samedi 8 novembre 2014

Para Zlabya, com amor

Jorge Pinheiro

Bendita seja a eternidade, que ama as gentes e a vida plena de sentido, que nos apresenta os limites para que não sejam quebrados com ignorância, mas possibilita a liberdade de ir além. Bendita seja a eternidade, que ama as gentes.

Eu me chamo b. ShemTov Yoffe e minha mulher, sua avó, Brianda Nisi. Estamos fazendo uma pequena viagem. Vão conosco suas duas tias, Adara, Ahava e sua mãe Sharon. A pick-up é uma Land Rover Defender 65, placa 420AMW60, uma réplica daquelas do milênio passado, só que movida a energia solar. Quem me deu esta máquina foi meu amigo de jornadas Antoine LeRoy, como presente de aniversário pelos meus quatrocentos e oitenta anos, completados no dia três de janeiro. Como você sabe somos uma nova espécie, longeva. Tudo indica que aparecemos fazem uns dois milênios e meio. E não foi num lugar específico, mas em regiões diferentes deste pequeno mundo azul. Continuamos aparecendo e estamos todos vivos. Sabemos, porém, que aos seiscentos anos viramos limites. Depois conto com mais detalhes. Por ora, vou dizer apenas que os limites são os guardiães da nossa longevidade. Por isso, não há ancestrais entre nós, apenas descendência.


Partimos de Montpellier, no litoral do Mediterrâneo francês em direção ao parque nacional de Cèvennes, às oito da manhã de sábado, chegamos em Anduze, cidade que dá entrada à região de Cèvennes, por volta das dez da manhã. Depois de dois cafezinhos e três chás, para pais e filhas, para esquentar o frio, começamos a atravessar o parque, construindo ziguezagues pelo vale, a margear o rio Gard. Cenário de campo da região de Languedoc, com seus castelos, não muitos, suas fazendas e vinhas. 


Arquitetura medieval em pedra, cidades que se cruza em minutos. Estradas secundárias, mas em ótimas condições. Uma delas com um aviso, atenção pista com lombada, para dizer que a estrada não era muito boa. Fiquei esperando buracos e desníveis, mas nada, apenas não era lisa como as anteriores. 


Quando o vale ficou para trás e iniciamos a subida da montanha numa estrada sinuosa com precipícios à esquerda, Adara, Ahava e Sharon, que se tornarão limites da vida, assim como você um dia, são moças do frio, tiveram sua primeira experiência de neve naquele inverno. Nevava levemente. Mas, conforme subíamos, maior umidade e neve mais forte. Não houve como resistir, descemos do carro e fizemos nossa primeira guerra na neve. Foi a glória. Brianda e as três pareciam crianças. A maior farra. Preocupado com a possibilidade das quatro se resfriarem, coisa boba, impossível para quem viveu sob temperaturas de menos trinta centígrados, fiz as quatro voltarem para a pick-up. A alegria é a prova dos nove... 


Seguimos viagem debaixo de neve e da beleza das estradas emolduradas pelos pinheiros verdes, cobertos... Como nos cartões postais de Natal. Chegamos a Florac, já lá em cima, no meio de uma nevada que caía quase forte. Segundo a tradição, os gauleses viviam na região, mas o nome da cidade veio dos romanos, algo assim como flor da água ou coisa pelo estilo. E eu me lembro de quando a reforma dos protestantes chegou a Cèvennes trazida pelos mascates de Genebra. Eles trouxeram em suas malas, o livro antigo da tradição judaica-cristã traduzida para o francês. E as gentes de Florac amaram as novas ideias de reforma. A primeira comunidade protestante surgiu em 1560 e o primeiro anunciador foi Antoine Coppier. Mas depois disso correu muito sangue debaixo da ponte. Mas essa história eu conto depois.

Entramos num restaurante muito simpático, La source du pécher, cheio de hippies, o que parecia estranho e fora de época. Tomamos chocolate quente e voltamos para o carro. Estacionei numa pequena praça e almoçamos dentro da pick-up. Brianda tinha preparado coxa de peru assado com batatas, suco de maça e pão, que aqui é sempre um capítulo à parte. Amamos as baguettes. 

Depois do almoço, fomos visitar o castelo de Florac, reconstruído em cima dos escombros do velho castelo, destruído várias vezes. Essas destruições e reconstruções estão presentes em minhas memórias, assim como o sangue derramado. De todas maneiras, não podemos esquecer que toda a região de Cèvennes foi um polo das lutas pela liberdade de expressão e de pensamento, com a presença dos primeiros huguenotes.

Nevava forte e a história cedeu lugar a uma nova e aguerrida batalha na neve, agora sem armistício ou mediação. Brianda, a mãe, foi atacada sem dó nem piedade. E em nenhum momento reclamou das boladas recebidas. Reagiu à altura, sem complacência. Por fim, voltamos à pick-up e seguimos viagem para Barre de Cèvennes, outra região histórica, onde o protestantismo nascente produziu guerrilheiros e profetas. 


Mas aí tivemos o prazer de entrar na cidade debaixo de uma nevasca. Em poucos minutos a neve cobriu o carro. Descemos e fomos visitar uma velha igreja protestante. Eu estava emocionado pelo momento sublime do encontro com a heróica convicção protestante que eu quase vi nascer, mas também, com Brianda, Adara, Ahava e Sharon, inebriadas pela beleza da nevasca, soprada por ventos fortes.

Assim como a neve... A cidade inteira estava branca. Tudo branco. Guerra de neve era pouco, o momento exigia algo mais grandioso. Lembrei-me que a eternidade dirá sempre que assim como desce a neve e não volta, mas rega a terra, a faz brotar, dar semente ao semeador e pão ao que come, assim é a palavra eterna, que não volta, mas faz o que a eternidade quer e prospera no seu objetivo. Agradecemos à eternidade pela vida.

Um grupo de jovens passou por nós, no meio da rua, cantando, gritando, alucinados pelo momento. Foi difícil deixar Barre de Cèvennes. Mas tivemos que fazê-lo. Eu não queria dirigir nas montanhas, à noite, debaixo de neve.

No caminho, Brianda viu um mirante, grande, que se debruçava sobre o vale. Paramos mais uma vez.

Desta vez, Adara, Ahava e Sharon fizeram anjos. Para quem não sabe, consiste em se jogar de costas na neve de braços abertos e deitado fazer movimentos com os braços para marcar a neve. Depois, de pé, olhar e ver no branco, em branco, um anjo com suas asas abertas. E fizeram outros anjos... e por fim num gesto solidário, juntos, fizemos um boneco de neve. Na verdade, boneca, porque vestiu o gorro e o cachecol rosa da Sharon. Não era uma boneca enorme, mas muito simpática.

E lá seguimos nós, parando mais uma vez num pequeno hotel e depois fazendo o caminho de volta. Retornamos ao vale, passamos de novo por Anduze, e seguimos para Nîmes, cidade construída pelos romanos, que tem no centro uma arena, um coliseu, onde ainda se realizam corridas de touros. Quando chegamos estava acontecendo uma. Mas levei as meninas a Nîmes só para uma rápida olhada. Voltamos, já à noite para Montpellier.


Chegamos. E li a placa da pick-up como, ao bater os olhos nela, tenha um maravilhosos final de semana, agradeci à eternidade pelo gostoso sábado branco de meus quatrocentos e oitenta anos, que, tocado pelos anjos nevados de Adara, Ahava e Sharon, Antoine nos proporcionou com o presente. E ao eterno, glória, pois diz que aqueles que esperam nele renovam as forças, voam como águias, caminham, correm e não se cansam.

Atente para isso, a descendência é responsável pelo ontem, pelo hoje e pelo amanhã. É na construção da vida, escolhida ou imposta, mas aceita, e na sequência dela, que a descendência se faz comunidade humana. As realidades da terra e do céu são vaidade e correr atrás do vento quando é descartado o papel humano de cada dia. Por isso, deve fazer a crítica do clerical e chamar as pessoas à liberdade do espírito, para que pense a vida, que é construída para além das aparências das coisas da terra e do céu. 

As palavras mudam de sentido, e podem dizer coisas diferentes, quando as usamos sobre uma perspectiva diferente. Palavras. Você já pensou na importância delas? É, sem dúvida, um dos limites da vida. Os descendentes devem acreditar que o universo foi feito pela palavra eterna. Acreditar que a palavra tem poder, por isso deve ter uma palavra só, cheia de sentido, ou seja, quando você disser sim, que seja sim mesmo, e quando disser não, que seja não. Mas a sabedoria nos diz que a vida se faz também por outras palavras. Dessa maneira, o ato de criação e o fazer humanos não são iguais porque as palavras são diferentes. 

Ah! Embora as palavras sejam diferentes, os temas da vida são sempre os mesmos temas: o amor e o desamor, a distância e a saudade, o tino e o desatino. A diferença, porém, é que se faz, sempre, por outras palavras. E tudo muda...

Sou grato à eternidade, mas sem pieguices. Diga você também muito obrigado porque as contingências da vida não fumegaram o pavio. Lá na frente, eu serei o garoto que andava pela ruas sem saber que a vida vai além do meio fio, que há fronteiras. E lá ao longe, mas para mim perto, estará o mar. O veleiro. A liberdade, aprendida com Moran, será negociar com os ventos e a maré. Diante das mareações, a marinharia me fará, junto do tio, um menino livre. 

Por isso, a Zlabya, apresento a leitura humana da convicção e do posicionamento, onde se aprende a degustar prazeres. Não se faz às correrias, com sofreguidão. É um ato delicado, um caminhar por palavras, dançando com elas pelo universo em construção.
 
Nesse sentido, eu e você, todos somos poemas da eternidade. Somos projetos de uma artesã, daí que a poesia e a razão andam juntas. Por isso, a paixão aproxima porque é sempre poesia e razão nos diferentes momentos. Quero que você, descendência, curta com prazer em cada ser humano as palavras, as outras palavras, que nos trazem diferentes construções e universos.

É, agradeço à eternidade porque fazer leitura virou destino. O menino lá da frente atravessou o tempo, os jeans, as camisetas, os cabelos arrepiados e caiu aqui, do outro lado da vida. Tempo de poesia e razão, o garoto de depois olha a plenitude, mas o homem de antes entende que o dó, o ré, e o mi solitários não são importantes, mas sim as notas do Murá, e os parabéns e sorrisos que a eternidade montou para você.

E volto às palavras, afirmativas, compostas, decoradas, sussurradas, que se bebem, que reboam, secas, vulgares... A identidade não pode ser definida facilmente, mas isso não significa que essa identidade não exista. Aliás, a maioria das identidades não podem ser definidas facilmente. Daí que tais identidades são também comunidades imaginadas, unidas por leituras historicamente sem exatidão precisa. Os uns não são diferentes dos outros, qualquer etnia e sua identidade não é facilmente definível, pois tais conceitos dependem dos descendentes.

Assim, Zlabya, lembre-se: a aparente simplicidade engana. Eis uma lição de mestre, traduzir o humano com simplicidade, sabendo que o simples dá trabalho e, ao contrário do que se pensa, nunca é primeiro, mas processo. E esse é o recado. Fazer leitura é descobrir o prazer da palavra curta, na construção muitas vezes trabalhosa que produz aquilo que é poesia. Ou seja, fazer leitura é descontrair e na imaginação construir novo, percorrendo se for possível o caminho de todos, de cada humano. E é assim que, sem estardalhaço, a leitura ocupa lugar nos corações, cheia de imagens e significados.

Digo à eternidade: obrigado pelo agradável, bom e doce que expressará em letras a liberdade do marujo. E se o ontem é um dia importante, é bom lembrar que o remédio para a enfermidade da segregação de gênero e raça é a construção social da cidadania e da justiça. A via para a liberdade estará numa trilha aberta aos diferentes, comprometida com os direitos humanos, mesmo quando sua identidade pessoal relacione diferenças e contradições.

O sondar daquele menino lá na frente ajuda. O olhar deslumbrado porque a vida será a praça, os jardins e os repuxos brancos no entardecer, as pessoas que comporão o cenário como se tivessem sido colocadas lá pelo arquiteto. E o mar... Uai! A humanidade coroa a glória. Aceite o prescrito com convicção.

mercredi 5 novembre 2014

Mulheres ...

... na vitrine,  enjauladas
Jorge Pinheiro

As situações de limite exemplificam as maravilhas do renascer em vida. Vemos isso, por exemplo, na expressão do rabino de Nazaré "onde pouco é perdoado, pouco amor é mostrado".


Lembro-me de uma moça nigeriana, Aminal Lawal, que foi condenada por ter um filho dois anos depois de separar-se do marido. Seria apedrejada, conforme ordena a lei islâmica, a Shariah.




Há mais de três mil anos, uma jovem chamada Raabe, na Palestina, também correu o risco de ser assassinada. 


E para entender o milagre do renascer em vida faço uma rápida correlação entre as histórias de Aminal e de Raabe. Mas é bom lembrar que a cultura da época situava a prostituição como comércio ilegal do amor sexual. E perdão diante de tal culpa e limite era, desculpa, renúncia às consequências punitivas justificáveis em face desta ação que transgredia preceitos afetivos jurídicos, morais e religiosos.


A Sharia é a aplicação do Alcorão na prática cotidiana, e em alguns países ainda é aplicado como lei. Assim, a morte por apedrejamento era um costume no Oriente Médio, e essa norma também fez parte da Torá judaica.


Aminal, a moça muçulmana, teve um filho fora do casamento. E por isso devia ser apedrejada. Mas o mundo ocidental se manifestou pela revogação da sentença. Então, os juízes islâmicos, pressionados pela opinião pública, usaram um subterfúgio para salvar Aminal. Alegaram que segundo a tradição islâmica um bebê pode estar em gestação por um período de até cinco anos. Ou seja, Aminal poderia estar grávida do marido.

Mas, me lembrei de uma caminhada pelo Red Light District, área livre de Amsterdam para o consumo de drogas e sexualidades várias, que fica entre Warmoesstraat, Oudezijds Voorburgwal e Oudezijds Achterburwal e suas ruas perpendiculares. É aqui que, por trás de cada vitrina de néon vermelho, moças se colocam, corpos à mostra, a espera de clientes. 

O Red Light District é, na verdade, um parque temático sexual, onde são desovados diariamente milhares de turistas e adolescentes que chegam em ônibus pulmann. Note-se que é proibido tirar fotos das moças que estão nas vitrinas. É um bairro que faz o tipo boêmio, embora aqui tudo seja milimetricamente planejado. Está cheio de bares, sex shops e tabacarias onde você pode comprar sementes de maconha das mais diferentes qualidades. A atmosfera é surrealista. 

As moças nas vitrinas me lembraram a boneca Barbie, que já passou dos 50, mas continua a ser a plastificação da sexualidade de consumo. Aquelas moças estão barbificadas sob as luzes de néon, numa espécie de jogo virtual, onde personalidades e imagens sexuais são criadas para transmitir uma ideia de liberdade que não existe no mundo real. Falo de jogo virtual porque as vitrinas transmitem a sensação de interação on-line, de plataforma virtual, presente no imaginário da garotada que se pluga ali. A moça não existe, mas sim a personagem, ou avatar, que recebe a missão de seduzir. A noção de jogo é sutil, mas está presente e é desafiante.

As moças estão de roupas íntimas, ou nuas, com um olhar maroto para os passantes. Caso haja interesse, negociarão serviços e preços. O serviço padrão é 15 minutos de sexo oral e coito por 50 euros. O que acontece nas vitrines não é domínio do real, mas o virtual usado como plataforma de jogos da imaginação. O comportamento sexual acaba sendo irrelevante ou responsável por emoções de vida real. Num jogo desse tipo, a função do olhar e os possíveis mergulhos no imaginário é o que conta. Por isso, vemos grupos de jovens, tirando sarro, desafiando uns aos outros, como se estivessem num parque de diversões. Não basta olhar, é necessário ser olhado e as moças sabem disso, e provocam com piscadelas ou um sorriso mais provocante e dirigido. E a garotada vem abaixo, como se tivesse realizado uma conquista de verdade. Sexo com a moça da vitrina é de simples execução. Afinal, com a personagem não se dialoga, se pergunta quanto custa. Por isso, apesar da expressão grotesca, é um fast food para jovens em bando. 

Após um século de lutas femininas por direitos e sentido de vida, é difícil, mesmo sob o argumento econômico de que elas fazem assim porque querem, olhar sem constrangimento mulheres enjauladas. 

Aqueles que defendem a permanência da prostituição de vitrina em Amsterdam dizem que tem vantagens, porque as moças são seus próprios patrões, não têm que pagar percentagem dos rendimentos para o proprietário de um bordel -- a não ser o aluguel razoavelmente alto do quarto – e pode escolher seu próprio horário de trabalho. Além do que, dizem, como há um fluxo interminável de clientes, podem faturar algumas centenas de euros por dia de trabalho. E porque trabalhar aqui pode ser mais seguro, pois com um gesto de mão podem acionar um botão para chamar o proprietário ou a polícia. 

Mas a verdade é que tal exposição humilha. Elas estão expostas lá na vitrina para que todos possam ver e, por isso, a maioria delas não vive em Amsterdam. Não querem ser reconhecidas por amigos, parentes e vizinhos. Outro fato importante é que a maioria delas não é natural dos Países Baixos, mas moças que vieram da Europa Oriental ou da Södra unionen. 

O Red Light District é o mais antigo bairro de Amsterdam. Tem fachadas do século XIV, canais e becos encantadores. Aqui está a mais antiga igreja da cidade, a igreja de São Nicolau, construída entre 1366 e 1566. E como o bairro era point da marujada, aqui na igreja você encontra as tumbas de almirantes em pinturas e esculturas de barcos. A torre octogonal é de estilo gótico-renascentista, era uma referência para os barcos que atracavam no porto.

Zlabya, Raabe, a moça da cidade de Jericó, depois da sua libertação, tornou-se mulher de Salmon, filho de Calebe, e mãe de Boaz. É bom lembrar que as prostitutas na Antiguidade, cultuais ou não, começavam seu ofício ainda na puberdade. Na vida escura e duvidosa dessa jovem, prostituta e mentirosa, deve ter brilhado a centelha de que com os hebreus havia um Eterno maior do que todos os deuses que ela conhecera. A cidade de Jericó estava em pânico, temendo um ataque dos hebreus, e entre o povo se comentava o que o eterno dos hebreus fizera na saída do Egito e durante a caminhada no deserto: Soubemos que o Senhor secou o mar Vermelho diante de vocês quando saíram do Egito. Também ficamos sabendo como, a leste do rio Jordão, vocês mataram Seom e Ogue, os reis dos amorreus, e destruíram os seus exércitos.

Zaná é uma palavra hebraica que pode ser traduzida como praticar prostituição, mas seu sentido literal quer dizer manter relações sexuais ilícitas. É a palavra que designa a atividade de Raabe, a jovem que escondeu os espiões enviados por Josué. Tal palavra normalmente se refere a mulheres e apenas duas vezes diz respeito a homens. A forma feminina é usada para indicar a prostituta. Tais pessoas recebiam pagamento, tinham marcas características que as indicavam, tinham suas próprias casas e deviam ser evitadas. Poucas vezes, a mulher com quem o ato é cometido é identificada como mulher casada, mas também nunca se afirma que é solteira.

Ambas mulheres, Aminal e Raabe, foram consideradas prostitutas, conforme o costume de suas culturas. A primeira adulterou e a segunda, segundo estudiosos, era uma sacerdotisa da religião dos cananeus, ou seja, uma prostituta cultual. Ambas mereciam a morte, mas renasceram para a vida pelo milagre do perdão. E perdão implica em libertação oferecida e esquecimento, por isso não importa mais se Aminal adulterou ou se Raabe era prostituta. Mas há uma diferença, não sei se para Aminal houve de fato libertação.

Já Raabe confiou na misericórdia e no poder da eternidade e renasceu em vida. E fez um declaração marcante ao reconhecer que o Eterno estava acima dos deuses cananeus: A eternidade é em cima no céu e aqui em baixo na terra. 

Estas palavras, proferidas por Raabe, são sentido pleno da vida e contrição. 


Centenas de anos mais tarde, o rabino de Nazaré, descendente da prostituta Raabe, disse a um religioso que o convidou para jantar: Você está vendo esta moça? Quando entrei, você não me ofereceu água para lavar os pés, porém ela os lavou com as suas lágrimas e os enxugou com os seus cabelos. Você não me beijou quando cheguei; ela, porém, não para de beijar os meus pés desde que entrei. Você não pôs azeite perfumado na minha cabeça, porém ela derramou perfume nos meus pés. Eu afirmo a você, então, que o grande amor que ela mostrou prova que os seus alvos errados estão perdoados. Mas onde pouco é perdoado, pouco amor é mostrado. 


Perdoar é esquecer, libertar, renascer. Eis o milagre que cobriu Raabe. Mas como ficam as outras moças enjauladas?

lundi 3 novembre 2014

O amor ao Eterno fundamenta a obediência a Ele

A graça e a obediência

Primeira parte

Os batistas acreditamos na necessidade do arrependimento, e que é possível viver a vida cristã e obedecer aos mandamentos de Deus, através de uma obediência sincera. “Recebemos dele tudo o que pedimos porque obedecemos aos seus mandamentos e fazemos o que agrada a ele”. 1Jo 3.22.

Existe uma obediência legalista, servil, e uma obediência de filho, da pessoa que nasceu de novo. “Aquela água representava o batismo, que agora salva vocês. Esse batismo não é lavar a sujeira do corpo, mas é o compromisso feito com Deus, o qual vem de uma consciência limpa. Essa salvação vem por meio da ressurreição de Jesus Cristo”. 1Pe 3.21.

No lugar da idéia de pecado contínuo e de arrependimento contínuo, enfatizamos o poder de Deus que guarda, e a necessidade da pessoa nascida de novo entregar-se a Deus: confessar seus pecados e afastar-se deles quando errar. Ao evitar o legalismo e o perfeccionismo que nasce do amor próprio, insistimos na obediência que nasce da fé.

“Samuel respondeu: O que é que o Senhor Deus prefere? Obediência ou oferta de sacrifícios? É melhor obedecer a Deus do que oferecer-lhe em sacrifício as melhores ovelhas”. 1Sa 15.22.

O critério para avaliar a espiritualidade é a obediência voluntária. Não se compreende a fé sem obediência. A fé é salvadora quando nossa ação traduz aquilo em que se crê. Assim, a obediência é a evidência de um relacionamento íntegro com Deus. “Não é toda pessoa que me chama de ‘Senhor, Senhor’ que entrará no Reino do Céu, mas somente quem faz a vontade do meu Pai, que está no céu”. Mt 7.21.

A alienação tornou o humano num ser propenso ao distanciamento. Há uma tendência no ser humano a fazer esse caminho próprio. “Não deixem que ninguém engane vocês com conversas tolas, pois é por causa dessas coisas que o castigo de Deus cairá sobre os que não obedecem a ele”. Ef 5.6.

Ora, se a centralidade da alienação está no distanciamento, a centralidade da fé está na obediência. Como podemos nos considerar salvos se estamos distanciados da vontade de Deus? “Eu tenho prazer em fazer a tua vontade, ó meu Deus! Guardo a tua lei no meu coração”. Sl 40.8.

Pela graça

Há pessoas que confundem a salvação através da obediência à lei, denominada salvação pelas obras, com justificação pela graça através da obediência na fé. Ora, quando a fé nasce da graça derramada sobre nossas vidas, a Palavra de Deus é soberana, e o normal é obedecê-la. Se a fé é um absoluto na vida cristã, a obediência não pode ser condicional. A fé que salva é uma fé que leva à obediência habitual e voluntária. Essa obediência não são obras e atos do homem ou da mulher, mas unida à fé é dom de Deus, que capacita os salvos para uma vida de missão. “Guardam no coração a lei do seu Deus e nunca se afastam dela”. Sl 37.31.

Mas é só pela graça que o salvo pode obedecer a Deus. Não há qualquer possibilidade de uma obediência voluntária por aquele que se encontra escravizado às maldades da natureza humana, ao mundo e ao diabo. A humildade dos salvos à vontade de Deus também seria impossível sem a graça. Sabemos que a graça é instrumento capaz de dar humildade ao ser humano, arrogante na alienação, sem degradá-lo. É o meio capaz de engrandecê-lo, sem torná-lo presunçoso. Ou como disse Paulo: “pela graça de Deus sou o que sou, e a graça que ele me deu não ficou sem resultados. Pelo contrário, eu tenho trabalhado muito mais do que todos os outros apóstolos. No entanto não sou eu quem tem feito isso, e sim a graça de Deus que está comigo”. 1Co 15.10.

A obediência que nasce da graça é a obediência daquele que crê, e não de um escravo que se submete com medo. Não há servidão ao legalismo, mas submissão graciosa. E Jesus é o exemplo: “eu desci do céu para fazer a vontade daquele que me enviou e não para fazer a minha própria vontade”. Jo 6.38.

A obediência na fé não é apenas uma possibilidade na vida. É prova de amor, de conversão radical. Quem obedece movido pelo medo não conhece o amor. Obediência e amor caminham juntos: um aponta para o outro. O amor e o medo existencial se repelem, pois o medo é resultado da incerteza do amor de Deus. Há pessoas que tentam obedecer porque têm medo de conseqüências imaginárias, da morte ou do inferno. Desconhecem o amor divino, mas, se o medo faz da obediência uma obrigação terrível, o amor torna a obediência um momento especial de encontro com o Salvador, porque “no amor não há medo. O amor que é totalmente verdadeiro afasta o medo. Portanto, aquele que sente medo não tem no seu coração o amor totalmente verdadeiro, porque o medo mostra que existe castigo”. 1Jo 4.18.

A obediência sem amor é imposição cruel: nada é mais terrível do que a obrigação destituída de amor. O amor não é passivo, opressivo, nem possessivo. Toda obediência de mero compromisso é constrangimento. Assim, “tudo o que vocês fizerem seja feito com amor”. 1Co 16.14.

O amor é a chave da obediência. A vida cristã não é comportamento formal. A conduta dos filhos é fruto da atitude humilde de um coração submisso à vontade do Pai. Obedecer de má vontade é, seguramente, uma coação, pois “damos graças a Deus porque vocês, que antes eram escravos do pecado, agora já obedecem de todo o coração às verdades que estão nos ensinamentos que receberam”. Rm 6.17.

Jorge Pinheiro.

O pensar solidário, origens

As origens do pensamento solidário
Jorge Pinheiro, PhD

O pensamento solidário é o produto da evolução econômica e religiosa, que foi lentamente preparado e que se apresentou como pensamento político a partir da Renascença, da Reforma e com o surgimento do capitalismo. Ele surgiu em oposição ao pensamento autoritário da Idade Média e sedimentou suas bases nas criações culturais dos últimos séculos.


A ideia da busca da construção de sociedades mais justas e solidárias só pode ser compreendida a partir desse desenvolvimento e seu surgimento esteve ligado diretamente a esta evolução. Deve-se reafirmar, porém, que foi do interior do cristianismo que brotaram as ideias de economias e políticas solidárias e que um pensar solidário sem estes pressupostos é um equívoco. Aqueles que defendem uma economia, uma política, enfim, uma sociedade solidária devem compreender sob que princípios tal solidarismo repousou.

A organização econômica e religiosa da Idade Média estava fundada sobre um sistema de centralização da autoridade que, ancorado em leituras do sobrenatural, associava a natureza e o transcendente numa unidade que submetia pessoas e instituições.

A Reforma protestante, surgida a partir do pensamento humanista, que brotou a partir da Renascença, golpeou o sistema de autoridade, trouxe a fé pessoal, livre de amarras, para o plano formal, ao recorrer à autoridade das Escrituras. E, no plano material, valorizou a subjetividade da consciência.

Assim, apoiada formalmente sobre as Escrituras, a religião protestante produziu novas contradições, apesar do sistema centralizado da autoridade medieval já estar em frangalhos. Coube, a partir daí, às pessoas decidirem a que grupo queriam ligar-se: aos católicos ou aos protestantes.

Tal situação, no entanto, por razões geopolíticas, levou às guerras religiosas, fazendo com que as ideias de construção de sociedades livres e solidárias vivessem um processo lento, pois de cada lado, católicos e protestantes viviam a falsa esperança de que poderiam chegar a uma vitória exclusiva. Com o fim dos combates o que se viu foi que as oposições às confissões se tornaram permanentes. Dessa maneira, brotou a consciência autônoma nos mais variados campos, que se plasmou como consciência europeia ocidental, passando assim a atacar as muralhas autoritárias das religiosidades. E não deixou subsistir sob o solo protestante nada mais que os destroços do constrangimento autoritário.


E, ao nível do pensamento e da metodologia da produção científica, René Descartes golpeou o autoritarismo eclesiástico ao afirmar que a certeza que temos de nós mesmos é o princípio de toda certeza objetiva. E que, embora a autoridade não possa me livrar da dúvida, é em mim mesmo, na minha pessoa, somente, que se enraíza a certeza. Temos então, o Iluminismo, que constata: toda tradição deve ser submetida à crítica. Está dada a partir desse momento, no plano teórico, a possibilidade da busca da construção de sociedades justas e solidárias.



jeudi 30 octobre 2014

Há que ler o desejo

A existência a partir da tradução...
Prof. Dr. Jorge Pinheiro


... Ou, “há que ler o desejo: sem terra, sem pátria e sem objeto, ele vaga por um deserto, cujas trilhas conduzem o leitor à experiência limite mais-além do que aparece na imagem”. (Betty Fuks, Freud e a Judeidade, a vocação do exílio, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2000).

Να τι θέλω να πω, αδερφοί μου: Άνθρωποι από σάρκα και αίμα δεν μπορούν να πάρουν μέρος στη βασιλεία του Θεού, ούτε αυτό που είναι φθαρτό μπορεί να κληρονομήσει την αφθαρσία.

σε μια στιγμή, όσο θέλει το μάτι για ν’ ανοιγοκλείσει, όταν ηχήσει η σάλπιγγα των έσχατων καιρών. Θ’ ακουστεί ο ήχος της σάλπιγγας, κι αμέσως οι νεκροί θα επιστρέψουν στη ζωή άφθαρτοι, κι εμείς οι ζωντανοί θ’ αλλάξουμε το παλιό με ένα νέο σώμα. Πρέπει αυτό που είναι φθαρτό να μεταμορφωθεί σε άφθαρτο, κι αυτό που είναι θνητό να γίνει αθάνατο. Όταν αυτό το φθαρτό μεταμορφωθεί σε άφθαρτο και το θνητό μεταμορφωθεί σε αθάνατο, τότε θα πραγματοποιηθεί ο λόγος της Γραφής: Ο θάνατος αφανίστηκε· η νίκη είναι πλήρης! Θάνατε, πού είναι το κεντρί της δύναμής σου; Άδη, πού είναι η νίκη σου; Τη δύναμη να πληγώνει θανάσιμα την παίρνει ο θάνατος από την αμαρτία, κι η αμαρτία παίρνει τη δύναμή της από το νόμο. Ας ευχαριστήσουμε όμως το Θεό που μας χάρισε τη νίκη δια του Κυρίου μας Ιησού Χριστού. Λοιπόν, αγαπητοί μου αδερφοί, να γίνεστε όλο και πιο σταθεροί και αμετακίνητοι στην πίστη, και να έχετε πάντοτε όλο και περισσότερο ζήλο για την εκπλήρωση του έργου του Κυρίου, αφού ξέρετε ότι ο κόπος που καταβάλλετε για χάρη του Κυρίου δεν είναι μάταιος. (ΠΡΟΣ ΚΟΡΙΝΘΙΟΥΣ Α΄ 15:50, 52-58 TGV).

O fazer da existência vale a pena. A eternidade aprecia esse bem-fazer humano, que tem seu próprio tempo, que integra a existência de cada ser na história dos fazeres humanos. É por isso que Bereshit, o primeiro texto na Torá, apresenta um ponto zero. O tempo zero vai do entardecer à meia-noite. É quando o sol desilumina o nosso espaço de forma gradual. O tempo do não-ser não é uma fratura do tempo, é tempo da história. Qoh não contempla a passagem do tempo, mas a vinda do tempo. O tempo significa nada ou pouco para o eterno, mas há um sentido de tempo para o humano. A conclusão de Qoh é que temos de ser no tempo para dar valor à eternidade que brota do nada do não-ser. E a partir de Qoh vamos a Paulo de Tarso.


Pede-se ser levantado

“Você está falando de bens materiais, de coisa frágil. Se você tem certeza de que esses bens ficarão sempre com você, fique com eles sem partilhar com ninguém. Mas se você não é o senhor absoluto deles, se tudo que você tem depende mais da sorte do que de você mesmo, por que este apego a eles?”. 

Betty Fuks conta que Freud, um dia depois do sepultamento do pai, sonhou com um cartaz onde estava escrito: “Pede-se fechar os olhos”. Mais tarde, em carta a Fliess, o pai da psicanálise falou dos sentidos subjetivos da frase: “era parte da minha auto-análise, minha reação diante da morte de meu pai, vale dizer, diante da perda mais terrível na vida de um homem”. 

Não vou entrar nos detalhes das leituras que o próprio Freud fez da frase que apareceu em seu sonho. Diria ao leitor que vale a pena ler Freud e a Judeidade. Pretendo aqui levantar uma proposta de Fuks: “há que ler o desejo: sem terra, sem pátria e sem objeto, ele vaga por um deserto, cujas trilhas conduzem o leitor à experiência limite mais-além do que aparece na imagem”. É a partir dessa hermenêutica, que vamos ler trechos do final da primeira carta de Paulo aos Coríntios. 

“... Foi sepultado e foi despertado do sono no terceiro dia, de acordo com o escrito”. 

A frase acima, e a continuação do texto, é uma das mais importantes sobre a egeiro e anástasis, duas expressões gregas não substancialmente diferentes, que sintetizam a teologia da anástase dos cristãos do primeiro século. As traduções posteriores, e creio que dificilmente poderiam ser diferentes, criaram um padrão de imagem que dificultam a experiência do ir além. Por isso, fomos obrigados antes da tradução transversa fazer a desconstrução histórico-filosófica da anástase.

As leituras da anástasis e egeiró remontam a Homero e ao grego antigo e com seus sentidos correlatos axanástasis, anhistémi e anazaó, que podem ser traduzidas por “ficar de pé”, “ser levantado” e “voltar à vida”, foram fundamentais para a construção do conceito anástase, amplamente utilizado pelas ciências do espírito. Mas é com Platão, na literatura filosófica, que vamos encontrar um debate fundamental para a teologia da anástase, quando apresenta a alma enquanto semelhança do divino e o corpo enquanto semelhança do que é físico e temporário. 

Platão, em Fédon, num diálogo entre Sócrates e seus amigos defendeu a idéia da imortalidade da alma. Sócrates foi condenado à morte por envenenamento, mas não teve medo, por crer ser a alma imortal. Para Platão, as almas possuem semelhanças com as formas, que são realidades eternas por trás do mundo físico, natural. Nesse sentido, para Platão, o corpo morre, mas a alma não. Ele parte do padrão cíclico da natureza, frio/ quente/ frio, noite/ dia/ noite. Assim, os mortos despertam numa nova vida depois da morte: caso contrário, a vida desapareceria. 

E dirá através de Sócrates em Fédon: “(...) perguntemos a nós mesmos se acreditamos que a morte seja alguma coisa? (...) Que não será senão a separação entre a alma e o corpo? Morrer, então, consistirá em apartar-se da alma o corpo, ficando este reduzido a si mesmo e, por outro lado, em libertar-se do corpo a alma e isolar-se em si mesma? Ou será a morte outra coisa? (...) Considera agora, meu caro, se pensas como eu. Estou certo de que desse modo ficaremos conhecendo melhor o que nos propomos investigar. És de opinião que seja próprio do filósofo esforçar-se para a aquisição dos pretensos prazeres, tal como comer e beber?”


Paulo conhecia a discussão filosófica grega acerca da anástase, já que isso se evidencia em seus escritos, principalmente no trecho que estamos analisando, mas é certo que construiu seu conceito também levando em conta a tradição judaica, acrescentando novidades ao debate teológico. Existem referências ao ser trazido de volta à vida nas escrituras hebraico-judaicas. Mas a preocupação judaica era existencial, como vimos em Qohélet. Mais do que remeter a um futuro distante, embora tais leituras estejam presentes na teologia de alguns profetas, as histórias de anástase relacionadas aos profetas Elias e Eliseu falam do aqui e agora. Aliás, este último, mesmo de depois de morto, trouxe à vida um defunto que foi jogado sobre sua ossada. Ao tocar os ossos de Eliseu, o morto ficou vivo de novo e se levantou. Esse caminho será a novidade da compreensão cristã/ helênica da anástase.

“Somos arautos de que o ungido foi levantado do meio dos mortos: como alguns podem dizer que não há o ser erguido dos mortos? E, se não há o despertar do sono da morte, também o ungido não foi levantado. E se o ungido não foi levantado, é inútil o que falamos e também inútil a nossa crença. Somos então testemunhas falsas, porque anunciamos que Deus ergueu o ungido. Mas se ele não foi levantado, os mortos também não são erguidos. E se os mortos não são erguidos, o ungido também não o foi. E, se o ungido não foi erguido, a nossa crença é inútil e vocês continuam a vagar sem destino. E os que foram colocados para dormir no ungido estão destruídos”. 

Outras fontes de Paulo foram o profeta Daniel e outras literaturas intertestamentárias, que trabalharam com a idéia de “despertar subitamente do sono”. Chifflot e De Vaux situam o livro de Daniel no período helênico por entender que é uma edição de antigos fragmentos do período babilônico, compilados, organizados e contextualizados ao momento histórico descrito no capítulo onze. Nesse capítulo, as guerras entre lágidas e selêucidas, assim como as investidas de Antíoco IV Epífanes contra Jerusalém e o templo são narradas com riquezas de detalhes. Ao contrário do que acontece nos livros proféticos anteriores, aqui o autor cita fatos aparentemente insignificantes, querendo demonstrar que é uma testemunha ocular da história. Dessa maneira, a edição que conhecemos do livro de Daniel deve ser situada no período da grande perseguição de Antíoco IV Epífanes, possivelmente entre os anos de 167 e 164 a.C., segundo Chifflot e De Vaux, já citados. A partir desse enquadramento, os capítulos 7 a 12 de Daniel, enquanto edição são chamados de “vaticinia ex eventu”, dado que o texto é contemporâneo aos acontecimentos descritos. Esses capítulos expressam a reação contra a helenização da Judéia e das perseguições em curso, mas, paradoxalmente, uma forma de pensamento afetado pela civilização helênica.

A partir da segunda metade do livro, o autor trabalha sobre dois temas registrados na primeira metade: que o judeu deve ser fiel a Deus em meio à tentação e à provação; e que Deus defende o servo leal que prefere morrer a violar os mandamentos. Nos seis capítulos finais, o sábio (ou grupo de sábios, cujos escritos foram compilados por um redator) retoma o conteúdo das visões que teve em relação à profanação do templo, em 167 a.C., e o erguimento da “abominação desoladora”. 

Durante o período helênico idéias novas afloraram em meio à vida judaica, entre elas a esperança da recompensa escatolõgica apresentada pelas profecias apocalípticas, como em 2Macabeus 7, Daniel 12:2-3 e o Escrito de Damasco 4:4, que se traduzem concretamente na anástase.

Assim, os elementos novos da compreensão paulina da anástase já aparecem delineados no profeta Daniel: “Muitos dos que dormem no pó da terra despertarão, uns para a vida eterna, e outros para vergonha e horror eterno. Os que forem sábios, pois, resplandecerão como o fulgor do firmamento; e os que a muitos conduzirem à justiça, como as estrelas, sempre e eternamente”. Paulo, porém, somará um componente existencial à compreensão de Daniel, dirá que a morte, o maior de todos os odiados pela espécie humana, será privada de força.

“Caso o ungido só sirva para esta vida, somos as pessoas mais dignas de lástima. Mas o ungido foi levantado dentre os mortos e foi o primeiro fruto dos que foram colocados para dormir. Porque se a morte chegou pela humanidade, também o ungido dará à luz nova vida. Como morre a espécie, no ungido ela recebe vida. E isso acontece numa ordem: o ungido é o primeiro fruto, depois os que pertencem ao ungido, quando ele aparecer. E veremos o limite, quando o ungido entregar o reino a Deus e Pai, e tornar inoperante o império, os poderes e os exércitos. Convém que seja rei até derrubar os odiados por terra. O último odiado a ser privado de força é a morte, porque o resto já foi colocado debaixo de seus pés”. 

É interessante que Paulo em seu texto sobre a anástase cita o dramaturgo, filósofo e poeta grego Menandro (342-291 a.C.), que num verso disse: “as más companhias corrompem os bons costumes”. E voltando ao Misantropo: “insisto que, enquanto você é dono deles, você deve usá-los como um homem de bem, ajudando os outros, fazendo felizes tantas pessoas quantas você puder! Isto é que não morre, e se um dia você for golpeado pela má sorte você receberá de volta o mesmo que tiver dado. Um amigo certo é muito melhor que riquezas incertas, que você mantém enterradas”. Tudo indica que Paulo gostava de teatro e de comédias.

Que Paulo recorreu à tradição profética fica claro quando cita o profeta Oséias literalmente: “eu os remirei do poder do inferno e os resgatarei da morte? Onde estão ó morte as tuas pragas? Onde está ó morte a tua destruição?”. Mas há uma correlação entre Platão e a tradição hebraico-judaica, que pode ser lida nesta carta de Paulo. Isto porque, como afirma Fuks, o leitor desconstrói, pois ler não é repetir o texto: é um modo de criação e de transformação. Por isso, digo que ler é um ato de anástase. E Paulo trabalhou de forma brilhante o termo, tanto nas suas leituras e estudos, como na reconstrução do próprio conceito.

“Que farão os que se batizam pelos mortos, se os mortos não são chamados de volta à vida? Por que se batizam então pelos mortos? Por que estamos a cada hora em perigo? Protesto contra a morte de cada dia. Eu me glorio por vocês, no ungido Iesous a quem pertencemos. Combati em Éfeso contra animais ferozes, mas o que significa isso, se os mortos não podem ressurgir? Comamos e bebamos, porque amanhã morreremos. Mas não vamos nos enganar: as más companhias corrompem os bons costumes”.

Na sequência da tradição hebraico-judaica, ou como diz Fuks, “os antigos hebreus não estavam trabalhados, como nós, pela necessidade de abstração, de síntese e de precisão na análise conceitual do real, herança dos gregos”, Paulo está preocupado com o corpo, com a vida.

“Mas alguém pode perguntar: como os mortos são trazidos à vida? E com que corpo? Estúpido! O que se semeia não tem vida, está morto. E, quando se semeia, não é semeado o corpo que há de nascer, mas o grão, como de trigo ou qualquer outra semente. Deus dá o corpo como quiser, e a cada semente o corpo que deve ter. Nem toda a carne é uma mesma carne, há carne humana, de animais terrestres, de peixes, de aves. E há corpos celestes e corpos terrestres, uma é a dignidade dos celestes e outra a dos terrestres. Diferente é o esplendor do sol do esplendor da lua e das estrelas. Porque uma estrela difere em brilho de outra estrela. Assim também o ser levantado dentre os mortos. Semeia-se o corpo perecível; levantará sem corrupção. Semeia-se na desgraça, será levantado em excelência. Semeia-se em debilidade, será erguido vigoroso. Semeia-se corpo controlado pela psiquê, ressuscitará corpo espiritual. Se há corpo controlado pela psiquê , também há corpo espiritual”.


Para Paulo, anástase leva à uma teologia da vida que nasce do corpo. Mas, não é simplesmente ter de volta a vida do corpo material, tanto que em certo momento Paulus diz que “deveremos ser a imagem do homem do céu”.

“Assim também está escrito: o primeiro ser humano, terrestre, foi feito ser-que-deseja, o futuro humano será um espírito-cheio-de-vida. Mas o que não é espiritual vem primeiro, é o natural, depois vem o espiritual. O primeiro ser humano, da terra, é terreno; o segundo humano, a quem pertencemos, é celestial. Como é o da terra, assim são os terrestres. E como é o celeste, assim são os celestiais. E, como somos a imagem do terreno, assim seremos também a imagem do celestial”. 

O pensamento grego, platônico, está presente na anástase paulina, já que a eternidade não é construída em cima da carne e do sangue. Vemos aqui a dualidade entre a realidade física e o mundo das formas. O dualismo metafísico de Paulo admite aqui duas substâncias que regem o ser humano, no mundo natural, a psiquê, e no mundo pós-anástase, o pneuma. E dois princípios, nesse sentido bem próximo a Platão, o bem e o mal. 

“E agora digo que a carne e o sangue não podem herdar o reino de Deus, nem a corrupção herdar a eternidade. Digo um mistério: nem todos vamos adormecer, mas seremos transformados. Num momento, num abrir e fechar de olhos, ante a última trombeta, porque a trombeta soará, os mortos serão levantados incorruptíveis, e seremos transformados. Convém que o corrompido seja tornado eterno, e o que é mortal seja tornado imortal. E, quando o que é corruptível se vestir de eternidade, e o que é mortal for transformado em imortal, então será cumprida a palavra que está escrita: a morte foi conquistada definitivamente. Onde está, ó morte, a tua picada? Onde está, ó inferno, a tua vitória? Ora, a picada da morte é o desviar-se do caminho da honra e da justiça, e a força do erro é a lei. Mas a alegria que Deus dá é a vitória por Iesous, o ungido, a quem pertencemos. Sejam firmes e persistentes, abundantes no serviço daquele a quem pertencemos, conscientes de que o trabalho árduo e duro não é desprezado por aquele a quem pertencemos”. [Ver texto na Vulgata].

Caso voltemos à análise do conceito anástase no capítulo 15 da primeira carta aos Coríntios, tomando como ponto de partida o desafio de Fuks: “há que ler o desejo: sem terra, sem pátria e sem objeto, ele vaga por um deserto, cujas trilhas conduzem o leitor à experiência limite mais-além do que aparece na imagem”, vemos que Paulo traduziu para as novas gerações o desejo judaico-helênico, humano, da anástase: “Pede-se ser levantado”.

Vulgata -- 1Coríntios 15

[50] Hoc autem dico, fratres: quia caro et sanguis regnum Dei possidere non possunt: neque corruptio incorruptelam possidebit.

[51] Ecce mysterium vobis dico: omnes quidem resurgemus, sed non omnes immutabimur. [52] In momento, in ictu oculi, in novissima tuba: canet enim tuba, et mortui resurgent incorrupti: et nos immutabimur. [53] Oportet enim corruptibile hoc induere incorruptionem: et mortale hoc induere immortalitatem. [54] Cum autem mortale hoc induerit immortalitatem, tunc fiet sermo, qui scriptus est: Absorpta est mors in victoria. [55] Ubi est mors victoria tua? ubi est mors stimulus tuus?

[56] Stimulus autem mortis peccatum est: virtus vero peccati lex. [57] Deo autem gratias, qui dedit nobis victoriam per Dominum nostrum Jesum Christum. [58] Itaque fratres mei dilecti, stabiles estote, et immobiles: abundantes in opere Domini semper, scientes quod labor vester non est inanis in Domino.


Bibliografia recomendada

Andrés Torres Queiruga, Repensar a ressurreição, São Paulo, Paulinas 2010.
Jonas Machado, Morte e ressurreição de Jesus, São Paulo, Paulinas, 2009.
Marko Ivan Rupnik, Ainda que Tenha Morrido, Viverá/ Ensaio Sobre a Ressurreição dos Corpos, São Paulo, Paulinas, 2010. 

mardi 28 octobre 2014

Ética solidária e transformações sociais

Leituras tillichianas para o Brasil da Era PT
Jorge Pinheiro, PhD


O fundamento da unidade espiritual é a religião. O fracionamento espiritual que acontece em determinadas épocas traduz fracionamento econômico, choque e distanciamento entre classes. E nas épocas em que temos um processo cultural de unidade temos também uma nova base de unidade e solidariedade social e econômica.

Por isso, na história, rupturas espirituais vêm associadas a rupturas econômicas, da mesma maneira que processos de unidade espiritual vêm associados a processos de unidade econômica. 


Nesse sentido, há um processo de desenvolvimento que se realiza de forma desigual na história, mas que correlaciona mudanças espirituais e transformações econômicas e sociais. Diante de tais circunstâncias, o cristianismo está eticamente obrigado a fazer uma escolha: ou participa do processo, inspirando e atuando a favor desse desenvolvimento, ou se retrai e entra em processo de caducidade, ao afastar-se da vida real das comunidades nas quais está inserido.

Seja qual for a opinião sobre a relação ética entre cristianismo e capitalismo, um fato deve ser ressaltado: é necessário e possível para o cristianismo manter um relacionamento com todas as formações econômicas e sociais, em especial com aquelas que buscam a igualdade de direitos e possibilidades para o conjunto da população, já que a rejeição do princípio da igualdade social de direitos e possibilidades em nome do cristianismo fere a universalidade do cristianismo.

E se o cristianismo não somente deve, mas pode manter um relacionamento com economias e políticas solidárias, devemos nos perguntar se o contrário da premissa é verdadeiro: devem e podem os governos que buscam tais transformações ter um relacionamento construtivo com o cristianismo?

Para muitos, as concepções não-cristãs, muitas vezes materialistas, negam a possibilidade dessa aproximação, mas se entendemos que mesmo em Marx, as concepções políticas de esquerda de fato não são materialistas, mas econômica, vemos que tais concepções mostram uma relação de causalidade entre fundamento econômico e organização espiritual da cultura. E, ao contrário, tal fundamento dá às ciências do espírito uma possibilidade metodológica extremamente fecunda, que não tem nada a ver com ateísmo ou materialismo.

Quanto às organizações de esquerda, sejam elas socialistas ou não, é necessário ver a diferente atitude que têm em relação ao cristianismo e em relação às estruturas hierárquicas das igreja. A história das igrejas cristãs no passado, e muitas vezes no presente, é passível de críticas. Suas alianças e opções fizeram como que se afastassem e dificultassem seus relacionamentos com parte da população excluída de bens e possibilidades. Tal situação facilita e potencializa a pregação do materialismo. 

Mas, ao contrário do que pode parecer, não podemos dizer que o materialismo seja um fenômeno constitutivo do socialismo. Antes, é uma herança da cultura burguesa cética e crítica. Essa herança foi adotada pelas correntes proletárias militantes e pelo socialismo na crença de que ajudaria a extirpar a ideia de opressão e abriria o caminho para a construção de um novo mundo, mais digno e justo.

Embora, haja razões históricas para criticar as igreja cristas, os movimentos e partidos políticos socialistas erram quando negam a existência da base comunitária e solidária do ideal cristão, tal como pode ser percebida na pregação do Jesus apresentado nos Evangelhos. Quer dizer, ainda há em setores dos movimentos e partidos políticos socialistas uma hostilidade contra o cristianismo, hostilidade esta que fere a ética social, tão próxima daquelas propostas levantadas pelas comunidades cristãs dos primeiros séculos.


Mas, se as ideias sociais dos movimentos e partidos proletários e socialistas não traduzem oposição essencial, de princípio, com o cristianismo e com as igrejas que vivem o mandato evangélico, os cristãos podem sem nenhum temor ter uma atitude positiva em relação a estes movimentos e partidos.

Atitude positiva deve ser entendida como a realização do princípio da solidariedade cristã, que entende a necessidade de eliminar as condições que geram exclusão e miséria. Tal atitude traduz a urgência de combater os fundamentos do egoísmo econômico e de ações para a construção de uma outra ordem social, global sim, que inclua excluídos e periféricos. Isto porque as transformações sociais não são só necessidades e tarefas de operários e trabalhadores fabris, mas ideal ético que traduz anseios e esperanças dos mais variados setores da sociedade.

Texto
Paul Tillich, Le socialisme in Christianisme et socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992.

samedi 25 octobre 2014

Ética solidária e crítica social

Uma leitura a partir dos escritos socialistas 
de Paul Tillich
Jorge Pinheiro, PhD


O cristianismo é em sua essência uma experiência transcendente ao nível da materialidade humana, uma experiência que acontece em todos os tempos e em todas as situações e é em si mesma independente de formas sociais e econômicas. [1] Nesse sentido, o cristianismo não pode ser identificado com um tipo determinado de organização social, em detrimento de seu caráter transcendente e universal.

Mas, ao mesmo tempo, o cristianismo é portador de poder e oferece à humanidade uma mensagem de conhecimento, de verdade e de vida, tanto para a pessoa como particularidade, como para a sociedade como um todo. [2] Exatamente por isso, apresenta-se como capenga toda forma de cristianismo que se fecha na pura interioridade.

Também não se pode dizer que o cristianismo é um movimento que mecanicamente parte da interioridade em direção à exterioridade, apropriando-se de formas culturais ou simplesmente passando ao largo delas. Na verdade, ele dá forma às expressões culturais e, concomitantemente, toma novas formas a partir delas. Dessa maneira, o cristianismo está ligado às experiências éticas e estéticas e à correlação de formas de consciência filosófica e, logicamente, aos grandes modelos sociais e econômicos. [3] 

É verdade, que o cristianismo tem mais afinidades com determinadas formas de organização social. 


1. A ética solidária [4] leva o cristianismo a ter uma postura crítica diante da ordem social que se apóia na opressão e na exclusão social.


2. A ética solidária faz a crítica da ordem social que está erigida sobre o egoísmo econômico e político, e proclama a necessidade de uma nova ordem, na qual o sentido de comunidade seja o fundamento da organização social. [5]

3. A ética solidária denuncia o egoísmo da economia das multinacionais [6] e dos governos que servem a elas, que levam à expropriação de muitos em benefícios de poucos, e propõe uma economia onde a alegria não seja fruto do ganho, mas do próprio trabalho. E condena o egoísmo de classe, onde cada qual procura enriquecer através da exploração de seu próximo e as conseqüências desse processo, como o privilégio da educação para uma elite. 


4. A ética solidária nega também a afirmação do princípio da luta de classes e propõe a supressão das classes, o fim dos privilégios na educação e a supressão da exploração de determinados setores profissionais por outros. [7]


5. A ética solidária condena o egoísmo internacional da força e do comércio, que justifica a violência e a guerra sobre continentes, nações e povos. Assim, a ética solidária prega a submissão dos povos, sejam ricos ou pobres, à idéia do direito, e à construção de uma consciência comunitária, soldada sobre a paz, que leve a uma globalização real entre as nacionalidades. [8]

Muitos dirão que eliminar o egoísmo como forma de estímulo econômico diminuirá o desenvolvimento e reduzirá a produção. No entanto, a partir do solidarismo cristão, vemos que o ser humano não foi criado para a produção, mas a produção para suprir as necessidades humanas e que, por isso, o objetivo da ética na economia não é a produção da maior quantidade possível de bens para uma classe em particular, e sim a produção de bens necessários à vida para o maior número de pessoas. [9]


Citações


[1] Paul Tillich, Rapport au Consistoire in Christianisme et socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, p.3. 
[2] Idem, op. cit. p. 4. 
[3] Idem, op. cit., p.4. 
[4] “(...) l’ethique de l’amour introduit dans chaque forme sociale et économique un ferment de critique d’autant plus actif que l’ordre s’appuie davantage sur le pouvoir, l’oppression, l’intérêt personnel. Pour cette raison, le christianisme a pu trouver plus de parenté avec la structure de la société médiévale qu’avec celle de l’époque romaine tardive, et se lier plus étroitement à elle. Voilà pourquoi, c’est notre conviction, il doit à présent s’opposer à l’ordre social capitaliste et militariste dans lequel nous nous trouvons et dons les ultimes conséquences sont devenues manifestes avec la guerre mondiale”. Paul Tillich, Rapport au consistoire, op. cit., p. 4. 
[5] Idem, op. cit., p.4. 
[6] Tillich utiliza a expressão “économie de l’entreprise privée et du profit”, que nós optamos por atualizar, acreditando não ferir o sentido que o teólogo quer transmitir a seus leitores. Idem, op. cit., p. 4. 
[7] Idem, op.cit., p.5. 
[8] Idem, op.cit., p.5. 
[9] Idem, op.cit., p.5.

vendredi 24 octobre 2014

O papel da ética protestante -- elementos para uma reflexão sobre a Era PT

Elementos para uma reflexão sobre a
Era PT e o papel ético do protestantismo

Jorge Pinheiro, PhD

Ao construir um roteiro e bases teóricas para a leitura da ética do protestantismo, apresentamos o conceito de barbárie histórica, que explica desde um ponto de vista filosófico como realidades e estruturas colocam em risco a existência humana, e como diante dessa ameaça é necessária a proclamação da vida. A esta proclamação da vida e a este protesto contra aquilo que fere a essência do ser humano chamamos clamor protestante.

Ao levar em conta o momento histórico vivido pelo Brasil durante os anos de governo do Partido dos Trabalhadores, tanto em relação às reivindicações democráticas, quanto em relação às perspectivas de construção de futuro, este foi um momento especial para a colocação de propostas e alternativas sociais. É um tempo carregado de tensão, de possibilidades e qualitativo e rico de conteúdo. Por isso, dizemos que vivemos um tempo de kairós, de viva consciência da história e é a partir dele que segmentos da sociedade brasileira procuraram elaborar uma filosofia consciente da história. 


Ao analisar o surgimento do protestantismo devemos levar em conta aspectos históricos do final da Idade Média e os movimentos ideológicos que se estruturam a partir da revolução protestante no século dezesseis. Tal metodologia é relevante para a compreensão do contexto a partir do qual constrói a própria ética protestante, já que em termos filosóficos a revolução que começou na Alemanha e se espraiou pela Europa fez um chamado a um posicionamento transcendente, de resistência ao impacto da catástrofe histórica na Europa. A necessidade de resistência e transformação exortava às comunidades de fé, recém surgidas em meio à convulsão social, a elaborar uma mensagem de esperança para o mundo simples.

Nesse contexto, o ser humano pós-medieval surge como livre, mas ainda estava inseguro em sua liberdade. Tal situação fez com que setores institucionalizados das comunidades de fé levantassem a necessidade de uma volta ao passado, fazendo o discurso da emancipação da autonomia, e retorno à submissão à hierarquia e à tradição. Mas a liberdade já tinha sido experimentada e, por isso, sua tendência era à expansão. Ora, a existência humana estava a elevar-se ao cume do que vivera até aquele momento em sua dimensão de liberdade. O ser humano se libertava das cadeias da necessidade natural imperiosamente presentes na Idade Média. Tornava-se consciente e adquiria liberdade de questionar a si próprio, seu ambiente, de questionar a verdade e o bem e de decidir a seu respeito. Entretanto, havia nessa liberdade certa falta de liberdade, pois implica em descobrir a importância de decidir por si próprio.

O ato de decidir faz parte da inevitabilidade da liberdade, e cria uma inquietude na existência. É no ato da decisão que a existência se sente ameaçada. Isso porque somos confrontados com a exigência de escolher o bem e de realizá-lo, na mesma medida em que isso pode ou não ser alcançado. No protestantismo, o ser humano, enquanto dimensão espiritual carrega uma ruptura, uma alienação, que também se manifesta na sociedade. Não é possível fugir dessa exigência, e quando a enfrentamos nunca nos sentimos absolutamente seguros.

Estamos, então, diante da possibilidade da barbárie, de uma situação histórica limite, onde os direitos e seguranças que construímos são questionados e as possibilidades apresentam limites. Na filosofia protestante, tal processo leva ao conceito de justificação, pois a graça da vida em todas as suas dimensões descarta o direito de qualquer autoridade, institucional ou não, exigir a aceitação de uma crença correta, definitiva.

Assim, a devoção à verdade é suprema somente quando é devoção a Deus, por isso, existe um elemento sagrado na própria dúvida, mesmo quando esta se refere ao Deus e às religiões. Na verdade, se Deus é a verdade, ele é a base e não o objeto das questões a seu respeito. Nesse sentido, qualquer lealdade à verdade seria sempre protestante, mesmo quando acaba constatando a falta de verdade. Assim, no protestantismo, o divino se faz presente na dúvida e o ateísmo pode se dirigir ao incondicional; pode ser uma forma de fé na verdade, pois a consciência da falta de sentido é uma presença paradoxal do sentido que há na falta de sentido. Assim na filosofia protestante, a justificação nasce não da certeza, mas da dúvida que leva ao movimento e à ação. E a atitude antagônica à justificação, é o cinismo que imobiliza. 


Por isso, o conceito barbárie se traduz como ameaça final à existência e é o diferencial do protestantismo. Nasce em torno da justificação pela fé, da vida em liberdade que traduz a aceitação da exigência incondicional de realizar a verdade e fazer o bem. Enfrentar a possibilidade da barbárie significa julgar e transformar, e essa é a diferença entre a ética protestante e aquelas que fazem a defesa da hierarquia e da tradição.

Sem uma relação universal entre protestantismo e ética não pode se construir uma noção de vocação da pessoa. Ou seja, não se pode fundar uma ética protestante apenas sobre o terreno da pessoalidade. Mas é importante entender que não existe uma única interpretação da globalidade, por isso a ética protestante não é uma grandeza estática, mas se realiza de forma dinâmica na existência. Por isso, as éticas protestantes não subscrevem nem a construção uma ética social absoluta, nem uma construção de tipo racionalista.

Ou seja, toda compreensão da globalidade e toda ética real são concretas, pois toda globalidade se situa num momento temporal determinado, pleno, que a filosofia protestante chama kairós. E a universalidade do kairós comporta riscos concretos, não se move num universal abstrato, separado do tempo e da situação atual. Assim, o que é válido para a pessoa se expressa enquanto consciência ética geral também para a comunidade.


Exatamente por isso, toda realidade global comporta dois aspectos: aquele que a leva à sua particularidade de origem, ao seu fundamento, e um outro que, a partir da particularidade, a remete à universalidade. Assim, a realização da globalidade se orienta na direção a ela própria, exprime o que lhe próprio, suas solidariedades no plano formal e sua finitude. Por isso, a filosofia protestante diz que a ética transporta ao Deus e à vida, que são o bem e o bom da existência.

lundi 20 octobre 2014

Waku sese, que tudo lhe vá bem

O



"Quem come jaraqui não sai mais daqui".

A alma foi lavada nas águas do rio Negro. Descobri um evangelicalismo amazônida, contextual, contemporâneo. A capital da Amazônia faz teologia de vanguarda, waku sese, que “tudo lhe vá bem”, meu camarada! O xalom dos Saterê-Mawê ressoa nos ouvidos como boas novas de um tempo bom para a teologia brasileira. Lagartas de fogo e papagaios inteligentes.

Receberam muitos nomes de antropólogos, sertanistas e de outros grupos indígenas, mas eles próprios se dizem Sateré, lagarta de fogo, e Mawé, papagaio inteligente. Os Saterê-Mawê habitavam o território entre os rios Madeira e Tapajós, ao norte das ilhas Tupinambaranas, no rio Amazonas, e ao sul das cabeceiras do Tapajós. 


O paraíso era Noçoquém, a morada dos heróis, à margem esquerda do Tapajós, lá onde as pedras falam. E Hawah, a mãe do homo sapiens sapiens, da cultura hebraica, é Uri, a mãe de todos os Saterê-Mawê. O primeiro filho foi tapuya, o segundo karaiwa. Por isso, os tapuya-in foram os moradores da mata na´apy kaiwat. Mas, depois, o imperador, o primeiro herói civilizador, disse que era para eles irem para yarupap, o lugar onde os barcos encostam. 

Mas são também filhos do guaraná, porque domesticaram a paullinia cupana, trepadeira silvestre. O guaraná é planta das terras altas da bacia do rio Maués-Açu. E a época do fabrico da bebida vira celebração com o ritual da tocandira. É liturgia do meter a mão na luva, quando os meninos tornam-se homens. Assim, os futuros guerreiros dão o salto de adesão e ruptura, com canções de amor, trabalho e guerra, e enfiam a mão em luvas de palha pintada com jenipapo e enfeitadas com penas de arara, para serem ferroados por formigas tocandiras.

No Espelho da Lua, Orellana viu as icamiabas

No meio do rio Negro, meu amigo Adelson sociologa sobre as amazonas, pensa em Orellana, na viagem de 1541 e 1542, quando viu as icamiabas. Orellana, quando desceu em busca de ouro, lá dos Andes, o rio ainda era chamado Grande, Mar Dulce e da Canela, por causa das árvores que existiam ali. Mas, a vitória esmagadora das icamiabas contra os espanhóis foi narrada ao rei Carlos V e este, pensando nas guerreiras titias, que os gregos chamavam de amazonas, que quer dizer sem centro, batizou o rio.

Assim, Orellana lá no Espelho da Lua, pros lados de Inhamundá, viu arqueiras majestosas, que extirpavam um dos seios, para melhor estirar o arco. Talvez tenha visto índios de cabelos longos, mas a lenda grega tomou forma e aqueceu o coração dos que mergulham no verde. Fé de quem persegue a imensidão amazônica.

A lancha amansa o salto e repousa na imensidão do rio Negro. Índios ribeirinhos canoeiam uma piroga a motor, que ombreia a lancha. E lá uma caixa se abre. É um momento mágico. O mundo de Orellana está ali, a eternidade sussurra palavras que não entendo – "quem come jaraqui não sai mais daqui" – e a jibóia, essa sim, majestosa, desliza por minha mão direita. É pesada, sinto a força braba da boa constrictor, que escorrega sobre o meu ombro em direção à mão esquerda. No barco estão os teólogos das boas novas. 

Pânico. Adelson quase se lança às águas, aterrorizado, as meninas gritam, a lancha oscila para a esquerda, pode virar. Mas eu estou sozinho, mergulhei na magia ancestral, não vejo o terror de Adelson, não ouço os gritos das meninas. Sós, eu e a jibóia.


Dialogamos, senti o peso, conversei através do tato, ela me olhou, como se me conhecesse desde eras. A língua tamborilou o ar, o olhar ficou fixo, pareceu perdido, como se quisesse me falar dos tempos mitológicos em que foi a naja do jardim, no paraíso de Orellana.

– Será que minha garganta é mesmo tumba aberta? Sou habitante dos pântanos, rastejante de terras profundas, princesa dos meandros, sinuosa, broto dos confins do inconsciente, a alimentar desejos, a sugerir atrações e repulsões. Será que sou sibilante, encantante, enfeitiçante ou apenas digo que se aprende pela experiência? Sou rival, guardiã do reino dos mortos, com alma e sexo, a se renovar eternamente, porque mordo a própria cauda. Sou medicina no bastão de Esculápio, mediadora entre deuses e humanos, benfeitora, malfeitora, e no livro dos mortos, tibetano, sou serpente, moro nas partes mais distantes da terra, morro, renasço e torno a ficar jovem. Será que sou acobreada, dura como o cobre, filha do cobre como minhas irmãs palestinas? Sou cobra, lagarto, dragão na cabeça das gentes, que se enroscam elas próprias, mas precisam de mim para exorcizar a culpa. Ah! Não sou Lilith, ela fugiu voando sobre o mar e persegue os nascituros, mas não é lâmina, é coruja. 


De repente, o mergulho se desfez, ouvi gritos, vi o pessoal fugindo, a procurar distância da minha amiga. Ah, o medo mais uma vez estilhaçou o sonho. E como o espanhol, vi o diálogo emudecer. A jibóia escapou do meu abraço urbano e retornou ao seu ribeirinho. E a lancha de novo voou sobre o rio Negro.

Jaraqui frito ou tambaque no tucupi?

Um dia depois, quando almoçava no Choupana, em Manaus, me contaram um segredo: o jaraqui é um peixe ótimo, saboroso, quando frito no azeite, numa frigideira bem quente. Deve ser temperado com sal e limão, depois enxuto e passado na farinha de trigo. O jaraqui deve ser virado sempre na frigideira até dourar. No mínimo, um jaraqui médio por pessoa. Deve ser acompanhado por baião de dois e pimenta murupi. A sobremesa pode ser pudim de cupuaçu. E no fim da tarde, um banho de igarapé. Então, o milagre acontece: "quem come jaraqui não sai mais daqui". Como eu tinha que voltar, pedi tambaqui no tucupi, bebi suco de cupuaçu e fiz o caminho do aeroporto.

samedi 11 octobre 2014

Alegría, festa e cuidado

— Todos os anos juntem uma décima parte de todas as colheitas e levem até o lugar que o Senhor, nosso Deus, tiver escolhido para nele ser adorado. Ali, na presença do Senhor, nosso Deus, comam aquela décima parte dos cereais, do vinho e do azeite e também a primeira cria das vacas e das ovelhas. Façam isso para aprender a temer a Deus para sempre. Mas, se o lugar de adoração ficar muito longe, e for impossível levar até lá a décima parte das colheitas com que Deus os abençoou, então façam isto: vendam aquela parte das colheitas, levem o dinheiro até o lugar de adoração que o Senhor tiver escolhido e ali comprem tudo o que quiserem comer: carne de vaca ou de carneiro, vinho, cerveja ou qualquer outra coisa que desejarem. E ali, na presença do Senhor, nosso Deus, vocês e as suas famílias comam essas coisas e se divirtam à vontade. — Porém não esqueçam os levitas que moram nas cidades de vocês. Eles não receberão terras em Canaã, como as outras tribos. De três em três anos juntem a décima parte das colheitas daquele ano e guardem nas cidades onde vocês moram. Essa comida é para os levitas, pois eles não têm terras próprias; é também para os estrangeiros, os órfãos e as viúvas que moram nas cidades de vocês. Assim todos eles terão toda a comida que precisarem. Façam isso para que o Senhor, nosso Deus, abençoe todo o trabalho de vocês. (Deuteronômio 14:22-29 NTLH)

vendredi 10 octobre 2014

A insatisfação política repercutiu nas urnas e o segundo turno será disputado voto a voto. Entrevista especial com Ruy Braga

A insatisfação política repercutiu nas urnas e o segundo turno será disputado voto a voto. Entrevista especial com Ruy Braga

Orixe e fin do amor e da vida


As memorias son a nosa historia e as miñas lecturas, pois discorro sobre acontecementos e nos levan a pensar o que non está aquí e agora, sobre o que é eterno. E cando isto ocorre historia e lecturas se complementan e enriquecen as nosas vidas. O certo é que a memoria ao apoiarse nos feitos deixa de ser o relato de algo particular, vive un proceso de amplitude que lle dá grandeza. E a historia, inversamente, ao recorrer á memoria trae emoción e vida ao traxe. 



Pero, como xa dixen parcialmente, por riba, as nosas memorias non se entreluzem só con feitos sociais, os nosos pesadelos, así como os nosos soños transportan nosas memorias a un mundo máxico, un mundo onde o imaxinario, ás veces, é tan real como a historia vivida. Transcende. Por iso, estas lecturas son traducións de experiencias coa eternidade, infinita e sen límites, creadora de todas as cousas, orixe e fin do amor e da vida.