Política e espiritualidade: a justiça
enquanto mediação do amor e do poder
Jorge Pinheiro
Em 1977, morei a metade do ano em Lisboa. Era o terceiro ano da
revolução dos cravos e o país vivia o caos. Em meio daquela confusão
de partidos e propostas políticas, o humor e a criatividade dos anarquistas
portugueses era um caso à parte. E entre as histórias que divulgavam,
havia uma que pode servir de introdução ao tema de nossa conferência.
Contavam eles que certa vez uma criança perguntou ao pai:
• Papai, o que é a política?
Ao que o pai respondeu:
• Eu trago o dinheiro para casa, por isso sou o capitalismo. A tua
mãe controla o dinheiro, portanto é o governo. O vovô quer
que tudo funcione a contento, por isso é o sindicato. Nossa
empregada é a classe operária. E como estamos preocupados
com você, para que esteja bem, você é o povo. E o teu irmãozinho
é o futuro. Entendeu?
O garoto pensou e disse ao pai que precisa pensar um pouco mais.
E foi para a cama dormir. Durante a noite, acordou com o choro do
irmão que estava com a fralda suja. Foi ao quarto do avô, que roncava
a sono solto. Como não sabia o que fazer foi ao quarto dos pais. Viu
a mãe, que dormia profundamente... Dirigiu-se, então, ao quarto da
empregada e viu seu pai com ela. Eles, porém, não se deram conta da
presença do menino. Frustrado porque não conseguiu falar com ninguém,
o garoto voltou para a sua cama.
Na manhã seguinte, o pai perguntou se ele já sabia explicar o que
era política.
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• Sim, responde o menino: o capitalismo aproveita-se da classe
operária, o sindicato não vê nada, o governo dorme, o povo é
ignorado e o futuro fica na merda.
Sem dúvida, esta leitura anarquista será avaliada no final desta
conferência, mas agora precisamos entender de forma mais acadêmica
o que significa política. A palavra política nos leva a quatro conceitos
distintos: a doutrina do direito e da moral, a teoria do Estado, a arte de
governar e o estudo dos comportamentos intersubjetivos. Na abordagem
que estamos fazendo, ao analisar as imbricações entre espiritualidade
e política, nos interessa abordar a política enquanto doutrina do direito
e da moral, pois a partir daí temos elementos para entender, também,
a política sob as demais perspectivas.
O conceito de política enquanto doutrina do direito e da moral foi
exposto por Aristóteles na Ética. Para o filósofo grego, a investigação
daquilo que deve ser o bem pertence a mais arquitetônica das ciências.
Pois, a política determina quais são as ciências necessárias nas cidades,
quais as que cada cidadão deve aprender e até que ponto. [1]
Outro filósofo que desejamos utilizar nesta exposição, conscientes
de que estamos deixando de lado muitos outros que analisaram a
questão, é Spinoza. Em seu prefácio à quinta parte da sua Ética, onde
trata da liberdade humana, Spinoza afirmou que sua preocupação era
a potência da razão e a liberdade de alma ou beatitude. Nesse sentido,
em Spinoza não podemos separar política e ética, ou como diz em seu
Tratado teológico-político, “a justiça e todos os preceitos de razão,
inclusive o amor ao próximo, somente pelos direitos de dominação
recebem força das leis e ordenanças, ou seja, do decreto daqueles que
possuem o direito de reger”. [2]
A partir de Aristóteles e de Spinoza podemos dizer que a política,
enquanto conhecimento que trata dos aspectos práticos da ética, e que
se apóia na antropologia filosófica ou teológica, por necessitar definir
uma concepção de ser humano, remete a questões como a natureza
e alcance da liberdade, os diversos tipos de liberdade e a natureza e
formas de justiça.
Temas como estrutura e forma de governo, legitimidade do poder,
fontes do poder, direitos e deveres dos membros de uma comunidade,
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assim como as relações entre os indivíduos e o Estado não podem ser
entendidos e conscientemente vividos sem a compreensão das questões
éticas e morais que aí estão presentes.
Assim, entendemos que a política deve responder de forma prática
à pergunta pelo bem dos membros de determinada comunidade, traduzindo
esta ação nas questões do poder e das estruturas de governo. Mas
e a espiritualidade, tem algo a dizer à política?
De forma abrangente podemos dizer que espiritualidade é aquela
relação do ser com a transcendência, que dá sentido à vida. O ser humano,
unidade multiforme, tem em seu espírito não uma dimensão parcial
da vida, mas como afirmava Lossky, irredutível. [3] Nesse sentido, o
espírito é a totalidade da vida.
Nas situações de perda, falta de sentido e de ameaça à vida também
há experiência com a transcendência, pois mesmo na negação dela há
um sentido transcendente.
Quando assistimos, por exemplo, a um filme como Gandhi, [4]
constatamos que o ser humano, não importando credo religioso, tem
atributos potenciais para a espiritualidade. Nas religiões ditas primitivas,
onde a distinção entre sagrado e profano é menos nítida, embora exista,
é mais difícil para o cientista da religião delimitar e definir nessas
comunidades o conceito de espiritualidade. Mas nas sociedades mais
complexas, naquelas religiões onde o espaço e o tempo do sagrado e
profano são mais bem definidos, envolvendo escolha, disciplina e prática
levam a experiências avançadas de espiritualidade. Rudolf Otto, no seu
livro O Sagrado classifica a experiência religiosa como algo intenso
e profundo, misterium tremendum, já que traduz o numinoso para a
realidade do crente, que diante daquilo que o esmaga desenvolve senso
de temor. [5] Esse temor é um medo qualitativo, motivo para reflexão
e energia que transformado em poder faz dele um adorador.
Tais experiências com o sagrado encorajam e incorporam no adorador
aquilo que lhe é distinto. Mas, apesar dessa relação de aparente
intimidade, de relacionamento, permanece sempre o abismo entre adorador
e sagrado. Dessa maneira, este desejo de saltar sobre o abismo
que separa humano e sagrado é em última instância o móvel que dará
origem à espiritualidade, embora não seja propriamente espiritualida-
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de, pois se faz presente na busca do artista, no amor do filósofo pela
sabedoria e, porque não, nos anseios da juventude.
A busca frenética de bens e posses materiais, tão característica da
sociedade ocidental no século 20, favorece a redescoberta da espiritualidade
como experiência de vida coerente e recomendável.
Logicamente, dentro do próprio cristianismo, antigas correntes
heterodoxas, como o gnosticismo, o mitraísmo e o maniqueísmo, herdeiras
do pensamento oriental, assim como aquelas que buscavam a
regeneração do mundo, herdeiras das religiões helênicas de mistério,
ganharam popularidade por suas práticas ascéticas. E influenciaram,
posteriormente, ainda que indiretamente, a espiritualidade dos pais
do deserto e o monasticismo erudito dos capadócios, e de seus três
grandes expoentes, Basílio, Gregório de Nissa e Gregório de Nazianzo.
Esse processo, que a partir dos pais do deserto e dos capadócios vinha
sofrendo uma mutação fundamental, a passagem da espiritualidade
enquanto experiência pessoal e exclusiva a experiência comunitária e
de piedade cristã, será expandido e ocidentalizado por Jerônimo, com a
defesa do estudo histórico das Escrituras, Tertuliano, com seu olhar de
jurista romano e, sobretudo, com Agostinho ao desenvolver na Cidade
de Deus, nos livros 13 e 14, a idéia da participação no crente na vida
divina através da graça.
Mas será com Gregório Magno (540-604), pai da espiritualidade
medieval, que sistematizou o monasticismo ocidental e defendeu que a
busca da visão de Deus implica em pureza de coração, humildade e serviço,
que a espiritualidade, embora aparentemente enclausurada, transpõe
os marcos da individualidade e passa a olhar para as comunidades ao
redor. Assim, lectio, meditatio, oratio e intento nortearão os caminhos da
espiritualidade na expansão do cristianismo no mundo bárbaro.
A partir desse momento em que a espiritualidade torna-se também
prática e o caminho para Deus passa pelo serviço ao próximo, a espiritualidade
tem algo a dizer à política. Nesse sentido, a espiritualidade dá
sentido à vida cotidiana, torna-se além de mística e profética, política.
Com a queda do governo militar brasileiro ressurgiu entre os
evangélicos brasileiros a discussão sobre a responsabilidade política da
comunidade cristã. Foi e é importante para o cristianismo brasileiro que
tal discussão se faça, mas ainda faltam aos pronunciamentos evangélicos
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consciência e maturidade da responsabilidade política que devem ter.
A comunidade evangélica ainda tem que ultrapassar a espiritualidade
privatizada em direção ao compromisso social efetivo e prático.
Paul Tillich em seu trabalho Amor, Poder e Justiça [6] pode nos
ajudar a entender o caminho a percorrer na construção desse diálogo
da espiritualidade com a política. Para ele, toda e qualquer política tem
sempre uma mesma essência, que é o uso do poder. [7]
“L’être, c’est le pouvoir de l’être. Mais même dans son emploi métaphorique,
le pouvoir suppose um objet sur lequel il peut exercer et démontrer
son pouvoir”. [8]
Por isso, o poder determina os caminhos da sociedade. E que
será chamado de poder político porque recorre à autoridade social
instituída e possibilita ao Estado exercer coerção em nome do direito
dos cidadãos.
As convicções pessoais acerca da soberania de Deus e do Cristo,
que conquista principados e potestades, têm profundas implicações no
modo em que pensamos a política. Assim, a espiritualidade privatizada
ofusca o caminho a seguir e mascara práticas imorais através de atitudes
aparentemente piedosas.
De novo, voltemos a afirmação de Tillich, que de certa forma já
tinha sido exposta por Spinoza: não há política sem o uso de poder.
Embora tal afirmação seja quase óbvia, é comum encontrarmos cristãos
que apresentam propostas sobre o reino de Deus e políticas que
buscam uma ordem política onde o amor sem poder possa superar o
poder sem amor.
Ao analisar tais propostas, que ressuscitaram no século 20 a teoria
social anabatista, que contrapõe as políticas de poder ao amor cristão,
vemos que para esses evangélicos é impossível aceitar tais políticas e
viver o estilo de vida do Jesus crucificado. Chamam à igreja a criar uma
comunidade nova e a rejeitar qualquer forma de violência, representada
na ordem econômica e política sob o poder do Estado.
Mas ao rejeitarem as políticas de poder da sociedade, de fato estavam
aceitando qualquer uso do poder, pois não defenderam uma retirada
do mundo ou um abandono da missão da igreja no mundo. Neste sentido,
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diferiam dos fundamentalismos separatistas. O que estavam propondo era
a subordinação radical dos poderes do mundo ao Cristo. Acreditavam que
o fracasso da política criaria as bases para a manifestação do poder de
Deus através do testemunho da comunidade cristã, que enquanto agente
profético apontava o caminho da redenção do mundo.
Mas o que deve ser reconhecido é que tal pensamento faz crítica
política, mas rejeita envolvimento e prática políticas como estratégia.
O que em última instância significa uma estratégia apolítica que rejeita
o poder, rejeitando também a política.
Ora, se a comunidade evangélica tem uma moral política, deve
exercer poder e utilizar os meios que possibilitem chegar aos fins que
busca. Rejeitar o poder é rejeitar políticas. Tal rejeição pode até ser
aceita, desde que seus agentes tenham clara a opção que estão fazendo.
O problema é que fizeram uma opção pela renovação da consciência
moral da comunidade evangélica, eles próprios rejeitaram a política
como meio de viabilizar a opção social escolhida.
Ora, enquanto a consciência evangélica acreditar que a omissão
diante da política e do poder favorece à instalação do reino de Deus,
teremos o apoliticismo como política evangélica, e isso só fortalece os
grupos instalados no poder. E, ao contrário do que pretendem modernos
fundamentalismos, não vai estabelecer neste mundo o reino do Cristo.
Se não é possível falar de política, sem falar de poder, fica uma
outra questão, que tem a ver com o pensamento cristão: amor e poder
são compatíveis? A pergunta procede porque o cristão e a espiritualidade
pós-gregoriana remetem à prática e ao serviço ao próximo. Mas, sabemos
que em nome do amor, da espiritualidade e do serviço ao próximo
muitos cristãos negam a possibilidade de todo e qualquer poder.
“... pouvoir de l’être n’est pas une identité morte, mais lê processus
dynamique dans lequel l’être n’est se separe de lui-même et retourne à
lui-même. Le pouvoir,d’autre part, est d’autant plus grand, que la séparation
vaincue a été plus grande.Lê processus par lequel est reuni ce qui
était separe s’appelle l’amour. Plus il y d’amour réunificateur, plus il y
a de non-être vaincu, et plus il a de pouvoir d’être. L’amour est la base,
non la négation du puvoir”. [9]
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Sabemos, como nos mostra Tillich, que o amor do qual estamos
falando é um ato da vontade. Não se pode forçar uma pessoa a amar
ninguém. Porém, atos de ordem política contêm elementos involuntá-
rios. Assim, porque o poder do Estado é associado com ações que vão
ou estão fora de nossa vontade e o ato de amor associado com ações
do querer, concluímos que a ação do Estado extrapola o amor porque
este não pode ser forçado.
Outro fato importante, é que o amor é algo que deve ser mediado
pessoalmente. Como a natureza voluntária do amor necessita a existência
de uma pessoa que o ative, o amor sempre é pessoal. O Estado,
como qualquer outra ordem social instituída, tem uma existência objetiva
e alcança seus fins indiscriminadamente. A relação do cidadão com
o Estado é eu/instituição, em lugar da relação eu/você, que possibilita
a mediação pessoal que ativa o amor.
Além disso, o amor é sempre sacrificial. Ou seja, possibilita ações
que a despeito dos meus interesses particulares, imediatos, responde
ao bem-estar do outro. Conscientemente, é um perder para que outro
ganhe. Sacrificamos direitos, sem estar forçados por obrigação legal,
para que o outro seja beneficiado.
Assim, por ser livremente determinado, o amor vai além de uma
obrigação moral ordinária. Cumprir obrigação moral é responder à necessidade
moral, é um ato de dever em lugar de um testemunho moral
livre. É importante entender que esse processo de ir além da obrigação
moral envolve, como paradoxo, uma vontade moral implícita.
Resumindo, podemos dizer que o amor é voluntário e livremente
entregue, que envolve volição moral, deve ser mediado pessoalmente,
é sacrificial. E, finalmente, o amor vai além do dever ou da obrigação
moral, embora implique, paradoxalmente, em obrigação moral ou realização
de um dever de origem.
Mas política, por outro lado, envolve servidão involuntária. Sua
natureza implica no uso de coerção e força para alcançar seus fins. É
organização formal e opera impessoalmente. Os políticos e aqueles que
atuam ao nível do Estado se ocupam de ações que levam terceiros ao
sacrifício, por isso a necessidade da força e da coerção e, em última
instância, do próprio Estado. A maioria da população geralmente se
considera satisfeita quando vive sob determinada ordem política que
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pelo menos responde às exigências de sua obrigação moral. E quando
isso não acontece nos sentimos tentados à rebelião contra o Estado, a
fim de exigir dele a realização daquilo que consideramos sua obrigação
moral. Fazendo assim agimos no sentido de que não se torne totalitário,
ou seja, negando os limites de seu poder de Estado ou passando por
cima das obrigações que tem com os cidadãos.
Por isso, usar o poder do Estado como meio de realizar o amor entre
os cidadãos é um contra-senso, pois não podemos forçar ou coagir ninguém
ao amor. Tal coesão destruiria também a obrigação moral do Estado,
que baliza a diferença entre poder limitado e governo totalitário.
Dado a dualidade entre poder e amor e o conflito aparente entre
poder sem amor e amor sem poder, como nos situaremos frente à polí-
tica? Colocada a questão nestes termos, de fato é muito difícil escolher
entre ser um castrado político, mas cidadão do reino, e ser um político
atuante à margem da salvação. Como então seguir o caminho do amor
cristão sem rebaixar a nobreza do amor no altar do poder?
Há um conceito, presente na teologia cristã, que nos leva a alternativas
de reconciliação entre poder sem amor e amor sem poder. É o
conceito de justiça.
A recusa em reconhecer as reivindicações da justiça como universais
e invioláveis, cobrou um alto preço, no correr da história, à política
e à teologia em termos da própria integridade da igreja. Por exemplo,
a teologia de Albrecht Ritschl sofreu deste erro. Ritschl contrapôs
poder sem amor e amor sem poder. Fazendo assim, criou um sistema
teológico que contrastou o Deus de poder do Antigo Testamento ao
Deus de amor do Novo Testamento. No processo abandonou o conceito
do julgamento de Deus e retribuição aos pecadores, adotou uma visão
universalista de salvação e passou a ver na igreja um amor moral que
nada de substantivo apresenta.
Ao nível prático, o amor moral torna-se, então, irrelevante para as
questões políticas porque, nas palavras de Reinhold Niebuhr, apresenta
a lei de amor como solução simplória para qualquer problema da sociedade.
[10] Por isso, o conceito de justiça passa a ter tanta relevância
para o cristão quanto o conceito de amor.
É necessário reconhecer que as reivindicações de justiça são universais,
eternas e objetivas, e têm como fonte a própria pessoalidade do
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Deus justo. Tal afirmação, se por um lado, traduz o fato teológico de que
a justiça de Deus se faz manifesta nas ordenanças da criação, por outro
nos leva a perguntar porque os elementos substantivos e características
de justiça nunca foram consensuais para a humanidade?
A definição mais aceita de justiça é o de dar a toda pessoa aquilo que
por direito lhe pertence. Mas aí de novo temos um problema: o que por
direito lhe pertence? Esta pergunta nos obriga, enquanto cristãos evangélicos,
a analisar com atenção nosso conceito tradicional de justiça.
“La justice est la forme dans lequelle lê pouvoir de l’être se réalise, la
justice doit être en rapport avec la dynamique du pouvoir. Elle doit être
capable de donner une forme aux rencontre de l’être avec un autre être.
Le problème de la justice dans la recontre vient du fait qu’il est impossible
de prédire comment s’organisera le rapport des forces au sein de telle
rencontre. A chacun des moments, il existe de nombreuses possibilités.
Et chacune de ces possibilités demande une forme particuliére”. [11]
Assim, conforme Tillich, as reivindicações de justiça só podem ser
operacionais numa comunidade política se forem definidas com um grau
significante de particularidade. Justiça, nas palavras de Niebuhr, requer
julgamentos distintos de reivindicações contraditórias. [12] Justiça como
uma abstração não basta. É necessário trabalhar fora da compreensão de
justiça no particular, para não cair na armadilha do moralismo político,
quando não se tem nada a oferecer quando se fala de forma idêntica
em tempos, espaços e situações particulares diferentes.
Um exemplo clássico da questão está presente na Política de Aristóteles.
Aristóteles diz que se faz justiça quando se dá a cada cidadão
aquilo que lhe é por direito. Dois problemas nascem dessa afirmação:
se todas as pessoas têm igualdade moral, então essa igualdade deve se
estender a todo grupo social, às relações econômicas e políticas em que
se fazem presentes. E se as pessoas são desiguais nas contribuições que
fazem à sociedade, então essas desigualdades devem se traduzir nos
grupos sociais e nas relações econômicas e políticas. Ambos os argumentos,
sem dúvida, têm suas razões de ser. E, no século 20, fizeram
parte do debates político de entre socialistas e liberais.
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Por encontrar dificuldades na formulação prática do conceito de justiça,
a teoria política evangélica contemporânea tem rejeitado o conceito
de justiça universalmente conhecido como ordenança da criação, enquanto
compreensão de que todas as pessoas são imagem de Deus e têm um conhecimento
do bem. Donde, todas as pessoas compreendem a necessidade
de justiça. E defendem um novo conceito, de ordenança da redenção. Para
esses cristãos, devido à queda humana, não existe um conhecimento seguro
de justiça fora da revelação. Na verdade, é muito difícil discutir quando
se parte da natureza caída e da crença de que a justiça era perfeita antes
da queda. Apesar dessa leitura soteriológica, acredito, assim como Tillich,
que a melhor base para a compreensão da justiça ainda está no conceito da
justiça que parte da ordenança da criação.
Rejeitar a ordenança da criação como algo que está fora da razão,
por não ser revelada, é um problema de epistemológico. Tal postura
afirma que a razão não tem nada que dizer fora da revelação.
Esta posição tem conseqüências práticas muito sérias para as estratégias
de ação política, porque só a partir da fé e da revelação se pode
falar com autoridade sobre justiça. Ou seja, os cristãos não podem, em
política, se comunicar ou trabalhar com não-cristãos. Não pode haver
nenhuma base secular no envolvimento político dos cristãos. Assim,
quando nega o conhecimento natural do bem político, a única alternativa
para o cristão é omitir-se, porque política é coisa mundana, caída, ou
estabelecer uma política cristã sectária.
A leitura da justiça a partir da universalidade da imago Dei responde
aos questionamentos contemporâneos levantados pelos cristãos
em relação à política, enquanto a leitura a partir das ordenanças da
redenção isola, aliena e separa o cristão da prática política.
O movimento evangélico fundamentalista buscou de forma acrítica
impor normas a partir da revelação, definir caminhos de retidão para a
sociedade, com a finalidade de atingir os não-crentes. Isto tem levado
às cruzadas fundamentalistas norte-americanas que buscam fazer dos
Estados Unidos uma nação cristã à força. E no Brasil levou à omissão
que favoreceu a presença de políticas conservadoras e de direita dentro
das igrejas.
Outros pensadores evangélicos, neo-ortodoxos, procuraram substituir
as ordenanças da redenção pelas ordenanças crísticas, com a
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finalidade de trazer o amor moral de Jesus para as normas de justiça,
que seriam assim emprenhadas pelo espírito de amor. E o fundamentalismo
anabatista e batista substituiu as ordenanças da redenção por
ordenanças escatológicas, buscando a partir da moral do reino futuro,
fazer todas as coisas novas e conquistar os poderes caídos.
Ora, a justiça deve estar baseada em reivindicações universais de
direito. Estabelecer justiça em base de autoridade sectária é violentar
a compreensão de que todas as pessoas são imagem de Deus e têm
um conhecimento do bem. Donde, todas as pessoas compreendem a
necessidade de justiça.
Ora, assim, justiça deve ser definida dentro do contexto de uma
determinada ordem social e deve ser aplicada em termos de particulares,
pois fundamentar o argumento da justiça apenas na pessoa não
é o bastante.
Devido à universalidade das normas de justiça e à universalidade
da consciência de justiça, uma pessoa pode ter procedimentos e práticas
que aprofundem políticas e programas que favorecem a justiça. É
exatamente isso que os direitos civis buscam trazer para as democracias
constitucionais. É o reconhecimento de que os meios empregados não
devem violentar os fins procurados.
É necessário, ainda, reconhecer que as normas de justiça são
objetivas e que elas existem independentemente de volição humana.
Conseqüentemente, podem ser feitas reivindicações no nome de justiça
e podem ser rejeitadas reivindicações no nome de justiça. Considerando
que o amor deve ser volitivamente entregue, justiça exige reconhecimento
independente da vontade humana.
O Deus de amor também é um Deus de justiça, amor e justiça não
podem ser contrapostas. O amor pode ir além da justiça, mas nunca
pode buscar menos que a justiça. O amor pode inspirar reverência à
justiça, mas nunca pode ser desculpa para esquecer as reivindicações
da justiça.
Se a justiça é uma qualidade objetiva que estabelece direitos e
obrigações, projetos podem e devem ser desenvolvidos pelos indivíduos
e sociedades para criar ações que sirvam as reivindicações de justiça.
Dado o fato que nem todas as pessoas buscam a justiça de boa vontade,
o poder pode ser usado legitimamente quando serve à causa de justiça.
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Dizemos que o amor não pode usar o poder para alcançar seus fins, mas
que a justiça têm que usar o poder para alcançar seus fins.
Tais distinções são necessárias porque não se pode dizer ao Estado
que ame, porque suas ações têm por base o poder, e porque as reivindicações
do amor estão arraigadas em reconhecimento pessoal e particular
ao invés de normas universais de justiça. Como a igreja cristã proclama
o Evangelho, sensibiliza a comunidade para as demandas da justiça.
Conseqüentemente, permanece a justiça enquanto serviço de amor.
Assim, usar o Estado como um instrumento de amor leva a um
Estado sectário, quando não totalitário. Por causa disso, as normas
distintivas da justiça são usadas para delimitar o que é meu e o que é
teu. Negar a justiça em nome do amor é negar os direitos civis que são
a base de qualquer governo constitucional.
O conceito de justiça aliado aos de amor e poder apresenta as alternativas
para o protestantismo evangélico ao pensar a ação política.
A política, com base no poder, cumpre uma função legítima quando
serve as reivindicações da justiça. Amar, sem rejeitar o poder, indo
além dos direitos e deveres estabelecidos pela justiça possibilita um
testemunho de justiça e uma motivação moral que coroam o ato justo.
Amar, através da mediação pessoal, complementa a justiça em suas
demandas objetivas.
Essa exposição carece de ilustrações. Por isso, vamos ouvir um
ex-ativista da Juventude Universitária Católica e ex-combatente da Ação
Popular, Herbert de Souza, mais conhecido como Betinho. Em artigo
publicado em 1993, Betinho afirmou que a “fome é exclusão. Da terra,
da renda, do salário, da educação, da economia, da vida e da cidadania.
Quando uma pessoa chega a não ter o que comer, é porque tudo o mais
já lhe foi negado. É uma forma de cerceamento moderno ou de exílio.
A morte em vida. E exílio da terra. A alma da fome é política”. [13]
É interessante que o ativista cristão e ex-combatente marxista
afirme: a alma da fome é a política. Mas que política? E ele explica:
A história do Brasil pode ser vista de vários modos e sob muitos ângulos,
mas para a maioria ela é a história da indústria da fome e da miséria. Um
modo perverso de dividir o mundo em dois, produzindo um gigantesco
apartheid. Nesse campo, fizemos alguns milagres de desenvolvimento.
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Um dos maiores PIB do mundo junto com a pobreza e a miséria mais
espantosa. Aqui não houve lugar para o acaso. Tudo foi produzido como
obra calculada. Fria.
O resultado está aí diante dos olhos de todos. Uma parte ostensiva,
rica, branca, educada, motorizada, dolarizada. Outra parte imensa na
sombra, negra, analfabeta, dando duro todos os dias, comendo o pão
que o diabo amassou em cruzeiros, reais. Dois povos no mesmo país,
na mesma cidade, muito próximos em geografia e infinitamente distante
como experiência de humanidade.
É gente que começa o dia sem o que comer e chega à noite sem
nada. Pode-se imaginar o quadro que é o de todo dia para milhões de
seres humanos: a fome de comida e de tudo. A essa altura da vida da
humanidade é incrível que isso aconteça. Como morrer de fome ao
lado de 70 milhões de toneladas de grãos, de 8,5 milhões de hectares
de terra, se todos esses brasileiros miseráveis ficariam saciados só com
os 20% do desperdício?
O clamor de Betinho é um clamor para que a justiça dê sentido
humano à política. E ele, já morto, acreditava nessa possibilidade,
quando diz no artigo:
É assustador perceber com que naturalidade fomos virando um país de
miseráveis, com que rapidez fomos produzindo milhões de indigentes.
Acabar com essa naturalidade, recuperar o sentido de indignação frente à
degradação humana, reabsolutizar a pessoa como humana e eixo da vida
da ação política é fundamental para transformar a luta no Brasil contra
a fome e a miséria num imenso processo de reformulação do Brasil e
de nossa própria dignidade. Por isso acabar com a fome não é só dar
comida, e acabar com a pobreza não é só gerar emprego; é reconstruir
radicalmente toda a sociedade, começando por incorporar agora 32 milhões
de seres humanos ao mapa da cidadania.
Por isso o ato de solidariedade, por menor que seja, é tão importante.
É um primeiro movimento no sentido oposto a tudo o que se
produziu até agora. Uma mudança de paradigma, de norte, de eixo, o
começo de algo totalmente diferente. Como um olhar novo que mostra
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todas as relações, teorias, propostas, valores e práticas, restabelecendo
as bases de uma reconstrução radical de toda a sociedade. Se a exclusão
produziu a miséria, a união destruirá a produção da miséria, produzirá
a cidadania plena, geral e irrestrita. Democrática.
Isso foi dito há dez anos. Luciano Mendes de Almeida [14] contextualiza
o clamor místico, profético e político de Betinho. Diz o
pastor:
Considero ainda mais grave a condição de quem não alcança ou perde o
sentido da vida (...). Há um vazio ontológico pela falta de discernimento
dos verdadeiros valores e pela solidão profunda de quem não se abre à
presença e ao amor de Deus.
O ensinamento de Jesus dissipa as trevas e dúvidas e anuncia a
boa nova, valores, critérios e atitudes que dão pleno sentido à vida.
A injustiça será vencida pelo reconhecimento da dignidade da pessoa
a luz de Deus, convertendo-os à convivência fraterna e à partilha. O
perdão do Evangelho é a única resposta definitiva contra a violência e
inicia um processo de apreço, respeito e diálogo, superando toda exclusão
social e aproximando-nos uns dos outros, como irmãos e irmãs,
na concórdia e na paz.
As palavras pastorais de Luciano Mendes de Almeida podem parecer,
à primeira vista, que estão longe da ação política, mas na verdade
iluminam a história anarquista contada no início dessa conferência.
Apesar de seu humor e tom crítico, a leitura anarquista da política
carece de algo fundamental: a busca do bem e a exigência de justiça.
Ao negar a justiça, a política torna-se escrava do poder. Perde o eixo
da vida da ação política, conforme afirmou Betinho. Ou, agora nas
palavras de Luciano Mendes de Almeida, a injustiça será vencida pelo
reconhecimento da dignidade da pessoa, e esta é uma tarefa política.
Para conquistar tal dignidade, o poder deve ser exercido.
Assim, as análises ontológicas de Tillich nos levam à compreensão
de que a síntese deste diálogo pertinente entre política e espiritualidade
é a justiça.
Revista Eletrônica Correlatio n. 6 - Novembro de 2004
204 Jorge Pinheiro
notas
[1] Aristóteles, A Ética, São Paulo, Atena Editora, 1950, 1ª parte, Livro
1o, II, 2-4, pp. 15 e 16.
[2] Benedict de Spinoza, Writings on Polital Philosophy, New York,
Appleton Century Crofts Inc., p. 51.
[3] Vladimir Lossky, A l’image et la ressemblance de Dieu, Paris,
1967, p. 118.
[4] Gandhi, 1982, filme dirigido por Richard Attenborough, com Ben
Kingsley e Candice Bergen.
[5] Rudolf Otto, O Sagrado, Lisboa, Edições 70, 1992, pp. 21-22.
[6] Paul Tillich, Amour, pouvoir et justice, Analyses ontologiques et
applications éthiques, Revue d’Histoire et de Philosophie Religieuses,
Paris, Presses Universitaires de France, 1963 et 1964, números 4 et
5.
[7] Idem, op. cit., no. 4, p. 334.
[8] Idem, op. cit., no. 4, p. 339.
[9] Idem, op. cit., no. 4, pp. 355-356.
[10] Reinhold Niebuhr, Políticas, ed. Harry R. Davis e Robert C. Good,
Scribners, 1960, p. 163.
[11] Idem, op. cit., no. 4, p. 360.
[12] Reinhold Niebuhr, Amor e Justiça, ed. D. B. Robertson, World,
1967, p. 28.
[13] Herbert de Souza e Carla Rodrigues, A Alma da Fome é Política,
artigo publicado no Jornal do Brasil, 12 setembro de 1993, apud, Ética
e cidadania, São Paulo, Moderna, 1995, pp.22-25.
[14] Dom Luciano Mendes de Almeida, A quem iremos?, Folha de S.
Paulo, 6/3/2004, p. 2.