ESCOLHA E DESTINO
Por uma teologia evangélica da vocação
Jorge Pinheiro
“Pois sabemos que todas as
coisas trabalham juntas para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles a quem
ele chamou de acordo com o seu plano. Porque aqueles que já tinham sido escolhidos
por Deus ele também separou a fim de se tornarem parecidos com o seu Filho. Ele
fez isso para que o Filho fosse o primeiro entre muitos irmãos. Assim Deus
chamou os que havia separado. Não somente os chamou, mas também os aceitou; e
não somente os aceitou, mas também repartiu a sua glória com eles”. Romanos 8. 28-30.
Introdução
É difícil entender a profundidade
do capítulo oito da epístola de Paulo aos Romanos se não entendemos a
religiosidade helênica e seu conceito de destino.
A antiga religião dos deuses olímpicos, explica Naécia Simões, após a
dissolução da pólis, deixou um
vazio que as correntes filosóficas do mundo greco-romano procuraram preencher
com maior espiritualidade, nos termos de uma necessidade religiosa não
racional. Quando apareceu o cristianismo, tornou-se conveniente e necessário à
mentalidade pagã “examinar esta fé que reúne adeptos tão fieis, avança por
todas as terras e, curiosamente, com recursos intelectuais emprestados à
própria tradição clássica, parece aplicar com eficiência as formas necessárias
para fazer-se entender por todos, gentios e cristãos”.[1]
Para homens e mulheres da época
de Paulo a questão do destino era tema crucial, porque acreditavam que deuses e
demônios se divertiam com o sofrimento humano. E esse viver manipulado por
deuses e demônios, os gregos e romanos chamavam de destino. Teologicamente,
dentro da cosmovisão helênica, destino pode ser definido como potência misteriosa e
personificada que rege o devir universal, incluindo o curso da história humana,
sem qualquer possibilidade de intervenção da vontade ou da previsão do ser
humano. O destino era entendido como uma lei cega, fixada de antemão, que não
se conhece e sob a qual todos estão sujeitos e dela não conseguem escapar.
Traduzia uma negação, a impossibilidade da liberdade humana. Um bom exemplo é
Édipo, o herói da tragédia grega.
A partir do destino demoníaco, o
mundo helênico criou uma teologia de culpa e castigo, onde um profundo
pessimismo atravessava o pensamento religioso da época, tanto no mitraísmo,
quanto nos cultos de mistério.
O
mitraísmo tinha como centro o culto ao deus Mitra, visto como intermediário
entre os seres humanos e o Deus supremo. Havia nesta colocação algo similar ao
credo cristão, com o qual concorreu, principalmente no terceiro século, ao
tempo do Império Romano. Forte concorrente da fé nascente, por suas afinidades,
o mitraísmo deixou fortes marcas de sua influência sobre as duas primeiras
faces do cristianismo: o romano e o ortodoxo.
As religiões de mistério,
místicas e de cultos extáticos, criavam nos seus devotos uma atitude muito
propícia para a pregação cristã, porque alertavam para o fato de que por si só
nenhuma criatura pode chegar a Deus. Mas esta verdade, sem a componente da
graça, desembocava num labirinto: o que fazer? Mas, se por um lado, fatores
propícios possibilitaram o diálogo, por outro também deixaram marcas nas
correntes místicas do cristianismo medieval e moderno. Muitos teólogos
entenderam esse processo. Tillich, por exemplo, em suas reflexões, nunca deixou
de lado os aspectos universalizantes do fenômeno místico. “Essa preocupação com
o místico aparece também nos textos editados de suas aulas sobre a história do
pensamento cristão e dos movimentos teológicos dos últimos dois séculos. Por
isso ele ressaltou as religiões de mistério na elaboração da teologia cristã
primitiva”.[2]
Ameaçado pelo destino demoníaco,
o mundo helênico ansiava por um destino salvador, necessitava graça. E essa é a discussão que Paulo
entabula com a religiosidade helênica no capítulo oito de Romanos.
A liberdade do cristão
Em sua carta aos Romanos, Paulo
analisa três questões centrais: do capítulo primeiro ao oito fala da
justificação pela fé; do capítulo nove ao onze discute a separação temporal dos
judeus e a inclusão dos gentios ao povo de Deus, e do capítulo doze ao
dezesseis apresenta exortações práticas.
Ao analisar a justificação, Paulo
mostra que a libertação humana repousa sobre a fé, proveniente da graça de
Cristo e não de aspectos externos, seja a lei de Moisés ou os principados e
potestades, o mundo do zodíaco e deuses e demônios da religiosidade helênica.
Essa misericórdia de Deus não provém de aspectos externos, estejam eles no céu
ou na terra, na vida ou na morte, porque o homem, em sua natureza, não tem como
responder às exigências de Deus.
A graça provém de Cristo, que no
seu amor e sacrifício, perdoa a alienação humana. A liberdade da vida cristã,
que é espontaneidade e criatividade diante da lei, e vitória diante de
principados e potestades, do mundo do zodíaco e de deuses e demônios, não
depende do próprio homem, nem do que ele possa fazer, mas daquilo que Cristo
fez por ele.
Temos no trecho em análise (Rm 8.28-30)
dois blocos: um maior, que é o capítulo oito inteiro, cuja temática é a da vida
cristã sob a lei do Espírito; e um bloco menor, 28-30, que trata do chamado e
vocação do cristão.
O bloco maior nos dá a linha de
pensamento de Paulo: uma seqüência de análises sobre a vida: emancipada (versos
1-11), exaltada (12-17), esperançosa (18-30) e exultante (31-39). Dessa
maneira, no capítulo oito, o apóstolo traça o curso da vida cristã, na qual a
graça triunfa sobre o destino demoníaco e os crentes experimentam a liberdade
cristã.
É interessante notar que o texto
de Romanos oito, em grego, começa com dois advérbios intercalados por uma
partícula ilativa, que poderíamos traduzir: "Atualmente, por isso, nada em
absoluto” pode condenar aqueles que estão em Cristo Jesus.
Essa partícula ilativa, que é um
conectivo, está relacionada ao capítulo sete, onde Paulo mostra que lei e
pecado[3]
não são sinônimos, e que há uma grande diferença entre a natureza da lei e a
natureza humana, entre o que é Espírito e o que é carnal. O corpo, com os
membros que o compõem (7.24), interessa a Paulo enquanto instrumento da vida.
Submetido à tirania da carne (7.5), à alienação e à morte (6.12+; 7.23), Paulo
clama: quem me livrará? E dá "graças a Deus, por Jesus Cristo, nosso
Senhor" (7.25). É a partir desse clímax, que o apóstolo dá seqüência ao
texto, informando que "por isso", "hoje", "nada em
absoluto" pode condenar os que estão em Jesus Cristo.
É a partir desta hermenêutica, delineada nos passos apresentados neste
trabalho, que o trecho de Romanos 8.28-30 deve ser interpretado. Teremos,
então, uma melhor compreensão daquilo que o apóstolo Paulo chama de "a lei do Espírito da vida em Jesus Cristo"
e de sua importância no caminhar do cristão.
A dimensão trinitária
Escolha, chamado, vocação, missão
e destino são conceitos cujos conteúdos têm núcleos de compreensão que se
cruzam e se completam. Para entender tais conceitos, e em especial o de
vocação, que Paulo apresenta em Romanos, vamos partir da relação existente
entre a igreja e o relacionamento expresso na Trindade.
A igreja é unidade, diversidade e
comunhão da comunidade cristã que traduz a unidade, diversidade e comunhão do
Pai, Filho e Espírito Santo. Nesta linha de raciocínio, o Pai é o horizonte
último, o Filho é a exemplaridade definitiva de como corresponder ao Pai, e a
vida no Espírito é o ser cristão concreto.
Nesse sentido, explica Sobrino, a
tarefa mais urgente da Cristologia, por causa da declaração doutrinária de que
Cristo é o Filho de Deus, “não consiste tanto em re-interpretar in recto o dogma cristológico, o que
continua sendo uma tarefa importante, e sim se re-situar o caminho do crente
para que sua vida seja pro-seguimento de Jesus e assim ela seja também o
processo de sua filiação concreta”.[4]
Por isso, muda também a relacionaridade
da igreja com o mundo: a igreja não é mais o lado adulto, completo, da secularidade,
mas sinal e instrumento, memorial para a libertação integral de homens e
mulheres[5].
A partir desta compreensão devemos entender o sentido eclesial da vocação de
pastores, ministros e missionários, e o sentido secular da vocação de
trabalhadores, profissionais e empresários, enquanto pessoas chamadas à
comunhão com a Santa Trindade de Deus. Cada vocação está ligada ao desígnio do
Pai, à missão do Filho e à obra do Espírito Santo.
Esta dimensão trinitária da
escolha e chamado mostra a ligação que existe entre a vocação, a vida e a
espiritualidade[6].
Escolha e chamado direcionam a um relacionamento pessoal com Deus vivido no
interior de uma comunidade concreta. A escolha é psiu de Deus. O chamado inicia um diálogo que pode levar a um
encontro com Ele. Mas vocação é uma sedução, uma conquista do coração por parte
de Deus, para uma vida de intimidade, de comunhão com Ele. É um casamento.
Por ser um relacionamento de
intimidade com a Trindade, a vocação implica em santidade, plenitude da vida
cristã e perfeição do amor. Vocação é, então, comportar-se como o Pai se
comporta. A santidade é uma prerrogativa de Deus. Deus é santo porque é
totalmente diferente dos seres humanos e do mundo, porque ama e acolhe as
pessoas.
Somos chamados a participar da
santidade divina. A santidade consiste em ser perfeito no amor e o amor é o
distintivo dos cristãos. Ser santo significa fazer a diferença, responder aos
desafios de cada época num serviço sem medidas. Mas esta mesma santidade é
vivida de formas diferentes em razão da diversidade dos dons, dos serviços e
dos ministérios.
Quando partirmos de Romanos 8.28,
-- “sabemos
que todas as coisas trabalham juntas para o bem daqueles que amam a Deus,
daqueles a quem ele chamou de acordo com o seu plano” – vemos que em Deus todas as coisas,
circunstâncias, projetos e sonhos, trabalham juntas para cumprir um propósito,
dentro de um plano de Deus.
Por isso, vocação não é
isolamento, mera busca de satisfações ou realização pessoal. Não é apenas
construção de projetos pessoais, mas dar a vida pela defesa da vida. Vocação é
amar, é servir, é relacionar-se com a Trindade, a partir do encontro, da
relação com o próximo. É responder ao chamado inserindo-se na vida da
comunidade. É tomar parte ativa na construção do Reino.
Na vocação somos comunidade,
participamos na vida e na missão da igreja. Estes são elementos que não podem
ser esquecidos, nesta contemporaneidade marcada pelo individualismo.
Vocação enquanto chamado à
comunhão e participação nos leva a descobrir, como elemento essencial do
chamamento, a vida de fraternidade. Faz parte da vocação o compromisso de
reproduzir na igreja e no mundo o tipo de relacionamento que existe na Trindade
de Deus. A participação na comunhão trinitária exige comunhão fraterna entre
nós. Não pode ser sincero um relacionamento de comunhão com Deus quando não se
traduz no relacionamento com os irmãos.
Não é autêntica a vocação que não
se abre à solidariedade. A Trindade permanece como modelo da comunhão que deve
brotar da vivência da nossa vocação. Esta vida de comunhão é o que dá
autenticidade a nossa vocação. Ela é o sinal mais claro de que estamos vivendo
realmente numa intensa comunicação com a Trindade.
Humanos
e cristãos
O capítulo 8.29 de Romanos nos
diz que “aqueles que já tinham sido escolhidos por Deus ele também separou a fim
de se tornarem parecidos com o seu Filho. Ele fez isso para que o Filho fosse o
primeiro entre muitos irmãos”.
Ou seja, fomos escolhidos e chamados pela graça para sermos parecidos
com seu Filho, realizarmos um serviço, uma missão.
Devemos ser imagem do Pai, imagem
do Filho, imagem do Espírito, e é isto que faz com que a vocação seja comunhão
com a Trindade, que se traduz na experiência do cristão na igreja e no mundo.
Segundo teólogos como Bonhoeffer e Schillebeeckx, a pergunta humana da
experiência deve sempre ser posta em correlação com a resposta da fé. Essa
correlação só é obtida se a pergunta humana pode ser configurada como pergunta
que tenha sentido, a respeito da realidade e da experiência, à qual se segue uma
resposta humana que tenta articular um sentido, mas que recebe somente da
resposta cristã uma superabundância de sentido, um sentido último e definitivo.[7]
Quando falamos de vocação, tal correlação pode ser traduzida em três dimensões,
que marcam a vida do vocacionado. Nenhuma destas dimensões subsiste em
separado, mas estão correlacionadas.
Para Oliveira[8],
a primeira dessas dimensões, a humana, é o chamado a ser pessoa
humana. Isto quer dizer que, antes de qualquer coisa, o vocacionado tem que ser
gente, com todas aquelas qualidades que caracterizam o ser humano enquanto
imagem de Deus. Uma atenção particular deve ser dada à capacidade de
relacionar-se bem com as demais pessoas, já que a pessoa humana foi criada por
Deus como ser social. Como já vimos acima, a vocação é sempre dialogal. Ela só
se concretiza nas relações interpessoais, sejam elas as da família, da amizade,
das comunidades pequenas ou grandes de que participa o ser humano. Não é
possível falar de vocação, deixando de lado as exigências da natureza humana.
A segunda dimensão, a cristã, é o chamado a viver a santidade
através de uma participação ativa na vida da comunidade. É o viver em comunhão
com Cristo na comunhão e cooperação com os demais. Esta dimensão da vocação se
traduz numa tríplice missão: profética, sacerdotal e real.[9]
Isto leva à dignidade de todas as vocações e de todos os membros do corpo de
Cristo. Existe uma variedade de vocações, de dons, mas todos possuem a mesma
dignidade. Ninguém é superior a ninguém, ninguém é melhor do que ninguém. Isto
mostra que, em Cristo, a partir do serviço e da obediência, todos temos a mesma
missão.
A terceira dimensão, a particular, é toda vocação, que mesmo sendo
vivida na comunidade e a serviço da comunidade, é personalizada.[10]
Cada cristão responde a escolha e chamado do Pai de acordo com os dons
recebidos do Espírito Santo. A vocação particular é a forma concreta que
permite a cada cristão dar sua contribuição para a construção do reino de Deus.
Esta dimensão particular da vocação remete à singularidade de cada pessoa. Mas
há diversidade também de aptidões, de qualidades pessoais, como as
circunstâncias diferentes nas quais brotam e se desenvolvem os chamados de
Deus. Mas mesmo realizando de forma pessoal a vocação comum, o cristão deve
direcioná-la para a comunidade. Se o Espírito Santo distribui os dons a cada um
conforme ele quer, Ele o faz para o bem e uso de todos.
Missão
e destino
De volta a Romanos (8.30) vemos
que “Deus chamou os que havia separado. Não somente os chamou, mas também os
aceitou; e não somente os aceitou, mas também repartiu a sua glória com eles”.
Ora, a escolha e chamado do Pai, a aceitação através do sacrifício vicário de
Jesus é completada na glória da ação do Espírito Santo sobre nossas vidas.
Por isso, o dinamismo da vocação está ligado à
escolha e ao chamado, à missão e ao plano de Deus para cada um de nós. Nesta
dinâmica, os dons são diferentes capacitações entregues para a realização de
serviços diferentes, a partir de diferentes modos de agir, suscitados pelo Espírito
e destinados à edificação da comunidade cristã. Poderíamos dizer então que os
dons são capacitações do Espírito que tornam o cristão apto para o exercício da
própria vocação em favor de toda a comunidade.
Os dons são potencialidades para
a execução de serviços concretos, atividades concretas, que possibilitam a
vivência de uma determinada vocação particular. Existe, pois, pluralidade de
dons. Para cada forma de vocação pode existir uma diversidade de dons. Enquanto
meios concretos de atuação de uma determinada forma de vocação, os dons não são
apenas dons extraordinários concedidos a pessoas extraordinárias. Eles são
elementos que fazem parte do cotidiano da comunidade e não apenas privilégio de
alguns.
Dons e vocação não são fins em si
mesmos. Existem para a missão. Por isso toda reflexão sobre a vocação requer
pensar missão. Dentro de uma teologia evangélica da vocação é preciso destacar
a missionariedade da Igreja. Toda a igreja está sujeita à missão. Esta
missionariedade deve ser vivida em todos os níveis. Missão não é somente
evangelizar, anunciar a salvação, mas viver a boa nova da libertação operada
por Cristo dentro da situação atual do mundo, ajudando à humanidade a fazer a
história, a contribuir para uma nova criação, construindo no aqui e no agora
uma sociedade nova e diferente.
A missão é para o mundo e se
desenvolve no mundo, é sempre uma missão de compromisso efetivo com o bem da
pessoa humana na sua totalidade. A missão leva o cristão a aproximar-se, com os
olhos e com o coração, daqueles que sofrem. Por ser serviço à humanidade,
vocação e missão possuem uma dimensão pessoal e uma dimensão comunitária.
Pessoal, enquanto cada crente tem o seu jeito de vivenciar a missionariedade da
igreja. Comunitária porque esta missionariedade foi confiada à igreja, enquanto
comunidade convocada e reunida pela Trindade.
Esta realidade nos obriga a
entender que a iniciativa divina do chamado é dirigida à pessoa humana livre. É
indispensável por isso entender a questão do destino na sua relação com a dinâmica
do chamado do Senhor.
Dentro da visão paulina, destino,
no sentido de que os limites estão dados de antemão, é a correlação entre lei e
espontaneidade. Destino traduz uma relação dialética com liberdade: destino e
liberdade são polaridades; destino implica que a liberdade está sujeita à lei;
destino implica que liberdade e lei são interdependentes e complementares. Para
Paul Tillich, liberdade e destino formam uma polaridade ontológica, onde a
descrição da estrutura ontológica básica e seus elementos atingem tanto sua
realização, quanto seu ponto decisivo: “O
homem é homem porque tem liberdade. Mas ele tem liberdade só em
interdependência polar com o destino”.[11]
Analisando o conceito cristão
palestino de destino, exposto por Paulo, podemos dizer que há uma
interdependência entre lei e espontaneidade, de tal forma que destino e
liberdade se encontram intrinsecamente entrelaçados. Só quem tem liberdade tem
um destino, explica Tillich. “As coisas
não têm destino porque não têm liberdade. Deus não tem destino, porque ele é
liberdade. A palavra destino
aponta para algo que está para acontecer a alguém; ela tem conotação
escatológica. Isso a qualifica a estar em polaridade com liberdade. Ela aponta
não para o oposto da liberdade, mas para suas condições e limites”.[12]
A certeza de que o destino
cristão está prenhe de graça tem um significado realizador e não destruidor e,
por isso não é demoníaco, ao contrário, é a peça-chave do pensamento de Paulo,
quando coloca Cristo acima do destino. Ao fazer isso, Paulo está dizendo que a
compreensão plena do destino não está ao alcance do homem, pois há nele uma
componente escatológica que escapa ao conhecimento humano.
A verdade incondicional de Deus não está ao
nosso alcance. Em nós humanos há sempre um elemento de aventura e risco em cada
enunciado da verdade. Mas mesmo assim, podemos e devemos correr este risco,
sabendo que este é o único modo em que a verdade pode ser revelada aos seres
finitos e históricos.
Quando mantemos uma relação com o
Cristo eterno e deixamos de temer a ameaça do destino demoníaco, aceitamos o
lugar que cabe ao destino em nossa vocação. Podemos reconhecer que desde o
princípio nossa vocação esteve submetida ao destino e que muitas vezes desejou
livrar-se dele, mas nunca conseguiu.
Na análise cristã do destino,
Cristo e o tempo de Deus estão relacionados. Cristo leva ao tempo de Deus.
Cristo envolve e domina os valores universais, a plenitude do tempo, a verdade
e o destino da existência. Na vida do cristão a separação entre Cristo e a existência
chegou ao fim. Cristo alcançou
a existência, penetrou no tempo e no destino. E isso aconteceu não como algo
extrínseco ao Cristo, mas porque é a expressão de seu próprio caráter, de sua
liberdade.
É necessário, porém, entender que
tanto existência quanto conhecimento humano estão submetidos ao destino e que o
eterno reino da verdade só é acessível ao conhecimento que transcende o
destino: a revelação.
Dessa maneira, ao contrário do que pensavam os
gregos, todo ser humano possui potencialidades, enquanto ser, para realizar seu
destino. Quanto maiores as potencialidades do ser, que crescem à medida que é
envolvido e controlado pelo Cristo, mais profundamente está implicado seu
conhecimento do destino.
Partindo da liberdade que nos foi
dada, enquanto imago Dei, nosso destino, que deve ser entendido como
manifestação do desígnio do Pai, da missão do Cristo e da obra do Espírito
Santo, é o projeto de Deus para nossa vida. Destino é servir à Trindade, num
tempo novo, que emerge das crises e desafios de nossos dias. Quanto mais nos
aproximamos da compreensão de nosso destino, no sentido de estar colocado, de
ser proposto, tanto mais seremos livres. Então, nosso trabalho, nossa vocação
será plena de força e verdade.
O projeto de Deus para uma pessoa
não é algo estático, mas um chamado que é feito através de mediações concretas.
Deste modo a pessoa pode dizer sim, fazendo acontecer a história da
libertação, ou dizer não, distanciando-se da missão e do destino que
nasceram do projeto de amor do Pai, do Filho e do Espírito.
Igreja e vocações
No que tange às vocações particulares,
convém observar que a vocação do cristão é a vocação comum da qual dependem as
vocações ministeriais e seculares. Tal vocação de vida consagrada se fará antes
de tudo a partir da dimensão simbólica da mesma: somos chamados a
contextualizar o significado do ser cristão na vida da comunidade onde vivemos
e dentro da qual nos relacionamos. A questão da especificidade de vocação, na
igreja e na sociedade, passa por ser seguidor radical de Jesus, profeta e sinal
visível da radicalidade do Evangelho.
A vocação de pastores, ministros
e missionários, e de trabalhadores, profissionais e empresários deve determinar
o específico destes ministérios. Por exemplo, ainda é forte o monopólio por
parte de pastores, ministros e missionários. A teologia deve contribuir para a
superação da visão privatista presente na formação ministerial. Da mesma
maneira, a vocação secular de trabalhadores, profissionais e empresários deve
ser entendida como aquela de serviço à unidade da comunidade. Embora a vocação
particular do ministério pastoral seja a presidência da igreja.
As dificuldades, no que respeita às
vocações, estão ligadas a uma compreensão insuficiente do que é igreja. Por
isso, é indispensável uma reflexão sobre o que é igreja.
Devemos começar por uma pergunta:
qual o modelo de igreja ao qual nos referimos quando falamos em vocação? Aqui
voltamos ao início do texto, onde entendemos igreja como corpo reunido na
unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Tal visão de igreja contribui
para que todos os seus membros vivam em estado de vocação e de missão,
sentindo-se convocados pelo Pai para o serviço ao Reino.
Somente uma igreja que é imagem
da Trindade pode tomar-se espaço para o surgimento e desenvolvimento de
vocações. Isto porque nela os crentes constituem um só corpo em Cristo, com
dignidade e variedade de funções, com espaço para a comunhão e participação.
Numa igreja assim existe a presença de instrumentos e de organismos que
permitem o engajamento dos crentes e abrem caminho para o surgimento das
vocações. Aqui os jovens encontram um terreno eficaz para o amadurecimento
humano, cristão e apostólico.
Tal igreja é mãe das vocações.
Sente-se chamada e ao mesmo tempo convocada a chamar. Tem consciência de ser
uma comunidade de pessoas chamadas que, por sua vez, torna-se apelo vivo da
Trindade. Este modelo de igreja que comunga e participa se identifica com as
vocações de que é constituída. Nela os crentes recebem o chamamento ao
sacerdócio universal e à santidade. Nela surgem, por dom do Espírito Santo, os
chamamentos especiais para os ministérios e profissões, para a consagração
eclesial e secular, e para a vida missionária. Ela é a reunião de todos
quantos, em comunhão com o seu pastor e entre si, são chamados pelo Pai a
seguirem o Senhor Jesus, de acordo com os dons do Espírito. E porque há
identificação, todos se sentem responsáveis pelas vocações.
A igreja onde as vocações podem
brotar escuta o clamor da comunidade e vive em processo de renovação. Não
reclama privilégios, mas vive na sociedade a sua missão profética, denunciando
as injustiças e anunciando o kairós
evangélico de uma sociedade nova, humana e fraterna. Tal igreja é capaz de
dialogar com a sociedade pluralista, sem abandonar sua doutrina e propósitos. É
uma igreja servidora, ministerial (minus
stare), onde todos são chamados a servir.
Uma igreja onde os crentes
descobrem a realidade em que vivem, os chamados aos ministérios eclesiais
(pastores, ministros, missionários) e o sentido das vocações seculares
(trabalhadores, profissionais, empresários) de que a comunidade tem
necessidade, faz-se igreja necessária. E os compromissos de hoje podem se
tornar prelúdio de uma consagração definitiva. Na igreja que está voltada para
sua comunidade, os jovens e adultos não são crentes passivos, mas agentes,
participantes e responsáveis, protagonistas, de acordo com os dons e as
possibilidades de cada um.
Por uma teologia evangélica da vocação
A partir do que vimos vale a pena
analisar alguns elementos que podem balizar a construção de uma teologia
evangélica da vocação.
Em primeiro lugar, deve ficar
claro que as experiências humana e cristã são realidades correlatas ao chamado
para as vocações particulares. Por isso, a
vocação de pastores, ministros, missionários e de trabalhadores, profissionais
e empresários, enquanto chamado de Deus que se realiza na igreja e na
comunidade, deve fundar-se numa teologia evangélica e numa práxis em sintonia
com nossos princípios e doutrinas.
Partindo desta avaliação é
preciso entender que partimos do Deus triúno e da teologia do amor que tal
comunhão implica: vocação é relacionamento, o que implica em dar valor à
experiência humana e à espiritualidade cristã, mas também dar atenção à questão
da inculturação e aos desafios da contemporaneidade. Vivemos um tempo de
transição, caracterizado por atitudes ambivalentes. As transformações da
sociedade revelam a inadaptação de muitas igrejas, presas à tradição, e a
necessidade de novos projetos de existência humana.
E por fim, é preciso definir o
específico de cada vocação, dando valor à participação de toda a igreja
enquanto corpo de Cristo. Isto traduz a necessidade de se encontrar uma
metodologia adequada para cada situação, lugar e grupo de pessoas.
Considerações finais
O cristianismo é a vitória sobre a cosmovisão da religiosidade
helênica de que estamos debaixo das forças de deuses e demônios, traduz a idéia
de que o mundo é uma criação divina.
É a negação radical do caráter demoníaco da
existência em si. Dá à existência um valor essencialmente positivo e valoriza
os acontecimentos da ordem temporal. Com o cristianismo, a ordem do tempo não
leva apenas ao transitório e perecível, mas também à possibilidade de algo
totalmente novo, um propósito e um fim que dá pleno significado à vida humana.
No cristianismo o tempo triunfa
sobre o espaço. O caráter irreversível do tempo bom substitui o tempo cíclico,
transitório e perecível do pensamento helênico. A partir desse kairós, a presença de Cristo entre nós,
destino outorga graça, que traz libertação no tempo e na história. O mundo
helênico e sua interpretação da vida foram superados e com eles o pessimismo da
religiosidade helênica.
Agora
depositamos nossa certeza nas palavras de Paulo em Romanos 11.29, quando diz que
“Deus não muda de idéia a respeito de quem ele escolhe
e abençoa”.
E a partir do chamado e vocação entregues por Deus a nós, realizemos nossa
missão, destino glorioso que traduz o
desígnio do Pai, a missão do Filho e a obra do Espírito Santo nas nossas vidas,
e através delas, na igreja e na sociedade.
Bibliografia
recomendada
BRUCE,
F.F. Romanos, introdução e comentário. Odayr Olivetti, trad., São Paulo, Vida Nova e Mundo Cristão, 1991.
CULLMANN,
Oscar. A formação do Novo Testamento, 5a. ed., Bertoldo Weber, trad., São Leopoldo, Sinodal, 1990.
FRANZMANN,
Martin H. Carta aos Romanos, Mário e Gládis Rehfeldt, trads., Porto
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LAFON, Guy, Saint Paul, épitre
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LEENHARDT,
Franz J. Epístola aos Romanos, Waldyr Carvalho Luz, trad., São Paulo,
ASTE, 1969.
OLIVEIRA, José Lisboa Moreira de,
Nossa Resposta ao amor, teologia das vocações específicas, São
Paulo, Editora Loyola.
TENNEY,
Merril C. O Novo Testamento sua origem e análise, 2. ed., São Paulo,
Vida Nova, 1972.
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Paul, La dimension religieuse de la culture, Paris, Genebra, Québec, Les
Editions du Cerf, Editions Labor et Fides, Presses de l´Université Laval, 1990.
____________,
L´Etre nouveau, tradução de J. M. Saint, Planète, Paris,
1969, do texto original: The New Being, Charles Scribner's Sons, 1955.
____________, Teologia Sistemática, São Leopoldo, São Paulo, Editora
Sinodal, Edições Paulinas, 1984.
Jorge Pinheiro é professor da Faculdade Teológica Batista de São Paulo. É
Pós-Doutor pela Universidade Metodista de São Paulo e pela Universidade
Presbiteriana Mackenzie, Doutor e Mestre pela Universidade Metodista de São
Paulo e Graduado em Teologia pela Faculdade Teológica Batista de São Paulo É
pastor na Igreja Batista em Perdizes.
[1]
Gilda Naécia Simões, “Cristianismo Primitivo e Paidéia Grega”, jornal O Estado de S. Paulo, 21/9/1975. In Seminário
Internacional Cristianismo, Filosofia, Educação e Arte, FEUSP,
setembro 2001.
[2]
Leonildo Silveira Campos, “Os
Novos Movimentos Religiosos no Brasil Analisados a Partir da Perspectiva da
Teologia de Paul Tillich”, revista eletrônica Correlatio, no. 3.
[3]
“O regime da lei no Antigo Testamento era bom, mas temporário (Gn. 3.24, 4.1+),
e foi planejado para o mundo da carne e o pecado. Com a morte e a ressurreição
de Jesus o regime da lei foi superado. O cristão está livre da lei, assim como
Cristo que teve seu corpo carnal feito corpo espiritual (Rm 7.4-6, cf. 1Co
15.45). O cristão não está mais debaixo da lei, mas debaixo da graça (Rm 6.14).
E a graça é grátis (Gl 5.1, 13). Na medida em que se é cristão, filho de Deus
guiado pelo Espírito (Rm 8.14), a única lei que lhe convém é aquela que Paulo
chama de a lei do Espírito (Rm
8.2), não só dada pelo Espírito, mas vivida no crente através do Espírito, que
segundo Tomás de Aquino, não é simples norma externa, mas princípio de ação,
atividade do Espírito no cristão”. Guy Lafon, Epitre aux Romains,
Flammarion, Paris, 1987, p. 59.
[4] J. Sobrino, Cristologia desde
América Latina, Esbozo a partir del seguimiento del Jesús histórico,
México DF, CRT, 1976 (2a. ed. ver. 1977), p. 91.
[5] I. Ellacuría, Conversión de
la iglesia al Reino de Dios para anunciarlo y realizarlo em la historia,
Santander, Sal Terrae, 1985, pp. 179-261.
[6]
José Lisboa Moreira de Oliveira, “Teologia
e Eclesiologia da Vocação”, revista Espírito no. 65, (jan/mar 1996, pp.
22-31).
[7] E. Schillebeeckx, L`intelligenza
della fede: interpretazione e critica (1972), Roma, Paoline, 1975, p. 102.
[8]
José Lisboa Moreira de Oliveira, op. cit., pp. 22-31.
[9]
Idem op. cit., pp. 22-31.
[10]
Ibidem, op. cit., pp. 22-31.
[11]
Paul Tillich, Teologia
Sistemática, Editora
Sinodal, Edições Paulinas, São Leopoldo, São Paulo, 1984, p. 156.
[12] Paul Tillich, idem, op. cit., p.
158.