, e se lhe insufle a alma do
cidadão que ele há de ser; isto é, que um e outro sejam arrancados a essa
fatalidade brasileira - a escravidão - que moralmente arruina ambos.
Posso dar por
terminada a tarefa que empreendi ao começar este volume de propaganda, desde
que não entra no meu propósito discutir as diversas medidas propostas para
aperfeiçoar a lei de 28 de setembro de 1871, como o plano de localizar a
escravidão, o de transformar escravos e ingênuos em servos da gleba, o aumento
do fundo de emancipação. Todas essas medidas são engendradas por espíritos que
não encaram a escravidão como fator social, como um impedimento levantado no
caminho do país todo, ao desenvolvimento e bem-estar de todas as classes, à
educação das novas gerações. Nenhum deles compreende a significação política,
moral e econômica, para uma nação qualquer mergulhada na escravidão, e um
testemunho como o seguinte, dado, em sua mensagem de 1881 ao Congresso, pelo
presidente James Garfield, sobre os efeitos da emancipação nos Estados Unidos:
A
vontade da nação, falando com a voz da batalha por intermédio de uma
Constituição emendada, cumpriu a grande promessa de 1767 ao proclamar a
liberdade em todo o país para todos os seus habitantes. A elevação da raça
negra do cativeiro à plenitude dos direitos da cidadão é a mais importante
mudança política que nós conhecemos desde que foi adotada a Constituição de
1787. Nenhum homem refletido deixará de reconhecer os benéficos efeitos daquele
acontecimento sobre as nossas instituições e o nosso povo. Ele livrou-nos do
constante perigo da guerra e dissolução; aumentou imensamente as forças morais
e industriais do nosso povo; libertou tanto o senhor como o escravo de uma
relação que prejudicava e enfraquecia ambos; entregou à sua própria tutela a
virilidade de mais de cinco milhões de pessoas, e abriu a cada uma delas uma
carreira de liberdade e de utilidade; deu uma nova inspiração ao poder de self-help em ambas as raças, tornando
o trabalho mais honroso para uma e mais necessário à outra. A influência dessa
força há de crescer cada vez mais, e dar melhores frutos com o andar dos
tempos.
Nós, porém, que
temos a certeza que essa mesma linguagem honrosa para todos, ex-escravos e
ex-senhores, poderia ser usada poucos anos depois do ato que abolisse hoje a
escravidão no Brasil, não podemos querer que se sacrifiquem esses grandes
interesses do país aos interesses de uma classe retardatária, que nunca se
apressou em acompanhar a marcha do século e da nação, apesar dos avisos da lei
e das súplicas dos brasileiros patriotas - tanto mais quanto tal sacrifício
seria em pura perda.
A nossa
verdadeira política, dizia em 1854 um jornal do Sul da União americana, é olhar
para o Brasil como a segunda grande potência escravocrata. Um tratado de
comércio e aliança com o Brasil conferir-nos-á o domínio sobre o golfo do
México e os estados que ele banha, juntamente com as ilhas; e a conseqüência
disto colocará a escravidão africana, fora do alcance do fanatismo no interior
ou no exterior. Esses dois grandes países de escravos devem proteger e
fortificar seus interesses comuns... Nós podemos não só preservar a escravidão
doméstica, mas também desafiar o poder do mundo... (4)
Esse sonho, de
união e aliança escravagista, desfez-se nas sucessivas batalhas que impediram a
formação de um grande e poderoso Estado americano, criado para perpetuar e
estender pela América toda o cativeiro das raças africanas. Mas o Brasil
continua a ser, aos olhos do continente, o tipo da nação de escravos, o
representante de uma forma social rudimentar, opressiva e antiga. Até quando
será esse o nosso renome, e teremos em nossos portos esse sinal de peste que
afasta os imigrantes para os Estados que procuram competir conosco?
O nosso país foi
visitado e estudado por homens de ciência., O maior de todos eles, Charles
Darwin (mais de uma vez tenho feito uso desse exemplo), não achou outras
palavras com que se despedir de uma terra cuja admirável natureza devera ter
exercido a maior atração possível sobre o seu espírito criador, senão estas:
“No dia 19 de agosto deixamos por fim as praias do Brasil. Graças a Deus, nunca
mais hei de visitar um país de escravos”. O espetáculo da escravidão na
América, em pleno reinado da natureza, no meio das formas mais belas ,
variantes e pujantes que a vida assume em nosso planeta, não podia, com efeito,
inspirar outros sentimentos a sábios, senão os que nos expressaram Darwin,
Agassiz, e antes deles Humboldt e José Bonifácio. Não é, porém, a mortificação,
desinteressada e insuspeita, dos que amam e admiram a nossa natureza, que nos
causam o maior dano: é, sim, a reputação que temos em toda a América do Sul, de
país de escravos, isto é, de
sermos uma nação endurecida, áspera, insensível ao lado humano das coisas; é,
mais ainda, essa reputação - injusta, porque o povo brasileiro não pratica a escravidão e é vítima dela -
transmitida ao mundo inteiro e infiltrada no espírito da humanidade civilizada.
Brasil e escravidão tornaram-se assim sinônimos. Daí a ironia com que foi
geralmente acolhida a legenda de que íamos fundar a liberdade no Paraguai; daí,
o desvio das correntes de imigração para o rio da Prata, que, se devesse ter
uma política maquiavélica, invejosa e egoísta, deveria desejar ao Brasil os
trinta anos mais de escravidão que os advogados desse interesse reclamam. (5)
Se o Brasil só
pudesse viver pela escravidão, seria melhor que ele não existisse; mas essa
dúvida não é mais possível: ao lado de uma população, que, entre escravos e
ingênuos, não passa de um milhão e quinhentos mil habitantes temos uma
população livre de seis vezes maior. Se o resultado da emancipação fosse - o
que não seria - destruir a grande cultura atual de gêneros de exportação, e se
o país atravessasse uma crise quanto ao rendimento nacional, mesmo isso não
seria um mal relativamente ao estado presente, que se não é já a
insolvabilidade encoberta ou adiada pelo tráfico, está muito perto de o ser, e
- se durar a escravidão - há de sê-lo. A escravidão tirou-nos o hábito de
trabalhar para alimentar-nos; mas, não nos tirou o instinto nem a necessidade
da conservação, e esta há de criar, novamente, a energia atrofiada.
Se, por outro
lado, a escravidão devesse forçosamente ser prolongada por todo o seu prazo
atual, os brasileiros educados nos princípios liberais do século deveriam logo
resignar-se a mudar de pátria. Mas, e esta é a firme crença de todos nós que a
combatemos, a escravidão em vez de impelir-nos, retém-nos: em vez de ser uma
causa de progresso e expansão impede o crescimento natural do país. Deixá-la
dissolver-se, e desaparecer, insensivelmente, como ela pretende, é manter um
foco de infecção moral permanente no meio da sociedade durante duas gerações
mais, tornando, por longo tempo, endêmico o servilismo e a exploração do homem
pelo homem, em todo o nosso território.
O que esse
regime representa, já o sabemos. Moralmente é a destruição de todos os
princípios e fundamentos da moralidade religiosa ou positiva - a família, a
propriedade, a solidariedade social, a aspiração humanitária: politicamente, é
o servilismo, a degradação do povo, a doença do funcionalismo, o
enfraquecimento do amor da pátria, a divisão do interior em feudos, cada um com
o seu regime penal, o seu sistema de provas, a sua inviolabilidade perante a
polícia e a justiça; econômica e socialmente, é o bem estar transitório de uma
classe única, e essa decadente e sempre renovada; a eliminação do capital
produzido, pela compra de escravos; a paralisação de cada energia individual
para o trabalho na população nacional; o fechamento dos nossos portos aos
imigrantes que buscam a América do Sul; a importância social do dinheiro, seja
como for adquirido; o desprezo por todos os que por escrúpulos se inutilizam ou
atrasam numa luta de ambições materiais; a venda dos títulos de nobreza; a
desmoralização da autoridade desde a mais alta até a mais baixa; a
impossibilidade de surgirem individualidades dignas de dirigir o país para
melhores destinos, porque o povo não sustenta os que o defendem, não é leal aos
que se sacrificam por ele, e o país, no meio de todo esse rebaixamento do
caráter, do trabalho honrado, das virtudes obscuras, da pobreza que procura
elevar-se honestamente, está, como se disse dos Estados do Sul, “apaixonado
pela sua própria vergonha”. (6)
Tudo, por certo,
neste triste negócio da escravidão, não é assim desanimador. Nós vemos hoje,
felizmente, por toda a parte sinais de que a manumissão de escravos se
entranhou no patriotismo brasileiro, e forma a solenidade principal das festas
de família e públicas. Desde 1873 até hoje foram inscritas em nossos registros
oficiais 87.005 manumissões, e apesar de ser impossível calcular o capital que
esse número representa, não se conhecem as idades, nem as condições
individuais dos alforriados, aqueles algarismos são um elevado expoente da
generosidade do caráter dos brasileiros. Tanto mais, assim, quanto são as
cidades, onde a propriedade escrava se acha muito subdividida entre numerosas
famílias pobres, que se destacam proeminentemente na lista, e não o campo onde
há as grandes fábricas das fazendas. Na corte, por exemplo, com uma população
escrava neste decênio de 54.167 indivíduos, ao passo que a morte eliminou 8
mil, a liberalidade pública e particular manumitiu 10 mil; enquanto na
província do Rio de Janeiro, com uma população escrava no mesmo período de
332.949 indivíduos, a morte deu baixa na matrícula a 51.269 escravos e foram
alforriados 12.849. Em outros termos, na capital do país a generosidade
nacional segue as pisadas da morte; na província esta ceifa quatro vezes mais
depressa.
Por mais que nos
desvaneçamos de ter registrado em dez anos 87.005 manumissões, devemos não
esquecer que no mesmo período, só na província do Rio de Janeiro, houve um
movimento de importação e exportação entre os seus diversos municípios de
124 mil escravos. Isto quer dizer que o mercado de escravos, as transações de
compras e venda sobre a propriedade humana, deixam na sombra o valor das
alforrias concedidas. Também, em todo o país, ao passo que foram alforriados,
de 1873 a 1882, 70.813 escravos, morreram em cativeiro 132.777, ou cerca do
dobro. Mas, quando a morte, que é uma força inerte e inconsciente, elimina
dois, e a nação elimina um, esta faz dez ou vinte vezes menos do que aquela,
que não tem interesse, nem dever de honra, no problema que está fatidicamente
resolvendo.
Pensem os
brasileiros, antes de tudo, nessa imensa população escrava que excede de
1.200.000, e nos senhores
desses homens; pensem nos que morrem, nos que nascem, ou para serem criados
como escravos ou para serem educados como senhores; e vejam se esses dois milhões de unidades nacionais
devem ser ainda entregues à escravidão, para que ela torture umas até a morte,
corrompa as outras desde a infância e, se outros milhões de brasileiros
restantes devem continuar a ser os clientes ou servos de um interesse que lhes
repugna e a viver sob o regime universal e obrigatório da escravidão tornada um
Imperium in Imperio.
Assim
foi em toda parte.
Como os rios brilham com cores diferentes, mas a
cloaca é sempre a mesma - escreve Mommsen estudando a invariável pintura da
escravidão antiga - assim a Itália, da época ciceroniana, parece-nos
essencialmente com a Hélade de Políbio e, mais ainda, com a Cartago do tempo de
Aníbal, onde, exatamente do mesmo modo, o regime onipotente do capital arruinou
a classe média, elevou o negócio e a cultura ao maior grau de florescimento, e
por fim produziu a corrupção moral e política da nação.
É essa
mesmíssima instituição, carregada com as culpas da História toda, que,
eliminada da Ásia e da Europa, esmagada na América, proscrita pela consciência
humana e em vésperas de ser tratada por ela como pirataria, se refugia no
Brasil e nos suplica que a deixemos morrer naturalmente, isto é, devorando para
alimentar-se, o último milhão e meio de vítimas humanas que lhe restam no mundo
civilizado.
Que devemos
fazer? Que aconselham ao país - que até hoje tem sido a criatura daquele
espírito infernal, mas que já começa a repudiar essa desonrosa tutela - os que
adquiriram o direito de dar-lhes conselhos? Que lhe aconselha a Igreja, cujos
bispos estão mudos vendo os mercados de escravos abertos; a imprensa, as
academias, os homens de letras, os professores de direito, os educadores da
mocidade, todos os depositários da direção moral do nosso povo? Que lhe dizem
os poetas, a quem Castro Alves mostrou bem que num país a missão dos poetas é combater
a escravidão? A mocidade, a quem Ferreira de Meneses e Manuel Pedro - para só
falar dos mortos - podem ser apontados como exemplo do que é a frutificação do
talento quando é a liberdade que fecunda? Que lhe aconselham, por fim, dois
homens que têm cada um a responsabilidade de guias do povo? Um, o sr. Saraiva,
escreveu em 1868: “Com a escravidão do homem e do voto, continuaremos a ser
como somos hoje, menosprezados pelo mundo civilizado que não pode compreender
se progrida tão pouco com uma natureza tão rica!, e disse em 1873: “A grande
injustiça da lei é não ter cuidado das gerações atuais”. O outro é o herdeiro
do nome e do sangue de José Bonifácio, a cujos ouvidos devem ecoar as últimas
palavras da Representação à
Constituinte, como um apelo irresistível de além túmulo, e cuja carreira
política será julgada pela história como a de um sofista eloqüente, se ele não
colocar ainda os sentimentos de justiça, liberdade e igualdade, que tratou de
despertar em nós, acima dos interesses dos proprietários de homens de São
Paulo.
A minha firme
convicção é que, se não fizermos todos os dias novos e maiores esforços para
tornar o nosso solo perfeitamente livre, e não tivermos sempre presente a idéia
de que a escravidão é a causa principal de todos os nossos vícios, defeitos,
perigos e fraquezas nacionais, o prazo que ela ainda tem de duração legal -
calculadas todas as influências que lhe estão precipitando o desfecho - será
assinalado por sintomas crescentes de dissolução social. Quem sabe mesmo se o
historiador do futuro não terá que nos aplicar uma destas duas frases - ou a de
Edward sobre Judá - “A destruição total do antigo reino era necessária antes
que se pudesse pôr termo à escravidão que ninguém se aventurava a dar mais um
passo sequer para banir” (7), ou, pior ainda esta de Goldwin Smith(8)
sobre a união americana.
Os estados cristãos da América do Norte associaram-se
com a escravidão por causa do Império e por orgulho de serem uma grande
confederação; e sofreram a penalidade disso, primeiro no veneno que o domínio
do senhor de escravos espalhou por todo o seu sistema político e social, e,
segundo, com esta guerra terrível e desastrosa?
Uma guerra em
que o Brasil entrasse contra um povo livre, com a sua bandeira ainda tisnada
pela escravidão, poria instintivamente as simpatias liberais do mundo do lado
contrário do nosso; e uma nação de grande inteligência nativa, livre da praga
do militarismo político, e das guerras sul-americanas, branda e suave de
coração, pacífica e generosa, seria por causa desse mercado de escravos, que
ninguém tem coragem de fechar, considerada mais retrógrada e atrasada do outros
países que não gozam das mesmas liberdades individuais, não tem a mesma cultura
intelectual, o mesmo desinteresse, nem o mesmo espírito de democracia e igualdade
que ela.
Escrevi este
volume pensando no Brasil, e somente no Brasil, sem ódio nem ressentimento, e
sem descobrir em mim mesmo, contra quem quer fosse, um átomo consciente dessa
inveja que Antônio Carlos disse ser “o ingrediente principal de que são amassadas
nossas almas”. Ataquei abusos, vícios e práticas; denunciei um regime todo, e
por isso terei ofendido os que se identificam com ele; não se pode, porém,
combater um interesse da magnitude e da ordem da escravidão sem dizer o que ele
é. Os senhores são os primeiros a qualificar, como eu próprio, a instituição
com cuja sorte se entrelaçaram as suas fortunas; a diferença está, somente, em
que eu sustento que um regime nacional, assim unanimemente condenado, não deve
ser mantido, porque está arruinando, cada vez mais, o país, e eles querem que
essa instituição continue a ser legalmente respeitada. Acaba-se com a
escravidão, tenha-se a coragem de fazê-lo, e ver-se-á como os abolicionistas
estão lutando no interesse mesmo da agricultura e de todos os agricultores
solváveis, sendo que a escravidão não há de salvar os que não o sejam, exceto à
custa da alienação das suas terras e escravos, isto é, da sua qualidade de
lavradores. Continue, porém, o atua sistema a enfraquecer e corromper o país,
aproximando-o da decomposição social, em vez de ser suprimido heroicamente,
patrioticamente, nobremente, com o apoio de grande número de proprietários
esclarecidos, e que ousam renunciar “a sua propriedade pensante”, (9)
reconhecendo os direitos da natureza humana: o futuro há de, infelizmente,
justificar o desespero, o medo patriótico, a humilhação e a dor que o adiamento
da abolição nos inspira.
Analisei,
detidamente, algumas das inúmeras influências ao desenvolvimento orgânico do
país, exercidas pela escravidão. Nenhum espírito sincero contestará a filiação
de um só desses efeitos, nem a importância vital do diagnóstico. A escravidão
procurou, por todos os meios, confundir-se com o país, e, na imaginação de
muita gente, o conseguiu. Atacar a bandeira negra, é ultrajar a nacional.
Denunciar o regime da senzalas, é infamar o Brasil todo. Por uma curiosa
teoria, todos nós, brasileiros, somos responsáveis pela escravidão, e não há
como lavarmos as mãos do sangue dos escravos. Não basta não possuir escravos,
para não se ter parte no crime. Quem nasceu com esse pecado original, não tem
batismo que o purifique. Os brasileiros são todos responsáveis pela escravidão,
segundo aquela teoria, porque a consentem. Não se mostra como o brasileiro, que
individualmente a repele, pode destruí-la; nem como as vítimas de um sistema,
que as degrada para não reagirem, podem ser culpadas da paralisia moral que as
tocou. Os napolitanos foram assim responsáveis pelo bourbonismo, os romanos
pelo poder temporal, os polacos pelo czardo, e os cristãos novos pela
Inquisição. Mas, fundada ou não, essa é a crença de muitos. E a escravidão,
atacada nos mais melindrosos recantos onde se refugiou, no seu entrelaçamento
com tudo o que a pátria tem de mais caro a todos nós, ferida, por assim dizer,
nos braços dela, levanta contra o abolicionismo o grito de Traição!
“Não sei o que
possa um escritor público fazer de melhor do que mostrar aos seus compatriotas
os seus defeitos. Se fazer isso é ser considerado antinacional, não desejo
furtar-me à acusação”. Eu, pela minha pare, ecôo estas palavras de Stuart Mill.
O contrário é, talvez, um meio mais seguro de fazer caminho entre nós, devido à
índole nacional, que precisa da indulgência e da simpatia alheia, como as
nossas florestas virgens precisam de umidade; mas, nenhum escritor de
consciência que deseje servir ao país, despertando os seus melhores instintos,
tomará essa humilhante estrada da adulação. A superstição de que o povo não
pode errar, a que a História toda é um desmentido, não é necessária para fundar
a lei da democracia, a qual vem a ser: que ninguém tem o direito de acertar por
ele e de impor-lhe o seu critério.
Quanto à pátria,
que somos acusados de mutilar, é difícil definir o que ela seja. A pátria varia
em cada homem: para o alsaciano ela está no solo, nos montes pátrios et incunabula nostra; para o judeu é
fundamentalmente a raça; para o muçulmano a religião; para o polaco a
nacionalidade; para o emigrante o bem estar e a liberdade, assim como para o
soldado confederado foi o direito de ter instituições próprias. O Brasil não é geração de hoje, nem ela
pode querer deificar-se, e ser a pátria para nós, que temos outro ideal.
Antônio Carlos foi acusado de haver renegado o seu país, quando aconselhou à
Inglaterra que cobrisse de navios as nossas águas para bloquear os ninhos de
piratas do Rio e da Bahia(10), mas quem desconhece hoje que ele,
segundo a sua própria frase, passou à
posteridade como vingador da honra e da dignidade do Brasil?
Longe de
injuriar eu o país, mostrando-lhe tudo que há de vicioso, fraco, indeciso e
rudimentar nele provém da escravidão, parece que dessa forma quis eu converter
a instituição segregada, que tudo absorveu, em bode emissário de Israel,
carregá-lo com todas as faltas do povo, e fazê-lo desaparecer com elas no
deserto. O orgulho nacional procura sempre ter à mão vítimas expiatórias
dessas. É melhor que sejam indivíduos; mas a penitência figura-se mais completa
quando são famílias e classes, ou um regime todo.
Não me acusa
entretanto a consciência de haver prometido um millenium para o dia em que o Brasil celebrasse um jubileu
hebraico, libertando todos os servos. A escravidão é um mal que não precisa
mais ter as suas fontes renovadas para atuar em nossa circulação, e que, hoje,
dispensa a relação de senhor e escravo, porque já se diluiu no sangue. Não é
portanto a simples emancipação dos escravos e ingênuos que há de destruir esses
germens, para os quais o organismo adquiriu tal afinidade.
A meu ver, a
emancipação dos escravos e dos ingênuos, posso repeti-lo porque esta é a idéia
fundamental deste livro, é o começo apenas da nossa obra. Quando não houver
mais escravos, a escravidão poderá ser combatida por todos os que hoje nos
achamos separados em dois campos, só porque há um interesse material de
permeio.
Somente depois
de libertados os escravos e os senhores
do jugo que os inutiliza, igualmente, para a vida livre, poderemos empreender
esse programa sério de reformas - das quais as que podem ser votadas por lei,
apesar da sua imensa importância, são, todavia, insignificantes ao lado das que
devem ser realizada por nós mesmos, por meio de educação, da associação, da
imprensa, da imigração espontânea, da religião purificada, de um novo ideal de
Estado: reformas que não poderão ser realizadas de um jato, aos aplausos da
multidão, na praça pública, mas que terão de ser executadas, para que delas
resulte um povo forte, inteligente, patriota e livre, dia por dia e noite por
noite, obscuramente, anonimamente, no segredo das nossas vidas, na penumbra da
família, sem outro aplauso, nem outra recompensa, senão os da consciência
avigorada, moralizada e disciplinada, ao mesmo tempo viril e humana.
Essa reforma
individual, de nós mesmo, do nosso caráter, do nosso patriotismo, do nosso
sentimento de responsabilidade cívica, é o único meio de suprimir efetivamente
a escravidão da constituição social. A emancipação dos escravos é portanto
apenas o começo de um Rinnovamento,
do qual o Brasil está carecendo de encontrar o Gioberti e depois dele, o
Cavour.
Compare-se com o
Brasil atual da escravidão o ideal de pátria que nós, abolicionistas,
sustentamos: um país onde todos sejam livres; onde, atraída pela franqueza das
nossas instituições e pela liberdade do nosso regime, a imigração européia
traga, sem cessar, para os trópicos uma corrente de sangue caucásio vivaz,
enérgico e sadio, que possamos absorver sem perigo, em vez dessa onda chinesa,
com que a grande propriedade aspira a viciar e corromper ainda mais a nossa
raça; um país que de alguma forma trabalhe originalmente para a obra da humanidade
e para o adiantamento da América do Sul.
Essa é a
justificação do movimento abolicionista. Entre os que têm contribuído para ele
é cedo ainda para distribuir menções honrosas, e o desejo de todos deve ser que
o número dos operários da undécima hora seja tal que se torne impossível mais
tarde, fazer distinções pessoais. Os nossos adversário precisam, para combater
a idéia nova, de encarná-la em indivíduos, cujas qualidades nada têm que ver
com os problemas que eles discutem. Por isso mesmo, nós devemos combater em
toda a parte tendo princípios, e não nomes, inscritos em nossa bandeira. Nenhum
de nós pode aspirar à glória pessoal, porque não há glória no fim do século XIX
em homens educados nas idéias e na cultura intelectual de uma época tão
adiantada como a nossa, pedirem a emancipação dos escravos. Se alguns dentre
nós tiverem o poder de tocar a imaginação e o sentimento do povo de forma a
despertá-lo de sua letargia, esses devem lembrar-se de que não subiram à
posição notória que ocupam senão pela escada de simpatias da mocidade, dos
operários, dos escravos mesmos, e que foram impelidos pela vergonha nacional, a
destacarem-se, ou como oradores, ou como jornalistas, ou como libertadores,
sobre o fundo negro do seu próprio país mergulhado na escravidão. Por isso eles
devem desejar que essa distinção cesse de sê-lo o quanto antes. O que nos torna
hoje salientes é tão somente a luta da pátria: por mais talento, dedicação e
entusiasmo e sacrifícios que os abolicionistas estejam atualmente consumindo, o
nosso mais ardente desejo deve ser que não fique sinal de tudo isso, e que a
anistia do passado elimine até mesmo a recordação da luta em que estamos
empenhados.
A anistia, o
esquecimento das escravidão; a reconciliação de todas as classes; a moralização
de todos os interesses; a garantia da liberdade nos contratos; a ordem nascendo
da cooperação voluntária de todos os membros da sociedade brasileira: essa é a
base necessária para reformas que alteiam o terreno político em que esta
existiu até hoje. O povo brasileiro necessita de outro ambiente, de
desenvolver-se e crescer em meio inteiramente diverso.
Nenhuma das
grandes causas nacionais que produziram, como seus advogados, os maiores
espíritos da humanidade, teve nunca melhores fundamentos do que a nossa.
Torne-se cada brasileiro de coração um instrumento dela; aceitem os moços desde
que entrarem na vida civil, o compromisso de não negociar em carne humana;
prefiram uma carreira obscura de trabalho honesto a acumular riqueza fazendo
ouro dos sofrimentos inexprimíveis de outros homens; eduquem os seus filhos,
eduquem-se a si mesmos, no amor da liberdade alheia, único meio de não ser a
sua própria liberdade uma doação gratuita do destino, e de adquirirem a
consciência do que ela vale, e coragem para defendê-la. As posições entre nós
desceram abaixo do nível do caráter; a maior utilidade que pode ter hoje o
brasileiro, de valor intelectual e moral, é educar a opinião (feliz do que
chega ao poder e guiá-la), dando um exemplo de indiferença diante de honras,
distinções e títulos rebaixados, de cargos sem poder efetivo. Abandonem assim
os que se sentem com força, inteligência e honradez bastante para servir à
pátria do modo mais útil, essa mesquinha vereda da ambição política;
entreguem-se de corpo e alma à tarefa de vulgarizar, por meio do jornal, do
livro, da associação, da palavra, da escola, os princípios que tornam as nações
modernas fortes, felizes e respeitadas; espalhem-se as sementes novas da
liberdade por todo o território coberto das sementes do dragão(11), e logo esse passado,
cujo esboroamento assistimos, abrirá espaço a uma ordem de coisas fundadas
sobre uma concepção completamente diversa dos deveres, quanto à vida, à
propriedade, à família, à honra, aos direitos, dos seus semelhantes, do
indivíduo para com a nação, quanto à liberdade individual. à civilização, à
igual proteção a todos, ao adiantamento social realizado, para com a humanidade
que lhe dá o interesse e participação - e de fato o entrega tacitamente à
guarda de cada uma - em todo esse patrimônio da nossa espécie.
Abolicionistas
são todos os que confiam num Brasil sem escravos; os que predizem os milagres
do trabalho livre, os que sofrem a escravidão
como uma vassalagem odiosa imposta por alguns, e no interesse de alguns, à
nação toda; os que já sufocam nesse ar mefítico, que escravos e senhores
respiram livremente; os que não acreditam que o brasileiro, perdida a
escravidão, se deite para morrer, como o romano do tempo dos césares, porque
perdera a liberdade.
Isso quer dizer
que nós vamos ao encontro dos supremos interesses da nossa pátria, da sua
civilização, do futuro a que ela tem direito, da missão a que chama o seu lugar
na América; mas, entre nós e os que se acham atravessados no seu caminho, quem
há de vencer? É esse o próprio enigma do destino nacional do Brasil. A
escravidão infiltrou-lhe o fanatismo nas veias, e, por isso, ele nada faz para
arrancar a direção daquele destino às forças cegas e indiferentes que estão,
silenciosamente, encaminhando.
Notas
1. Noah
Webster, Júnior, Effects of Slavery on
Morals and Industry. Hartford (Connecticut)
2. Em
1861 (antes da guerra) a colheita de algodão era de 3.650.000 fardos; em 1871
foi de 4.340.000 fardos e em 1881, 6.589.000. Em dois anos o Sul produziu
12.000.000 de fardos. “O Sul está também adiantando-se, diz o Times, na manufatura de instrumentos
agrícolas, couro, wagons,
marcenaria, sabão, amido, etc., e estes produtos com o crescimento do comércio
de algodão, açúcar, fumo, arroz, trigo, e provisões para a marinha, hão de
aumentar materialmente a riqueza dos diversos estados. Como corolário natural
desse surpreendente progresso os lavradores se estão tornando mais ricos e mais
independentes, e em alguns dos estados do Sul se está fazendo um grande esforço
para impedir a absorção das pequenas lavouras pelas maiores”. Por outro lado, o
professor E. W. Gillian pretende que a raça negra aumentou nos últimos dez anos
à razão de 34%, enquanto a branca aumentou cerca de 29%. Ele calcula que dentro
e um século haverá nos estados do Sul 192 milhões de homens de cor.
3. Tentativas centralizadoras do governo
Liberal, pelo senador Godoy, de São Paulo, Nesse opúsculo há o seguinte
cálculo dos braços empregados na lavoura das províncias de Minas Gerais, São
Paulo, Bahia, Pernambuco, Rio de Janeiro: Livres, 1.434.170; escravos, 650.540.
Braços livres vadios, desocupados, de 13 a 45 anos, 2.822.583.
4. The Southern Standard, citado na
conferência soda A Condição da
América, de Theodore Parker, (1854)
5. Eis
um trecho da notícia em que um informante descreve no Jornal do Commercio a recepção feita ao Dr. Avellaneda,
ex-presidente da República Argentina, por um dos nossos principais fazendeiros,
um líder da classe, e um dos
homens mais esclarecidos que ela possui, o sr. Barão do Rio Branco.
“Entrando-se, deparava-se com um verdadeiro bosque semeado de lanternas
venezianas, escudos alegóricos, com dísticos onde se liam, por exemplo: Aos promotores da indústria, salve! A fraternidade dos povos é um sorriso de
Deus, etc. ... Formou-se então uma quadrilha dentro de um círculo
gigantesco formado pelos 400 escravos da fazenda, os quais ergueram
entusiásticos vivas aos seus carinhosos senhores”. Com a lembrança recente
desta festa brasileira e desse
contraste da fraternidade dos
povos com a escravidão, o dr. Avellaneda terá lido com dobrado orgulho de
argentino os seguintes trechos da última mensagem do seu sucessor: “Em 1881
chegaram 32.817 imigrantes e em 1882 entraram em nossos portos 51.503... Esta
marcha progressiva da imigração é puramente espontânea. Uma vez votados fundos
que se destinem a esse objetos; realizados, como sê-lo-ão em breve, os projetos
de propaganda para que concorrestes no ano passado com a vossa sanção, e desde
que formos assim melhor conhecidos nesses grandes viveiros de homens da Europa;
oferecida a terra em condições vantajosas, e mantida, sobretudo, a situação de
paz que nos rodeia, a imigração acudirá às nossas plagas em massas compactas,
que, por mais numerosas que se apresentem, encontrarão amplo espaço e generosa
compensação ao seu trabalho”. - Mensaje,
de maio de 1883, p. 31 e 32. Guardando nós a escravidão, e tendo a República
Argentina paz, esta será dentro de vinte anos uma nação mais forte, mais
adiantada e mais próspera que o Brasil, e o seu crescimento e a natureza do seu
progresso e das suas instituições exercerá sobre as nossas províncias do Sul o
efeito de uma atração desagregante que talvez seja irresistível.
6. Times de 7 de janeiro de 1861
7. Antigüidade de Israel, tradução
de H. S. Solly
8. Does
the Bible Sanction American Slavery?
9. Victor
Schoehcher
10. Cartas
do solitário, carta XI
11. Mommsen.
FIM
O
Abolicionismo, de Joaquim Nabuco
Fonte:
NABUCO, Joaquim.
O abolicionismo. São Paulo :
Publifolha, 2000. (Grandes nomes do pensamento brasileiro da Folha de São
Paulo).
Texto proveniente de:
A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Texto-base
digitalizado por:
Sérgio Simonato
- Campinas/SP
Este material
pode ser redistribuído livremente, desde que não seja alterado, e que as
informações acima sejam mantidas. Para maiores informações, escreva para <bibvirt@futuro.usp.br>.
Estamos em busca de patrocinadores e
voluntários para nos ajudar a manter este projeto. Se você quer ajudar de
alguma forma, mande um e-mail para <bibvirt@futuro.usp.br> e saiba como isso é possível.
Herói nacional, para sempre
Estadista, historiador, diplomata e sedutor. E, acima de tudo,
o homem que encabeçou a mais justa de todas as causas:
a batalha da opinião pública que terminou por convencer a
sociedade brasileira a se mobilizar para acabar com a escravidão
Vilma Gryzinski
Fundação Joaquim Nabuco
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O ABOLICIONISTA
Joaquim Nabuco e a definição de seu papel: "Um mandato a que não se pode renunciar"
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Num domingo, dia 13, a princesa Isabel desceu a serra. Vinha de Petrópolis e ia para um lugar de honra na história. Com os olhinhos azuis iguais aos do pai, contemplou a multidão tomada de enorme comoção que estava na frente do palácio imperial, no centro do Rio. Usava um vestido de seda marfim, enfeitado com rendas francesas, e assinou com mão firme as palavras de explosiva simplicidade escritas no documento à sua frente: "É declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil". Para quem olha o passado com displicência retroativa, a história termina aí: transformações econômicas e políticas empurraram um regime falido a aceitar a libertação da massa vilmente explorada, com a participação de um ou outro representante da elite esclarecida. Mas afastemos um pouquinho a cortina alegórica que cerca o 13 de maio de 1888. Assinada a lei, Isabel voltou-se para o homem alto e elegante que estava a seu lado naquele momento emocionante. "Estamos reconciliados?", perguntou. Como perfeito cavalheiro que era, Joaquim Nabuco acedeu e beijou a mão da princesa. Depois assomou à janela, para saborear o momento de glória e a adulação da massa. Aquele dia era dele, mais do que de qualquer um.
Não existe a mínima prova histórica, ainda mais no caso de uma princesa carola e apaixonada pelo marido, mas não é impossível imaginar pelo menos uma pontinha de flerte na pergunta de Isabel. As mulheres não resistiam a Nabuco. Aliás, os homens também não. No campo das ideias e da camaradagem viril, evidentemente. Joaquim Nabuco, que ressurge das brumas históricas ainda que fugazmente, em virtude do centenário de sua morte, neste dia 17, foi um personagem tão monumental que tudo em torno de sua extraordinária vida parece ser exagerado. Desvendada, a névoa do mito se revela, no entanto, tecida de verdade. Candidato a maior estadista da história nacional, embora no papel nunca tenha sido mais do que um simples deputado, Nabuco tem um título incontestável: foi o mais importante, o mais eloquente e o mais popular dos abolicionistas. Protagonizou o movimento pelo abolicionismo e, ao mesmo tempo, refletiu sobre a história que se desenrolava à sua volta, captando com a força de um intelecto preciso como laser a importância orgânica da escravidão na sociedade brasileira. No processo, como definiu o grande historiador Evaldo Cabral de Mello, escreveu "a mais brilhante análise do papel desempenhado pela escravidão na formação social e política do Brasil".
À luz da história no que tem de mais estéril - a entediante versão mil vezes repetida do 13 de maio e seus antecedentes -, é difícil reproduzir a força avassaladora que o movimento contra a escravidão despertou em todo o país. O que o Brasil teve de pior - o comércio, a servidão, a exploração e a indizível violência mil vezes cometida contra seres humanos - gerou o que o Brasil de melhor conseguiu oferecer, sob a forma da luta abolicionista. Foi uma história de homens tomados de paixão por uma causa justa e, entre eles, nenhum mais apaixonado do que o jovem pernambucano de família ilustre, pai, avô e bisavô senadores do Império, com muito berço e quase nenhum dinheiro, que se tornou o que de mais parecido poderia existir no século XIX com uma celebridade ao estilo contemporâneo, aclamado, paparicado e adorado."Absorvia-a no leite preto que me amamentou; ela envolveu-me como uma carícia muda toda a minha infância", escreveu ele sobre a escravidão que conheceu como menino, num engenho pernambucano. "Por felicidade da minha hora, eu trazia da infância e da adolescência o interesse, a compaixão, o sentimento pelo escravo - o bolbo que devia dar a única flor da minha carreira." Não há quem não se arrepie ao ler como o jovem Nabuco descobriu que a tepidez do que parecia a ordem natural das coisas, de menino mimado pelas mucamas, era na verdade brutal e amarga. Era menino ainda, estava sentado no patamar da escada superior da casa onde havia sido criado pela madrinha, quando surgiu um jovem de corpo castigado. Lançando-se a seus pés, o escravo pediu que fosse comprado, salvando-o assim do senhor que o supliciava. "Foi este o traço inesperado que me descobriu a natureza da instituição, com a qual eu vivera até então familiarmente, sem suspeitar a dor que ela ocultava", descreveu Nabuco. Nasceram ali as sementes que o levaram a, mais tarde, autodesignar-se representante do "mandato do escravo", explicado com palavras de impressionante contemporaneidade: "Delegação inconsciente da parte dos que a fazem, interpretada pelos que a aceitam como um mandato a que não se pode renunciar".
Nabuco pensava como um gigante histórico, polemizava como um estivador e jogava para a plateia como um ídolo pop. Travada, em grande parte, no centro da vida intelectual da época - os teatros -, a campanha abolicionista forneceu o palco ideal a um Nabuco simultaneamente confiante, arrojado, pedante, metido. Ou, na definição da cientista social Angela Alonso, autora da ótima biografia Joaquim Nabuco (Companhia das Letras), um "enamorado de si mesmo", impelido ao fulcro do cenário nacional tanto pelo imperativo moral quanto pelo desejo de aplausos e aprovação - que artista não se identificaria com ele? Entre os muitos palcos, nenhum foi mais consagrador do que o do Teatro de Santa Isabel, no Recife natal, onde as mulheres faziam fila nos camarotes especiais, suspiravam, lançavam pétalas de rosas e lencinhos com seu rosto pintado. No ápice da campanha e da popularidade, também se tornou marca de cigarros (Nabuquistas e Príncipes da Liberdade), de cerveja (Salvator Bier) e até de um modelo de chapéu (O Abolicionista, com um retrato dele). Pois, ainda por cima, o herói da causa era bonito. "Branco alvíssimo", numa descrição da época, media 1,86 metro e tinha olhos de mormaço, como a Capitu que ainda haveria de nascer da cabeça de seu amigo Machado de Assis. Correspondia, em tudo, até no bigodão, uma novidade em relação às barbas da época, ao apelido de Quincas, o Belo. Nos retratos e fotos, aparece sempre de mãos à cintura ou com dois dedos no bolso do colete ou em alguma outra pose que gritasse: sou o dono do mundo. Era assumidamente metrossexual, ou, como se dizia no século XIX, um dândi, o tipo masculino preocupado com a aparência e sensível a modismos. Usava robe de seda japonesa, malas Louis Vuitton e senso de humor. "Riem e se cutucam quando entro na Câmara, culpa do meu terno de casimira clara, do sapato inglês e do chapéu de palha", escreveu a seu eterno e complicado amor, Eufrásia Teixeira Leite (leia mais). "Só para provocar usei outro dia a pulseira de ouro. Aquela que me deste." A joia já havia dado o que falar. Numa das campanhas eleitorais (ganhava, perdia, ganhava, perdia), os adversários o apelidaram, maldosamente, de "candidato da pulseira".
Fotos Fundação Joaquim Nabuco
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Quem o julgasse apenas pela aparência polida incorreria em grave erro. Nabuco sabia bater. No calor da campanha abolicionista, que inflamava o país inteiro mas esbarrava na resistência composta de boa parte dos políticos (tanto liberais quanto conservadores) e dos fazendeiros do oeste paulista, do Vale do Paraíba e da zona cafeeira de Minas, escreveu que o Brasil estava dividido em duas falanges: "A pirataria e a civilização". Tinha, também, seu lado Tancredi, o personagem do Gattopardo de Lampedusa (e do filme de Visconti), e sua excessivamente usada frase sobre as mudanças necessárias para não mudar a ordem essencial das coisas. Cheio, portanto, de contradições, sofria períodos de depressão, pensou em emigrar para a Austrália ou a Nova Zelândia, vivia dividido entre o Brasil e a Europa. "De um lado do mar sente-se a ausência do mundo; do outro, a ausência do país", escreveu. Enfim, a complexidade e os questionamentos que se esperam dos intelectos superiores. Foi um monarquista esclarecido que escreveu contra Pedro II o panfletário O Erro do Imperador (daí a frase de Isabel no dia da abolição), um interessado na "política que é história" que conheceu o que a outra política tem de pior, um deputado que entrou para a Câmara "tão inteiramente sob a influência do liberalismo inglês como se militasse às ordens de Gladstone" e que acabou incluído em artigo do Times de Londres na turma de "comunistas" que usavam o abolicionismo radical para subverter a ordem.
Devido à multiplicidade e à riqueza tanto de sua personalidade quanto de sua obra política, até hoje é possível beber na fonte nabuquista a partir de diferentes perspectivas. Como em todas as grandes obras, cada um encontra em Nabuco o que procura - ou, melhor ainda, o que nem sabia existir. À esquerda, causa simpatia sua defesa da nacionalização das terras para uma reforma agrária que acabasse com a miséria provocada, em especial no Nordeste, pelo sistema de grandes propriedades, "fazendas ou engenhos isolados, com uma fábrica de escravos, com os moradores das terras na posição de agregados do estabelecimento, de camaradas ou capangas". Mas é difícil competir com sua análise da "superstição do estado-providência", pois, sendo o estado "a única associação ativa, aspira e absorve pelo imposto e pelo empréstimo todo o capital disponível e distribui-o, entre os seus clientes, pelo emprego público".
Voltando ao 13 de maio. Feito o beija-mão, Joaquim Nabuco recebeu as ondas intermináveis de aplausos. "Delírio no recinto, meu nome muito aclamado", anotou em seu diário. Quem acha que o Carnaval dura muito não imagina o que foi a festa da libertação dos escravos: sete dias de feriado nacional, todo mundo na rua, bandas e cortejos, prédios enfeitados, espetáculos gratuitos nos teatros. No dia 17, quando aconteceu a missa celebratória diante de 20 000 pessoas, Nabuco e Isabel de novo se cruzaram. Ela passava de carruagem, cercada pela massa eufórica. Nabuco surgiu e, como um Moisés no Mar Vermelho, caminhou entre a multidão, que se abriu para lhe dar passagem. Cumprimentou a princesa e lhe ofereceu camélias brancas, a flor do abolicionismo. Era festa, mas o destino dela e da monarquia que representava já estava selado. Sabendo disso, Nabuco prometeu a si mesmo: "Eu hei de ser o último dos monarquistas. Preciso bater-me pela princesa, a nossa Lincoln, como me bati pela abolição". Como homem honrado, cumpriu o prometido.
Parece que foi ontem
As imagens da escravidão que estão na memória de muitos de nós são as gravuras de Debret - meio apagadas, distantes, coisa de muito tempo atrás. Por isso é sempre um choque descobrir que a ignomínia do trabalho escravo conviveu por bom tempo com a fotografia, uma das novidades tecnológicas que inauguraram a era contemporânea. À exceção do impressionante e anônimo flagrante da mulher na liteira, com dois carregadores, as fotos aqui reproduzidas foram feitas por nomes conhecidos no século XIX, fundadores de estúdios fotográficos importantes. O alemão Alberto Henschel fotografou as duas mulheres, a babá com o menino e a do retrato ao lado, ambas belas e fortes. Marc Ferrez, o filho de franceses que mostrou tantas e tão deslumbrantes belezas do Rio, fotografou os escravos na colheita de café. O suíço Georges Leuzinger congelou no tempo a fazenda arrancada à rocha viva em Jacarepaguá, as crianças negras em andrajos, o menino branco todo arrumadinho no cavalo de brinquedo. Eles todos são nós e nós somos eles.
Fonte
http://veja.abril.com.br/130110/heroi-nacional-sempre-p-100.shtml
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