dimanche 10 juillet 2016

Um rei chamado Shlomo

Eclesiastes, aquele-que-sabe
O rei e o livro -- uma leitura popular
Jorge Pinheiro, PhD


Shlomo, que quer dizer “pacífico” em hebraico e que traduzimos por Salomão, foi rei de Israel. Seu reinado está contado no Livro dos Reis. Era filho de Davi com Bate-Seba e, segundo a tradição, foi o terceiro rei de Israel, governando quarenta anos, de 966 a 926 antes de Cristo.

Quando falamos de Shlomo vem a mente estórias de sabedoria, riqueza e poder. Ele não era o filho mais velho do rei Davi e, por isso, não deveria herdar o trono. Na verdade, o Segundo Livro de Samuel (3.4) conta que na linhagem sucessória ao trono estavam Amnon (filho de Davi e Ainoã), Absalão (filho de Davi e Maacá) e Adonias (filho de Davi e Hagite). Mas com a morte de Amnon e Absalão, e as intrigas palacianas pela sucessão, já que cada pretendente ao trono era filho de uma mulher de Davi e tinha seus apoiadores no palácio, o rei Davi decide descartar definitivamente Adonias e promete a Bate-Seba que Shlomo seria o escolhido. Quando o rei Davi, já velho, adoece e fica prostrado na cama, a família real, que já vinha conspirando para que Adonias tomasse o poder, resolve comemorar o futuro reinado de Adonias. 

E Shlomo toma posse em segredo.
 
Assim, muita gente do palácio não sabia o que estava acontecendo. E o profeta Natã, que já tinha sido informado por Davi de que deveria empossar Shlomo e cuidar para que o jovem não fosse assassinado, foi chamado por Bate-Seba. Sem perder tempo, o profeta abençoou o jovem Shlomo, que teve que enfrentar, desde o início de seu reinado, conspirações e tempos turbulentos. 

Apesar de todos esses problemas, o Shlomo deixou um legado de escritos de sabedoria. E agora vamos ver algumas lições que podemos aprender com ele, em seu livro chamado Qoheleth, ou “aquele-que-sabe”, ou simplesmente "mestre". E que nós chamamos em português de Eclesiastes. 

Muitas vezes, a sabedoria de Eclesiastes parece um pouco densa, mas se fizermos uma síntese dessas páginas podemos dizer que o resumo é: os nossos esforços para alcançar a felicidade, distantes de um repousar sobre a espiritualidade, são inúteis.

E assim esse rei planejou e organizou a construção do primeiro templo da história de Israel, escreveu três mil provérbios, mil e cinco canções, além do livro de Eclesiastes, considerado um dos textos filosóficos mais importantes da literatura judaica.

Lança o teu pão sobre as águas

Shlomo enfrentou anos difíceis e enormes desafios. Na verdade, durante seu reinado possibilitou o crescimento econômico e a expansão do comércio e da indústria. Ele havia criado uma indústria naval, embora os hebreus não fossem navegadores, nem tivessem intimidade com o mar. Ao contrário, era gente da terra firme, que sabia enfrentar as vicissitudes da aridez dos desertos. 

Mas Shlomo era um visionário. E, assim, contratou os seus vizinhos fenícios, esses sim, homens amantes das viagens marítimas. E instalou com a contratação dessa mão-de-obra especializada estaleiros no norte de Israel e ali construiu navios com o melhor da tecnologia marítima da época. 

Sim, eram tempos de crescimento econômico e expansão do comércio. Mas isso exigia trabalho duro e ele sabia disso. Foi por isso que trouxe para Israel um costume egípcio que não era muito bem visto. Passou a exigir dos jovens, o trabalho forçado obrigatório por dois anos seguidos, que muita gente dizia ser escravidão. Não, não era escravidão, mas fazia com que a força jovem das famílias deixassem os campos e fazendas para trabalharem para o governo de Shlomo no norte do país. 

E como se não bastasse, os jovens mais espertos eram convidados pelo governo de Shlomo a integra-se na força tarefa que se lançava nos mares a fim de realizar o comércio com outras nações do além-mar.

É verdade, eram tempos de trabalho duro, mas de conquistas e sonhos ousados. Mas havia outra questão e ele, como rei de Israel, sabia disso muito bem: não era só necessário pensar grande e trabalhar duro. Era necessário investir, afinal o governo precisava captar recursos para que o sonho pudesse se tornar realidade.

E foi assim que ele fez chegar a todo o povo de Israel uma campanha que dizia, “lança o teu pão sobre as águas, porque depois de muitos dias o acharás“ (Eclesiastes 11.1).

E depois no corpo da campanha, explicava que os investidores não deviam aplicar apenas em uma mercadoria, ou apenas num investimento -- reparte com sete e ainda com oito --, porque na economia há imponderáveis que, às vezes, é impossível prever. E fazia um alerta importante, quem fica esperando que tudo dê certo antes, nunca vai arriscar ou investir, ou seja, “quem observa o vento não semeará e quem atenta para as nuvens não ceifará”. E Shlomo aconselha, “semeia de manhã a tua semente e, de tarde, não deixes repousar a tua mão, pois não sabes qual das duas prosperará, se esta ou aquela ou se ambas serão igualmente boas”. 

Que campanha genial, que marketing brilhante! E todo o povo de Israel entendeu o recado do rei Shlomo. Vamos investir no comércio marítimo, no trigo e outros bens. E vamos importar também, cedro do Líbano e madeiras nobres, ouro e prata. A gente investe agora, diversifica os investimentos, pois sabemos que há riscos e não podemos prever tudo, mas apostamos junto com o governo de Shlomo, que é de crescimento econômico e prosperidade. Investir nos projetos do rei é uma atitude sábia e recompensadora, apesar dos riscos da empreitada. 

A campanha significava apostar nas safras de trigo e de outros bens agrícolas, investir no comércio exterior, e importar madeiras, ouro e prata, ou seja, “lançar o pão sobre as águas” e esperar, porque depois das viagens distantes, receberiam a recompensa de um ou mais dos investimentos feitos. Mas esses não eram investimentos de curto prazo, era necessário aplicar com tranquilidade na produção agrícola, nas viagens das naus de Shlomo, nas importações e esperar.

Eis as lições que podemos tirar deste sábio conselho presente no livro de Eclesiastes (11.1-8), uma coletânea de textos de sabedoria do rei Salomão.

Devemos, mesmo nos tempos de crise e de trabalho duro, investir, poupar, diversificando nossos investimentos. Sabendo que a longo prazo seremos recompensados, receberemos os dividendos, teremos o lucro dos investimentos realizados.

Sugestão de leitura: Eclesiastes 11. 1-8.

Vai e goza a vida

Shlomo amou muitas mulheres, além da filha de Faraó, moabitas, amonitas, edomitas, sidônias e hetéias. Segundo a tradição, foram setecentas princesas e trezentas concubinas, ou seja, mulheres com as quais não formalizou suas relações. Shlomo, possivelmente para agradar suas esposas, já na velhice, construiu altares para Camos, deus dos moabitas, e para Milcon, deus dos amonitas. E junto com elas, queimava incenso e sacrificava a esses deuses. (Reis 11: 1-8).

É importante notar, porém, que ter um harém era um sinal de riqueza de um reino e também da virilidade do rei. Afinal, um rei com potência sexual era considerado um sinal de bênção para o reino. E o fato de Shlomo casar com princesas estrangeiras fazia parte da diplomacia, porque os acordos entre cidades e reinos eram ratificados com a troca de princesas, que eram consideradas um capital econômico que regularizava as relações sociais. Por isso, tanto política como para manter a paz familiar, Shlomo devia respeitar as crenças de suas mulheres e, logicamente, construir locais de culto para os deuses delas.

Talvez essa situação toda tenha pesado no coração de Shlomo e no livro de Eclesiastes ele considerou que deveria dar um conselho especial aos jovens. 

Vai e “goza a vida com a mulher que amas, todos os dias da tua vida vã que ele te deu debaixo do sol, por todos os dias da tua vaidade. Pois essa é a tua porção na vida e no teu trabalho com que te afadigas debaixo do sol”. (9.9)

Shlomo está dizendo para os jovens que não adianta ter muitas mulheres se você não ama nenhuma delas. Entre todas, você deve escolher aquela que ama e atravessar a vida com ela. E como a vida é passageira, como a névoa que se dissipa pela manhã, você deve viver com intensidade cada momento. Afinal é isso que o Eterno deu a você, a oportunidade de viver e as lutas da vida.

Sugestão de leitura: Eclesiastes 9.1-10.

Teme ao Eterno

Shlomo entendeu que as posses são importantes, mas não bastam. E compreendeu também que gozar a vida é fundamental, mas viver com plenitude não se resume a isso. Vai, então, ensinar aos jovens uma outra lição:  “Este é o fim do discurso. Tudo já foi ouvido: teme ao Eterno e observa os seus preceitos, porque isso é o tudo do homem” (12.13). Ou seja, a vida em plenitude é um momento especial da espiritualidade, que possibilita às pessoas desfrutarem aquilo que conquistam e viverem com intensidade os dias da existência.

É um presente poder comer, beber e desfrutar o produto de nosso trabalho, e isso é um dom do Eterno. O encontro entre o ser humano e a transcendência eterna, essa comunhão profunda da espiritualidade, Shlomo nos conta que é fruto do escutar com atenção o que o universo nos fala. Não é fruto de uma liturgia exterior, mas a celebração no cenário complexo e paradoxal da vida. É a celebração com o corpo, onde a corporalidade assume o papel de tradutor dos mistérios do Eterno. 

“Eu vi ainda debaixo do sol que a corrida não é para os ligeiros, nem a batalha para os fortes, nem o pão para os sábios, nem as riquezas para os inteligentes, nem o favor para os homens de destreza; mas tudo depende do tempo e do acaso. Pois o homem não sabe a sua hora. Como os peixes que são apanhados numa rede cruel e como os pássaros que são presos no laço, assim os filhos dos homens são enlaçados no tempo mau, quando este dá sobre eles de improviso. Vi também este sinal de sabedoria debaixo do sol, que me pareceu grande”. (9.10-14).

Os frutos do trabalho e de seus investimentos, a sexualidade e o erotismo fazem parte do entendimento de Shlomo sobre os ganhos e os prazeres da vida. As palavras sábias de Shlomo lançam por terra uma compreensão superficial da vida. Os problemas da existência, o infortúnio e o mal não são inerentes ao mundo, não são frutos do pecado, nem maldição do Eterno, mas são manifestações das contingências e das fragilidades humanas. E por medo, o tolo não pode apreciar a beleza do mundo e a finalidade do esforço humano. Por isso, não se deve viver sem sabedoria. E este é o presente maior do Eterno.

Shlomo, aquele-que-sabe, o mestre sábio, construiu um cenário onde as pessoas desempenham na existência o papel que lhes é entregue pelo grande dramaturgo. Assim, comédia, drama e tragédia estão presentes no repertório teatral que cada pessoa escolhe (3.1-8). 

Mas, através da sabedoria horizontes estreitos são ampliados. Estar aqui, agora, quer rindo ou chorando, é um presente da eternidade. Estar aqui hoje é o dom que o Eterno me deu. Sem o aqui e agora de cada dia, meu desejo de ter, meu desejo de poder controlar o amanhã de acordo com o esforço de hoje não procede. A vida plena tem que acontecer hoje, pois não sabemos o dia de nossa morte. Tudo o que temos é a série de eventos agradáveis ​​e dolorosos que compõem a força da espiritualidade do nosso agora.

Sugestão de leitura: Eclesiastes 12.1-14.

Ação e protesto radical

A ação  transformadora nasce do protesto crítico, radical, revolucionário

Jesus proclamou a chegada do Reino de Deus, que é um reino de justiça, paz e alegria. É bem verdade que, muitas vezes, o cristianismo tem deixado a proclamação do Reino de Deus de lado e procurado viver sob a tutela do reino deste mundo. 

Mas, só para mostrar o envolvimento cristão protestante na transformação do mundo, vou me remeter à história da militância cristã na Inglaterra do século XVIII. William Wilberforce e William Pitt são nomes conhecidos na Inglaterra, mas não entre nós. Amigos desde a universidade, esses dois homens, no século 18, chegaram ao Parlamento no início dos seus vinte anos. 

Pitt elegeu-se primeiro-ministro e ganhou o apelido de "o jovem", para diferenciá-lo do pai, que também ocupara o cargo. E resolveu implantar um projeto político audacioso: acabar com o tráfico de escravos, liderado pela Inglaterra. Projeto difícil, pois a maioria dos parlamentares estava direta ou indiretamente ligada ao tráfico. Pitt convocou Wilberforce para ajudá-lo na tarefa. 

E foi assim que dois movimentos marcaram a Inglaterra: a campanha contra a escravidão, que começou em 1789, com um discurso de William Wilberforce na Câmara dos Comuns, e as campanhas pelas reformas trabalhistas, que desembocaram no movimento social cristão. Em 23 de fevereiro de 1807, o tráfico de escravos foi interrompido, graças à intensa militância cristã e política de Wilberforce. 

A partir desse momento, as campanhas abolicionistas foram lideradas por outro ativista, Thomas Fowell Buxton. Ambos, Wilberforce e Buxton, pertenciam a um pequeno grupo protestante surgido na paróquia de Clapham, vilarejo distante oito quilômetros de Londres. 

Assim, a comunidade de Clapham, aliada a grupos não conformistas, e através da publicação de literatura, realização de palestras e mobilizações de rua, foi responsável por algumas das manifestações sociais mais importantes da Inglaterra. Em 25 de julho de 1833, o Ato de Emancipação libertou os escravos em todo o império britânico. 

O significado dessa ação repercutiu em todo o mundo, inclusive no Império brasileiro, estrategicamente ligado à Inglaterra, através de três intelectuais: Joaquim Nabuco, Rui Barbosa e Luiz Gama. Nabuco, que era diplomata, se inspirou no cristianismo militante de Wilberforce para organizar o movimento que levou a monarquia brasileira a aprovar a Lei do Ventre Livre. Somada à pressão britânica, a militância de Nabuco contribuiu para determinar a abolição da escravatura, em 1888. 

Junto com as campanhas abolicionistas, as reformas trabalhistas mobilizaram outros intelectuais protestantes vindos do anglicanismo, como John Malcolm Ludlow (1821-1891), Charles Kingsley (1819-1875) e Thomas Hughes (1822-1896), que lutaram pelo fim da escravidão, contra o trabalho infantil nas fábricas e pela jornada de dez horas. Essas mobilizações levaram a uma ampla reforma social e ao surgimento do movimento social cristão inglês. 

Assim, os protestantes deram início ao movimento social inglês. Homens como Ludlow, Kingsley, Maurice e Hughes criaram o socialismo cristão na Inglaterra. Com plena consciência do que estava fazendo, Maurice afirmou “a necessidade de uma reforma teológica inglesa, como meio de evitar uma revolução política e de trazer o que de bom existe nas revoluções estrangeiras, tem estado cada vez mais impresso no meu pensamento”. 

O movimento inglês repercutiu com força nos Estados Unidos. E, apesar da visão escravista de muitos protestantes estadunidenses, como Richard Furman, líder batista da Carolina do Sul, que, de certa forma, traduzia o sentimento generalizado entre os grandes fazendeiros sulistas, no norte surgiu um forte movimento protestante contra a escravidão. 

Seu primeiro grande ativista foi Charles G. Finney, seguido por abolicionistas como Theodore Weld e Lymann Beecher. Um romance marcará a campanha abolicionista e entrará para a história da literatura mundial: A cabana do pai Tomás, de Harriet Stowe. Numa leitura escatológica milenarista, Harriet Stowe considerava que a escravidão não era apenas um pecado do Sul, mas que a culpa era nacional e, por isso, o juízo seria nacional. No livro, atacava a consciência nacional escravista na esperança de que uma purificação da alma dos Estados Unidos livrasse o corpo político da vingança divina. 

É interessante que o argumento de Wilberforce, exposto em suas campanhas, sobre a inviolabilidade do conceito de que todos os homens são iguais, foi usado pelo presidente estadunidense Abraham Lincoln no ato de 1863, que aboliu a escravidão nos Estados Unidos. Lincoln, cujo mandato se desenrolou em meio à Guerra de Secessão, compartilhava a visão de Wilberforce de que era uma imoralidade possuir outro ser humano e citava o inglês em seus discursos. Com a guerra, veio a vitória do norte e a abolição da escravatura. 

Finda a escravidão, a discussão sobre a industrialização do país, os danos humanos, misérias e exclusão que produzia entraram na ordem do dia. Surgiram assim os “protestantes públicos” que, ao contrário dos “privatistas”, falavam de cristianismo social, evangelho social, serviço social. 

Expoentes desse pensamento foram Washington Gladden, ministro congregacional de Ohio, o escritor Charles Sheldon, que produziu uma obra até hoje famosa, Em Seus Passos Que Faria Jesus? e o pastor batista Walter Rauschenbusch.Rauschenbusch (1861-1918) era de origem alemã. Levantou a questão do evangelho social, a partir de uma leitura que combinava a doutrina bíblica da responsabilidade social e os socialistas utópicos. 

Defendeu uma democracia econômica e política e propôs uma atuação através dos sindicatos. “Nossa economia política tem sido por muito tempo o oráculo de um deus falso. Ensinaram-nos a ver as questões econômicas do ponto da vista dos bens e não do homem. Disseram-nos como a riqueza é produzida e dividida e consumida pelo homem, e não como a vida e o desenvolvimento do homem podem melhorar e serem promovidos pela riqueza material. É significativo que a discussão do consumo da riqueza esteja negligenciada na economia política, contudo a questão humana é a mais importante de todas. A teologia deve ser cristocêntrica, mas a economia política deve tornar-se antropocêntrica. O homem é cristianizado quando põe Deus acima de si próprio, a economia política será cristianizada quando colocar o homem acima da riqueza. É isso que uma economia política socialista faz”, afirmou em Christianity and the social crisis. 

No mesmo livro, dizia que “nada dará a classe trabalhadora uma compreensão real de seu status de classe e de seu objetivo final do que a luta permanente para conquistar suas reivindicações mínimas e para eliminar as pressões reacionárias contra seus sindicatos. Nós partimos do princípio de que uma organização fraternal da sociedade não terá força se for apoiada apenas por idealistas. Ela (a organização fraternal da sociedade) necessita da sustentação firme da classe trabalhadora, cujo futuro econômico depende do sucesso desse ideal. A classe trabalhadora industrial é, consciente ou inconscientemente, a força para a realização desse princípio. Assim, aqueles que desejam a vitória, desde um ponto de vista religioso, terão que fazer uma aliança com a classe trabalhadora. Mas o princípio protestante da liberdade religiosa e o princípio democrático da liberdade política levam à vitória através da aliança da classe média, que também deseja a conquista do poder, com a classe trabalhadora; dessa maneira, o novo princípio cristão, que busca uma organização fraternal da sociedade, deve aliar-se para a conquista que ambos querem”.

Acho que estou em boa companhia, principalmente quando me lembro do companheiro Martin Luther King Jr., pastor batista, e um dos maiores militantes da causa social em todos os tempos.



samedi 9 juillet 2016

Suceso

הצלחה – Sucesso, que o Eterno abençoe as obras das suas mãos!
"Hatzlakha rabbah!"– Boa sorte!

Viver é uma certeza, se você tem saúde e não morrer de bala. Dedico aos que vieram antes. E aqueles que estão se preparando para as conquistas da vida.

“Derrama sobre nós a tua graça, ó Eterno, nosso Deus! Dá-nos sucesso em tudo o que fizermos. Sim, dá-nos sucesso em tudo”. Salmo 90.17.

1. Sucesso na vida?

Nesta canção, Moisés mostra que Deus é o Eterno. Deus do presente, já que o passado e futuro repousam na eternidade sem fim. É Ele quem define o tempo e o modo, sem tolher as andanças mil dos caminhantes. Para Ele, os anos que não se podem contar, por muitos, é hoje, é o agora eterno. É isso que define a fidelidade de  Moisés, pois ele sabe que sem fidelidade não há sucesso. 

A partir do Eterno, nossa mente descobre formas de fazer, de solver desafios. Isso é sabedoria, que nasce do temor e tremor diante da autoridade e da soberania do Eterno. E sem sabedoria não há sucesso. 

"Desta maneira, quem não sabe que tudo o que acontece é obra do Senhor? Pois na sua mão está a vida de todos os seres vivos e o espírito que anima todos os seres humanos. O ouvido sabe distinguir as palavras, como o paladar distingue o sabor que lhe agrada. A velhice dá sabedoria, uma vida longa produz inteligência. Por isso, ele tem a sabedoria e o poder, compreende e percebe tudo" -- disse o sábio Jó (12:9-13).

A este elemento -- a sabedoria -- podemos chamar de fator crítico do sucesso, ou seja, aquilo que é necessário para que um projeto chegue a contento ao seu objetivo. 

E se o Eterno nos deu tempo de vida, Ele nos deu, enquanto o tempo durar, o objetivo da realização pessoal, debaixo do seu prazer.

2. As nossas limitações

Moisés em sua canção mostra que as pessoas são falhas e erram seus alvos existenciais. Somos enredados pela superficialidade dos desejos de nossa alienação, cobiça e soberba que nos levam por caminhos errados, por culpas, iras e mal-fazeres. Por isso, o hebreu diz que devemos saber contar cada dia da vida para encher o coração de sabedoria. 

Moisés diz que não há sucesso, seja na juventude, maturidade ou velhice, quando não descobrimos a forma certa de fazer o que pretendemos. Devemos reconhecer nossa dependência do Eterno para ir mais longe, para superar a carga social da limitação das idades e, consequentemente nossos medos. O sucesso é destino do Eterno para as vidas, em qualquer idade, pois não depende apenas de capacidade, mas da visão. 

Donde, de forma jocosa, uma pergunta: Por que você cruzou a estrada? Baralhemos as respostas: Porque queria chegar do outro lado da estrada. Parece óbvio, mas não é. Talvez Marx dissesse: o atual estágio das forças produtivas exigia uma nova classe de pessoas, capazes de cruzar a estrada. E Darwin: ao longo de grandes períodos de tempo, as pessoas têm sido selecionados naturalmente, de modo que, agora, têm uma predisposição genética a cruzar estradas. E Nietzsche: você deseja superar a sua condição atual, ir além, tornar-se o super-homem que é. E Sartre: trata-se de mero acaso. A existência está na sua liberdade de cruzar a estrada. E Martin Luther King: eu tive um sonho. Vi um mundo no qual todos serão livres para cruzar a estrada sem que sejam questionados seus motivos. E Blaise Pascal: quem sabe? O coração tem razões que a própria razão desconhece. Ou, com sua experiência de navegador, Amir Klink dissesse: para ir onde ninguém jamais esteve.     

Praticamente todas as respostas têm sua razão de ser, mas não respondem a questão central. Então, vamos em frente.

3. Vida plena

Sucesso significa otimizar resultados. Se você descer ladeira abaixo você está em apuros, porque só existe uma maneira de ter sucesso nessa empreitada é fazendo skate. Você sabe qual é o caminho? Isso é importante, porque nenhuma estrada é caminho fácil, mas pior ainda é quando se vai na direção contrária ao sucesso. E Moisés clama por alegria, amor e felicidade porque sabe que essas bênçãos pavimentam o caminho da realização plena de nossa humanidade. 

E de forma prática, pede ao Eterno que abençoe as obras de nossas mãos. O nosso fazer, os nossos modos de fazer, nossos objetivos e planos. Mas, lembre-se: o saber-fazer é importante, porém mais importante são os valores que movem você, se você, de fato, acredita que o Eterno está nesse negócio. Se tem a certeza que está fazendo a coisa certa e de que o Eterno está com você, então você está na direção certa. Começou a trilhar o caminho do sucesso nesta idade que Deus lhe deu.

"Hatzlakha rabbah!" – Boa sorte!

Do amigo, Jorge Pinheiro. 

lundi 4 juillet 2016

Transformar o mundo


Transformar o mundo
Jorge Pinheiro

Os profetas clássicos do Antigo Testamento eram ao mesmo tempo revolucionários voltados para o passado e conservadores impulsionados pela paixão do futuro. Nada faziam sem invocar a tradição. No entanto, suas mensagens apontavam para os tempos futuros. Os profetas sabiam servir-se do passado para a crítica do presente. Todos tinham uma coisa em comum: uma atitude realista. 

E ao contrário dos profetas falsos interessavam-se pelo concreto do presente: eram contextuais, contemporâneos e conterrâneos. Não viviam envoltos em véus de ilusões e, por isso, condenavam o palavreado inútil e a eloqüência abstrata. Mas, a pregação do futuro não constituía o essencial de seus ministérios, eram antes fruto e resultado do conhecimento do mundo, de suas contradições e possibilidades.

Se partirmos dessa compreensão, podemos dizer que nosso compromisso com o passado é a manutenção de nossas heranças, da qual a Palavra de Deus é a principal delas. Guardamos, estudamos, refletimos sobre o que diz e transmitimos àqueles que não conhecem o rico passado que nos deu origem. 

Não negamos nossas origens, sabemos de onde viemos e devemos ser maduros para entender o que fizemos de certo e de errado na história. Ao compreender assim o passado, dizemos que no correr dos séculos existiram homens e mulheres que interpretaram a situação espiritual de suas épocas. Eis aqui o ponto de intersecção entre a manutenção do passado e o tempo presente: a inquietude e o descontentamento em relação aos acontecimentos sociais e religiosos concretos.

Nesse sentido, deveria existir busca semelhante de respostas àquelas dos antigos profetas e a ação consciente dos líderes evangélicos e da igreja. Como os profetas deveríamos concretamente representar nossas comunidades, nossa terra brasileira, nosso mundo. Mas, ao lado das organicidades contextual, contemporânea e conterrânea, precisamos exercer autonomia em relação às pressões sociais, já que é dessa postura que nasce a força crítica e a compreensão de que diante da realidade há alternativas diferentes daquelas expressas pelo presente.

E se compreendemos que não basta o exame da situação espiritual do presente, como totalidade e permanência para fazermos diferença e transformarmos o mundo, é necessário entender as exigências lançadas adiante e, nesse sentido, ir além do próprio presente.

Ora, se o presente não pode ser apreendido apenas a partir do passado e de sua conservação, porque se procuramos a transformação do mundo, se estamos envolvidos com a construção do reinar de Deus, esse fazer não pode repousar exclusivamente na experiência da conservação. 

Porém, ser contextual, contemporâneo e conterrâneo não significa negar a existência de alternativas diferentes daquelas expressas pelo presente. Quando analisamos a ação dos profetas em relação ao presente, vamos constatar que eles não testemunhavam em benefício do presente. Eles diziam não ao presente. 

Mas esse não era um não abstrato, era um não concreto, que partia da militância contextual, contemporânea e conterrânea deles. Isto porque só através dessa condenação concreta e real do presente podemos, de fato, denunciar os símbolos das forças demoníacas no presente, que no caso do Brasil são as exclusões sociais, raciais, de gênero e outras.

E é a partir dessa compreensão do que significa estar envolvido com o presente para ir além dele, que podemos falar do futuro, não de um futuro vazio, mas de um futuro construído a partir de novos conteúdos.

Esse futuro deve ser momento concluído, texto, tempo e lugar onde a própria eternidade se faz agora e aqui. Repare, o futuro construído pela manutenção do passado, pela crítica contextual, contemporânea e conterrânea do presente não é um futuro qualquer, mas momento novo e pleno: é um futuro onde se completa aquilo que é significativo.

Esses desafios nos levam à compreensão da práxis cristã, que chamamos de princípio protestante. Este princípio central do protestantismo é a teologia da justificação pela graça apenas, significando que nenhuma pessoa ou comunidade humana pode reivindicar para si a dignidade divina em conseqüência de conquistas morais, de poder sacramental, de sua santidade ou de sua doutrina. 

Conseqüentemente, a liberdade profética precisa sempre criticar, condenar e transformar o status quo ou os sistemas morais, políticos e sociais que se consideram sagrados.

Cada protestante tem que decidir por si próprio se determinada conjuntura, doutrina ou sistema social é verdadeiro ou falso, se os líderes existentes em seu meio são verdadeiros ou falsos e se o poder estabelecido é divino ou demoníaco. Para os protestantes tal decisão será sempre pessoal.

jeudi 23 juin 2016

Jorge Pinheiro


É Pós-Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (2011) e pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2008), Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (2006), Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (2001) e Graduado em Teologia pela Faculdade Teológica Batista de São Paulo (2001). É professor de tempo integral na Faculdade Teológica Batista de São Paulo e Jornalista Profissional. Atua na área de Ciências da Religião, com especialização nas relações entre política e religião; filosofia e teologia; judaísmo e cristianismo. E com alegria e paz, consciente do chamado ao serviço, pastor adjunto da Igreja Batista em Perdizes (SP/Brasil).  





Jorge Pinheiro


É Pós-Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (2011) e pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2008), Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (2006), Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (2001) e Graduado em Teologia pela Faculdade Teológica Batista de São Paulo (2001). É professor de tempo integral na Faculdade Teológica Batista de São Paulo e Jornalista Profissional. Atua na área de Ciências da Religião, com especialização nas relações entre política e religião; filosofia e teologia; judaísmo e cristianismo. E com alegria e paz, consciente do chamado ao serviço, pastor adjunto da Igreja Batista em Perdizes (SP/Brasil).

As correlações entre a religião e a política

As correlações entre a religião e a política
Reflexões a partir de Paul Tillich em A Decisão Socialista
Por Jorge Pinheiro[1]


Política e religião não são realidades estanques, isto porque as raízes do pensamento político não são apenas pensamentos. Pensamento político é a expressão de um ser político, de uma situação social. Não se pode entender o pensamento quando se subestimam as realidades sociais das quais vem o pensamento político.

As raízes do pensamento político não podem agir com uma força igual em todo momento e em todo grupo. Um ou outro pode predominar, depende de uma situação social, grupos ou formas de dominação determinadas, pois dependem de estruturas sócio-psicológicas, da interação com a situação social objetiva. Assim, o primeiro referencial é o ser. Nesse sentido, é a partir de uma fenomenologia política, quando se analisa questões como o ser, a origem do pensamento político, enquanto mito, que se pode trazer à tona os elementos não reflexivos do pensamento político.[2] E a questão do ser, presente na ontologia, leva a uma antropologia existencial. 

Ora, a questão existencial é traspassada pela religião, que é a dimensão da profundidade, o espectro da profundidade na totalidade do espírito humano. A metáfora profundidade significa que o aspecto ontológico aponta em direção àquilo que, na vida espiritual do ser humano, é último, infinito e incondicional. No sentido mais amplo e fundamental do termo, religião é preocupação última. E a preocupação última se manifesta em absolutamente todas as funções criativas do espírito humano. Assim, a religião constitui a substância, o fundamento e a profundidade da vida espiritual do ser humano.[3]

Nem sempre é necessário perguntar pelas raízes de um fenômeno social, mas quando a existência está sob risco, então é necessário perguntar quais são suas raízes? É necessário procurar pelas raízes do pensamento político no próprio ser humano. Sem uma imagem do humano, de suas forças e tensões, não se pode dizer nada sobre as fundações políticas do pensamento e do ser político. Sem uma teoria do humano, não se pode construir uma teoria das orientações políticas. 

Mas, o ser humano, diferente da natureza, é um ser dividido. Não importa saber onde termina a natureza e onde começa o humano, não importa que a passagem entre os dois se faça através de lentas transições ou por um salto. O importante é que em determinado momento, a diferença ficou clara. Há, no entanto, um processo vital indiviso, que desdobra a natureza sem interrogar nem requerer, um processo que está ligado àquilo que se encontra nele e faz parte do que ele é. Assim, existe um processo vital que deseja saber sobre o humano, e que coloca algumas questões para ele: já não é indiviso, mas também dividido. É idêntico a si mesmo quando diante de si mesmo, no ato de pensar e de conhecer. Mas não apenas isso.

O ser humano tem consciência de si mesmo, ou em outras palavras, distingue-se da natureza enquanto ser que se desdobra, tornando-se ser consciente de si mesmo. A natureza ignora esta divisão. Por isso, o humano não é uma combinação de duas partes autônomas, tais como natureza e mente, ou corpo e alma, mas um só ser, porém fendido em sua unidade. Estas determinações gerais levam a algumas considerações no que se refere à pesquisa do pensamento político. Elas negam qualquer dedução do pensamento político enquanto puro movimento de pensamento, de exigências ético-religiosas, ou considerações ditadas por determinada cosmovisão.

O pensamento político vem do ser humano enquanto unidade. Está enraizada no ser e na sua consciência, mais precisamente em sua unidade indissolúvel. É por isso que não se pode entender um sistema de pensamento político sem contextualizar seu enraizamento no ser humano enquanto ser social, ou seja, o imbricamento de pulsões e interesses, os constrangimentos e as aspirações constituintes do ser social. Mas também é impossível separar o ser de sua consciência, ou ver o pensamento político como simples subproduto do ser. Assim, a consciência estrutura todo o ser do homem, todo o ser social, em cada um de seus elementos, inclusive as sensações pulsantes mais primitivas.

Quando se tenta desfazer laços passa-se ao largo da primeira e mais importante característica da essência humana, o que produz uma distorção no quadro geral que ele faz de si próprio, de que há uma consciência inadequada ao ser, uma falsa consciência, mas que não invalida a unidade do ser e da consciência. Isto porque, afirma, o conceito de falsa consciência não é possível quando a coisa que se designa é não conhecível. Assim, a consciência justa é uma consciência que emerge do ser e ao mesmo tempo o determina. Não pode ser uma coisa sem ser a outra, porque o humano é uma unidade na divisão, e desta unidade nascem as duas raízes de todo pensamento político. 

O ser humano se encontra enquanto realidade dada, assim como seu ambiente. Mas estar no mundo enquanto realidade significa que não vem de si mesmo, que não é sua própria origem. Conforme diz Heidegger, o humano é um ser lançado. Esta situação leva o ser humano a colocar-se o problema da fonte. O que mais tarde vai aparecer como questão filosófica. Mas tal discussão é uma construção, e o mito apresenta a primeira resposta, enquanto determinante para a discussão de conjunto.

A origem é o que faz emergir. Este aparecimento dá lugar a algo novo, que não existiu antes, que produz uma consciência própria, diferente da origem. A realidade que somos está colocada, mas também é algo próprio. É uma tensão entre o ser-posto e o ser-próprio. Mas, a origem não nos liberta. Não se pode dizer que era e que não é mais. Constantemente somos puxados pela origem: ela nos faz emergir, nos segura firme. É ela que nos estabelece como algo, enquanto essência. Dessa maneira, ser-posto no mundo supõe caminhar para a morte.




[1] Pós-Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (2011) e pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2008), Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (2006), Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (2001) e Graduado em Teologia pela Faculdade Teológica Batista de São Paulo (2001). É professor de tempo integral na Faculdade Teológica Batista de São Paulo e Jornalista Profissional. Atua na área de Ciências da Religião, com especialização nas relações entre política e religião, e filosofia, teologia e cristianismo.
[2] Paul Tillich, La Décision Socialiste, in Écrits contre les nazis (1932-1935), Paris, Genève, Québec: Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l‘Université Laval, 1994, pp. 27. Die sozialistische Entscheidung‖, in Christentum und soziale Gestaltung. Frühe Schriften zum religiösen Sozialismus, Evangelisches Verlagswerk Stuttgart, Gesammelte Werke II, 1962, pp. 219-365. Trad. fr. Nicole Grondin e Lucien Pelletier, introd. de Jean Richard.  
[3] Paul Tillich, Teologia de la cultura y otros ensayos, A dimensão religiosa na vida espiritual do homem, Buenos Aires, Amorrortu Editores, 1974, pp. 16-17. Man‘s right to knowledge, Columbia University Press, 1954.



mercredi 22 juin 2016

Num barco de madeira a navegar oceanos

Gostei muito desta produção. Não é um livro fácil, pois de alguma forma sintetiza uma trajetória de vida e de estudos no campo do pensamento divergente. É, também, de certo judaísmo protestante na analise dos caminhos do ser humano. Ou como foi dito:



Num barco de madeira a navegar oceanos
Yoffe Shemtov


Leitor de Pinheiro, a partir da tradição sefardita, eu, Yoffe Shemtov, vejo um homem que constrói barcos de madeira para navegar oceanos. Lembra pescadores da Polinésia. E solitariamente, sentado na proa, com uma lanterna acessa no outro lado, parte sem rumo, ou melhor, num rumo que só ele crê conhecer. E dias depois, quando já em terra, as gentes ousam perguntar-lhe o que busca, Pinheiro responde: meu destino. É por isso que quando volta ao barco, todos nós, seus leitores, gritamos: Continue navegando!

Pinheiro, a navegar com pensadores como Paul Tillich, Slavoj Zizek e Giacomo Marramao, em momentos de conversa liberta de razões, à maneira mineira, diz que para garimpeiros da ontologia e navegantes do destino, duas coisas devemos saber acerca do Eterno criador: Ele é o ser real, a substância absoluta; é a forma mais-que-perfeita. 

É desta leitura que Pinheiro parte. E isso se deve ao seu judaísmo-tardio, aquele judaísmo que dialoga com a sofia grega, que traduz a universalidade judaica, que vê o Eterno como substância absoluta. Mas também parte do ser protestante-novo, que rechaça o contra-semitismo tão forte a partir de Agostinho de Hipona de católicos medievos e protestantes quase modernos... E ele olha o Eterno como a forma mais-que-perfeita. Para Pinheiro, o berit é comunicação da substância divina; mas ser protestante-novo é caminhar na graça com a pessoalidade divina. Nessa leitura, Pinheiro vive a aliança do movimento das massas hebréias e uma mística suprapessoal, que faz parte da história e tradições dos povos hebreus. Mas como protestante-novo considera que foi beneficiado com a emergência de pessoalidades e comunidades em seus caminhares com a messianidade.

Assim, para Pinheiro, a história traduz um elemento fundamental: a aspiração que vai além da racionalidade presente nas formas, que vibra nos corações judeus sob o efeito da radiação do que não pode ser capturado através da ética e nem mesmo da lógica. Esta substância universal do Eterno criador é uma dimensão intrínseca à fé judaica, mas chega ao protestantismo-novo de Pinheiro, e pode ser traduzida no movimento dinâmico e permanente da espiritualidade: querer caminhar na presença do Santo; desejar viver em comunidades de amor, que reúnem pessoas antes separadas; e compreender que a autoridade do Eterno criador, essencial à vida, se manifesta através da história, da tradição e dos símbolos. 

Pinheiro é protestante-novo, e sua militância criou raízes a partir do protesto crítico contra a absolutização da substância nas instituições, que gera, segundo crê, alienação, idolatria, morte. Daí a presença de Marramao e Zizek em suas leituras. 

Para Pinheiro, seu princípio do protesto está correlacionado com a centralidade da substância judaica, enquanto relação entre a manifestação da essência na existência e a afirmação do significado messiânico. Afirma que a substância judaica apresenta-se sob dimensões históricas e trans-históricas como identidade subjacente. Ou seja, quando se refere à história e à tradição é a substância que fornece os símbolos da unidade universal do reino do Adonai Elohim. Dentro desta unidade universal encontra-se o princípio do protesto enquanto fundação do evento messiânico, que tem uma relação de centralidade com a substância judaica. É este princípio do protesto que retira da figura humana do Mashiah tudo que nela poderia ser materializado como idolatria, por sua facticidade histórica. É por meio do símbolo que desaparecem as particularidades e o finito, dando lugar ao significado presente do Mashiah. 

O paradoxo do aparecimento do Mashiah na existência, sem a deformação da existência, é uma interpretação radical do símbolo, liberta do significado da idolatria de se permanecer na adoração de um objeto histórico e, por isso, limitado, finito, enclausurado num espaço e tempo passados. Para Pinheiro, o princípio do protesto, lido sob tal perspectiva, apresenta o Mashiah como presente que remete ao kairós.

É, por isso, que o protestantismo-novo de Pinheiro evita cair na armadilha de abandonar a unidade universal da substância, que mantém e possibilita o resgate do sentido do Eterno nas profundezas do humano. E, assim, ao romper com o deísmo dos textos antigos das tradições judaicas, da palavra que se resume à ética do texto, as profundezas da interioridade humana são resgatadas. E ao resgatar Tillich, mas compreendendo a dialeticidade do Mashiah proposta por Zizek, mostra a relevância do kerigma messiânico, em aliança com o reconhecimento do Santo, que se faz presente na cultura e nas dobraduras da secularidade. 

É a partir daí que Pinheiro defende a idéia tillichiana de comunidade espiritual como processo de essencialização, já que o significado da vida, existencial e pessoal, consiste na recuperação do ser essencial presente no Eterno criador. Ou como disse Tillich, “a comunidade espiritual é latente antes do encontro com a revelação central, e é manifesta depois desse encontro”. E nesse processo de essencialização, o Mashiah é elemento que possibilita o kairós, pelo qual a história humana sempre esperou. A partir daí há um processo de essencialização das pessoas e das comunidades, que vivem processos de essencialização sob o poder messiânico.

E mais, Pinheiro, nas pegadas de Tillich, mas numa compreensão de seu judaismo-tardio e seu protestantismo-novo, considera que as comunidades protestantes estão ontologicamente imbricadas às comunidades judaicas e, por isso, fazem novas leituras do Mashiah, cujo amor e fé estabelecem a essencialização, enquanto mudança de sentido de uma participação latente para uma participação manifesta na comunidade espiritual. Dessa maneira, é o amor e a fé messiânicas que levam à autocrítica radical capaz de estabelecer distinção entre o essencial e as formas através das quais o essencial se manifesta. A afirmação de que o judaísmo-tardio se complementa na comunidade protestante-nova justifica a leitura messiânica da fé. 

Ou como afirmou Tillich e Pinheiro cita: “a comunidade espiritual está relacionada tanto com a cultura e a moralidade quanto com a religião, e a presença espititual torna necessária uma mudança radical na atitude para com o que é incondicional”. 

Convém lembrar, porém, que Pinheiro, a partir de Marramao, combate toda expressão de arrogância, de absolutização do poder, na relação entre comunidade manifesta e judaísmo latente, ao reconhecer a presença da espiritualidade na cultura e nas religiões. Por isso, sugere que a proclamação do Mashiah combine ofensiva e mediação. Ofensiva no sentido kerigmático e mediação no sentido de correlacionar o kerigma com a questão cultural.

Assim, o conceito de substância judaica é valioso para a compreensão do kerigma, principalmente no protestantismo-novo. O kerigma messiânico, a partir desta leitura, segundo Pinheiro, admite que a realidade manifesta no kairos do Mashiah está em ação na cultura. Dessa maneira, a tarefa kerigmática consistiria em procurar identificar as maneiras por meio das quais o essencial, manifesto no evento messiânico, se faz presente na cultura. Tal procura possibilita a apropriação kerigmática da experiência com o Mashiah, ao considerá-la enquanto manifestações do essencial, além de sinalizar caminhos nos quais a auto-compreensão messiânica pode ampliar contatos com culturas e povos.

Logicamente, por fazer uma confissão do novo protesto da presença do Mashiah em sua vida, as reflexões de Pinheiro sobre o universalismo judaico influenciam em muito sua ação kerigmática. Assim, no correr de suas navegações, construiu uma visão kerigmática da qual participam comunidades, e sua ação se vê calcada num entendimento libertário de práxis social. 

Ou seja, a partir do universalismo judaico, Pinheiro considera que o amor do Eterno criador pelos seres humanos não está suspenso, esperando que o kerigma messiânico seja entregue. Considera que aqueles que O buscam, nos limites da fé colocada em seus corações, serão essencializados, mesmo que nada saibam sobre a presença do Mashiah em suas vidas.

Para Pinheiro o protesto-novo, não enquanto instituição, mas em sua ação kerigmática têm uma prática que repousa em muito sobre a substância judaica. Esta leitura de Pinheiro, a partir de Marramao, Tillich e Zizek, apresenta as bases para uma esperança maior no modo específico através do qual o desejo do Eterno criador de essencializar os seres humanos é realizado. O ponto de vista defendido é que o Eterno ama os seres humanos e deseja que sejam essencializados. E são essencializados em razão do evento messiânico, quer sejam conscientes ou não desse evento, que projeta o kairós. Dessa maneira, o universalismo judaico apresenta a comunidade protestante-nova como comunidade que caminha em direção à essencialização. Ou em linguagem judaica, o Eterno aceita os que exercem fé, sem levar em consideração até que ponto vai o conhecimento dessas pessoas.

É importante entender, então, que o conceito de substância judaica está em processo de correlação permanente com o princípio protestante, e é por isso mesmo que nas diferentes comunidades protestantes encontramos defensores da substância judaica como fundamental para a vida dessas comunidades. Tais considerações, nos permitem dizer que, como defende Pinheiro, o conceito substância judaica represente a abordagem mais próxima de um consenso entre os pensadores do protesto-novo na atualidade.

Nestas navegações de Pinheiro, onde correlaciona pensadores aparentemente diversos como Giacomo Marramao, Paul Tillich e Slavoj Zizek, antropologia e ontologia se correlacionam. Esta antropologia baseia-se na compreensão de que a humanidade é imago Dei e se encontra em choque com a alienação do espaço e tempo presentes. Mas a memória humana persiste como impulso na direção da recuperação desse mau encontro, exposto por La Boétie. Esta dialética explicita e traduz a presença da espiritualidade do espírito humano.

Quando Pinheiro diz, a partir de seus garimpeiros preferidos, que a humanidade é universalmente espiritual, partindo da dialética universal/particular, localiza o particular no contexto do universal. Em vez de considerar a realização plena do universal na revelação messiânica, relativiza a particularidade no contexto dessa humanidade universalmente espiritual. Tal ênfase exige que o navegador aprecie as manifestações do essencial nas culturas. Mas nem por isso o compromisso com a messianidade é diminuída. Ao contrário, a fé é aprofundada por meio do reconhecimento das variações daquilo que os protestantes-novos percebem no evento messiânico, tanto nas religiosidades como nas dobraduras da secularidade.

Assim, a radicalidade do princípio do protesto pode ser aplicada às materializações da substância judaica na direção da essencialização do humano, denunciando as expressões idolátricas que ameaçam a comunidade humana.


lundi 20 juin 2016

A festa do Eterno

Até naqueles dias
Por Jorge Pinheiro

Uma das temáticas do humano é a presença do Espírito e sua correlação com o Cristo, pois a humanidade é emancipada por esta correlação. Temos, através do Espírito, uma humanidade emancipada, esperançosa e exultante. Traçado o curso da humanidade, no qual o presente triunfa, os humanos experimentam o livramento da alienação. Ou como canta Maciel Melo, em “Até Naqueles Dias”.

“Eu não consigo viver sem seu dengo, meu amor
É bom demais estar com você 
Acho bonito, acho muito lindo 
Ver você sorrindo, ouvir você dizer 
Que eu sou dengoso e meio desligado 
Que sou descarado e não sabe o porquê 
Me ama com tanto xamego”. 

O desejo de Eterno pode ser sintetizado na ceia do Cristo, no seu sofrimento, mas também na alegria da ressurreição. Quando o humano cresce no presente se reveste de semelhança. Comer o pão juntos, na comunidade da fé, é ato afetivo e de cuidado com a humanidade machucada. Por isso, quando o Cristo olhou a humanidade, ficou com misericórdia porque ela estava abandonada e aflita. Daí que vamos bailar algumas idéias sobre a ceia do Cristo.

A teologia diz que há salvação para aqueles que estão no Cristo. O Espírito da vida no Cristo é a vida liberta do destino de acabamento e alienação. De fato, o Eterno enviou o seu Cristo em humanidade semelhante a nós e disse não à alienação no humano, a fim de que um novo destino se cumprisse no humano segundo o Espírito. Com efeito, os humanos que vivem no Espírito amam as coisas que são do Espírito.

Daí o amor-serviço para fazer o bem bom sem olhar se judeu ou grego, pois o Eterno mostrou o seu prazer: Cristo se acaba quando o humano dorme e acorda na alienação. O amor-serviço fala com os que estão caídos e diz que Cristo preferiu não estar assentado, mas entregou a vida pela humanidade. O amor-serviço traz paz aos caídos, porque não pesa a mão, ao contrário quer pessoas novinhas em folha. Sigam os meus pés, manejem e treinem do meu jeito, porque tenho amor-serviço e estou agachado, só assim vocês vão dormir folgados, disse o Cristo. É isso mesmo, no Cristo o humano não vive no rabo de arraia, mas na sapiência. É mestre sim, mas do bem, de delicadeza.

Temos, então, um alinhamento igual à esquerda e à direita pela certeza, a exclusão temporal de alguns e a inclusão da humanidade. Ao analisar o alinhamento igual à esquerda e à direita vemos que o ir além do humano repousa sobre a certeza, proveniente do presente em Cristo. Essa misericórdia do Eterno não depende do escrito, porque o humano não tem como responder às exigências do escrito, que expressa o Eterno que está do outro lado. Assim, o presente chega com o Cristo, que na sua dor e prazer dá o indulto às alienações humanas. A liberdade diante do escrito não depende do humano aqui, mas do humano para lá de humano. Assim, há um ir além nessa correlação entre o escrito e o presente. 

“Me chama de nego, quando quer xodó
Aí começa aquela agonia 
Que faz a gente levantar do chão 
A gente esquece a hora e passa o dia 
E a noite vem sem prestar atenção 
Que prós amantes, tanto faz 
O que importa é o impulso, é o desejo, é a paixão”. 

Uma toada linda é a animação, que não pisa a fraqueza da humanidade. Quando alguém é apanhado com a faca na mão, no momento do golpe vil, humanos desarmam, mas não esquecem a amor-serviço do Espírito. Ajudam e obedecem à lei do Cristo. Por isso desobriga e é desobrigado pelo Eterno. A desobrigação da pena foi cantada por Cristo, porque esquecer o dinheiro que foi levado é difícil, mas é o que Eterno faz comigo e você. E é o que nos leva à rede, na varanda, no fresco da tarde. É resultado do amor-serviço, da desobrigação e do gozo, quando a comunidade da certeza acende o farol alto e mostra à humanidade que a rede e a taba são possíveis, mesmo quando o mar não está para peixe.

Cristo fala de liberdade. Para ser livre não basta a certeza, é necessário permanecer. Mas o que é isso? É continuar na certeza. No humano para lá de humano não deve haver cera. Permanecer é constância e ser humano no Cristo. Mas para ser livre é preciso também conhecer o axioma. E o que é conhecer? É gostar de dormir com, mesmo que tenha que comer sal juntos. Depois, então, é que se vai descobrir, inteirar. É a partir daí que o humano caminha em direção à liberdade. E a liberdade passa a ser a vida distante da azáfama da alienação.

O eterno acorda e dorme no partir do pão. Gente é parecença chamada a viver a experiência humana como comunidade da certeza. Pode beber e comer bênçãos nas celebrações de todos juntos. Gente é convocada a conviver na consistência do Cristo.

“Eu te amo quando é de manhã
Eu te amo quando é meio-dia 
Eu te amo quando é de noite 
Eu te amo todo santo dia 
Eu te amo de qualquer maneira 
Eu te amo até naqueles dias 
Que por qualquer besteira você briga 
E se intriga sem qualquer razão 
Eu te amo, eu te quero, te desejo 
Eu te dou meu coração”. 

Liberdade no Cristo é ir para a cama sem a faina da alienação, das coisas que amarram e impedem o movimento do Espírito. Descobrir o significado de duas toadas, conhecer e ficar, na celebração do Cristo leva ao axioma e ao livramento da azáfama da alienação, acabamento e escombros.