dimanche 14 octobre 2018

A virtualidade a partir de Marramao e Taylor

A virtualidade das religiosidades evangélicas e seus desafios
Uma conversa 
a partir de Giacomo Marramao e Mark C. Taylor

Jorge Pinheiro [1]




Resumo

Nesta conversa Jorge Pinheiro, a partir de Marramao e Taylor, apresenta a virtualidade enquanto pensamento evangélico. E a partir daí analisa como a imagologia norteia ações políticas e interferências na sociedade civil. Confronta assim a laicidade e pensa uma República evangélica para o país. 

Abstract

In this conversation Jorge Pinheiro,from MarramaoandTaylor, presents the virtualityas an evangelical thought. And from there it analyzes how the imagologyguides political actions and interferencesin the civil society. It confronts secularityand thinks an evangelical republic for the country.

"O PT flertou com os evangélicos ao longo dos mandatos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e da presidente afastada Dilma Rousseff. Não fosse o engajamento de pastores e bispos das igrejas pentecostais, provavelmente o partido não teria ganhado quatro eleições seguidas. E para garantir esse apoio, os petistas abriram mão de compromissos históricos, principalmente aqueles relacionados à luta pelos direitos das minorias (mulheres, homossexuais, negros e índios), concentrando esforços na melhoria das condições de vida da população pobre, também público-alvo dos pentecostais. De qualquer maneira, os governos Lula e Dilma, ainda que reféns dos evangélicos, mantiveram uma agenda propositiva no campo social".El País Brasil, on-line, Opinião, Temer inaugura a república evangélica, 8.6.2016.

Para início de conversa

Quando o fenômeno evangélico explodiu no Brasil, a partir dos anos 1950, a academia encontrava-se desarmada para analisar e entender o que estava a acontecer. Isto porque suas bases situavam-se no século dezenove e primeiras décadas do século vinte É verdade que grandes processos de revolução religiosa já tinham acontecido no mundo moderno, a começar pela Reforma na Europa, com seus desdobramentos continentais nos Estados Unidos.

Conhecemos as dificuldades e limitações de Marx para entender o fenômeno religioso como criador e fundante de contextos e novas relações dentro de determinada sociedade. Durkheim embora tenha caminhado no sentido de entender estruturalmente o fenômeno religioso, construindo conceitos e parâmetros a partir das religiões antigas, ditas primitivas, e não monoteístas, formatou leituras que até hoje são recitadas como compreensões definitivas sobre o fenômeno religioso, as estruturas dessas instituições e a relação entre líderes e fiéis.

Depois que o marxismo congelado pela burocracia estalinista entrou em crise, fato notório nas universidades europeias, Weber foi tirado do ostracismo e passou a ser reconhecido, assim como todo o historicismo alemão. Ora, se partimos daqueles que influenciaram o historicismo de Weber, em especial Ritschl e Troeltsch, vemos que eles consideravam o fenômeno religioso que estudavam como típico ao Ocidente e, mais ainda, europeu. Dessa maneira, Weber entendeu o calvinismo como base para a expansão do capitalismo nos Estados Unidos, principalmente.

Assim, o que poderia fazer a academia brasileira diante da explosão do fenômeno evangélico no Brasil a partir dos anos 1950? Ora, voltar aos pais da sociologia. E assim foi. E a explosão d a religiosidade evangélica passou a ser analisada como efeito de causas como a migração, a urbanização e a ruptura com a estrutura agrária e patriarcal.

Mas, com a débâcledaquele marxismo que desabou com o muro de Berlim, nos anos 1980, e com o boomneoliberal que varreu o mundo, a academia trouxe o neoliberalismo travestido de espírito crítico para dentro da casa e passou a ver o fenômeno evangélico no Brasil apenas como um subproduto do mercado capitalista.

Donde, as idéias de mercado e seus componentes se transformaram em conceitos da sociologia e instrumentos de análise para o fenômeno religioso. Vendo dessa maneira o fenômeno evangélico, a academia reduziu o fenômeno, jogou fora todas as experiências anteriores que ajudaram a construir o Ocidente protestante e criou outro conceito, o de trânsito religioso. E tudo que passou a acontecer no Brasil virou trânsito religioso. Mas, e antes em outras regiões do planeta? Foi o trânsito religioso que mudou a cara da Alemanha, dos países nórdicos ou mesmo da Inglaterra e Estados Unidos?

Por que lá podemos utilizar o conceito de conversão[2]trabalhado por Weber e por que não aqui? Sabemos, claro que sabemos, que as condições são diferentes. Mas, em relação ao fenômeno evangélico brasileiro duas componentes dificultam a análise: o preconceito diante de algo que impacta e desnorteia o mundo acadêmico e a limitação de suas bases teóricas.

Definidos assim os limites necessários, afirmamos a importância de Marx, Durkheim e Weber para todos aqueles que se dedicam ao estudo da religião. Mas, nessa conversa queremos utilizar como referencial dois escritos, um de Giacomo Marramao, Potere e secolarizzazione, e outro de Mark C. Taylor, The Moment of Complexity, Emerging Network Culture. Desejamos, dessa maneira, conversar sobre a religiosidade evangélica a partir da virtualidade dos seus fundamentos, e do tempo e presença deste pensamento hoje no Brasil.

Caminhos da religiosidade

"No entanto, não bastasse a vexaminosa performance do presidente interino Michel Temer – dois ministros demitidos em apenas 19 dias, por envolvimento com denúncias de corrupção – é em seu governo que os religiosos vêm conquistando espaço inédito na história da República. Segundo registro na Câmara dos Deputados, a Frente Parlamentar Evangélica – que inclui católicos, protestantes e pentecostais - conta hoje com a participação de 199 membros (39% do total da Casa) e quatro senadores. O primeiro compromisso oficial de Michel Temer, como presidente interino, foi receber alguns membros da bancada evangélica, que o cumprimentaram e oraram por ele". El País Brasil, on-line, texto citado.

Uma das questões que nos perguntamos quando relacionamos cidade e a crescente força da religiosidade evangélica é se, de fato, esta religiosidade outorga sentido às massas urbanas. Na verdade, expoentes da teologia protestante comoPaulTillich, consideram que o ser humano é um ser potencialmente espiritual, e que essa espiritualidade tende a se expressar de diferentes formas de religiosidades. Eessas religiosidades nos grandes centros brasileiros ocupam um espaço privilegiado. Ora, se a espiritualidade é a dimensão da profundidade do espírito humano, naurbanidade brasileira essa busca, por várias razões, é incrementada e direcionada ao evangelicalismo[3]. Basta ver que no Brasil urbano a comunidadeevangélica cresceu 61,45% em dez anos(IBGE, 2012). Assim, se a população brasileira urbana é religiosa, essa religiosidade foi catalisada pelo permanente processo de evangelização protestante dos últimos cento e cinquenta anos.[4]

A espiritualidade traduzida nas religiosidades das cidades da alta modernidade está presente em todas as ações do espírito humano, na cultura, na educação, na éticae napolítica. Por isso, cada vez mais expoentes das comunidades se pronunciam publicamente sobre questões que antes pertenciam estritamente a esfera civil não-religiosa. 

De forma geral, numa leitura antropológica judaico-cristã, podemos dizer que espiritualidade é aquela relação da pessoa com a transcendência. Nesse sentido, a espiritualidade é a totalidade da vida. A religião, por sua vez, traduz a dimensão dessa espiritualidade. As experiências humanas com o que é sagrado envolvem escolha, disciplina e prática e levam o ser humano às experiências religiosas, porque a religião traduz o que é sagrado para a vida da pessoa. Dessa forma, a espiritualidade tende a ser traduzida na religiosidade, mas na globalidade de forma mais contundente enquanto fenômeno urbano.

Em relação à realidade brasileira percebemos no cristianismo mais diversidade confessional do que religiosa. Oitenta e nove por cento dos brasileiros confessam ser cristãos, e esta espiritualidade está presente no desejo de justiça social e solidariedade. Diante dessa espiritualidade cristã invisível, podemos dizer que quase todos os brasileiros são cristãos em alguma medida. Tomemos como exemplo a igreja católica, que não pode ser analisada como uma, pois abriga diferentes manifestações de religiosidade. Além dessa pluralidade católica, há centenas de igrejas protestantes eevangélicas que incluem as históricas de migração e missão, as pentecostais históricas e as neopentecostais.

Em razão disso podemos dizer que enquanto fenômeno urbano a religiosidade evangélica é fator de agregação e desagregação. Podemos, até explicitar essa dualidade com um exemplo recente. Durante a redemocratização brasileira, nos anos pós-ditadura militar,evangélicos e suas comunidades se dividiram enquanto forças reformistas de apoio aos governos dos Partidos dos Trabalhadores e forças reativas que ligaram ao governo de Michel Temer. Assim, as religiosidades evangélicas são desagregadoras quando se ligamà corrupção, ao clientelismo e às benesses. Mas agregam quando defendem a vida como valor incondicional humano. Com isso, constatamos que as religiosidadesevangélicas podem ser uma coisa ou outra ou mesmo, enquanto comunidades, dialeticamenteambas. Essas são marcas da história protestante/evangélica recente. Mas, é claro que seria um erro uniformizar a atuação dos protestantes e evangélicos. O certo é que evangélicos, em nome dos fundamentos e virtualidades das doutrinas de suas comunidades, confrontam a laicidade no Brasil.

No Brasil de hoje podemos falar de uma multidimensionalidade do tempo na cultura. Ora, antes, sem dúvida, o tempo deveria ser distintamente diferente para cristãos e não-cristãos, mas agora com a criação e combinação dos tempos artificiais produzidos pela tecnologia, os ritmos e tempos se interpenetram.

Em 1983, o cientista político italiano Giacomo Marramao[5]lançou Potere e secolarizzazione[6], em que trabalha a controvérsia sobre tempo pagão e tempo cristão e, como consequência, a questão das imagens do mundo e as representações do tempo.

O conceito secularização não é apenas uma metáfora, que expressa o distanciamento progressivo da esfera religiosa enquanto poder, jáque seu significado semântico continua em permanente construção. Para Marramao (1997), "a impossibilidade de reconduzir essa noção a uma concepção unitária não depende meramente, como no caso de outros termos característicos da modernidade, da sua polissemia ou polivalência semântica", mas necessita de uma "estrutural ambivalência de significado, a qual dá lugar a premissas antitéticas ou diametralmente inversas".[7]Assim, o paradoxo maior da secularização mostra-se enquanto conflito igreja versus secularidade, já que a igreja assume um caráter burocrático e a secularidade, cada vez mais, discute, opina e legisla sobre questões religiosas. Ou seja, há ou não uma interseccionalidade de valores? Vemos, então, que a religiosidade evangélica busca institucionalidade e a secularidade cria características religiosas.

É de se entender que a secularização, enquanto fenômeno interseccional, possui significado de afirmação e de oposição entre o espiritual e o secular. Dessa maneira, a secularização se apresenta hoje, na alta modernidade sob três formas, o princípio da ação eletiva, o princípio da diferenciação/especialização progressiva, e o princípio da legitimação. E se falamos do princípio da ação eletiva, estamos a falar da emersão progressiva da pessoa na busca do significado do seu "eu" e da "consciência de si mesmo". Por isso, para Marramao (1995), "este aspecto comporta um modo cultural particular de estabelecer a linha de demarcação entre subjetividade e objetividade e, portanto, de construir a realidade social."

Já o princípio da diferenciação/especialização progressiva nos mostra que quando o princípio eletivo se torna afirmativo, a adoção do critério de escolha fica em aberto. Esse critério de escolha está no âmbito da racionalidade instrumental, assim, Marramao (1995) nos dirá que "a consequência distoé a relação estreitamente biunívoca que se instaura entre secularização e aumento de complexidade do mundo social."

Ao analisar o pensamento político da religiosidade evangélica no Brasil, dois autores traçam linhas demarcadas, sobre como se lançaram contra os direitos civis, democráticos, seculares. Para Cowan, “a direita política evangélica no Brasil tornou-se presuntiva, mas foram prefiguradas durante os processos simultâneos de redemocratização nacional e de politização evangélica na década de 1970. Nesta encruzilhada, os líderes de várias denominações religiosas adotaram a linguagem de uma crise moral aguda, lançando as bases para uma direita evangélica. A própria crise moral tornou-se “nosso terreno”, o ponto de inserção dos evangélicos de direita na esfera política, e uma das várias questões-chave que dividem evangélicos reacionários e seus correligionários progressistas. Até o momento da Constituinte, a posição dos Batistas e Assembleianos, como vozes dos conservadores que apoiaram amplamente o regime militar e se opuseram às iniciativas de justiça social do ecumenismo de esquerda e ao comunismo, tinha sido estabelecida após anos de pronunciamentos que ligavam essas questões à crise moral.”[8]

E para Carneiro, “no Brasil, o evangelicalismo evoluiu cada vez mais para a direita ao longo do período ditatorial e pós-ditatorial, constituindo o que jáfoi chamado de uma “nova direita” baseada na reação moral e cultural. Na ditadura houve uma distinção clara entre setores protestantes e evangélicos democráticos que se opuseram ao regime, como o pastor presbiteriano James Wright, fundador do Brasil Nunca Mais, e os grupos mais conservadores e anti-ecumênicos que apoiaram os governos militares.

“Esta ala direita se aproveitou de benesses do regime, cresceu e predominou. Sua atuação política mais destacada se deu em torno ao combate à pornografia, o alcoolismo, o tabagismo, o jogo, o divórcio, e a emancipação feminina. Defensores de que o lugar da mulher é no lar, se juntaram à Igreja Católica para se opor ao controle populacional e aos anticonceptivos.”[9]

A Reforma protestante desde os seus primeiros momentos buscou fundações. Conhecemos os princípios basilares apresentados por Lutero: a justificação pela fé, a sola scriptura, o livre exame dos textos sagrados cristãos e o sacerdócio universal dos fiéis. A partir desses conceitos de liberdade surgiu um conjunto de princípios em cima do qual se levantou a teologia reformada. Tal construção foi vista como base que legitimou e autorizou a expansão de uma das maiores revoluções religiosas da história humana. E, assim, surgiu a teologia reformada como fundamento de todos os protestantismos e também dos evangelicalismos, com seus diferentes matizes e leituras.

Assim, a academia quando se debruçou sobre o fundamentalismo do movimento evangélico, viu principalmente o seu lado integrista. É certo que a religiosidade evangélica é fundamentalista. MasMendonça explica o que isso significa:

“Seu apego à letra da Bíblia, ao mesmo tempo em que a interpreta dogmaticamente, tem engessado o protestantismo no cipoal da ortodoxia mais fria que pode existir. O fundamentalismo, além de violar o sagrado princípio da Reforma, que é livre exame – por ter-se especializado em publicar Bíblias com notas e referências, verdadeiros tratados teológicos --, voltou a submeter o protestantismo a um simples sistema de crenças ao qual o fiel se submete intelectualmente".[10]

Na verdade, a utilização da expressão fundamentalista para a religiosidade evangélica brasileira ou setores delanão está errada, mas se torna reducionista ao prender-se aos aspectos negativos do termo -- conservação, integrismo, retroação – e deixa de ver aspectos relacionais positivos que a busca por fundação implica.

O Brasil desde 1940 vem numa acelerada marcha de urbanização. Em 1940, 30% da população do país, 40 milhões de pessoas viviam em cidades. Em 2006, 56,3 milhões de brasileiros viviam nas nove maiores regiões metropolitanas do país. Segundo dados do IBGE (2007), hoje 83% da população moram em cidades, 140 milhões de habitantes. Portanto, 8 em cada 10 brasileiros vivem em núcleos urbanos. Parte da população urbana concentra-se no Sudeste do país, em especial em grandes áreas metropolitanas como São Paulo, 17 milhões na Grande São Paulo, e Rio de Janeiro, mais de 10 milhões na Grande Rio.

Além do aumento da população urbana ocorre no país uma urbanização do território: há crescimento da população urbana, do número de cidades, e os núcleos urbanos passam a se espalhar por todos os estados e regiões do país. Surge, então, uma rede urbana ampla, interligada e complexa. Expande-se, assim, o modo de vida urbano, apoiando-se nos sistemas de transportes, telecomunicações e informações. O processo de modernização do país, na segunda metade do século vinte, gerou duas megalópoles, São Paulo e Rio de Janeiro, que foram constituídas coração cultural e econômico do país, concentrando recursos e articulando em seu entorno uma constelação de aglomerações urbanas e cidades médias. Por outro lado, ocorreu nos últimos anos uma tendência à desconcentração de atividades - sobretudo industriais -, com o deslocamento de unidades produtivas do núcleo central de metrópoles como São Paulo para outras cidades e aglomerações urbanas de diferentes portes e localizadas em diferentes estados e regiões. E a redução no ritmo de crescimento populacional de São Paulo e do Rio de Janeiro é fato marcante, embora não signifique a redução do poder e influência nacional e internacional de ambas.

Crescem também outras aglomerações urbanas metropolitanas e não-metropolitanas e também o número de cidades médias por todo o país. Temos, então, uma situação em que permanece o peso acentuado das metrópoles, ao mesmo tempo em que há a desconcentração ou repartição de atividades entre as metrópoles e outros núcleos.

E a religiosidade evangélica montou a cavalo no processo de urbanização. A procura evangélica por fundamentos é uma mostra de que o fenômeno não traduz um movimento espontâneo, mas procura construir raízes que lhe deem estabilidade e permanência. As antigas construções institucionais e religiosas brasileiras, primeiramente calcadas no catolicismo rural e depois no protestantismo de migração e de missão, estão presentes nessa procura evangélica por fundamentos e são um fenômeno urbano. E tal processo nesta alta modernidade não ter definições precisas e sólidas, as religiosidades evangélicas urbanas necessitam de um permanente olhar a frente. Assim, as necessidades estruturais da sociedade brasileira e o descontentamento nem sempre definido e claro das populações urbanas fornecem elementos para a compreensão da busca de fundamentos por parte dos novos movimentos evangélicos presentes no espaço urbano.

Ao acrescentarmos a variável urbanização à alta modernidade, entendemos que a procura por fundamentos é também produto da globalidade e que, embora possa assumir formas antiglobais, sua tendência é partilhar as características da globalidade. Ou seja, a alta modernidade surge como desequilíbrio e traz insegurança para as massas, e o movimento evangélico, calcado em fundamentos, apresenta-se como opção de sentido, esperança e vida para essas mesmas massas. Por isso, não podemos dizer que o fenômeno evangélico urbano brasileiro seja mero produto da correlação entre urbanização e alta modernidade.

Os estudos publicados pelo IBGE mostram que em 1970 a população protestante / evangélica tinha 4,8 milhões de fiéis, e que em 1980 passou a 7,9 milhões. Constatou que na década de 90, a velocidade de crescimento das comunidades protestantes e evangélicas foi quatro vezes maior que a da população brasileira. Assim, em 1991 chegou a 13,7 milhões; em 2000 a 26 milhões. E em 2010, a 42,3 milhões, ou seja 22,2% dos brasileiros. Atualmente, o movimento como um todo caminha para ser um quarto da população.

Devemos reconhecer, porém, que a multiculturalidade brasileira tem suas correlações com a globalidade, e que não há cidades de refúgio na temporalidade globalizada. As culturas brasileiras estão integradas na ordem de um conjunto maior que é a própria brasilidade na alta modernidade, coladas cultural e economicamente à globalidade da produção e do consumo capitalistas. Assim, dentro desse panorama, o protestantismo evangélico, em seus diferentes matizes, leva a uma viagem da tradição em direçãoà alta modernidade.

Como vimos, uma das características do fenômeno religioso urbano, e aí se enquadra a religiosidade evangélica em seus diversos matizes, é a procura por fundamentos. Tal tendência pode ser ilustrada nas propostas de volta às tradições históricas da Reforma, o que aparentemente entra em choque com a globalidade. Mas essa volta às tradições históricas faz parte da própria globalidade. E é expressão profunda de sua virtualidade.

A virtualidade como razão de ser

"Para o Ministério do Trabalho, o presidente interino convidou o deputado federal pelo Rio Grande do Sul, Ronaldo Nogueira. Nogueira é pastor da Assembleia de Deus, igreja que possui a maior bancada entre os evangélicos - 19 membros da Câmara dos Deputados estão ligados a ela, além do senador Gladson Camelli (AC), que, embora não pertença aos quadros, elegeu-se com seu apoio. Os membros mais destacados da Assembleia de Deus são os deputados Marco Feliciano (PSC-SP), que em sua rápida passagem pela presidência da Comissão dos Direitos Humanos e Minorias, demonstrou toda a sua homofobia; e as deputadas Cantora Lauriete (PSC-ES), famosa por seu recente casamento com o também evangélico senador Magno Malta (PR-ES) – relação vista com maus olhos pelos seus pares jáque ambos são divorciados - e Fátima Pelaes (PMDB-AP).

Fátima Pelaes foi nomeada por Michel Temer secretária de Políticas para as Mulheres, órgão subordinado ao Ministério da Justiça. Ela é investigada pela Justiça Federal por denúncias de envolvimento em um esquema que desviou 4 milhões de reais de verbas do Ministério do Turismo para capacitação de profissionais em seu estado. Além disso, ocupando uma pasta que tem como objetivo implementar políticas destinadas à mulher, Fátima já disse que, por conta de suas convicções religiosas, é contra o aborto (uma reivindicação antiga dos movimentos sociais), mesmo em casos de estupro, direito esse que já é garantido pela legislação." El País Brasil, on line, texto citado.

No protestantismo clássico, os teólogos magisteriais controlaram suas produções a partir de estruturas e procedimentos ordenados. Isso é tudo o que podemos fazer em um mundo complexo?Se for, a institucionalidade das confissões judaico-cristãs estão destinadas a seguir o caminho do Tyrannosaurus rex. A tentativa de estabilizar o sistema leva a torná-lo incapaz de interagir com o mundo e possibilitar a criação de alternativas futuras. Os intérpretes modernos enfatizaram que as culturas e os valores compartilhados são essenciais para fazer a leitura da religiosidade judaico-cristã. Em condições dinâmicas, onde fé e linguagem religiosas são formados por múltiplas e variadas possibilidades, onde hermenêuticas monolíticas falharão na geração da criatividade religiosa necessária para dotar as confissões de compreensões adequadas. Por isso, as diversidades de opiniões e abordagens são importantes. O pensamento único, que não comporta diferentes visões, pode ter sido um dos fatores cruciais para a crise de parte das confissões judaico-cristãs no mundo moderno e, em especial, nas últimas décadas do século vinte. Os hermeneutas modernos acreditaram que o sucesso da fé e linguagem religiosas poderia repousar exclusivamente na manutenção do equilíbrio interno da origem fundante, mas se isso fosse possível, a própria fundação teria deixado de apresentar novidade e a liberdade da religiosidade no século vinte deveria ter sido reduzida à escolha da adaptação certa ou errada.

Mas no mundo da complexidade hermenêutica os riscos são muito maiores. Primeiro porque equilíbrio exclusivo e permanente da internalidade religiosa significa morte, exatamente o contrário do que pensava a velha hermenêutica. Segundo porque em condições não-estáveis o ambiente humano também se fez presente na religiosidade, tanto quanto ele no ambiente humano. As implicações disto significam que as compreensões hermenêuticas não podem culpar o mundo por suas falhas: elas devem ser vertiginosamente livres para criar o próprio futuro religioso.

Há um verso de Nietzsche que pode nos servir de guia para uma hermenêutica da religiosidade evangélica na alta-modernidade:

“Agora celebramos, seguros da vitória comum, a festa das festas: O amigo Zaratustra chegou, o hóspede dos hóspedes! Agora o mundo ri, rasgou-se a horrível cortina, É hora do casamento entre a Luz e as Trevas...”[11]

Nietzsche pensava a ausência de horizontes. Em Além do Bem e do Mal, ele pensa contra a modernidade: faz um libelo contra os valores da modernidade, como o sentido histórico, a objetividade científica e, logicamente, a fé numa razão autônoma. Assim, é o caso de perguntar: é possível continuar existindo algum contato com a chamada realidade hermenêutica, quando a virtualidade, por exemplo, fica indistinguível e até mesmo mais autêntica que o original, quando podemos criar mundos sintéticos que são mais reais que o real, quando a tecnologia glosa a natureza? Quando a hermenêutica livre das dogmáticas confessionais faz caminhos como o filme Matrix?

Mark C. Taylor, hermeneuta estadunidense, percorre sob outras condições questionamentos idênticos aos levantados por Nietzsche. Ao trabalhar a questão da virtualidade na comunidade religiosa da alta-modernidade, utiliza um conceito que já vinha sendo usado na crítica literária, a idéia de imagologia. Antes, na teoria literária, e agora na hermenêutica de Taylor, a identidade do texto não pode ser encarada como uma forma de ser plena e apriorística, mas como realidade dinâmica ou relacional, onde se cruzam questões de identidade textual e comunitária, o que também se dá na virtualidade, que acaba sempre por revelar uma dimensão estrangeira, que é manifestação de um outro. Na medida em que háconstante busca identitária, o confronto com este outro supõe sempre uma comparação, explícita ou implícita, e se integra naquilo que na terminologia de Taylor será a imagologia, estudo das representações do outro, que também pode ser entendido como virtualidade.

Nos últimos anos essa questão tem sido tema da simbologia da revelaçãodos textos sagrados, como da própria teologia. As mídias têm demonstrado a força das realidades artificiais. Essa questão, realidade e imagem na comunidade imagológica, já tinha sido analisada por psicólogos da escola piagetiana. Segundo eles, é difícil ensinar a pensar de modo lógico a um menino que está sob o bombardeio de imagens distantes da lógica, como acontece nos programas infantis. E onde até mesmo as entrevistas ao vivo fazem parte da criação de algum gênio da publicidade. A moda e os shows de rock, por exemplo, fazem parte desta realidade onde o que é apresentado pelo entrevistador não tem nada a ver com a realidade da audiência ou com o próprio intérprete/produto, já que suas imagens sofrem uma transformação mágica para poder ser popular, ou pelo menos este é o objetivo.

Para Taylor, a comunidade imagológica leva à ansiedade que circula acima e debaixo do chão, que tem crescido e emaranhou-se num complexo tecnológico e financeiro. 

“Com a informação e o dinheiro que correm ao redor do mundo à velocidade da luz, nenhum de nós está seguro, porque qualquer um estáno controle. As redes de terroristas assombram a estrutura e através da Web atuam nas comunicações e sistemas financeiros globais. Eles foram mais efetivos utilizando as tecnologias contra nós do que nós em nossa capacidade de usar essas tecnologias contra eles. Nós não seremos capazes de enfrentar redes de terroristas até que melhoremos a compreensão da lógica e operação de nossas próprias redes. Nestas teias emaranhadas e nas redes, estáo limite entre nós e eles, dentro e fora, para quem nada é fixo e imóvel, mas restos fluidos e móveis”.[12]

E essa é uma discussão sobre o sentido da hermenêutica, porque vivemos um momento de complexidade sem precedentes, onde as coisas mudam mais rapidamente que nossa habilidade de compreender. Por isso devemos resistir à tentação de procurar respostas simples, pois o que antes era força interpretativa da hermenêutica moderna agora é fraqueza que nos deixa abandonados à mercê da sorte.[13]Diante disso, será possível distinguir entre realidade e virtualidade na comunidade imagológica evangélica, se a tecnologia constrói a nova realidade? Bem, vivemos um mundo colocado em processo de equilíbrio instável, e para entendê-lo devemos ir às margens do sistema. 

A complexidade hermenêutica, na alta modernidade, é vista como marginal e fenômeno emergente. Não está fixa, porque a complexidade é móvel, momentânea e o momento marginal de seu aparecimento é inevitavelmente complexo. Longe de ser um estado, esse momento emergente da hermenêutica reconstitui o fluxo de tempo, enquanto impulso que mantém a religiosidade em movimento. É significante que a palavra momento derive da idéia de impulso em latim, mostrando movimento como sendo também impulso. Embora frequentemente representasse um ponto simples, o momento hermenêutico é inerentemente complexo. Seus limites não podem ser firmemente estabelecidos, porque sempre estão trocando de modos, que dão fluidez ao momento. Na hermenêutica da alta modernidade vivemos o domínio do intermediário, que a teoria da complexidade procura entender.[14]

A dinâmica do caos e da complexidade da hermenêutica parte de certas características que diferem em importância e modos. Um sistema complexo é um sistema único composto departes compatíveis, que interagem entre si e que contribuem para sua função básica, sendo que a remoção de uma das partes faria com que o sistema deixasse de funcionar de forma eficiente. Um sistema de tal complexidade não pode ser produzido diretamente, isto é, pelo melhoramento contínuo da função inicial, que continua a atuar através do mesmo mecanismo, mediante modificações leves, sucessivas, de um sistema precursor. O exemplo mais popular de complexidade irredutível foi apresentado por Michael Behe (A caixa preta de Darwin): é a ratoeira. Ela tem uma função simples, pegar ratos, e possui várias partes: uma plataforma, uma trava, um martelo, uma mola e uma barra de retenção. Se qualquer uma dessas partes for removida, o aparelho não funciona. Portanto, é irredutivelmente complexo. Um automóvel, em contrapartida, pode funcionar com os faróis queimados, sem as portas, sem pára-choques, etc, embora chegará um momento em que haverá um mínimo de peças essenciais para seu funcionamento. Originariamente, a teoria do caos foi desenvolvida como um corretivo para os sistemas fechados e lineares de físicas de Newton, pois diante da ausência de ordem, caos é uma condição na qual a ordem não pode ser averiguada por causa da insuficiência de informação. Enquanto a física de Newton imagina um mundo abstrato governado por leis definidas, que determinavam completamente as coisas reais, a globalidade não é transparente porque não temos a informação adequada e necessária para estabelecer leis, assim toda operaçãoé sempre inacessível. A partir dessa compreensão da teoria do caos e da complexidade, duas razões hermenêuticas podem ser destacadas na abordagem das religiosidades evangélicas.

Primeiro que os sistemas finitos, como é o caso dessas religiosidades, não estão fechados, mas são sistemas abertos. E segundo que os sistemas ou estruturas das religiosidades evangélicas envolvem relações que não podem ser entendidas apenas em termos de modelos lineares de causalidade. Nos sistemas religiosos evangélicos recorrentes é impossível medir as condições iniciais com precisão para determinar as relações causais num período limitado de tempo.[15]Então, a imprevisibilidade é inevitável. Ao contrário dos sistemas lineares, nos quais causas e efeitos são proporcionais, nos sistemas das religiosidades evangélicas recorrentes, a avaliação é complexa, porque esses sistemas se auto-alimentam da vida de seus fiéis e na recorrência geram causas que podem ter efeitos desproporcionados. Em contraste com a teoria do caos, a teoria da complexidade está menos interessada em estabelecer a fuga ou o caos determinado, pois oscila entre ordem e caos. Assim, o momento de complexidade é o ponto no qual ecossistemas organizados emergem para criar novos padrões de coerência e estruturas de relação.

Embora tenha se desenvolvido fora das investigações hermenêuticas das religiosidades evangélicas, a percepção de teoria da complexidade pode ser usada para iluminar as questões da interpretação desta religiosidade hoje no Brasil. Aliás, poderíamos até nos perguntar o que há de comum entre as moléculas que se apressam em auto-reproduzir metabolismos, as células que coordenam esses comportamentos para formar organismos multicelulares e os sistemas das religiosidades evangélicas? E a resposta, complexa, é óbvia: a possibilidade da vida, que faz a travessia de um regime equilibrado de ordem e caos, é o que há de comum entre esses processos. Donde a hipótese hermenêutica maior é esta: a vida existe enquanto extremidade do caos. Partindo da metáfora da física, a vida existe ao lado de um tipo de transição de fase. A água existe em três estados, gelo sólido, água líquida e vapor gasoso. Começamos a ver que idéias semelhantes podem ser aplicadas aos sistemas hermenêuticos complexos. Sabemos que as redes de genomas que controlam o desenvolvimento do zigoto podem existir em três regimes: ordenado congelado, caótico gasoso e líquido aquoso, localizados na região entre ordem e caos. É uma hipótese impressionante que sistemas de genomas ordenem regimes de transição entre uma ordem e o caos. Em tais sistemas, o regime ordenado congelado também coordena as sucessões complexas das atividades genéticas necessárias. Mas, nessas redes, também o regime gasoso caótico, perto da extremidade de caos, pode coordenar atividades complexas e evoluir. A partir das redes, a análise pode ser estendida às comunidades e às dimensões culturais, ou seja, por extensão às leituras interpretativas. Assim, equilibrado entre uma pequena ou grande ordem, o momento de complexidade da hermenêutica na alta modernidade é o meio no qual emerge a cultura de rede.[16]

Taylor projeta a discussão da teoria da complexidade para a hermenêutica ao afirmar que a noção de que as fundações tenham desaparecido é ameaçadora para muitas pessoas, mas que esse assunto é um tema recorrente nas ciências da religião. Pensadores importantes na história de filosofia ocidental, como Nietzsche, colocaram tal discussão na ordem do dia e influenciaram pensadores da alta modernidade como Derrida. Uma das coisas que golpeia o pensamento moderno é a ênfase desses filósofos na importância de entender que a idéia de fim de fundamentos é uma metáfora, assim como a teoria da complexidade tambémé uma metáfora. Ou como afirma Derrida, a metáfora é determinada pela filosofia como perda provisória de sentido, economia sem prejuízo irreparável de propriedade, desvio inevitável, mas história com vista e no horizonte da reapropriação circular do sentido.[17]É por isso que a avaliação filosófica foi sempre ambígua: a metáfora é estranha ao olhar da intuição, do conceito e da consciência. E por isso Derrida dirá que a metafísica é a superação da metáfora, donde ao discutir a hermenêutica devemos levar em conta que há rastros da metafísica nas palavras que usamos: entender é um exemplo disso. Entender algo é não agarrar alguma coisa superficialmente.

O ato cognitivo envolve apreensão dentro de condições de superfície e relativos à profundidade. A distinção entre informação e entendimento é muito complexa. No domínio onde as pessoas pensam em informação devemos falar de sobrecarga de informação. Somos bombardeados com informação de todos os tipos. Entender é um modo de organizar e estruturar a informação. Na revolução da informação, dispositivos filtrantes estão começando a emergir. É crucial entender o poder das hermenêuticas que criam estas grades culturais. Este é um dos temas de Imagologies.[18]E essas grades culturais, por sua vez, desenvolvem-se e mudam para prover vigamentos interpretativos que criam possibilidades de construção da compreensão de informação na qual estamos imersos. Temos, então, dois mundos, um é o mundo tradicional, o mundo da religiosidade protestante histórica tal como o recebemos. É um mundo platônico, no qual o assunto percebido é colocado num nível agradável de fundação. Este mundo está presente, mas também está acima, é a transcendência. Esse modelo se torna um modo de saber. Quando começamos a conceber algo, concebemos figurando em termos de modelo. Através do contraste descrevemos um mundo no qual um modelo diferente predomina. Temos interações de planos, modelos e processos.

As religiosidades evangélicas, assim entendidas, podem ser chamadas de locais de consumo, e apontam para a utopia de uma República evangélica. Mas uma estrutura não é aquilo que alguém busca, pois as religiosidades enfatizam movimento e troca, troca de informação, etc. Os modelos hermenêuticos de que estamos falamos não são apenas conceituais, pois o conhecimento simbólico das religiosidades evangélicas emerge de uma interação entre entendimento e as formas de fé, que são filtros através dos quais foram processadas a informação. Se alguém pensa tais categorias como um vigamento historicamente emergente de interpretação, em constante processo de formação, deformação e reforma, estamos diante de um salto como o das tecnologias de produção e reprodução em uma comunidade determinada. Começamos então a ver os modos em que processamos a experiência, onde o conhecimento é constituído em fluxo constante. Não é apenas uma questão de como pensamos, é uma questão de como vemos, ouvimos e tememos. E aí entram cultura e política, e questões como aborto, feminismo e movimentos gays, entre outros. E neste ver, ouvir e temer, as mídias abrem uma percepção nova e capacidades de apercebimento. O ponto em que se faz a troca também é uma questão importante. Uma das coisas que o estruturalismo nos ensinou é que em lugar de ser um local de origem, a religiosidade deve ser entendida como constituída dentro e pelas redes de troca na qual está imbricada. É um tipo complexo de reversão. Pensando nessas estruturas como criadas por um tema original, temos que pensar no assunto como uma função das redes estruturais nas quais estásituada. Essas redes estruturais levam a todos os tipos de formas. São culturais,políticas, sociais. Entender as religiosidades evangélicas como constituídas por redes de troca é muito importante.

Assim, há uma procura pelas tradições históricas do protestantismo, o que implica em ressignificar o estudo da literatura sagrada, a liturgia nas comunidades e até mesmo os currículos dos seminários de teologia. A caminhada em direçãoàs tradições históricas, à nacionalização do culto e à compreensão da teologia parte dessa luta na alta modernidade pela busca da autonomia e da expressão local, mas traduz também o desejo, e aí entra a globalidade, de que a comunidade local contribua para a espiritualidade mundial. O estímulo da alta modernidade às expressões das religiosidades locais implica numa combinação sincrética de práticas ditas locais com adaptações às práticas alheias às circunstâncias locais. Assim, expressões do fenômeno evangélico urbano são ressignificadas. São produções sintetizadas e sincretizadas de diferentes tradições cristãs e, até mesmo, não-cristãs. São formas particulares de adaptaçãoà urbanização e uma resposta aos efeitos da tribalização da alta modernidade.

A maioria do movimento evangélico contemporâneo aparentemente parte das necessidades religiosas dos diferentes estratos urbanos. Mas é, também, multinacional e mantém alianças com instituições forâneas. Nos últimos vinte anos desenvolveu uma solidariedade entre estratos urbanos marcados pelos contatos e pela crescente participação com os Estados Unidos da América. Esses setores do movimento evangélico são conduzidos como opinião mundial, e capitalizam a preocupação geral com uma identidade protestante genérica e dela se alimentam. Tal fenômeno nãoé negativo, se entendermos que estimula, ao participar da globalidade, o reconhecimento de que areligiosidade evangélicalocal só é possível numa base cada vez mais global. Ou seja, para os as religiosidades evangélicas urbanas pensar globalmente é cada vez mais necessário a fim de tornar a própria noção de religiosidade urbana viável. O evangelicalismo urbano está globalmente institucionalizado, embora apresente complicações dispersas. A urbanização produz variedade e a diversidade é, em muitos sentidos, um aspecto básico da globalidade. Mas, e esta é uma complicação, a diversidade pressupõe na globalização a preservação de enclaves da particularidade em meio à crescente homogeneidade e uniformidade. Ou seja, dentro do conjunto movimento evangélico vamos encontrar singularidades que rompem as uniformidades e também as não-uniformidades. Podemos definir essa idéia dizendo que a urbanização do evangelicalismo envolve simultaneamente globalidade e localidade.

É por isso que, quando falamos em religiosidade evangélica urbana, apontamos para a comunicação entre grupos, comunidades locais e confissões. Tal fenômeno é uma reação ao aumento da compressão do espaço e do tempo urbanos. Essa comunicação, que chamo de interdenominacional, se faz em todos os níveis, estápresente nas salas de aula, na mídia, e já chegou aos cultos e às liturgias. Mas na mídia traduz a utopia da diferença e funciona como o espaço aberto dos símbolos. Nesse sentido, não apresenta a diferença autêntica, mas faz uma descrição simbólica ao adequar religiosidade evangélica e religiosidades não-cristãs às características contemporâneas da urbanização das religiões.

E deixamos a conversa

"Para líder da bancada governista na Câmara, Temer designou o deputado federal André Moura, que, embora católico, está filiado ao PSC, partido de maioria evangélica, presidido pelo pastor Everaldo Pereira, importante membro da Assembleia de Deus, e que abriga o pré-candidato à Presidência da República, o fascista deputado federal Jair Bolsonaro (RJ). Moura é autor da Proposta de Emenda Constitucional que diminui a idade penal de 18 para 16 anos –aprovada pela Câmara e em análise no Senado – e da proposta que criminaliza quem “induzir ou instigar a gestante”a praticar aborto e dificulta o aborto mesmo em casos de estupro. Moura é homem de total confiança do deputado afastado Eduardo Cunha, ex-presidente da Câmara, réu no Supremo Tribunal Federal (STF) em processo por crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. O líder do governo na Câmara também é réu em três ações penais no STF sob acusação de desvio de dinheiro público e é investigado em três outros inquéritos por suposta participação em uma tentativa de homicídio e no esquema de corrupção da Petrobras".El País Brasil, on-line, texto citado.

Michael Löwy trabalha o desafio do pensamento das religiosidades evangélicas a partir de uma leitura weberiana, o que matiza os contornos aparentemente demoníacos da presença evangélica na política brasileira. Para ele, “os evangélicos são, no fundo, uma religião mágica. Eles acreditam que, fazendo certos rituais, orações ou mesmo dando dinheiro para a igreja, terão seus problemas resolvidos. Isso, para parte da população, sempre foi assim. Mas devemos reconhecer que os evangélicos, pela ética protestante, calvinista, impõem uma série de proibições aos fiéis: não podem consumir álcool, drogas, ir a prostíbulos, jogar cartas. E isso melhora a situação da família, é fato. Por outro lado, essas igrejas são conservadoras, intolerantes, fundamentalistas e, na maioria das questões sociais, regressivas. Além do quê, desenvolvem uma pretensa teologia da prosperidade que faz elogios ao capitalismo, ao neoliberalismo, ao mercado e ao consumo, que é bastante negativo.”[19]

Podemos, caso utilizemos critérios modernos de análise, falar em tempo da mentalidade conservadora versus tempo da mentalidade progressista. Mas tais critérios de análise, embora sejam aparentemente agradáveis e facilitadores, já não cabem na multidimensionalidade do tempo na cultura, que nos leva, a partir de Marramao, a falar de conflitualidade endêmica do mundo e, como consequência, dos dilemas que traz para a política e para a religião. Assim, faz a crítica da sociedade contemporânea, onde o presente é dominado pelo movimento incessante, onde ninguém consegue saborear o presente. E reconstrói a etimologia do tempo latino, onde são colocados o sentido interno de tempo, a síndrome temporal da pressa e a busca insana para se recuperar a posse da existência.

Temos que ver, a partir de Marramao, que a realidade se expressa de forma imagológica na política das religiosidades evangélicas, fazendo com que as propostas evangélicas interseccionadas enquanto governamentais, quer no que se relaciona à pessoa,à família ou às comunidades, se entrelacem e produzam, como diz Giner, “mutações na vivencia e qualidade desses tempos”.[20]Assim, a bancada evangélica presente no Congresso, ou os ministros de Estado do governo Temer expressem produções imagológicas de tempos, que apesar de suas volatilidades, acumulam de forma caleidoscópica mudanças no momento presente.

Em seu livro Passagem ao Ocidente, filosofia e globalização, de 2003, Marramao faz uma análise do pensamento contemporâneo e como este se debruçou sobre a investigação da globalização. Mas procura evitar a ocidentalização da abordagem, delineando uma política global. Assim fez leituras de F. Fukuyama e Kojève e, consequentemente, do fim da História e à universalidade do individualismo competitivo. Atravessa, então, o conflito de civilizações que, após o colapso do muro de Berlim, viu o globo mergulhado num conflito intercultural mundial. E, chegou com S. Latouche, à concepção da expansão planetária de dominação da tecnologia sob o controle da razão instrumental.

Mas, para Marramao, a globalização deve ser vista como pressuposto típico da modernidade, na transição de um mundo fechado a um universo circum-navegável, que possibilita o encontro, mas também o choque de culturas, levando a sociedade a ser transformada por esse encontro diário, que se espraia a partir das megalópolis, mas que permanentemente desafia a nossa identidade.

No percurso dessa compreensão da globalidade, vai além da crise do Estado-nação, agora personificada pelo Leviatã democratizado de John Rawls.[21]Aqui temos a reconstrução do princípio de universalidade da diferença, que se dá em esfera global, onde o mundo aparece como presença-imagem da racionalidade técnica e econômica, que influencia tudo e todos através da criação de um modelo único de sociedade e pensamento. E que, ao mesmo tempo, tira proveito da riqueza das diferenças para construir uma globalidade cosmopolita, onde todos podemos cultivar nosso politeísmo de valores. Globalidade e temporalidade, para Marramao, estão imbricadas. E para chegar à sua construção da temporalidade da globalização, fez a reconstrução das concepções de tempo nascidas na reflexão ocidental a partir da análise de Timeu de Platão, até chegar às discussões sobre a flecha do tempo na física. Mas, construindo uma reflexão sobre temporalidade /identidade, onde busca os pontos de contato entre as abordagens focadas na pessoa e as sociais.

A síndrome da pressa, do tempo que falta, tornou-se parte do projeto moderno, numa racionalização da escatologia judaico-cristã, onde se busca o fim último do domínio da razão instrumental. Essa homogeneização, que se procura planetária, responde à síndrome da pressa repetindo, eternizando, a mesma cena neurótica, por não ser capaz de parar, considerando normal chegar sempre fora do tempo certo, tarde demais, vivendo a angústia e o trauma permanente da perda da oportunidade certa. Mas este projeto moderno, afirma Marramao, está em crise, e devemos olhá-lo com distanciamento, superando Weber, jáque a racionalidade instrumental é um fenômeno típico do Ocidente, que não surgiu em nenhuma outra cultura, nem mesmo na China. É com este distanciamento que devemos analisar o capitalismo, debruçando sobre outras culturas, humildes na certeza de que têm algo a dizer e que podem nos ensinar a escapar da sociedade contemporânea e aprender a viver no presente, renunciando à idéia de que lá na frente algo bom e definitivo deve acontecer.

Donde, o kairós, o tempo bom, tão caro à escatologiajudaico-cristã, se apresenta como interseção entre a realidade divergente de tempo privado e tempo público. Ou seja, as religiosidades evangélicas por sua virtualidade colocam desafios culturais – éticos e políticos – à laicidade brasileira, isto porque o tempo privado deixou de ser humano e passou a depender de condições e variáveis que incluem desde a situação mundial às situações físicas e psíquicas, plasmando tempos que esmagam pessoas e comunidades.

E vale a pena lembrar ao deixar esta conversa que não estamos diante de uma teoria do colapso do protestantismo histórico, porém daquilo que ainda não foi examinado com suficiente atenção. Donde estamos desafiados à recolocação de diferentes e novas expressões teóricas. E o caráter desorientador que estudiosos e pesquisadores veem nas religiosidades evangélicas não devem se traduzir em demonização, mas buscar compreensões culturais e históricas que nos levem a uma atualização do pensar a religião no Brasil, reconhecendo que não estamos diante de nuvem passageira, mas de realidades que interagem profundamente com os problemas do estar brasileiro hoje.

Bibliografia

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TILLICH, Paul, Teologia da Cultura, São Paulo, Fonte Editorial, 2009.




















[1]Pós-Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (2011) e pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2008), Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (2006), Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (2001) e Graduado em Teologia pela Faculdade Teológica Batista de São Paulo (2001). Atua na área das Ciências da Religião, com especialização nas relações entre religião e política.


[2]É importante notar que o ensino faz parte da ação protestante. E essa ação de ensino potencializa a conversão, que é novo sentido de vida, e deve alcançar todas as pessoas. Assim, a arte do educador está em sua capacidade de transformar o literalismo dos símbolos cristãos em interpretações conceituais sem destruir seu poder simbólico. Mas, nem todos educadores acham que isso seja possível. Outros se recusam a ajudar os alunos no caminho dessa transformação, ou se recusam a transmitir esses símbolos aos jovens enquanto eles não tiverem condições de interpretá-los. Para Tillich, as duas atitudes estão erradas, pois se deixamos de transmitir os símbolos cristãos aos jovens, estes só experimentarão seu poder numa conversão tardia. Paul Tillich, Teologia da Cultura, São Paulo, Fonte Editorial, 2009, pp. 206-207.


[3]Entendemos religiosidade evangélica ou evangelicalismo conforme situado por Mendonça, quando diz que “a vertente vitoriosa do protestantismo, seu lado conservador, cuja extensão vai do evangelicalismo ao fundamentalismo radical, com sua rigorosa racionalidade, negou-se a rever suas posições tradicionais em relação às mudanças e desafios das novas realidades. Mantendo firme seu perfil de Deus e a correspondente configuração do mundo, perdeu sua maneira de agir e, portanto, a ética dinâmica de que foi portadora. Sua ética ascética mundana cedeu lugar a uma ética monástica”. Antonio Gouvêa Mendonça, Protestantes, pentecostais & ecumênicos, o campo religioso e seus personagens, São Bernardo do Campo, Universidade Metodista de São Paulo, 2009, pp. 99.


[4]O ensino e o evangelismo são funções dinâmicas das comunidades protestantes. Tillich explica que “a igreja tem a função de responder à questão implícita na existência humana, isto é, a questão a respeito do sentido da existência. O evangelismo é um dos meios que ela usa para esse fim. O princípio do evangelismo consiste em mostrar às pessoas fora da igreja que os símbolos que ela usa são respostas às questões implícitas em sua existência. Porque se trata de mensagem de salvação e porque significa cura, a mensagem é apropriada à nossa situação”. Paul Tillich, idem, op. cit., p. 91.


[5]Nasceu em Catanzaro, a 18 de outubrode 1946, e é filósofo, professor de Filosofia Política na Universidade de RomaIII, diretor da Fundação Lelio Basso e membro do Colégio Internacional de Filosofia em Paris. Seus estudos se iniciaram com o marxismo e atualmente versam sobre questões políticas, culturais e simbólicas da globalização.


[6]Giacomo Marramao, Poder e secularização, as categorias do tempo, São Paulo, UNESP, 1995.


[7]InSaulo Barbosa, A secularização e seus problemas conceituais. webartigos.com. Acesso 03/10/2015.


[8]Benjamin Arthur Cowan, Nosso Terreno, crise moral, política evangélica e a formação da “Nova Direita” brasileira, VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 30, no 52, pp.101-125, jan/abr 2014.


[9]Henrique Carneiro, O proibicionismo na gênese do evangelicalismo na política: a nova direita. WEB: blogconvergência.org. Acesso 03/10/2015.


[10]Antonio Gouvêa Mendonça, op. cit., pp. 97-98.


[11]Friedrich Nietzsche, Além do Bem e do Mal, São Paulo, Companhia das Letras, 2002, p. 205.


[12]Mark C. Taylor, Awe and Anxiety, Los Angeles, Los Angeles Times, 28.09.2001.


[13]Mark C. Taylor, About Religion: Economies of Faith in Virtual Culture, University of Chicago Press, 1999.


[14]Mark C. Taylor, The Moment of Complexity, Emerging Network Culture, Capítulo 1, “From Grid to Network”, University of Chicago, 2002, pp. 19-46. 


[15]Mark C. Taylor, The Moment of Complexity, op. cit., pp. 19-46.


[16]Mark C. Taylor, The Moment of Complexity, op. cit., pp. 19-46.


[17]Jacques Derrida, Margens da Filosofia, Campinas, Papirus, 1997, p.312.


[18]Mark C. Taylor e Esa Saarinen, Imagologies, Routledge, New York, 1994.


[19]Michael Löwy, À brasileiros, sociólogo Michael Löwy propõe outra alternativa: o ecossocialismo. WEB: Brasileiros. Acesso em 03/10/2015.


[20]Salvador Giner inMarramao, op. cit., p. 13.


[21]John Rawls, A theory of justice, Steven M. Cahn (ed.), 1999.

vendredi 28 septembre 2018

22.09.2018

Um ano depois, precisamente no dia 22 de setembro de 1980 aconteceu uma novidade na minha vida: conheci minha futura esposa. Naquele dia tinha sido ameaçado de morte pelo Comando de Caça aos Comunistas/ CCC. Era um sábado e o Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo realizou um ato de desagravo às pessoas ameaçadas pelo CCC. Depois do ato no sindicato, fui a um baile popular no Clube Paulistano da Glória, no bairro da Liberdade. Aí conheci uma estudante de Administração de Empresas na Fundação Getúlio Vargas, Naira, que vinha de uma reunião do recém criado do Partido dos Trabalhadores. Quatro anos depois eu me casaria com ela.





Começamos os dois, juntos, mas não no mesmo ritmo uma longa caminhada em direção ao cristianismo. Os valores estáveis de Naira e de sua família italiana me agradaram muito. Debrucei-me cautelosamente em direção ao catolicismo. Assisti a algumas missas e até me emocionei diante de alguns sermões, mas senti que não era ali que meus questionamentos seriam respondidos.











Então me voltou à lembrança as conversas com meu pai e as aulas de religião no Colégio Hebreu Brasileiro, no Rio de Janeiro. Comecei a estudar com afinco o misticismo judaico. Já casado com Naira, estudamos juntos um texto que foi fundamental na minha conversão: O Discurso da Servidão Voluntária, escrito no século XVI por Etienne La Boétie, pensador que influenciou o movimento huguenote na França. Estudei, estudei muito. Mas, também, levantei nas madrugadas e rezei em hebraico: Baruch atá Adonai, Elohénu Méleh haolam... Bendito sejas ó Eterno, nosso Deus, rei do universo... 






























dimanche 23 septembre 2018

A sopa de repolho ...

... e o cozinheiro de pratos picantes



Jorge Pinheiro, PhD



Porque as vossas mãos estão contaminadas de sangue, e os vossos dedos, de iniqüidade; os vossos lábios falam mentiras, e a vossa língua profere maldade. Ninguém há que clame pela justiça, ninguém que compareça em juízo pela verdade; confiam no que é nulo e andam falando mentiras; concebem o mal e dão à luz a iniqüidade”. (Isaías 59. 3-4).

Quando falamos de assassinatos por envenenamento nos lembramos imediatamente de uma jovem chamada Lucrecia, que nasceu em Roma em 1480. E que teve por pai o cardeal Rodrigo Borgia, que mais tarde se tornaria o Papa Alexandre VI, e por mãe Vanozza Cattanei. Embora filha ilegítima, Rodrigo a reconheceu, lhe deu seu sobrenome, e a usou nas mais diferentes intrigas palacianas. Mas, ao contrário do que conta a lenda, seus contemporâneos não viam em Lucrecia Borgia nada mais que uma princesa usada por seu pai e por seu irmão Cesare Borgia, Il Valentino, em lutas políticas, por ser bela, culta, amante das artes e mulher caridosa.

Por isso, talvez seja melhor falar de filosofia e teologia. 

Definir prato picante pode variar, conforme a culinária ou o gosto de cada um. Mas uma coisa permanece nesta idéia: é um prato que chama a atenção por condimentos que excitam o paladar e deixam um gosto marcado na boca. Assim, o escritor Airton Ortiz,[1]por exemplo, tem uma receita de churrasco, onde recomenda que coloquemos «no primeiro espeto um pedaço de lingüiça calabresa, a mais picante que encontrar». Segundo ele, «aprendi a comer pratos picantes na Índia, fiquei contaminado e agora não abro mão da pimenta. Asso-a rapidamente, na labareda mesmo. Ela fica torradinha. Para torrar mais rápido, furo a tripa com um palito, para escorrer a água. Servida no início do churrasco, na hora dos aperitivos, serve especialmente para despertar nos meus convidados o gosto pela cerveja. Mesmo os que não são adeptos do álcool partem imediatamente para um copo estupidamente gelado». 

Mas, talvez, um dos pratos picantes mais conhecidos e citados na historiografia da culinária seja a Shchi[2]ou sopa de repolho russa, conforme receita usada e divulgada por Josef Stálin (1929-1953), ex-ditador da União Soviética. A shchipode ser feita com carne ou sem ela, mas é indispensável o chucrute ou o repolho, ou ambos. Uma recomendação fundamental é que deve sentar e curar no mínimo por um ou dois dias, antes de ser comida. Esta receita que fazia parte do cardápio de Stálin, e era, segundo alguns, seu prato preferido, por causa da presença do chucrute e do repolho, é cheia de sabores e texturas e deve ser comida quente, com pumpernickel ou pão de centeio e manteiga. 

É importante dizer que não foi Stálin quem inventou a shchi, pois há evidências de que já era conhecido na Rússia desde antes do ano 988, quando o cristianismo foi aceito. Shchi originariamente significava "comida líquida" e só depois ficou conhecida como "sopa de repolho", quando o legume passou a ser cultivado na região. Foi a sopa favorita de mongóis, de Ivã, o terrível, Nicholas II, de Lênin, de Stalin, e de Mao Zedong.

E Alexandre Dumas gostou tanto da shchique a colocou no seu livro de receitas. E Lewis Carroll a achou bebível, mas um pouco azeda, condizente com o paladar russo. Isso é tão verdadeiro que ainda hoje na Rússia se alguém for chamado de “professor de shchi azedo” significa que é uma fraude, ou seja, incapaz de preparar algo que todo mundo sabe fazer.

Por isso, fugindo ao apodo de “professor de shchi azedo” segue aqui uma versão unânime da sopa de repolho russa. Ingredientes: quatro xícaras de repolho, duas ou três xícaras de chucrute não enlatado. Duas colheres de massa de tomate, doze xícaras de carne de boi, ou, se você não come carne, de legumes variados, em especial cogumelos. Três colheres de sopa de manteiga, uma cenoura descascada e cortada em Julienne, uma xícara e meia de cebola cortada, um talo de aipo bem cortadinho, um nabo grande descascado e também bem cortadinho. E ainda tomates cortados, sal e pimenta. E, por fim, cravo da Índia picado..

Como preparar: comece saturando os cogumelos, depois de lavados e secados e fatiados, em água.

Em uma frigideira grande derreta a manteiga em calor médio, refogue a cenoura, cebolas, aipo, nabos, e cogumelos até tudo ficar ligeiramente marrom (aproximadamente quinze minutos). Numa caçarola, coloque o repolho e o chucrute e refogue durante 15 minutos, mexendo sempre. Depois coloque os ingredientes da frigideira na caçarola, e os temperos. Mexa tudo, cubra e deixe cozinhar em fogo brando por vinte minutos. Por fim, acrescente o alho e cozinhe por mais cinco minutos. 

Deixe então sentar e curar por um ou dois dias. Se for inverno aqueça antes de servir. Se for no verão, como recomenda Edouard Limonov, sirva frio. Com guarnição sirva endro fresco cortado e misturado com nata azeda. Por ser um prato azedo e picante combina com vinho branco, mas os russos, logicamente, preferem acompanhar com vodca. Assim, presente tanto na historiografia da culinária, como na literatura, não seria de estranhar que também se fizesse presente na política russa.

Vladimir Illich Lênin, pai da revolução bolchevique, apelidou Stálin de “o cozinheiro de pratos picantes”.[3]Esse apelido partia do viés culinário de Stálin, mas guardava um outro sentido: a acusação velada de que Stálin envenenava seus desafetos. O apelido foi mais tarde utilizado por Trotsky contra Stálin e acabou se generalizando na Oposição de Esquerda.



Taurus -- filme dirigido por Alexandr Sokurov en 2001. Argumento: Segundo filme da tetralogía dedicada al crepúsculo dos grandes líderes mundiales de séculier vente. Depuis de abordar a figura de Hitler em "Moloch" (1999),


Trotsky acreditava ou ao menos fez questão de publicitar que Stálin tinha envenenado Lênin. Apesar de, durante todo o período stalinista, esta acusação ter ficado marginalizada da historiografia soviética, ela reapareceu com força com o fim da União Soviética. Ela por exemplo está presente em “Touro”, filme do cineasta russo Alexander Sokourov que evoca os últimos dias de Lênin em 1922, depois que sofreu um primeiro derrame. Prematuramente velho, caminha com dificuldade e tem surtos de depressão e delírios. Só Krupskaya, sua mulher, o trata com carinho. Rodeado por guardas e criados, alguns dos quais informantes da polícia política, aqui o retrato de Lênin é o do Minotauro, monstro e vítima, possuidor de poder, mas cada vez mais solitário e isolado.[4]

A cena em que Lênin descobre que o telefone da datcha foi cortado mostra isso. E a visita de Stálin, discutida várias vezes, mas em especial num jantar, onde o prato servido é a shchi, traz à tona o medo de Lênin de ser envenenado pelo novo secretário-geral do Partido. E quando Stálin chega e entra na casa, Sokourov traduz em sombras e meia-luz esta presença maligna do anjo da morte. 

Trotsky décadas antes de Sukourov já havia apresentado sua versão:“Eu imagino que as coisas se passaram quase dessa forma. Lenin pede veneno ao final de fevereiro de 1923. No inverno, o estado de Lenin começou a melhorar lentamente. O uso da voz retornara. Stálin queria o poder. O objetivo estava próximo, mas o perigo emanado de Lênin estava mais próximo ainda. Stálin devia tomar a resolução que lhe era imperativa, de agir sem demora. Se Stálin enviou o veneno a Lênin depois que os médicos tinham deixado entender por meias palavras que ele não tinha mais esperança ou se recorreu a outros meios mais diretos, eu ignoro”. Essa leitura de Trotsky também é a de historiadores contemporâneos, como Domènech,[5]que afirma ter sido Lênin assassinado por Stálin. 

Certamente é difícil dar uma palavra final sobre a morte de Lênin. Em 1991, documentos foram divulgados, entre eles a autópsia de Lênin, assim como as memórias daqueles que acompanharam sua morte. Um trabalho publicado no "European Journal of Neurology"de junho de 2004 sugere que Lênin, aos 54 anos, morreu de neurossífilis.[6]

Os autores, V. Lerner, Y. Finkelstein e E. Witztum, de Israel, com base em cinco anos de pesquisas em arquivos liberados da antiga União Soviética, relatórios de necropsia e livros de memória de antigos médicos, concluíram que Lênin sofreu de sífilis terciária, que no correr dos anos afeta o cérebro. A causa oficial da morte de Lênin foi uma arteriosclerose cerebral, mas apenas oito dos 27 médicos que trataram dele assinaram esse diagnóstico. Os dois médicos pessoais do revolucionário recusaram-se a assinar o atestado de óbito oficial. Segundo os médicos israelenses, a sífilis produziu lesões cerebrais e demência nos dois últimos anos de vida do líder. 

É verdade que a sífilis na época era incurável, mas é interessante que sua mulher Krupskaya viveu até 1939 e nunca apresentou nenhum sintoma da doença. Assim, a sífilis de Lênin pode ser mais uma especulação, principalmente quando nos lembramos que ele sofreu uma tentativa de assassinato em 1918 e que a bala nunca foi removida. Daí, uma outra hipótese, a do envenenamento lento causado pela bala não extraída.

Diante dessa comida que mata, dessa bebida que fulmina, talvez o jeito seja cantar o rock punk do k2o3: [7]

”Veneno que me rouba a vida, veneno, uoohhoo! É o veneno que me está a matar, mesmo que queria não consigo escapar, cruel e fria perseguição, que só acaba com destruição. Veneno que me rouba a vida veneno, uoohhoo!" 






Notas

[1] Airton Ortiz, O churrasco de um gaúcho viajante, Água na boca. Web:
www.missd.com.br.
[2] Shchi, Russian cabbage soup. Web:www.soupsong.com/bfaves.
[3] León Trotsky, O cozinheiro de pratos picantes, citado por Ludo Martens, O testamento de Lênin, Centro de Mídia Independente.
[4] Alexei Jankowski, Lénine en fauteuil roulant Taurus, film russe d’Alexandre Soukourov. Les Archives (do jornal) l´Humanité, L´Humanité.
[5] Antoni Doménech, El eclipse de la fraternidad, Una revisión republicana de la tradición socialista, Barcelona, Ed. Crítica, 2004. Vide: Entrevista político-filosófica de Antoni Domènech, Salvador López Arnal. Web: 
www.nodo50.org/redrentabasica/descargas/Entrevista_TD_def.pdf.
[6] Julio Abramczyk, Estudo especula sobre morte de Lênin, Folha de S. Paulo, 01/08/2004.
[7] «Veneno» da banda de punk rock k2o3, formada em 1994. Seu álbum de estréia foi lançado em 1996, pela El Tatu. O segundo álbum recebeu o título de “Grita!”. O grupo não existe mais. 





dimanche 16 septembre 2018

vou seduzir a minha amada

num domingo de janeiro preparei está leitura de manhã a partir daquilo que chamei lições de amor. foi um pensar na gratidão ao eterno, um jeito de dizer a ele que o amo. e pensando, me remeti a um filme, uma lição de amor, que conta a história de um pai com deficiência mental e uma filha, de sete anos, que começa a ultrapassá-lo intelectualmente. no filme, uma assistente social quer levar a menina para um orfanato, alegando que o pai não tem condições de criar a filha. foi nesse momento que me deparei com dois textos, o dos cânticos, e outro, também belíssimo, de um profeta mal compreendido e meio abandonado, oseias.

minha leitura da eternidade como um delírio, não faz o efeito que o materialismo esperava. na verdade, me leva a uma outra leitura: faço uma ponte entre as lições de amor da eternidade e a minha paixão por ela. e foi assim que surgiu esse pensar, num discurso sobre as minhas provas da existência da eternidade, que divido em três: o “noturno opus 9, no. 2” de chopin, a roda e a raiz quadrada de menos 1. talvez, você esteja achando que estou louco, o que pode não ser mentira, mas se tiver curiosidade e paciência, vai entender o caminho que trilhei. e esse caminho, que vai na contramão do que o materialismo diz, nos ajuda a entender porque estamos enamorados pelos temas centrais da fé cristã, criação, alienação e essencialização da vida. enfim, as lições de amor e essas minhas provas da existência da eternidade se correlacionaram e levam a uma teoria da existência.

eternidade e amor estão entrelaçados, e vejo isso quando sou obrigado a pensar uma teoria da existência. e, metodologicamente, a primeira coisa que devo me perguntar é se uma coisa existe ou não existe. e isso significa trabalhar com variáveis: uma coisa existe; uma coisa não existe; uma coisa não existe, mas já existiu, deixou de existir e não existe mais, porém poderia existir.

devo pensar também, e essa questão é um pouco mais complexa, que a existência existe. e ainda que eu diga que existência é espaço/tempo, como não temos espaço apenas, ou tempo apenas, a existência existe. não dá para dizer que a existência não existe, ela é realidade no cosmo, produz diferença no mundo. caso não existisse a existência, então, nada existiria.

mas, outra questão deve ser colocada: se posso falar numa teoria da existência, preciso entender que posso apreendê-la enquanto atos de conhecimento. e ato de conhecimento é uma ação consciente sobre algo que existe ou uma realidade. por isso, os atos de conhecimento nos remetem a pessoas que são conscientes e podem conhecer a existência através de seus processos e modos.

as pessoas são tocadas pelo amor. nada sensibiliza mais o ser humano do que o amor, como dissemos acima. e, por isso, o amor e a morte se nos apresentam como estados definitivos. caso você já tenha estado apaixonado ou apaixonada sabe como é.

e oseias contou que o eterno disse: “vou seduzir a minha amada e levá-la de novo para o deserto, onde lhe falarei do meu amor. ali, eu devolverei a ela as suas plantações de uvas e transformarei o vale da desgraça em porta de esperança. então ela falará comigo como fazia no tempo em que era moça, quando saiu do egito. mais uma vez ela me chamará de “meu marido”, em vez de me chamar “meu senhor”, meu baal. nunca mais deixarei que ela diga o nome baal, nunca mais ela falará desse deus. sou eu o senhor quem está falando. naquele dia, farei a favor dela uma aliança com os animais selvagens, com as aves, com as cobras, para que não ataquem a minha amada. quebrarei as armas de guerra, os arcos e as espadas. não haverá mais guerra e o meu povo viverá em paz e segurança. israel, eu casarei com você, e para sempre você será minha legítima esposa. eu tratarei você com amor e carinho, e serei um marido fiel. então, você se dedicará a mim, o senhor. naquele dia, serei  o eterno que atende: atenderei o pedido dos céus, os céus atenderão o pedido da terra, dando-lhe chuvas. e a terra responderá produzindo trigo, uvas e azeitonas. assim, eu atenderei as orações do meu povo da terra da estrela. plantarei o meu povo na terra prometida para que eles sejam a minha própria plantação. e eu amarei aquela que se chama não-amada, e para aquele que se chama não-meu-povo eu direi: “você é meu povo” e ele responderá: “tu és o meu eterno”.

agora, vamos descontrair o texto de oseias e relacioná-lo com a teoria da existência. deslumbrar e fascinar são desafios da existência e isso está expresso do texto de oseias, quando o eterno diz: “vou seduzir a minha amada e levá-la de novo para o deserto, onde lhe falarei do meu amor”. a travessia do deserto, quando os hebreus fugiram do egito, foi um tempo de intimidade com a eternidade, uma porta de esperança, diferente do vale da desgraça, onde o soldado acã foi condenado à morte por traição.

assim, nessa correlação entre eternidade e amor, podemos discutir a existência a partir dos noturnos de frederico francisco chopin. esses noturnos eram cantos livres, que traduziam as experiências pessoais de chopin e expressavam sua espiritualidade. diria que os noturnos desse músico são o deserto do profeta oséias, espaço/tempo de intimidade com a eternidade.

particularmente, sou apaixonado pelo noturno opus 9 no. 2, que tem a propriedade de ser uma obra de criação e pertença de um humano sensível. é peculiar, diria inédita e exclusiva. e ao dizer essas coisas, afirmo não apenas que existe, mas sou obrigado a falar de sua natureza, de sua essência. ou seja, saber que o noturno opus 9 no. 2 de chopin existe, significa dizer que não existem outros noturnos opus 9 no. 2. só existe esse.

baal e îche são outros dois desafios da existência. e as lições de amor nos trazem de volta a oseias, quando o eterno diz: “ela me chamará de meu marido”. e isaías conta que o eterno disse: “não temas, porque não serás envergonhada; não te envergonhes, porque não sofrerás humilhação; pois te esquecerás da vergonha da tua mocidade e não mais te lembrarás do opróbrio da tua viuvez. porque o teu criador é o teu marido; o senhor dos exércitos é o seu nome; e o santo da terra da estrela é o teu redentor; ele é chamado o eterno de toda a terra”.

e mais uma vez a correlação entre amor e eternidade me remeteu a outro processo da existência, que vou analisar a partir de uma das mais simples máquinas que construímos: a roda. todos conhecemos as suas aplicações e sabemos que crescem a cada dia: vão do uso nos transportes à utilização nas mais diferentes máquinas mecânicas. mas é simples: caracteriza-se pelo movimento de rotação em seu interior. em mecânica diz-se que o seu fato mais importante é determinado pela a transmissão de força, velocidade e distância, que se dá pela relação entre o diâmetro da borda da roda e o diâmetro do eixo.

ora, a roda nos remete ao trocadilho que oseias fez com a palavra baal, que era o deus da fertilidade dos cananeus, mas cuja palavra significava também senhor e marido. oseias não quer que sua amada o chame de baal, mas de îche, homem, que por extensão poderia significar também marido e herói.

esse exemplo, o da roda, nos ajuda a entender a questão da existência, que não é uma propriedade que pertence, mas é o pertencimento a uma propriedade. pense na roda, no conceito roda e em todas que existem ou podem existir. a existência da roda consiste em participar de relações de predicados. assim, a existência da roda significa que pertence a propriedades ou é parte de propriedades. nesse sentido, a existência é sempre participação na relação de predicados. como baal ou îche.

celebrar a imagem que transcende é o desafio fundador da existência. “e para sempre você será minha legítima esposa”, disse o eterno sobre sua amada. oseias utiliza esse recurso para falar de uma aliança que transcende os predicados definidos pela existência.

ou como o eterno disse ao profeta jeremias: “quando esse tempo chegar, farei com o povo da estrela esta aliança: eu porei a minha lei na mente deles e no coração deles a escreverei; eu serei o eterno deles, e eles serão o meu povo. sou eu, o senhor, quem está falando. ninguém vai precisar ensinar o seu patrício nem o seu parente, dizendo: “procure conhecer a eterno, o senhor.” porque todos me conhecerão, tanto as pessoas mais importantes como as mais humildes. pois eu perdoarei os seus pecados e nunca mais lembrarei das suas maldades. eu, o senhor, estou falando”.

aqui entra o meu terceiro exemplo dessa correlação entre eternidade e amor e os desafios de uma teoria da existência: a raiz quadrada de menos 1 (√-1). como vimos, as coisas que existem tem suas propriedades. quando alguma coisa não tem   condições de ter existência comprovada ou não tem pertença/predicados, ela fica fora das leis fundamentais da lógica e da existência dos atos de conhecimento. por isso, em matemática falamos em unidade imaginária i, enquanto solução da equação quadrática: x2+1=0, da qual decorre x2=−1.

ou, dessa séria questão existencial x=√-1, onde a unidade imaginária é i=√-1. dentro da lógica matemática não posso dizer que este número exista, ele é imaginário porque é um recurso da minha imaginação, pois não há número real cujo quadrado seja negativo. é isso é um fato. imagina-se, então, que haja números especiais, dotados de propriedades que satisfaçam essa exigência da imaginação. e assim a matemática criou uma classe de números: os imaginários, que não são reais.

e, agora, voltemos ao filme. o que os amigos do pai deficiente mental entendiam, e a assistente social não, era que havia entre o pai e a filha uma aliança maior, que transcendia em muito suas deficiências intelectuais, uma aliança de amor.

dessa maneira, nessa correlação tresloucada entre eternidade e amor digo que uma teoria da existência parte de três fundamentos: a diferença entre existir e não existir, e que essa diferença não é um atributo, não é uma propriedade; a existência não faz parte da essência de cada coisa, mas cada coisa, todas as coisas mostram diferenças entre natureza e existência; a mente transcende, produz representações que agregam conhecimento e constroem sentido para a existência. é o que o materialismo não entende, já que é carência, e que, por isso, no esfacelar-se do caminhar devemos deixar que a própria eternidade testemunhe amor e paciência.

assim, na correlação eternidade/amor, a existência deslumbra e fascina; é baal e îche; transcende e cria a imagem que alucina. e como adara disse: e a que não via? fiquei com medo. sei que o chefe de vocês é diferente, que acredita no que faz e no que diz e pretende fazer com que o país volte às normas da legalidade absoluta, com a supressão do arbítrio e dos sonhos. e eu fiquei com medo. chovia. era difícil andar. eu por causa da velhice e ela porque tropeçava nas raízes. o mergulho, era isso que eu tinha na cabeça. nem mais, nem menos. paramos ao lado de uma poça. o longe roncava como fera. não sabia se o futuro começava ou se o passado cochilava. devagar, segurei sua cabeça e enfiei na lama. ela deixou. seu corpo se contorceu um pouco, com arrancos. meu medo foi passando. levantei seu rosto. éramos iguais os dois, mortos, com máscaras de lama.

segui sozinho, sentindo uma paz esquisita. acho que é a mesma paz que sentia o velho castelo depois da chuva de estrelas. não sei. sinceramente, valorosos guerreiros, não sei mais nada. o seu nome... não me lembro bem, mas parece que era dores. é, só poderia ser dores.

e assim, conta adara, o corpo que eu consegui a duras penas, e que me deu tantos prazeres, foi fuzilado numa tarde de setembro. e como você pode ver, esse limite infernal só apareceu para bagunçar o coreto. com o fim da guerra e sem corpo em que me agarrar, resolvi mudar de ares. cheguei aqui como ave de arribação, sem eira, nem beira, agarrado num mestre de artes marciais, mas logo encontrei quem eu procurava.

uai! que sonho estranho. é isso que dá brigar com brianda. sinto uma culpa danada e depois fico sonhando essas loucuras. e é tão fora de propósito que não dá para contar para ninguém. e para quem haveria de contar? estamos em pleno voo. eu disse que gosto dos portenhos, quero ver uns tangos, bailar. é nenhum exílio nos impede de curtir tangos.

jeudi 13 septembre 2018

Lições do Espírito

LIÇÕES DO ESPÍRITO
A Teologia nossa de cada dia
Jorge PINHEIRO


A paz que excede a razão 

O amor de Deus foi revelado em Jesus através dos seus ensinos e das suas obras, da sua morte na cruz. Quando crescemos na graça e no conhecimento do nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo (2Pe 3.18), nos revestimos do caráter dele e nos parecemos mais com ele. O caráter de Jesus se revela em nós através das virtudes que dão o tom da nossa comunhão com os irmãos na comunidade de fé.

Nossa comunhão com as pessoas, na comunidade de fé, se faz através da misericórdia, que é um relacionamento afetivo e cuidadoso com irmãos e pessoas machucadas e abatidas que chegam à igreja. “Quando Jesus viu a multidão, ficou com muita pena daquela genteporque eles estavam aflitos e abandonados, como ovelhas sem pastor” (Mateus 9.36; 4.14).

Bondade: prontos para fazer o bem sem olhar a quem. “Mas Deus nos mostrou o quanto nos ama: Cristo morreu por nós quando ainda vivíamos no pecado” (Romanos 5.8).

Humildade: atitude submissa e prestativa. “Porque até o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida para salvar muita gente” (Marcos 10.45).

Mansidão: relação sem coerção para mudança das pessoas. “Sejam meus seguidores e aprendam comigo porque sou bondoso e tenho um coração humilde; e vocês encontrarão descanso” (Mateus11.29). “O servo do Senhor não deve andar brigando, mas deve tratar todos com educação. Deve ser um mestre bom e paciente, que corrige com delicadeza aqueles que são contra ele. Pois pode ser que Deus dê a eles a oportunidade de se arrependerem e de virem a conhecer a verdade” (2 Tm2.24-25).

Longanimidade: boa vontade, ser tolerante diante da fraqueza das pessoas. “Meus irmãos, se alguém for apanhado em alguma falta, vocês que são espirituais devem ajudar essa pessoa a se corrigir. Mas façam isso com humildade e tenham cuidado para que vocês não sejam tentados também. Ajudem uns aos outros e assim vocês estarão obedecendo à lei de Cristo” (Gálatas 6.1-2).

Perdão: perdoamos como somos perdoados por Deus. O perdão foi a única petição da oração do “Pai Nosso” que mereceu um comentário de Jesus. “Perdoa as nossas ofensas como também nós perdoamos as pessoas que nos ofenderam (...) Porque, se vocês perdoarem as pessoas queofenderem vocês, o Pai de vocês, que está no céu, também perdoará vocês. Mas, se não perdoaremessas pessoas, o Pai de vocês também não perdoará as ofensas de vocês” (Mateus 6.12 e 14-15).

Paz: como resultado da prática do amor, do perdão e da bondade, a comunidade de fé mostra ao mundo que a reconciliação e a paz podem ser alcançadas em Cristo. As decisões feitas em justiça e amor constroem a paz que excede a compreensão humana, mesmo nas situações de conflito. “Essa esperança não nos deixa decepcionados, pois Deus derramou o seu amor no nosso coração, pormeio do Espírito Santo” (Rm 5.5).

Deus vive a comunhão na Trindade, comunhão do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Nós, criados à imagem e semelhança da Trindade, somos chamados a viver a experiência cristã como comunidade de fé. Podemos usufruir, como iguais que somos, as bênçãos dessa comunidade nas celebrações de nossa Igreja. Assim, somos convocados a conviver no corpo de Cristo que alcança o mundo, na comunidade de fé da nossa igreja local.

A lei do Espírito da vida

"Portanto, não existe mais condenação para aqueles que estão em Cristo Jesus. A Lei do Espírito da vida em Cristo Jesus te libertou da lei do pecado e da morte. De fato -- coisa impossível à Lei, porque enfraquecida pela carne -- Deus, enviando o seu próprio Filho numa carne semelhante à do pecado e em vista do pecado, condenou o pecado na carne, a fim de que o preceito da Lei se cumprisse em nós que não vivemos segundo a carne, mas segundo o espírito. Com efeito, os que vivem segundo a carne desejam as coisas da carne, e os que vivem segundo o Espírito, as coisas que são do Espírito".
Romanos 8:1-5

Tecnicamente, temos aqui dois blocos de textos: um maior, que é o capítulo 8 inteiro, cuja temática é a da vida cristã sob a lei do Espírito; e um bloco menor, que vai do versículo 1 ao 11, e que trata especificamente da vida emancipada por esta lei do Espírito.

O texto em análise está dentro desses dois blocos, que nos dão a linha de pensamento do autor: uma seqüência de análises sobre a vida emancipada (vs.1-11); a vida exaltada (12-17); a vida esperançosa (18-30); e a vida exultante (31-39). Dessa maneira, "neste capítulo, o apóstolo traça o curso da vida cristã, na qual a graça triunfa sobre a lei, e os crentes experimentam livramento do pecado".1

A epístola de Paulo, como um todo, enfoca três blocos temáticos: do capítulo 1 ao 8, fala da justificação pela fé; do capítulo 9 ao 11, discute a exclusão temporal dos judeus e a inclusão dos gentios ao povo de Deus; e do capítulo 12 ao 16, exortações práticas.

Ao analisar a justificação, mostra que a salvação do homem repousa fundamentalmente sobre a fé, proveniente da graça de Cristo e não na lei de Moisés. Essa misericórdia de Deus não depende da lei, porque o homem, em sua natureza pecaminosa, não tem como responder efetivamente às exigências da lei, que expressa a santidade de Deus. Assim, a graça provem de Cristo, que no seu amor e sacrifício, perdoa os pecados dos homens. A liberdade da vida cristã, liberdade diante da lei, não depende do próprio homem, nem do que ele possa fazer, mas daquilo que Cristo já fez por ele.

Há uma outra epístola de Paulo, que também trata dessa relação lei e graça, que é a carta escrita aos Gálatas, onde o capítulo correlato a Romanos 8 é Gálatas 5. Ali, o apóstolo escreve sobre a justificação pela fé, falando da liberdade cristã.

Sem dúvida, a análise de Paulo parte de elementos vetero-testamentários, que descreve no capítulo 4 de Romanos, ao explicar que a promessa feita a Abraão teve por base a fé, já que ainda era incircunciso e não tinha a lei, enquanto formalização apresentada a Moisés.

A passagem analisada encaixa-se perfeitamente não somente na linha geral de pensamento do autor, mas dentro do ensinamento bíblico como um todo. 

Não há nenhuma condenação

O texto que estamos analisando está inserido numa epístola, forma literária específica, amplamente utilizada pelos apóstolos e pela igreja primitiva. No capítulo que segue, analisaremos com mais detalhes esta forma literária, inserindo-a no contexto histórico de gregos e romanos durante o primeiro século da era cristã.

A epístola aos Romanos é uma carta de difícil compreensão. Isto porque Paulo tinha o costume de escrever intercalando um pensamento central com várias digressões, tornando complexa a conexão das idéias expostas. Outra dificuldade é o próprio tema, já que o apóstolo estava tratando de um assunto eletrizante para a época, mas hoje aceito pela totalidade cristã: os gentios podem ou não tornarem-se cristãos sem serem prosélitos dos judeus? 

Em Romanos 8:1-5, encontramos cinco verbos fundamentais para a compreensão do que o autor está expondo. São eles: 

(1) o oposto ao estado de escravidão, receber alforria, não estar sujeito a uma obrigação, livrar, libertar. "Te libertou", variantes: "me libertou", "nos libertou". É um aoristo passado, isto significa que a ação foi plenamente realizada, mas segue vigente no presente. 
(2) penalidade imposta por condenação judicial, servidão penal, condenar. Também é um aoristo passado. 
(3) encho, aterro, encho a ponto de transbordar, dou plenitude, cumpro.2 
(4) ando, vivo, dirijo minha vida. 
(5) penso, ter a mente controlada por, ter como hábito de pensamento, inclinar-se.

Desses verbos, dois são antônimos (receber alforria versus condenado judicialmente) e levam à oposição que o autor quer mostrar entre a lei do Espírito da vida e a lei do pecado e da morte. Assim, ao regime do pecado, Paulo opõe o novo regime do Espírito (cf. 3:27+), e diz que em nós transborda o espírito da lei. Esse preceito da lei (que pode ser traduzido como "o que é justo/o que é bom na lei"), cujo cumprimento só é possível pela união com Cristo através da fé, tem sua tradução no mandamento do amor (cf. 13:10, Gl 5:14 e Mt 22:40). Isto porque, não vivemos segundo a carne, mas andamos no Espírito, ou seja, temos a mente controlada pelo Espírito.

É interessante notar que a palavra lei aparece 70 vezes no texto de Romanos e sempre tem uma das três conotações: (a) revelação de Deus e de sua santidade, (b) foi dada para esclarecer o que é pecado, e (c) existe para orientar a vida daquele que crê.

Da mesma maneira, a palavra carne é sempre utilizada em Romanos com um dos quatro sentidos: 

(a) natureza humana fraca (6:19), 
(b) natureza velha do cristão (7:18), 
(c) natureza humana de Cristo (8:3), 
(d) e natureza humana não regenerada (8:8).

O capítulo 8 de Romanos nos apresenta a operação do Espírito Santo, entendida nos versículos 4, 5, 6 e 10, como aquele que comunica a vida. No versículo 2, como aquele que dá liberdade. E no versículo 26, como aquele que intercede pelos crentes junto ao Pai.

É interessante notar que o texto original de Romanos 8, em grego, começa com dois advérbios intercalados por uma partícula ilativa, que poderíamos traduzir assim: "Atualmente, por isso, nada em absoluto..." pode condenar aqueles que estão em Cristo Jesus 

Essa partícula ilativa, que é um conectivo, nos remets ao capítulo 7, onde o Paulo mostra que lei e pecado não são sinônimos. E que há uma grande diferença entre a natureza da lei e a natureza humana. Entre o que é Espírito e o que é carnal. O corpo, com os membros que o compõem (7:24) interessa a Paulo enquanto instrumento da vida moral. Submetido à tirania da carne (7:5), ao pecado e à morte (6:12+; 7:23), Paulo clama: quem me livrará? E dá "graças a Deus, por Jesus Cristo, nosso Senhor" (7:25). É a partir desse clímax, que o apóstolo dá sequência ao texto, informando que "por isso", "hoje", "nada em absoluto" pode condenar os que estão em Jesus Cristo.











Les promesses de la prière



Les promesses de la prière


Dans II Chroniques 7:14, nous trouvons le récit de la consécration du Temple de Jérusalem. Après les cérémonies, Dieu est apparu à Salomon et a parlé de son attitude envers les gens quand il l'a demandé dans la prière.

"Alors si mon peuple, qui m'appartient seul, se repent, abandonne ses péchés et prie ..."

Ce texte nous montre la promesse de Dieu concernant sa réponse aux prières. Cette promesse est conditionnée à certaines attitudes à prendre par les personnes qui se reconnaissent comme lui appartenant. Examinons certaines de ces attitudes:

1. La repentance - Dieu veut que son peuple soit son seul, il est donc nécessaire que chaque membre du peuple perçoive sa situation devant Dieu et s'humilie, reconnaissant ses erreurs. La repentance est l'enseignement central de notre Dieu à son peuple, tant dans le judaïsme que dans le christianisme. Il ne faut pas le confondre avec le remords, car cela produit un retour de culpabilité, ne permettant pas de l'expier. Se repentir, c'est réagir de manière saine à la culpabilité, confesser l'erreur et expérimenter la restauration assurée par la grâce de Dieu.

2. La conversion - La repentance doit être authentifiée par la conversion, l'acte de prendre une direction contraire à celle qui a suivi. Avoir votre prière entendue par Dieu est nécessaire pour suivre votre direction, vous rapprocher de lui. De cette façon, chaque personne doit analyser sa vie et se convertir.

3. La prière - Aussi étrange que cela puisse paraître, la troisième façon de répondre à vos prières est de chercher Dieu dans la prière. C'est parce que les gens pensent souvent qu'il suffit de demander, en oubliant ce que c'est de prier. Prier, c'est parler à Dieu, être intime avec lui et répondre à ses ordres.

À ces attitudes, Dieu répond avec son amour exprimé dans une attention particulière, le pardon et la prospérité.
















mercredi 12 septembre 2018

Um novo tempo com a família, 5779

Um novo tempo
Curta a natureza com sua família


Os relatos bíblicos descrevem a criação do céu e da terra, obra do Eterno, através da indicação “e o Espírito de Deus se movia por cima da água” (Gn 1.2). Isto quer dizer que o Espírito divino é Pessoa criadora e presença de Deus, tendo sido a criação uma realidade formatada por Ele. E é o mesmo Espírito quem clama pela liberdade redentora da criação escravizada. 

Um dia o próprio Universo ficará livre do poder destruidor que o mantém escravo e tomará parte na gloriosa liberdade dos filhos de Deus. Pois sabemos que até agora o Universo todo geme e sofre como uma mulher que está em trabalho de parto” (Rm 8.21-22).

O Espírito é o poder atuante do Criador e a força de vida das criaturas. O Espírito é a fonte da vida. Por isso, tudo o que existe e vive manifesta a presença dele. Ele transforma a comunhão com o Pai e o Filho na comunhão da criação, na qual todas as criaturas, cada qual a seu modo, se comunicam com o Eterno. A existência, a vida e os relacionamentos estão firmados no Espírito, “pois nele vivemos, nos movemos e existimos” (At 17.28). 

A partir da comunhão trinitária, o ser humano faz parte da criação e é dependente dela. Vive dentro de um contexto de interdependência com a criação. Desde o início, estamos ligados ao solo, à água e ao ar. O Eterno nos coloca junto e com a natureza para trabalhar essa mesma natureza (Gn 2.15). Não haveria falta (2.8-9) se soubermos administrar. Dependemos do solo e dele recebemos o nosso sustento. Pertencemos a este mundo criado e é ele que fornece a base para nossa existência. A vida começa e se orienta sob o cuidado de Deus. 

Ó Senhor, tu tens feito tantas coisas e foi com sabedoria que as fizeste. A terra está cheia das tuas criaturas” (Sl 104.24).

Todos esses animais dependem de ti, esperando que lhes dês alimento no tempo certo. Tu dás a comida, e eles comem e ficam satisfeitos. Quando escondes o rosto, ficam com medo; se cortas a respiração que lhes dás, eles morrem e voltam ao pó de onde saíram. Porém, quando lhes dás o sopro de vida, eles nascem; e assim dás vida nova à terra” (Sl 104.27-30). 

Hoje, pensamos que o mundo é um objeto para nossa exploração, em vez de sujeito para a glorificação de Deus. Em grande parte, ignoramos as necessidades das outras formas de vida. Essa atitude utilitarista de ver e agir é pecado, é uma falta de respeito para com o Espírito de Deus.

Tire um tempo com a família. Aproveite e passeie por praias e parques. Será um novo tempo de descanso, lazer e comunhão. Aprendemos a amar a criação de Deus usufruindo dela com sabedoria. Sentados juntos, em família, num piquenique gostoso, é tempo de ler os dois primeiros capítulos de Gênesis e juntos agradecer ao Eterno por seu cuidado. Assim, estaremos, também, construindo um novo tempo na família. Rosh ha-shaná 5779!

Jorge Pinheiro. 





vendredi 7 septembre 2018

A amizade em vôo de pássaro


Dizem-me: esse gênero de amor não é viável. Mas como avaliar a viabilidade? Por que o que é viável é um Bem? Por que durar é melhor que inflamar?” [1]

Mais curioso que a pergunta -- o que é a filosofia? -- é a relação que os filósofos fazem da juventude com a ingenuidade e a imaturidade. Afirmam que na juventude filosofavam sem saber o que faziam, que não possuíam a fúria da velhice que tenta nominar os conceitos. Agora velhos quando se perguntam o que é a filosofia, apenas colocam de forma clara, simbólica, o que sempre fizeram. E, assim, a resposta é: filosofia é a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos. 



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A origem grega da palavra filósofo pode ser traduzida como amigo da sabedoria. Mas seria mesmo uma amizade? 

Francisco Ortega é um dos pensadores contemporâneos que ressalta a importância da amizade como objeto de reflexão filosófica.[2]Incluindo-se nas correntes de pensamento que reivindicam para a filosofia a descentralização do sujeito e a tarefa de criar uma nova política da imaginação, Ortega projeta a amizade no contexto de uma nova ordem subjetiva, além da metáfora familiar aonde estes temas são reconhecidos e despolitizados. Politizar a amizade, para Ortega, é uma tarefa a ser assumida pela filosofia, no sentido proposto por Foucault, com "o deslocamento e a transformação das molduras do pensamento, a modificação dos valores estabelecidos e todo o trabalho que se faz para pensar de uma maneira diferente, para fazer outra coisa, para tornar-se outro do que se é".

Analisando o conceito de amigo, percebemos que a amizade possibilita uma relação íntima do ser humano com os conceitos, e que a condição para o exercício do pensamento é que tanto humano quanto conceito sejam vitais um para o outro. Mas, quando uma relação se torna condição para a existência de duas pessoas, chamamos estas não de amigas mas de amantes. Eis a questão: amigos ou amantes? 

Ora, o amor é esta tendência de um se unir com o outro, possuí-lo de modo contínuo, ou formar um todo com ele ("amor a Deus"). Em Platão é aspiração ao belo e ao bom, ao absoluto. Platão, em O Banquete,afirma que o amor é a principal motivação da filosofia, descobrindo assim o lugar central deste conceito. Mas convém distinguir o amor egoísta, possessivo, que persegue o outro como um objeto a ser devorado ("o amante ama o amado como o lobo ama o cordeiro", escreve Platão) e o amor que liberta do sofrimento e do desejo e conduz a alma ao banquete divino. O amor verdadeiro só pode ser satisfeito pela contemplação, para além do belo, do verdadeiro e do bem. 

Uma amizade pode ser o final de um grande amor, mas nunca o início. As amizades transformadas em amor, sempre foram amor. E partindo dessa premissa poderíamos dizer o que é a filosofia. 

Da reunião dessas duas idéias, amigo e amante, podemos inferir uma multiplicidade de conceitos. Podemos dizer que o filósofo é ele próprio conceito em potência e, a partir daí, que a filosofia deixa de ser apenas arte de fabricar conceitos, passando a ser a disciplina que consiste em criar conceitos. Mas quando falamos em criar conceitos estamos falando em definir idéias. Assim, definir um conceito é manifestar a sua compreensão. Deste modo, definir é delimitar as fronteiras. Geralmente a definição faz-se pelo gênero próximo e pela diferença específica.

Os conceitos não nos esperam feitos, como corpos celestes. Não há céu para os conceitos. Eles devem ser criados, e não seriam nada sem a assinatura daqueles que os criam. Nietzsche determinou a tarefa da filosofia quando escreveu: “os filósofos não devem mais contentar-se em aceitar os conceitos que lhes são dados, para somente limpá-los e fazê-los reluzir, mas é necessário que eles comecem por fabricá-los, criá-los, afirmá-los, persuadindo os homens a utilizá-los”. 

Agora, já podemos tentar abordar, partindo do outro extremo, o que a filosofia não é. Não é contemplação, “pois as contemplações são as coisas elas mesmas enquanto vistas na criação de seus próprios conceitos”. Não é reflexão, “posto que ninguém precisa de filosofia para refletir sobre o que quer que seja, isto é, artistas, por exemplo podem pensar sua arte sem que sejam filósofos, já que a reflexão pertence à própria criação individual, respectiva”. Não trabalha opiniões, pois nunca visa o “consenso”, mas sim o “conceito”. O primeiro princípio da filosofia deve ser que os universais não explicam nada, eles próprios devem ser explicados. 

Conhecer-se a si mesmo, fazer como se nada fosse evidente, espantar-se: estas determinações e outras compõem a filosofia. Mas não há garantias na manutenção dos conceitos criados, que podem ser revistos, fazendo com que a “exclusividade da criação de conceitos assegure à filosofia uma função, mas não lhe dê nenhuma proeminência, nenhum privilégio, pois há outras maneiras de pensar e criar, outros modos de ideação”. 

Utilizando estes argumentos e retomando às denominações propostas do amigo e amante, a filosofia segue seu caminho de provação. Nesta via caminha despojando-se dos limites impostos pela obrigação dos benefícios sociais, que não são sua finalidade, mas um de seus usos finais. 

A filosofia, encarnada na pele do filósofo, faz com que ele se delineie como um pretendente ao conhecimento, que no jogo da sedução se fantasie de amigo para obter sua conquista e assim tornar-se amante. Em sua fase apaixonada, intensa, criativa, o filósofo acaba por tornar-se um rival de seus próprios conceitos através da insaciabilidade por recriá-los. Por fim vem a maturidade e as criações da velhice, frutos de uma profunda amizade. [3]

Fontes

Aristóteles. Ética a Nicômaco. In: Os Pensadores IV. Aristóteles. Porto Alegre, Editora Abril, 1973. 
Bornheim GA. Os filósofos Pré-socráticos. São Paulo, Editora Cultrix, 1970. 
Colli G. O Nascimento da Filosofia. 2a edição. Campinas, Editora da Unicamp, 1992. 
Luce JV. Curso de Filosofia Grega. Do Século VI a. C. ao Século III d. C., Rio de Janeiro, J. Zahar Ed., 1994. 
Mossé C. A Grécia Arcaica de Homero a Ésquilo. Lisboa editora, 1980. 
Os Pensadores I: Os Pré-socráticos. São Paulo, Abril cultural, 1973. 
Vernant JP. Mito & Pensamento entre os Gregos. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990. 
________, As Origens do Pensamento Grego. 9a edição. RJ, Bertrand Brasil, 1996


[1] Roland Barthes, Fragmentos de um discurso amoroso, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1981, p. 17.
[2] Francisco Ortega,Para uma política da amizade, Arendt, Derrida, Foucault, Rio de Janeiro,Relume-Dumará, 2000.
[3] Gilles Deleuze, Felix Guattari, O que é a filosofia?, Rio de Janeiro, Ed. 34, 1992. pp.9-21.