lundi 16 septembre 2024
A Reforma Protestante, uma leitura na contra-corrente
samedi 14 septembre 2024
Agenda para mudar o Brasil
vendredi 13 septembre 2024
O sermão do monte
O sermão do monte
Pr. Jorge Pinheiro
Mateus 5.3
Bem-aventurados/ felizes os pobres de espírito/ humildes de coração/ no respirar ! Sim, o reino dos céus é deles!
Normalmente, pensamos que o Sermão do Monte se restringe às bem-aventuranças, mas estas são a introdução desta Carta Magna das boas-novas de Jesus, o Messias.
Quando falamos em Sermão do Monte, nossa atenção volta para esses três capítulos (5, 6 e 7) das boas novas apresentações do evangelista Mateus. Pensamos nas bem-aventuranças apresentadas neste discurso de Jesus, achando que propõe o caminho para a felicidade. Mas não é bem assim: se nos lembrarmos que Jesus fez o discurso em aramaico, convidamos ir ao hebraico e à cultura da época, para entender melhor o que ele disse.
Dentro da cultura judaica, Jesus descreve aqui uma pessoa que anda no caminho que leva ao Reino dos céus. Por isso, ele repete várias vezes ashréi , no hebraico -- caminhante --, e Mateus utiliza a expressão makarios , no grego, que nós traduzimos por bendito, feliz, bem-aventurado. Expressão que entre os gregos antigos era utilizada em referência aos deuses. E posteriormente aos humanos que andavam no caminho dos deuses.
Assim, este discurso é sobre a caminhada daquilo que é fiel a Deus. São lições para nossa caminhada. Para todos os dias de nossas vidas. E nesta caminhada entram as leis do amor, inclusive aos inimigos. E também o Pai Nosso, oração que nos ensina como nos dirigimos ao Criador.
Mas há algo aqui que chama a atenção: Jesus se coloca como o novo Moisés ao comentar a lei entregue pelo profeta fundador da religião de Israel. Comenta a lei e apresenta novas leituras que devem orientar aqueles que caminham na estrada que leva ao Reino dos céus.
Há um fascínio no Sermão do Monte. Agostinho (354-430) , bispo de Hipona, que os católicos chamam de Santo Agostinho, viu este Sermão como um resumo do evangelho. E Jacques-Bénigne Bossuet (1627-1704), um dos maiores pregadores franceses, posteriormente o Sermão do Monte o primeiro e mais poderoso discurso de Jesus.
Quando lemos o Sermão do Monte sem um tempo para reflexão e oração, ele parece intrigante. E mais do que isso, parece radical, pois como podemos aceitar o conselho para amar os inimigos, para não julgar, para sermos perfeitos como o Pai Celeste, para entrar pela porta estreita que leva à vida. Ou ainda, como não ficar perplexo diante de hipérboles, quando Jesus diz para dar a outra face quando recebe uma tapa, ou cortar a mão direita e jogá-la fora, ou ainda não se preocupar com o dia de amanhã ?
Quando porém nos debruçamos sobre o Sermão do Monte com vagar e oração, descobrimos tesouros inesperados, porque esta Carta Magna do Reino dos céus deve ser vivida em todos os momentos e em todas as situações culturais e sociais de nossas vidas. Ao falar no monte, Jesus disse que cada pessoa possuidora das qualidades descritas são humildes de espírito e limpas de coração, mansas e misericordiosas, choram, têm fome e sede de justiça, são pacificadoras, sofrem injúria e perseguições por amor à justiça e por amor ao Mestre. Assim, caminhando nesta estrada que leva ao Reino dos céus, o cristão é makários, abençoado, feliz.
É muito importante entender que Jesus não estava apresentando uma teoria para a felicidade humana. Como Moisés, apresentou um modelo de comportamente para a construção real do caráter do fiel, que produz bençãos imediatas e futuras.
Assim, como dissemos, Jesus se apresenta como legislador, um novo Moisés, superior, promulgando uma nova lei, a lei do amor, que nasce do Espírito. Jesus não somente condena o arcaísmo da legislação ritual, mas deixa claro que uma nova aliança está nascendo. Assim, estamos diante de um novo povo. Esse israelita espiritual terá um caráter novo, diferente em essência dos padrões do mundo.
Comentando as bem-aventuranças, Agostinho, o bispo de Hipona, viu na exposição de Jesus uma graduação, como se estivéssemos subindo uma escada. O primeiro degrau é a humildade, a submissão à autoridade divina, e o segundo degrau, a mansidão. Esses dois primeiros degraus colocam o discípulo, em espírito de piedade, diante do conhecimento de Deus. É então que, a partir daí, descobre os laços "com que os hábitos da carne e os pecados sujeitam a este mundo". Assim, para Agostinho, os terceiro, quarto e quinto degraus estão relacionados à luta contra o presente século e seus ditames. Já o sexto degrau leva o crente, vitorioso anteriormente, a contemplar o "bem supremo, que somente pode ser visto por uma inteligência pura e serena". O sétimo degrau é a sabedoria, que nasce da contemplação da verdade, que pacifica o cristão e imprime nele a semelhança com Deus. E o último degrau volta ao primeiro, pois ambos nomeiam o Reino dos Céus, a perfeição.
Embora a visão agostiniana seja excessivamente alegórica para nossa leitura reformada, ela faz chegar até nós a compreensão dos pais da igreja sobre o Sermão do Monte.
Do que vimos até aqui, fica claro que o Sermão do Monte fala de qualidades, características dos discípulos de Cristo. E o texto de Galátas 5:22 e 23 sintetiza a mesma preocupação.
Mas o fruto do Espírito é: amor, gozo, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fé, mansidão, temperança. Contra estas coisas não há lei.
Fala do fruto de uma árvore saudável. E descreve apenas um fruto, porque a idéia aqui é a de uma corrente, que só existe através de elos entrelaçados. Se apenas um elo for frágil, toda a corrente será frágil.
Essas nove virtudes, podem ser catalogadas, em:
(1) Hábitos mentais - amor, alegria, paz -, que inspiram o discípulo ao amor a Deus e às pessoas, geram profundo regozijo de coração, que nenhuma obra da carne pode produzir, e criam um sentido de harmonia no que se refere a Deus e à pessoas.
(2) Qualidades sociais - longanimidade, benignidade, bondade -, que nos levam a paciência, diante de injúrias e perseguições, nos dão uma disposição bondosa em relação ao próximo e nos dirigem à beneficência ativa.
(3) Princípios gerais de conduta - fidelidade, mansidão, domínio próprio -, que traduzem posturas de comportamento, ou seja, ser dignos de confiança, não defender com unhas e dentes os próprios interesses e ter sob controle desejos e paixões.
Voltando ao Sermão do Monte, encontramos em Mateus 5.20, que se a nossa justiça não for além a dos escribas e fariseus, não entraremos no Reino dos céus.
Esta declaração, que é uma ordem para todos os discípulos, une numa corrente de ouro, os dois textos estudados. E por que Jesus apresenta os escribas e fariseus como maus exemplos?
Os escribas e fariseus viviam uma religiosidade formal, de aparência, sem transformação real de vida, sem conversão. Nesse sentido, o cristão deve exceder esse padrão, ir além, mudar em essência, ter um coração de carne.
Segundo John Stott (1921-2011), teólogo e evangelista inglês, a grandeza do Reino não é apenas avaliada pela justiça que se conforma à lei, porque a entrada no Reino torna-se impossível se não houver um comportamento que vá além da própria lei.
Aliás, o apóstolo Paulo em Gálatas 5:23 é radicalmente claro, ao dizer que contra as virtudes expressas no fruto do Espírito não existe lei. Os escribas e fariseus diziam que a lei tinha 248 mandamentos e 365 proibições, e concordavam que era impossível cumprir tudo. Como então exceder os rabinos? Simplesmente porque não estamos limitados à lei de Moisés, mas à lei do Espírito. A justiça do cristão excede porque é uma justiça que nasce do coração regenerado, é interna e tem como fonte o Espírito de Deus que habita em nós. É fruto do Espírito.
Assim, podemos dizer que o caráter do cristão, expresso em no Sermão do Monte e em Gálatas 5:22 e 23, traduz a própria vida do discípulo a partir de seu novo nascimento. E, Jesus nos ensinou que ninguém entrará no Reino dos céus se não nascer do Espírito.
O objetivo desta Carta Magna das boas-novas da salvação é falar às mentes e ao coração; marcar o caminho e alertar para o beco sem saída quando o cristão opta por entrar pela porta larga da ética do mundo. E, assim, nesta Carta Magna somos desafiados pela Palavra de Jesus no Monte. E quando a recebemos e a vivemos com fé, somos transformados neste caminhar de nossas vidas em direção ao Reino dos céus.
Nem tudo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus. Muitos me dirão naquele dia: Senhor, Senhor, não nos profetizamos em teu nome? e em teu nome não expulsamos demônios? e em seu nome não fizemos muitas maravilhas?E então eles direi abertamente: Nunca vos conheci; apartai-vos de mim, vós que praticais a iniqüidade. (Mateus 7:21-23)
A condição para sermos aceitos por Jesus é a veracidade daquilo que se professa. Viver o que se prega. Nesse sentido, o que caracteriza o discípulo não é a exterioridade de suas ações, por mais poderosas, expressivas ou miraculosas, mas a obediência que traduz uma vida moralmente fecunda e genuína.
Vejamos algo importante, o significado da santificação no Antigo Testamento, no Novo Testamento e o desenvolvimento desse conceito.
Apesar do mandamento ter sido expresso claramente em Levítico 19:2, Santos sereis, porque eu, o Senhor vosso Deus, sou santo , o kadish (a santificação) era, e é para os judeus, cerimonial. O kadish se dá em certos momentos da vida, em celebrações e rituais. Assim, no cabalat sabat (entrada do sábado) se faz santificação no culto familiar, na alimentação kosher (pura), nas ferramentas utilizadas pelos sacerdotes, antigamente no templo, hoje nas sinagogas.
A santificação cristã parte de outra perspectiva: somos definidos por Deus como santos. Devemos então viver aquilo que já somos: separados por Deus para servi-lo, glorificá-lo, espelhá-lo diante do mundo. Somos santos e devemos santificar toda a realidade circundante com nossa vida santificada e em crescente santificação. Esse novo conceito é explicado claramente em I Pedro, capítulo 1.13-25, mas a segunda parte do versículo 15, nos dá a chave do pensamento cristão sobre a santificação: tornai-vos santos também vós mesmos em todo vosso procedimento .
Assim, podemos dizer que o Sermão da Montanha constitui um todo que tem como objetivo nos santificar no correr de nossa caminhada em direção ao Reino dos céus. E assim, maravilhados como os ouvintes de Jesus, no Monte, em Mateus 7.29-29, lemos:
E aconteceu que, concluindo o discurso de Jesus, uma multidão se admirou da sua doutrina, porque ensinou com autoridade e não como os escribas .
Eis o desafio colocado por Jesus, somos chamados a caminhar e viver como cristãos!
jeudi 12 septembre 2024
Ciências da Religião para o mundo de hoje -- primeira parte
Jorge Pinheiro
Ciências da Religião
para o mundo de hoje
Índice
1. Religião e exclusivismo cristão
Uma proposta para o diálogo
2. Religião e política
Aproximações e assimetrias entre Gramsci e Tillich
3. Religião e gênero
Para compreender relações
4. Religião e afrobrasilidade
Exclusão, criatividade e transcendência
5. Religião e cidade
Mitos da religiosidade evangélica brasileira
6. Religião e espiritualidade
Os desafios à igreja evangélica brasileira
7. Religião e pós-modernidade
Mark C. Taylor, um referencial necessário
8. Religião e prazer
Adélia Prado e Georges Bataille num diálogo pertinente
9. Religião e governo militar
Um estudo de caso
10. Religião e existencialismo cristão
O punhal de Abrãao e Soren Kiekergaard
Religião e exclusivismo cristão
Uma proposta para o diálogo
Como encarar o debate religioso? Devemos nos fechar em definições doutrinárias e declarar que todo diálogo interreligioso leva ao sincretismo e dissolve nossas crenças e fé? É possível o diálogo, reconhecendo diferenças e mantendo cada qual sua identidade religiosa? Para pensar essas questões, vamos fazer uma releitura do texto de José Maria da Silva. A identidade no mundo das religiões, análise desde um olhar localizado [Revista de Estudos da Religião, 2001, no. 4, pp. 14-26].
Mas antes vejamos alguns pressupostos metodológicos que podem nos ajudar a nortear o estudo da questão da identidade religiosa versus desafio do diálogo inter-religioso.
A ciência, e em especial a lingüística, trabalha com o conceito de paradigma. Um paradigma é um modelo, um padrão, um protótipo. É um conjunto de unidades suscetíveis de pesquisa baseada em realizações científicas passadas, que aparecem num mesmo contexto e que são comutáveis e mutuamente exclusivas. No paradigma, as unidades têm, pelo menos, um traço em comum -- forma, valor ou ambos -- que as relaciona, possibilitando conjuntos abertos ou fechados, segundo a natureza das unidades. No primeiro caso, quando essas unidades são formais, temos um paradigma que possibilita a tradução da realidade e, no segundo caso, quando são unidades de valor, temos um paradigma que sistematiza o conhecimento.
Mas há um outro dado importante: em cada época, há paradigmas dominantes, ou seja, aqueles a partir dos quais as pesquisas se realizam, comprometidas com determinadas regras e padrões.
Mas, nenhum paradigma é eterno. Ele pode ser quebrado. Nesse sentido, há quebra do paradigma quando uma visão que transforma a compreensão da realidade, dá a ela nova forma e dimensão, determinando uma releitura da verdade.
Segundo Thomas Kuhn [As estrutura das revoluções científicas, São Paulo, Perspectiva, 1976, p. 38], “para ser aceita como paradigma, uma teoria deve parecer melhor que suas competidoras, mas não precisa (e de fato isso nunca acontece) explicar todos os fatos com os quais pode ser confrontada”. A quebra de paradigma, em última instância, significa mudança da imaginação científica e não um dado a mais numa estrutura de idéias já existente.
No campo da religião cristã são três os paradigmas geralmente considerados: (1) exclusivismo ou visão eclesiocêntrica; (2) inclusivismo ou visão cristocêntrica; (3) pluralismo ou visão teocêntrica.
O catolicismo romano tem um axioma, formatado por Orígenes, Cipriano e Agostinho – “extra eclesiam nulla salus” -- e retomado pelo Concílio de Florença (1442), que caracteriza esse exclusivismo eclesiocêntrico. Ao dizer, “fora da igreja não há salvação”, o catolicismo romano está afirmando a fé católica é privativa, restrita e incompatível com qualquer outra fé, mesmo cristã. E isto é assim por direito divino entregue à essa igreja, que por assim dizer não tem concorrentes em qualquer outra expressão religiosa.
No campo cristão protestante, tal espírito ou sistema de exclusão é traduzido na idéia de que “fora do cristianismo não existe salvação”, conforme expõe John Hick [A metáfora do Deus encarnado, Petrópolis, Vozes, 2000, pp. 13-14].
Geralmente, o exclusivismo eclesiocêntrico, quer católico, quer protestante, parte de uma interpretação tautológica da revelação, que se baseia no literalismo mítico. Mas, se parte daí, leva também à demonização da diferença, que aparece sempre como heresia ou doutrina sem fundamento e que, por isso, não merece crédito ou atenção. Assim, o que é diferente é sempre execrado, maldito, anátema.
O paradigma que se coloca no outro extremo é o do pluralismo teocêntrico, que parte da revolução copernicana, segundo a qual a realidade não é um todo orgânico, mas é composta de uma pluralidade de entidades independentes, quer materiais, quer espirituais. Ou seja, assim como os planetas giram ao redor do sol, todas as expressões religiosas estão voltadas para Deus.
Este paradigma dissolve a identidade religiosa, negando a qualidade daquilo que é particular a toda expressão religiosa, daquilo que a faz idêntica a ela própria. Ao diluir e até mesmo negar esse conjunto dos caracteres próprios à determinada religião, leva à conclusão de que todas são iguais, ou cumprem iguais funções, já que todas giram ao redor de Deus.
Mas ao apoiar-se na revolução copernicana, o pluralismo teocêntrico traz para o campo das religiões um problema que não existe em outros campos científicos. Aqui, a afirmação de que todas as religiões são iguais não pode ser constatada pelo exame dos fatos. Ou melhor, a única solução possível seria analisar a fé em cada uma delas. Mas ainda esta solução não seria tão empírica como parece, pois a fé religiosa, por ser exclusiva, só é aceita por aqueles que comungam dela.
A opção, como propõe teólogos como Hick, é a verificação escatológica, pois “até que a última curva não seja dobrada, nada se saberá de maneira definitiva”, conforme agrega José Maria da Silva [A identidade do mundo das religiões, análise desde um olhar localizado, artigo citado, p. 18]. Ou seja, para sabermos se a base paradigmática do pluralismo procede, quer dizer, que todas as religiões são iguais, temos que esperar o fim do mundo.
Mas há um terceiro caminho, diferente do paradigma do exclusivismo eclesiocêntrico e diferente do paradigma do pluralismo teocêntrico. É esse paradigma é o inclusivismo cristocêntrico, que vê as religiões naturais como dado da revelação, ou seja, da universalidade salvífica do sacrifício de Cristo na cruz. Nesse sentido, todas elas, estão dentro do axioma apresentado por Paulo em Romanos 2.14-15: “Os não-judeus não têm a lei. Mas, quando fazem pela sua própria vontade o que a lei manda, eles são a sua própria lei, embora não tenham a lei. Eles mostram, pela sua maneira de agir, que têm a lei escrita no seu coração. A própria consciência deles mostra que isso é verdade, e os seus pensamentos, que às vezes os acusam e às vezes os defendem, também mostram isso”.
Nesse sentido, quando falamos de inclusivismo cristocêntrico, estamos falando da abrangência e envolvimento dos tempos da salvação na vida humana em particular e na vida da humanidade. Isto porque a salvação tem um tempo pretérito, conforme explica Paulo em II Tm 1.8-9: “Deus nos salvou e nos chamou para sermos o seu povo. Não foi por causa do que temos feito, mas porque este era o seu plano e por causa da sua graça. Ele nos deu essa graça por meio de Cristo Jesus, antes da criação do mundo”.
Assim, os alvos errados dos seres humanos que sentiram a dor e tiveram consciência de sua miserabilidade, ou seja, que se arrependeram, foram perdoados através do sacrifício da cruz, conforme explica Paulo: “Deus ofereceu Cristo como sacrifício para que, pela sua morte na cruz, Cristo se tornasse o meio de as pessoas receberem o perdão dos seus pecados, pela fé nele. Deus quis mostrar com isso que ele é justo. No passado ele foi paciente e não castigou as pessoas por causa dos seus pecados; mas agora, pelo sacrifício de Cristo, Deus mostra que é justo. Assim ele é justo e aceita os que crêem em Jesus”.
Uma experiência pessoal
Faz algum tempo, fui convidado para falar num convento de freiras de uma ordem italiana, em João Pessoa. Apresentei um seminário sobre o protestantismo brasileiro e suas diferentes correntes. Foi um dia muito agradável, espiritualmente gratificante, ao lado de minhas irmãs católicas.
Mas uma coisa me chamou a atenção. Duas noviças fizeram questão de relatar suas experiências pessoais. As duas vinham de famílias evangélicas, uma da Assembléia de Deus e outra da Igreja Batista.
Depois de contarem suas histórias e das dificuldades que enfrentaram em suas casas ao informar que entrariam para um convento, elas me perguntaram:
-- O que podemos fazer para melhorar nossos relacionamentos com nossas famílias?
Conto esta história para entrar num assunto que ainda é pouco analisado pela mídia. A intensa mobilidade religiosa que nosso País tem vivido nos últimos 20 anos.
Milhões de pessoas tem deixado suas religiões de origem, migrando para outras. E isso acontece em todos os sentidos: são evangélicos que se tornam católicos. São católicos que se tornam evangélicos. Mas são também evangélicos que se tornam espítitas ou mesmo umbandistas. Tal mobilidade acontece também entre judeus e até mesmo entre muçulmanos, embora nesses dois casos os números sejam bem menos expressivos.
Este fato, a mobilidade religiosa, tem levado milhares de pessoas a uma nova realidade, a da formação de casais com religiões diferentes. É o que hoje chamamos de democracia religiosa no casamento.
E ao contrário do que era de se esperar, que isso dividisse ou levasse ao divórcio, a realidade tem mostrado que o Brasil está construindo uma sólida democracia religiosa a partir dos lares que internamente professam crenças diferentes.
Nesses estudos pretendo analisar aspectos da cultura e sociedade brasileiras em suas correlações com a religião sem perder a perspectiva de uma brasilidade que cada vez mais se mostra democrática e aberta para diferentes crenças. Aliás, esta é, sem dúvida, uma coisa que nós brasileiros podemos ensinar ao mundo: a tolerância e o amor diante do diferente.
O diálogo interreligioso visa abrir a discussão entre os cristãos e entre cristãos e não cristãos. É um movimento que não objetiva proferir uma palavra de unificação para grupos cristãos e não cristãos, mas objetivar um trabalho que hoje deve estar voltado para a dignificação do excluído no Brasil
Dentro desse espírito, a primeira entidade criada no Brasil foi a Coordenadoria Ecumênica de Serviços (CESE) no ano de 1973. Teve como objetivo promover a justiça social sem discriminação de qualquer tipo, inclusive religiosa. Apoiaram a CESE, as confissões Metodista, Brasil para Cristo, Episcopal Anglicana, Presbiteriana Unida, Católica Romana, Evangélica de Confissão Luterana e Siriana Ortodoxa.
Em 1982, seguindo preocupação semelhante, mas procurando estabelecer um diálogo mais teológico, foi criado o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC) uma associação de “igrejas fraternas que confessam o Senhor Jesus Cristo como Senhor e Salvador, segundo as escrituras...”.
O estatuto do CONIC declarava que "o amor de Deus, a confissão de fé comum e o compromisso com a missão impulsionam as igrejas membros a uma comunhão mais profunda e a um testemunho comum do Evangelho no Brasil, no exercício do amor e do serviço ao povo. Respeitadas as diferenças eclesiológicas, as igrejas membros se conhecem convocadas por Cristo à unidade de Sua Igreja, na certeza da atuação do mesmo Cristo e de Seu espírito nelas e através delas".
Internacionalmente, uma das entidades mais expressivas do diálogo inter-religioso é o Conselho Mundial de Igrejas (CMI). No Brasil, estão filiadas ao CMI, a Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, a Igreja Presbiteriana Unida, a Igreja Reformada na América Latina, a Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil e a Igreja Metodista do Brasil.
Outras entidades, em nosso país, buscam o diálogo inter-religioso, como o Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI) fundado em 1974, que tem como objetivo analisar a conjuntura brasileira, fundamentando-se na reflexão teológica.
A Associação dos Seminários Teológicos Evangélicos (ASTE), fundada em 1961, procura apoiar a formação de pastores e ministros de forma contextualizada, buscando diminuir a dependência das teologias estrangeiras. Temos ainda o Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (CEBI) e outros centros e associações em caráter regional e nacional que buscam trabalhar a questão pastoral, racismo, juventude, união de mulheres, comunicação etc.
Numa perspectiva prática, existem comissões bilaterais de diálogo. Em São Paulo a Arquidiocese Católica criou em 1977 a Comissão de Diálogo Inter-religioso (CEDRA).
A aproximação entre igrejas protestantes, ao nível de cooperação em atividades sócio-políticas, tem implicado em cooperação interconfessional de igrejas e pastores, que se unem para patrocinar conferências nacionais e internacionais.
O diálogo inter-religioso no Brasil tem particularidades, por conta da exclusividade da maioria das igrejas protestantes históricas e por conta das dificuldades encontradas quando se trata do relacionamento com a Igreja Católica Romana, especialmente nas categorias mais baixas do presbitério brasileiro, agravando-se mais ainda quando se chega ao laicato.
Diante desta realidade o diálogo inter-religioso no Brasil constitui um desafio para os cristãos. Porém não podemos deixar de considerar que a igreja cristã no Brasil nunca falou e agiu tanto em termos de busca do diálogo, quanto se faz no momento.
Pão, terra e justiça social
Acreditamos que o diálogo inter-religioso no Brasil deve partir da defesa da vida de deserdados e excluídos, por isso propomos, como ação conjunta dos cristãos, a defesa de uma ética da responsabilidade social, que denuncie a exclusão e se mobilize pela transformação das estruturas sociais e políticas da sociedade brasileira que geram exclusão social.
Nossa análise parte de uma visão reformada e acreditamos que assim fazendo oferecemos ao conjunto dos cristãos brasileiros uma perspectiva que enriquece a discussão no que se refere a proposição de ações conjuntas para a transformação solidária de nosso país.
Em 1974, quatro mil delegados, representando o cristianismo reformado de quase todos os países do mundo, reuniram-se na cidade de Lausanne, na Suíça, no Congresso Internacional de Evangelização Mundial. Desse conclave resultou uma série de documentos sobre a evangelização do mundo no final de século, assim como de temas intrinsecamente ligados a ela.
O congresso desmembrou-se, anos mais tarde, em reuniões regionais, que analisaram e desenvolveram temas não definidos no chamado Pacto de Lausanne. Para o cristianismo reformado a reunião de Lausanne tem um significado normativo e prático, já que a partir de definições teológicas abrangentes chegou-se a propostas objetivas para a evangelização do mundo.
Passados um quarto de século da reunião de Lausanne, consideramos que suas preocupações continuam vigentes como reflexão para a práxis cristã neste início de século. Assim, partindo de documentos elaborados em Lausanne e nas consultas regionais posteriores, fizemos uma releitura dessas reflexões visando elaborar um chamado à ética cristã da responsabilidade social no Brasil.
Partimos então da atual realidade brasileira, numa rápida e abrangente análise de conjuntura, detectando as três grandes calamidades sociais que nosso país enfrenta: miséria e desemprego, estrutura agrária opressora e injustiça social generalizada.
Sem dúvida, estamos apenas arranhando problemas que necessitam um pensar mais profundo e uma práxis transformadora permanente. Mas, achamos por bem começar...
Diante de pobres e miseráveis
Mais de um bilhão de pessoas em todo o mundo vive abaixo do nível de pobreza. Ou seja, fora do mercado de consumo, sem nenhuma forma de rendimento, desamparadas, sem as condições básicas para sobreviver [Sete Milhões de Desempregados, Luís Indriunas, revista Debate e Desenvolvimento, Ano Um, Número 1, maio de 1996, pp.5 e 6]. E todos os dias milhares delas morrem de fome. Cerca de um quarto dos brasileiros, ou seja, 40 milhões de compatriotas estão nestas condições.
É importante aqui separar dois fenômenos: um é que existem aqueles que não participam do mercado de consumo e que nunca tiveram um emprego na vida, fato verificável principalmente nas áreas rurais dos terceiro e quarto mundos; o outro, é o desemprego, que se refere à perda do trabalho para aqueles que participavam do mercado de consumo. Em todo o mundo, segundo dados do Fórum Econômico de Davos, na Suíça, 800 milhões de pessoas estão nessas condições. O aumento da produtividade, o avanço tecnológico e a globalização da economia são algumas das principais causas da redução do emprego no mundo. O Brasil, além de enfrentar esse problema, precisa criar cerca de três milhões de empregos por ano. [Idem, reportagem citada, p.5].
O Brasil hoje tem uma população ativa de 70 milhões de pessoas. Deste total, mais de 10%, ou seja, 7 milhões de trabalhadores estão desempregados. Entre outubro de 1995 e março deste ano, o desemprego cresceu nas principais regiões metropolitanas do país, conforme dados do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Sócio-Econômicos/Dieese.
Cerca de 3,5 milhões de crianças trabalham hoje no Brasil. Os filhos e filhas da exclusão e da miséria são obrigados a pegar desde cedo no batente. Os que sobreviverem à guerra pelo pão-nosso-de-cada-dia engordarão amanhã a fila infindável dos analfabetos, desnutridos, enfermos..., dos não cidadãos. [Filhos da Exclusão, João Hipper, revista Sem Fronteiras, no 238, março de 1996, pp.13-18].
O Brasil já ratificou a Convenção 138 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que determina que a idade mínima para se entrar no mercado de trabalho é de 15 anos. Mas infelizmente tal legislação não é cumprida nas zonas rurais e até mesmo em determinadas áreas urbanas do país.
Onde falta trabalho, falta comida
O crescimento do desemprego nos grandes centros urbanos, principalmente no triângulo da produção brasileira, região dinamizadora do parque industrial do país, formado pelos estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, está intimamente ligado à abertura indiscriminada às importações, e à inibição de investimentos em setores estratégicos, como bens de capital, máquinas, equipamentos e energia.
Acrescente-se a esta situação uma política cambial kamicase aliada a altos juros, que, conforme alerta Otávio Canuto, do Departamento de Economia da Unicamp, permite importar mais do que devíamos e exportar menos do que poderíamos, e temos como conclusão uma política neoliberal que esgota rapidamente as potencialidades do país.
Logicamente, tal situação produz concentração de poder e renda, pauperizando a classe média e produzindo um nivelamento social por baixo. É verdade que a corrupção oficial é uma das alavancas desse processo. Como exemplo de corrupção oficializada pelo governo lembramos que em novembro de 1995, o governo federal criou através da Medida Provisória 1179, o Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional / Proer, o que permitiu a injeção de 12 bilhões de dólares nos bancos Nacional, Bamerindus, Econômico, Caixa Econômica Federal e do Brasil. [De Olho no Porquinho, revista Veja, no 1418, 15 de novembro de 1995, pp. 32-37].
Enquanto isso, as obrigações sociais do governo, como educação e saúde, para citar apenas duas, são lançadas às calendas. Basta dizer que dos 30 milhões de crianças e adolescentes entre sete e 14 anos, cinco milhões estão fora das escolas, e 30 milhões de brasileiros não dispõem de nenhum tipo de assistência médica.
Mas se esta é a realidade dos grandes centros produtivos e das médias e pequenas cidades brasileiras, não podemos nos esquecer de outra chaga social: a lastimável situação do campo brasileiro. Apenas 1% dos proprietários de terras no Brasil detém o domínio sobre 44% dos 371 milhões de hectares de terras disponíveis para atividades agrícolas.
Desse total de terras agriculturáveis, só 3% estão divididos entre os 3,1 milhões de pequenos produtores rurais. Agora, mais uma informação chocante: 48% de toda a terra disponível para a agricultura, ou seja, 178 milhões de hectares, não são usadas para plantar, mas como pasto para gado. E do que sobra, 131 milhões de hectares recebem a designação técnica de “terras ociosas”, nelas nada se planta. [No palco da PA 150, a segunda morte de Zumbi, Moura Reis, Debate e Desenvolvimento, Ano Um, No. 1, maio 1996, p. 11]. Onde há miseráveis e desempregados, há fome.
Um desafio ético para os cristãos brasileiros
Como disse o teólogo Howard Snyder, não somos os primeiros cristãos a viver os tempos apocalípticos [Tive Fome, Um Desafio a Servir a Deus no Mundo, vários autores, Série Lausanne, ABU Editora, São Paulo, 1986, in Prefácio, p.5]. A igreja primitiva viveu tempos terríveis. Mas agora, no início do terceiro milênio da história cristã, somos mais uma vez desafiados. E tendemos a oscilar entre dois perigos: perder a esperança e cruzar os braços ou acreditar num clímax iminente da história humana. Em ambos os casos, caímos numa cilada, que é virar às costas para a realidade social de milhões de pessoas.
É impressionante notar, conforme dados da Global Report (revista da Word Evangelical Fellowship) de julho/agosto de 1981, que o Brasil é um dos três maiores países em população protestante em todo o mundo. E se somamos a este número a população católica, muito possivelmente o segundo maior país cristão do mundo. O que pode ter um significado estratégico para a causa da justiça social não somente em nosso país, mas em todo o continente. Mas para que isso aconteça é necessário uma compreensão da ética cristã em relação próximo.
Apocalipticismo ou acomodação, eis os dois inimigos que ameaçam o evangelho de Cristo no Brasil. O primeiro deixa o amor ao próximo para depois, e o segundo está tão desesperançado que nem o próximo consegue enxergar. Por isso, precisamos desenvolver uma ética que norteie o diálogo inter-religioso, mostrando às confissões no Brasil que não existe cristianismo sem compromisso social.
Evangelização e responsabilidade social devem andar juntas. Na história do cristianismo reformado isso aconteceu no grande despertamento na América do Norte, no movimento pietista na Alemanha e no reavivamento na Inglaterra, durante o século 18. Essas atividades geraram o surgimento de sociedades missionárias e fortes mobilizações pela abolição da escravatura e por melhores condições de trabalho nas fábricas.
Uma responsabilidade cristã
A base dessa responsabilidade social cristã parte de nossa compreensão de Deus. Ele é o Deus da justiça, é o Deus da misericórdia. Há quase três mil anos, o salmista cantava: “Ele mantém para sempre a verdade, fazendo justiça aos oprimidos, dando pão aos famintos; Iaveh liberta os prisioneiros, Iaveh endireita os curvados, Iaveh protege o estrangeiro, sustenta o órfão e a viúva; Iaveh ama os justos, mas transtorna o caminho dos ímpios” (Salmo 146. 6-9).
Os cristãos em comunidade formam a igreja, e ela é o corpo de Cristo na terra. É através da comunidade cristã que se dá o exercício terreno da graça de Deus. As oito frases de solidariedade dos versículos 7 a 9 do salmo citado são para Jesus padrão da justiça divina, conforme explica em Mateus 25:31-46. E lidas a partir do discurso de Tiago contra a riqueza corrupta e opressora (Tiago 5:1-5), transformam-se na carta magna da responsabilidade ética e social do cristão.
A seguir transcrevemos o parágrafo cinco do Pacto de Lausanne 1974 (Congresso Internacional de Evangelização Mundial), sobre Responsabilidade Social Cristã.
Afirmamos que Deus é o Criador de todos os homens. Portanto, devemos partilhar o seu interesse pela justiça e pela reconciliação em toda a sociedade humana, e pela libertação dos homens de toda forma de opressão. Sendo o ser humano feito à imagem de Deus, toda pessoa, sem distinção de raça, religião, cor, cultura, classe social, sexo ou idade, possui uma dignidade intrínseca em razão da qual deve ser respeitada e servida, e não explorada. Aqui também nos arrependemos de nossa negligência e de termos, às vezes, considerado a evangelização e a ação social mutuamente incompatíveis. Embora a reconciliação do homem com o homem não seja reconciliação com Deus, nem ação social evangelização, nem a libertação política salvação, afirmamos que a evangelização e o envolvimento sócio-político são ambos partes do nosso dever cristão. Ambos são necessárias expressões de nossas doutrinas acerca de Deus e do homem, do nosso amor para com o próximo e da nossa obediência a Jesus Cristo. A mensagem da salvação implica também uma mensagem de juízo sobre toda forma de alienação, de opressão e de discriminação, e não devemos ter medo de denunciar o mal e a injustiça onde quer que existam. Quando alguém recebe a Cristo, nasce de novo no seu reino e, conseqüentemente, deve buscar não somente manifestar como também divulgar a sua justiça em meio a um mundo ímpio. A salvação que alegamos possuir deve transformar a totalidade de nossas responsabilidades pessoais e sociais. A fé sem obras é morta. [Evangelização e Responsabilidade Social, op. cit., p.16].
Definida a necessidade de uma ética da responsabilidade social cristã, somos levados a estudar a viabilidade da práxis dessa atividade sociopolítica. Partindo de nossa experiência histórica podemos ver que ela se divide em dois grandes grupos: serviço social e ação social.
Por serviço social entendemos uma política para reparar situações: socorro do ser humano em suas necessidades básicas e imediatas, atividades filantrópicas, obras de caridade.
Já a ação social nos leva a procurar eliminar as causas dessas necessidades humanas, e traduz-se em atividades políticas e econômicas, buscando a transformação das estruturas da sociedade e a construção da justiça.
Logicamente, serviço e ação sociais não são excludentes. Ao contrário, são complementares. Afinal, ao lado de uma estratégia política para acabar com a miséria numa região de São Paulo, tenho que ter táticas imediatas para evitar que pessoas moram de fome, hoje. Ninguém pode esperar, sem comer, por uma política cujos frutos levam tempo para serem colhidos.
É preciso, no entanto, esclarecer que mesmo o serviço social pode ser desenvolvido sem um caráter paternalista. A formação de agências de assistência social pode e deve ter base na própria comunidade, de forma que as pessoas aprendam não somente a se ajudarem do ponto de vista econômico, mas em todo o espectro da dignidade humana. Por isso, devem ter como meta a capacitação de todos aqueles que buscam o auxílio dessas agências, fugindo do reforço à dependência e à subserviência.
Já a ação social cristã não está apenas preocupada com as pessoas, mas com as estruturas de determinada sociedade. Procura a justiça social. Assim, não está preocupada com a reabilitação dos presos (que é tarefa do serviço social), mas com a reforma do sistema penitenciário. Não está preocupada com as melhorias dos salários e condições de trabalho (que é uma atividade de serviço social ao nível do sindicato e da fábrica), mas com a transformação do sistema econômico e político, sejam eles quais forem.
Neste campo há um desafio natural, necessário, para a prática do diálogo interreligioso no Brasil.
É importante ficar claro que nossa responsabilidade social deve levar em conta dois princípios: a justiça e a paz. Nos opomos de forma ativa à miséria e à injustiça social, mas nossa atuação deve sempre se basear na obediência ativa, que segundo Lourenço Stélio Rega [Avaliação Ética do Jeito Brasileiro. Capítulo: Como viver no Brasil e ser cristão ao mesmo tempo. Parte 3: A ética individual deve levar à ética social. FTBSP, São Paulo, 1992], é um sinônimo para desobediência civil, sempre e quando tiver por base direitos de uma comunidade.
Essa ação política foi defendida e utilizada por homens como Henry David Thoreau (1817-1862), John Ruskin (1819-1900), León Tolstói (1828-1910), Mahatma Gandhi (1869-1948) e pelo pastor batista Martin Luther King Jr. (1929-1968). Uma característica da obediência ativa ou desobediência civil é realizar sua oposição de uma maneira digna, afastando seus defensores da violência, através da ação não violenta.
Está claro que toda decisão a favor da justiça exige não somente uma decisiva postura cristã, mas coragem. Falando do momento presente, a comissão que redigiu o documento de Grand Rapids sobre responsabilidade social, dirigida por John Stott, declarou: Há ocasiões em que a igreja precisa tomar posição firme, em relação a um princípio moral, custe o que custar, pois ela é a comunidade do Servo Sofredor, que é o Senhor, e é chamada a servir e sofrer com ele. A marca autêntica da igreja não é a popularidade, mas o sofrimento profético, e até mesmo o martírio. ‘Ora, todos quantos querem viver piedosamente em Cristo Jesus serão perseguidos’ (II Timóteo 3:12).
Eis o desafio: sem ética de compromisso social não há cristianismo e, no Brasil, corta pela raiz qualquer possibilidade prática de diálogo inter-religioso.
Posicionar-se no Brasil de hoje, a partir de uma ética cristã de responsabilidade social, a favor do diálogo inter-religioso implica em entender uma contradição essencial, que muito possivelmente só poderá ser resolvida em longo prazo: vivemos num país onde impera a não-ética da desonestidade e da prepotência (a ética da casa grande & senzala).
Como cristãos, entendemos que o uso ególatra de bens e posses, a corrupção, a discriminação social e a degradação humana só produzem miséria e sofrimentos. Não dizemos que o brasileiro está impossibilitado de criar e produzir coisas boas e belas, mas que sob tais condições, esta ação é efêmera.
Nossa atuação no campo social, a partir do diálogo interreligioso, implica em entendermos esta realidade cultural brasileira e optarmos desde o primeiro momento por duas ações transformadoras: a educação solidária permanente e a formação de líderes conscientes de seu papel cristão e histórico.
Só assim, a construção de uma ética cristã de responsabilidade social no Brasil produzirá frutos permanentes e eternos, que florescerão através dos anos para a honra e a glória do nosso Senhor e Mestre. Por isso, não falamos de um momento, mas de um processo, que crescerá conforme cresça também a consciência ética dos cristãos brasileiros, de que fomos chamados pelo Senhor a desenvolver uma tarefa histórica, enquanto igreja, que é a de juntos com os setores éticos da sociedade transformarmos o Brasil num país onde todos tenham acesso a condições dignas de vida, à justiça social e à paz.
Assim, se a graça da cruz cobre aqueles que se arrependeram num tempo pretérito à cruz, enquanto de perdão jurídico [Rm 5.9, Ef 1.7], acontece também no tempo presente [Tg 1.21, I Pe 1.9], enquanto tempo presente de liberdade [Lc 9.23+, Rm 5.10, Gl 5. 16, 25] e num tempo futuro [Rm 13.11], enquanto tempo de glorificação [Fp 3.20-21, Gl 1.4, I Pe 1.5, 3.20-21].
Dessa maneira, diferente dos paradigmas do exclusivismo eclesiocêntrico e do pluralismo teocêntrico, o paradigma do inclusivismo cristocêntrico possibilita o diálogo interreligioso sem diluir a identidade cristã, protestante, evangélica. Não nos isolamos, nem amaldiçoamos aqueles que são diferentes. Ao contrário, o conhecimento da diferença possibilita o diálogo e reafirma a identidade.
O paradigma do inclusivismo cristocêntrico afasta-se também do pluralismo teocêntrico e não diz que todas as religiões são iguais e nem diz que cumprem a mesma função salvífica. Não dilui nossa fé num emaranhado de crenças, mas a partir da manutenção de nossa identidade, vê que a expressão da revelação e do fator salvífico da cruz de Cristo, enquanto projeto redentivo aconteceu fora do tempo e do espaço, na eternidade, e, por isso, possibilita a todos os seres humanos e à humanidade um encontro com o Criador.
Bem, todo paradigma implica em novidade da imaginação científica. É sempre um novo caminho para novas descobertas. É resposta para o desafio da pós-modernidade. Esbarramos todos os dias na diferença. Como vamos conviver e dialogar com essas diferenças? Talvez o paradigma do inclusivismo cristocêntrico nos ajude.
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Religião e política
Aproximações e assimetrias entre Gramsci e Tillich
“A democracia não acredita na harmonia natural, mas crê possível submeter a natureza à razão. Ela crê numa harmonia metafísica, que se instaura necessariamente do processo histórico”. Paul Tillich, “Écrits contre les nazis”.
Nos últimos anos, como fruto da crise da esquerda mundial, mas também como fruto da instalação de governos nacionalistas no continente, renasceu a busca pela reflexão de pensadores marxianos. Assim, em várias universidades brasileiras, Antonio Gramsci, por exemplo, passou a ser estudado como nunca fora antes.
Ora, a busca pelo pensamento de Gramsci situa-se nesse contexto de garimpagem do marxismo marginal, dito também não ortodoxo. Aqui, nos interessa pensar Gramsci em correlação com outro socialista, nada ortodoxo, Paul Tillich. Aliás, o pensamento socialista de Tillich é praticamente desconhecido no Brasil, apesar de ter trabalhado quase duas décadas sobre questões políticas analisadas a partir do que ele chamou de socialismo religioso.
Gostaríamos de começar essa discussão com uma idéia exposta por Tillich, de que o socialismo é movimento profético de um mundo autônomo e racional, que a substância profética se exprime de maneira racional tanto no conhecimento como na ação, e que, por isso, a relação entre profecia e racionalidade é essencial no socialismo.
Como a linguagem tillichiana é teológica, ao lê-lo nos vemos na obrigação de traduzi-lo. Assim, o que significariam as expressões profético e profecia? Tillich parte de uma compreensão peculiar do profetismo vétero-testamentário. Vê nele, tanto um clamor, como uma ação, um movimento em prol da justiça, que daria conteúdo, seria a essência da própria religião de Israel e, por extensão, do cristianismo e da Reforma protestante. Por isso, movimento profético é movimento de crítica social, que na modernidade levou à racionalidade da autonomia. Mas, para Tillich, socialismo implica em correlação permanente e necessária, ou seja, crítica social e racionalidade na autonomia. Assim colocada a questão, vemos que Tillich se afasta das correntes socialistas que repousam exclusivamente no racionalismo, em especial do bolchevismo, como das correntes que vêem a possibilidade de uma expansão crescente da autonomia, via democracia, ou seja, em especial da compreensão gramsciana. É essa preocupação de Tillich em correlacionar razão e autonomia que possibilita esse diálogo crítico com Gramsci.
De Gramsci podemos dizer que recriou a linguagem da tradição marxiana e codificou teoricamente seus conceitos, ao falar estado regulado, filosofia da práxis, grupo social, hegemonia, sociedade civil, estado ampliado, intelectual orgânico e moderno Príncipe. Mas, neste texto, nos interessa analisar suas idéias sobre o cristianismo, o intelectual e a democracia.
O desafio religioso
Marx partiu do fato de que o pensamento judaico/cristão torna o ser humano estranho a si mesmo e desdobra o mundo em um mundo imaginário. Por isso, considerava que o trabalho do teórico consiste em dissolver o imaginário judaico/cristão em sua base terrena. Vai dizer, então, que Feuerbach não percebe que, findo o trabalho da crítica da herança judaico/cristã, o principal ainda está por fazer. O fato de que a base terrena se separe de si mesma e se estabeleça nas nuvens, como reino independente, só pode ser explicado pela dissociação interna e pela contradição dessa base terrena consigo mesma.
O que deve, portanto, ser feito antes de qualquer coisa é compreendê-la em sua contradição e depois remover essa contradição. Assim, por exemplo, após descobrir que a família terrena é o segredo da Sagrada Família, é a família terrena que deve ser criticada teoricamente e revolucionada. Marx explica a fé cristã por meio das contradições da sociedade humana e de suas dissociações, que induzem o ser humano a projetar fora do mundo, em um paraíso, a realidade na qual desejaria viver. Mas como afirma Radice, na quarta tese sobre Feuerbach, Marx afirma de modo explícito que a forma judaico/cristã reflete um conteúdo histórico. Por estar impotente, o ser humano imagina uma potência divina, por estar abandonado cria uma providência.
Gramsci verá o pensamento de Marx como herdeiro de dois movimentos culturais, a Reforma protestante e a Revolução francesa:
"A filosofia da práxis pressupõe todo este passado cultural, o Renascimento e a Reforma, a filosofia alemã e a revolução francesa, o liberalismo laico e o historicismo; em suma, o que está na base de toda concepção moderna da vida. A filosofia da práxis é o coroamento de todo movimento de reforma intelectual e moral, dialetizado no contraste entre cultura popular e alta cultura. Ela corresponde ao nexo Reforma protestante mais Revolução francesa: trata-se de uma filosofia que é também uma política e uma política que é também uma filosofia".
E por isso dirá que "a religião cristã (...) foi e continua a ser uma necessidade, uma forma necessária de racionalidade do mundo e da vida".
Marx pode, então, ser entendido como desenvolvimento que se dá a partir de três correntes da Reforma protestante: a luterana que legou Hegel, a calvinista que legou Ricardo e a economia clássica, e a huguenote que criou o jacobinismo.
"A estas três fontes originais, Gramsci tenta ligar a tradição cultural italiana, principalmente Maquiavel, como precursor do jacobinismo, e Croce como desenvolvimento historicista da filosofia alemã. O marxismo torna-se assim um ponto de convergência destas três correntes sob a forma de crítica radical".
Dessa forma, para Gramsci, a Reforma foi não somente uma reforma no nível da economia, filosofia e política, mas também uma revolução cultural, no sentido de que procurou forjar uma nova humanidade. Para Gramsci a consciência religiosa cristã, que se traduziu em revolução cultural no século XVI, teve um caráter de suma importância na construção do pensamento contemporâneo. Ou, nas suas palavras: "da primitiva rusticidade intelectual do homem da Reforma (leia-se Lutero) decorreu a filosofia clássica alemã e o vasto movimento cultural de onde nasceu o mundo moderno".
Podemos dizer que Gramsci, no que se refere ao cristianismo, faz uma ponte entre Émile Durkheim e Max Weber. Durkheim considera a religião a partir da idéia de vínculo social. A religião constituiria uma comunidade moral na qual os adeptos comungam num mesmo ideal. A palavra chave aí é solidariedade. E a solidariedade leva a uma memória coletiva, que organiza lembranças, ritualiza a crença. Os estudos de Durkheim sobre as sociedades têm o intuito de dar rumo à sua análise na qual a divisão do trabalho foi anteriormente a preocupação central. Mais tarde, o diálogo com a antropologia será privilegiado e o universo da religião será pensado como consciência coletiva, abordagem que ele estende ao entendimento da nação, enquanto todo no qual os indivíduos partilham a mesma memória coletiva.
Weber trabalha em sentido diferente. O cristianismo é instituição, é igreja, que atua como empresa de salvação das almas. É necessário, então, conhecer os meandros de sua doutrina, a organização de seu clero e a disputa entre visões e interesses distintos no quadro das crenças religiosas. Daí a atenção que dá ao pensamento divergente, as rupturas no interior de uma mesma ordem ideológica, e sua relação com o poder de Estado.
Assim, Durkheim busca o que une e Weber realça o que separa. Mas Gramsci está interessado nas duas dimensões, no que une e no que divide. O cristianismo, para ele, é uma concepção de mundo que elabora versões sobre a realidade, o que possibilita aos fiéis atuar segundo determinada ética, mas também os une no interior da mesma comunidade. Essa idéia atravessa as páginas dos Cadernos do cárcere, sintetizada na afirmação de que o catolicismo é o "intelectual orgânico" da Idade Média.
A intelectualidade orgânica
Partindo de uma leitura do contexto europeu medieval, Gramsci estuda o papel dos intelectuais católicos: seu cosmopolitismo, incentivado pelo poder de Roma, em relação à fragmentação do poder feudal e sua intolerância diante do pensamento divergente que ameaça a unidade da Igreja. Mas, na qualidade de orgânico, o catolicismo funcionaria como cimento cultural entre diferentes setores de uma sociedade hierárquica. Assim, o catolicismo integra o que se encontra separado por lutas de interesses e discordâncias doutrinárias. O catolicismo, no entanto, é parte de uma superestrutura mais ampla, a ideologia. É uma cosmovisão, tem valor cognitivo, interpreta o mundo ético, orienta a ação, e constrói uma moral que baliza a solidariedade dos fiéis. As ideologias possuem potencialidades diferentes destas, por isso Gramsci faz distinção entre filosofia e cristianismo católico, e entre cristianismo católico e senso comum, mas, ainda assim, todas as ideologias podem ser pensadas a partir dessa mesma matriz teórica.
Dessa maneira, as análises de Gramsci rompem com a tradição marxiana, já que a ideologia, mais do que falsa consciência, é entendida como elemento cognitivo, concepção de mundo que brota da vida social. Para ele, como concepção de mundo, o cristianismo não seria alienante, mas deve ser entendido como ideologia presente na história. Exemplo disso foi o catolicismo medieval, que possuía valor positivo, era orgânico, e construiu vínculo social entre as classes e os grupos sociais. Mas, no correr da Idade Média perdeu essa positividade, ao perder sua função de solidariedade, e passou a atuar como força reativa diante das mudanças.
E se Gramsci se mantém marxiano no que se refere à crítica da transcendência e, por extensão, da natureza humana, a conclusão que se impõe é que não há sociedade sem ideologia. Gramsci prepara, assim, o caminho para outros teóricos do pensamento marxiano, como Althusser e seu "animal ideológico", e Lévy-Strauss e seu "animal simbólico".
Mas Tillich teve uma compreensão diferente daquela de Gramsci, que entende a vanguarda enquanto intelectualidade orgânica, mas não vê o movimento de massas em processo dinâmico que pode levar ao surgimento de uma massa orgânica. Há uma divergência entre os dois pensadores: a crítica intelectual não se limita ao intelectual orgânico, é um processo maior que gera a massa orgânica, com dupla ação: de liderança da sociedade e de transformação da situação-limite.
Na perspectiva tillichiana, a passagem da heteronomia à autonomia se deu através de ciclos que atravessaram épocas. Assim, os movimentos dinâmicos das massas estão presentes nos movimentos religiosos do jovem cristianismo, no movimento político da migração dos povos, no movimento religioso da Reforma, no movimento anabatista e no movimento socialista. Embora esses movimentos possam ser encontrados em diversas épocas, estão presentes em diferentes esferas da cultura, mas sempre como movimentos de libertação: as massas dinâmicas são parteiras de escravos, de povos, de trabalhadores.
Por isso, segundo Tillich, não podemos ver o pensamento de Marx como algo que já se esgotou, se nos propomos a fazer a crítica profética, pois o socialismo não é justificativa ideológica das democracias, nem idealismo progressivo ou sistema de harmonia autônoma. O socialismo dentro do espírito da crítica profética e com os métodos do marxismo transcende o mundo. Mas até que ponto a metodologia marxiana e uma conquista do poder político poderiam dar sentido à vida? Só se o socialismo compreender que a corrupção também está localizada nas profundezas do coração humano.
O socialismo, para Tillich, deve entender que as forças demoníacas da injustiça e da vontade de poder jamais serão plenamente erradicadas da cena histórica. O socialismo precisa compreender que a corrupção da situação humana tem raízes mais profundas do que as estruturas históricas e sociológicas. Estão encravadas nas profundezas do coração humano.
Como Kierkegaard, Marx fala da situação alienada do homem na estrutura social da sociedade burguesa. Empregava a palavra alienação (Entfremdung) não do ponto de vista individual, mas social. Segundo Hegel essa alienação significa a incursão do Espírito absoluto na natureza, distanciando-se de si mesmo. Para Kierkegaard era a queda do homem, a transição, por meio de um salto, da inocência para o conhecimento e para a tragédia. Para Marx era a estrutura da sociedade capitalista.
Por isso, considera que a regeneração da humanidade não é possível apenas mediante mudanças políticas, mas requer mudanças na atitude das pessoas em favor da vida. De todas as maneiras, para Tillich e para Gramsci há uma busca comum de respostas entre aquele que encarna o espírito crítico e a ação consciente do intelectual orgânico. Ou como diz Gramsci:
“Se a relação entre intelectuais e povo/nação, entre dirigentes e dirigidos, entre governantes e governados, é dada por uma adesão orgânica, na qual o sentimento paixão torna-se compreensão e, portanto, saber, não mecanicamente, mas de forma viva, é somente então que a relação é de representação e que se produz o intercâmbio de elementos individuais entre governados e governantes, entre dirigidos e dirigentes, isto é: que se realiza a vida conjunta que, só ela, é a vida social, cria-se um bloco histórico”.
Para Gramsci, o intelectual quando representa determinada comunidade têm função superestrutural, ou seja, cultural, mas, apesar de sua organicidade, precisa exercer autonomia em relação às pressões sociais que sofre. É dessa postura que nasce a força crítica e a compreensão de que diante da realidade há alternativas diferentes daquelas expressas pelo poder.
A partir de Tillich e Gramsci podemos dizer que o princípio da crítica intelectual é expressão humana e verbal do incondicionado, e resgata a tradição do profetismo bíblico, que possuía uma concepção unitária do fato e procurava a síntese entre política e ética. O profetismo era ao mesmo tempo revolucionário, mesmo quando voltado para o passado, e conservador, mesmo quando impulsionado pela paixão do porvir. Nada fazia sem invocar a tradição, no entanto, sua mensagem eram os novos tempos. Os profetas sabiam servir-se do passado para as necessidades do presente. Todos pareciam ter algo em comum: uma atitude realista. A pregação do futuro não constituía o essencial de seus clamores; era antes o fruto e o resultado final de um conhecimento aprofundado no mundo adjacente, da atualidade e do passado. Ora, essa função profética está presente na compreensão crítica de Gramsci e de Tillich do intelectual orgânico.
Mas, não podemos esquecer que para Tillich há limites para a ação do intelectual, pois a razão não é global. Ao contrário, cada criação do espírito é necessariamente afetada pelos limites da situação que a viu nascer. O espírito está sempre ligado a uma classe. No espírito está implícita uma situação particular de luta, de dominação ou de opressão, que conforma a própria consciência. Entendido assim, o espírito não é universalmente o mesmo em cada pessoa, exprime um ser social particular. A passagem à cultura não se faz simplesmente pela transmissão de bens culturais universais, mas pela formação inculcada por uma sociedade e uma situação de lutas determinadas, em meio a obras que exprimem ou exprimiram no passado esta possibilidade humana particular.
Numa leitura cristã protestante, Tillich considerou o socialismo produto da evolução espiritual e econômica, que preparou e se impõe com a Renascença, a Reforma e o surgimento do capitalismo. Visão compartida por Gramsci. Assim, o socialismo surge em oposição à cultura autoritária e unitária da Idade Média, sedimenta suas bases nas criações culturais dos últimos séculos, e só pode ser compreendido a partir desta evolução: sua permanência está ligada a esse desenvolvimento. Mas não devemos esquecer, porém, que foi do interior do cristianismo que brotaram as idéias socialistas.
Para a construção de seu pensamento, Gramsci foge das construções ontológicas e analisa a sociedade como conjunto de forças, imersas na história e marcadas por interesses diversos. Podemos ver isso quando em carta à sua cunhada Tatiana Schucht, de dezembro de 1931, expõe seu conceito de Estado ampliado:
“Eu amplio muito a noção de intelectual e não me limito à noção corrente que se refere aos grandes intelectuais. Esse estudo leva também a certas determinações do conceito de Estado, que habitualmente é entendido como sociedade política (ou ditadura, ou aparelho coercitivo para adequar a massa popular a um tipo de produção e a economia a um dado momento); e não como equilíbrio entre a sociedade política e sociedade civil (ou hegemonia de um grupo social sobre a inteira sociedade nacional, exercida através de organizações ditas privadas, como a igreja, os sindicatos, as escolas, etc.)”.
Democracia e socialismo
Ora, em geopolítica, hegemonia significa a supremacia de uma nação sobre outras, seja por sua presença militar, de coerção, seja pela presença política e cultural. Mas na política, o conceito formulado por Gramsci descreve a dominação ideológica de uma classe sobre outra, no caso da burguesia sobre os trabalhadores ou proletários.
Em Gramsci não é possível o domínio bruto de uma classe sobre as demais, a não ser nas ditaduras, ou seja, no Estado-coerção. Mas uma classe dominante para ser dirigente deve articular um bloco de alianças e obter o consenso passivo das classes e camadas dirigidas. Nessa busca de alianças, necessárias, a classe dominante sacrifica parte dos seus interesses materiais imediatos, vai além do horizonte corporativo, com a finalidade de construir uma hegemonia ética e política.
Ao estudar os mecanismos de construção desta hegemonia, Gramsci chega a um conceito fundamental na sua teoria política, a saber, o conceito de Estado ampliado. O Estado moderno na Europa analisada por Gramsci não seria, para ele, apenas instrumento de força a serviço da classe dominante, mas força revestida de consenso, ou seja, combinaria coerção e hegemonia. O Estado ampliado pode, então, ser entendido como sociedade política mais sociedade civil. E, nas sociedades de tipo ocidental, a hegemonia, que se decide nas inúmeras instâncias e mediações da sociedade civil, não pode ser ignorada pelos grupos sociais subalternos que aspiram a modificar sua condição e a dirigir o conjunto da sociedade.
O sentido de progresso civilizatório, que a teoria gramsciana implica, reside no fato de que todo o movimento deve acontecer no sentido de uma absorção do Estado político pela sociedade civil, com o predomínio crescente de elementos de autogoverno e autoconsciência. A partir dessa teorização, Gramsci formula nos Cadernos do cárcere uma crítica ao stalinismo, a partir dos traços de hipertrofia do Estado soviético, que chama de estatolatria, considerando que tal estado de ditadura sem hegemonia não subsistiria por muito tempo.
Assim o Estado se compõe de dois segmentos distintos, porém atuando com o mesmo objetivo, que é o de manter e reproduzir a dominação da classe hegemônica: a sociedade política, estado-coerção, a qual é formada pelos mecanismos que garantam o monopólio da força pela classe dominante, burocracia executiva e policial-militar, e a sociedade civil, formada pelo conjunto das organizações responsáveis pela elaboração e difusão das ideologias, composta pelo sistema escolar, Igreja, sindicatos, partidos políticos, organizações profissionais, organizações culturais: meios de comunicação e de massa.
E aqui merecem destaque os meios de comunicação, pois para sua época estavam ainda em sua fase embrionária, e a televisão nem sequer fazia parte dos projetos futuros. Isto só seria possível no início da década de 1950. É exatamente através dos meios de comunicação modernos, que se dá a canalização da direção intelectual e moral, difundindo as ideologias da classe hegemônica vigente.
Assim, o Estado é a sociedade política gramsciana. E esta sociedade civil representa a nova determinação apresentada por Gramsci. Esta sociedade civil assume crescente dimensão no começo do século vinte, com os partidos de massa, sindicatos de trabalhadores e outras formas de organizações sociais. É após sua evolução histórica que a sociedade civil pôde ser capturada teoricamente. Antes disso, o estado-coerção era muito superior em sua base material para se permitir tal percepção.
O que chama a atenção no modelo do Estado ampliado, desde o Leviatã de Hobbes até Marx, é o sentido unitário do Estado. Ou seja, até Marx, o Estado era entendido como algo diferente da sociedade civil, que seria extinto quando se extinguisse a divisão de classes dentro da sociedade, uma vez que era esta divisão que produzia a necessidade do Estado.
Em Gramsci, porém, quando agrega a sociedade civil ao Estado-coerção, nada fica de fora do Estado. Este todo, entretanto, não é homogêneo, é rico em contradições e é mantido pelo tecido hegemônico que a cada momento histórico é recriado em processo permanente de renovação.
Assim, a luta pela construção de uma sociedade socialista, torna-se mais complexa e difícil do que imaginava Marx. Não basta ser classe dominante, tem que ser também classe hegemônica, dirigente. Desta forma, o campo da luta entre as classes se amplia. E a democracia necessária ao socialismo será construída pelo bloco histórico hegemônico. Neste momento, a sociedade civil terá atingido uma base material superior a base material do Estado-coerção, atingindo o que Gramsci chama de sociedade regulada.
Com a gradativa absorção da sociedade política pela sociedade civil, que atua através dos seus aparelhos de hegemonia, o estado-coerção será substituído pelo estado-ético. E esta figura remanescente do estado-coerção, torna mais factível o modelo socialista e menos utópico em relação ao que planejara Marx.
Nesta concepção de Estado, as democracias ocidentais estão próximas do socialismo. Mas fica uma questão: se a supremacia da sociedade civil se dará pelo consenso contra a coerção, onde fica o conceito de luta de classes, momento celular do pensamento marxiano?
Na verdade, para Gramsci a extinção da coerção do estado se dará pela absorção deste pelo estado-ético, ou seja, pela sociedade civil. Esta sociedade civil está inserida no estado ampliado, e, por isso, não se pode falar de extinção do estado, mas de uma reorganização do estado onde um de seus componentes fica atrofiado por disfunção ou necessidade, já que os conflitos passaram a ser administrados pela base material do consenso.
Há, porém, dois níveis superestruturais nas sociedades democráticas: o estado ampliado, que é a sociedade civil, ou o conjunto dos aparelhos privados de hegemonia; e a sociedade política, ou o estado no sentido restrito do termo, composto pelos organismos de coerção do aparelho burocrático-militar de dominação política.
Nesse espaço a sociedade civil como o espaço do domínio da ideologia, portador material da hegemonia, encontra a possibilidade de legitimidade, de consenso, através dos aparelhos privados de hegemonia que propagam valores ideológicos.
Assim, o conceito de estado ampliado procura apreender a configuração de forças sociais e políticas resultantes dos estados ocidentais do século vinte, idéia que confronta a proposta de Trotsky de revolução permanente a partir da concepção de hegemonia civil. Tal proposta-conceito parte da idéia de guerra de posição, que exige uma frente de combate no campo cultural, unida às frentes econômicas e políticas para a conquista da hegemonia pelas classes subalternas. A fórmula “hegemonia civil” propõe a participação das maiorias sociais nos aparelhos privados de hegemonia (sindicatos, partidos, escolas, igrejas, imprensa), que constituem as trincheiras de luta para obter posições de direção no governo da sociedade.
A proposta de extinção do estado, no entanto, nunca é plena, pois sempre restará o governo para cuidar da sociedade civil. É claro que se entendermos assim podemos dizer que na distinção de função entre as pessoas que governam e as que vivem a vida da sociedade de consenso está presente ainda a dominação entre as classes e, portanto, os restos da coerção do Estado se farão presentes.
Em Gramsci está presente uma utopia que atravessou todo pensamento socialista: sonhar com o bom selvagem de Rousseau, em oposição ao homem é o lobo do homem de Hobbes. Esse Estado ético é uma idealização do ser humano, que poderia viabilizar a construção de uma sociedade ética, igualitária e justa.
Mas, mesmo questionando Gramsci, podemos utilizar seus conceitos de estado ampliado e de hegemonia civil como estruturas de pensamento válidas para a análise social, não como proposta da utopia socialista, mas como ferramenta para delimitar e compreender o desenvolvimento das sociedades ocidentais contemporâneas, principalmente aquelas que se propõem democráticas.
Entendemos, então, porque Tillich diz que embora o socialismo e o proletariado estejam intimamente ligados podem existir tensões entre o momento universal e o momento particular. O momento universal pode formular exigências que ameaçam absorver o momento particular. O socialismo se tornará, então, uma idéia geral, desprovida de raízes sociais e perderá sua força histórica. Este é o perigo de um socialismo de intelectuais, que o proletariado sempre combateu com razão. Esse perigo provém da situação burguesa e de seu pensamento político particular, que procura elaborar uma ordem social futura fundada sobre a justiça, deixando de lado a situação proletária real. Sejam quais forem o sentido e o valor que se atribua a esta tentativa, ela não será socialista. A luta contra o socialismo utópico se apóia sobre a ligação indissolúvel que Marx viu entre socialismo e proletariado, que não pode ser quebrada por essa harmonia metafísica proposta pela globalidade burguesa.
Para Paul Tillich existe na esfera política uma relação entre razão e autonomia. Toda estrutura política pressupõe poder e um grupo que o assume. Mas um grupo de poder é também um conglomerado de interesses opostos a outras unidades de interesses e sempre necessita uma correção. A democracia está justificada e é necessária na medida em que é um sistema que incorpora correções contra o uso errôneo da razão política. Assim, cristianismo e política não são realidades estanques, porque as raízes do pensamento político não são apenas pensamentos. Cristianismo e política, no mundo ocidental, estão imbricados, mas não existem sem a necessidade de correção, ou seja, da democracia.
Tal compreensão da realidade ocidental no pós-guerra levou Tillich a se debruçar sobre projetos que tiveram início ainda na sua fase alemã, como a sua reflexão sobre a cultura. Mas a maioria de seus companheiros, que esperavam a realização do socialismo, diante do visível abandono dos direitos civis e humanos, assim como a descoberta da existência de gulags nos países comunistas, se desiludiu.
O movimento marxista não foi capaz de se criticar por causa da estrutura em que caiu, transformando-se no que chamamos agora de stalinismo. Dessa maneira, todas as coisas em favor das quais os grupos originais tanto lutaram acabaram sendo reprimidas e esquecidas. No século vinte tivemos a ocasião de melhor perceber a trágica realidade da alienação humana no campo social.
Tal política comunista fez com que Tillich, que não se considerava um utópico, constatasse que o amanhecer de uma nova era criativa se distanciava da humanidade. Assim, alertou para o perigo, a partir da experiência stalinista, de o socialismo transformar-se em totalitarismo, já que não aceitava a pluralidade de partidos políticos e as liberdades civis, que ele e os socialistas religiosos defendiam. Mas é interessante ver que descartava qualquer possibilidade de hegemonia permanente, quer por parte do bloco soviético, quer por parte do bloco ocidental: Novos centros de poder poderiam aparecer primeiro secretamente e, depois, então, abertamente, levando para a separação de ou para a transformação radical do todo. “O poder inicia a luta novamente e o período determinado do império mundial será tão limitado quanto o foi o período augustiniano de paz”.
E afirmou que um mundo sem as dinâmicas do poder, sem a tragédia da vida e da história não é o reino de Deus, nem a finalidade do ser humano, pois o fim está limitado à eternidade e nenhuma imaginação pode atingir o eterno. Mas as antecipações fragmentárias são possíveis. Assim, falar de socialismo significa entender que ele traduz a defesa do sentido último do significado profundo das raízes do ser humano e, no mundo contemporâneo, que ele, diante do trovejar dos canhões e da ameaça à vida, levanta-se como voz profética de um mundo novo.
Bibiografia Antonio Gramsci
1. Escritos 1910-1926
A questão meridional. Introdução e seleção de Franco de Felice e Valentino Parlato. Apresentação de Carlos Nelson Coutinho. Trad. Carlos Nelson Coutinho e Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 165p. [Contém 10 textos do período 1916-1926].
Conselhos de fábrica. Introdução de A. Leonetti. Prefácios de Carlos Nelson Coutinho e Maurício Tragtenberg. Trad. Marina B. Svevo. São Paulo: Brasiliense, 1981. 121p. [Contém 6 artigos de Gramsci da época de L'ordine nuovo, escritos entre 1916-1920, bem como outros 6 artigos polêmicos de Amadeo Bordiga].
2. Dos "Cadernos do cárcere" (1929-1935).
Concepção dialética da história. Apresentação de Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder. Orelha de Luiz Mário Gazzaneo. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966 (6a. ed., 1986), 341p.
Literatura e vida nacional. Seleção, tradução e orelha de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968 (3a. ed., 1986). 273p.
Maquiavel, a política e o Estado moderno. Tradução e orelha de Luiz Mário Gazzaneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968 (8a. ed., 1987), 444p.
Os intelectuais e a organização da cultura. Tradução e orelha de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968 (5a. ed., 1987), 244p.
3. Dos "Cadernos do cárcere" (1929-1935). (Edição em seis volumes)
Volume 1: "Introdução ao Estudo da Filosofia. A Filosofia de Benedetto Croce". Edição de Carlos Nelson Coutinho, em colaboração com Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Orelha de Joseph A. Buttigieg. Quarta capa de Eric Hobsbawm. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. 494p.
Volume 2: "Os Intelectuais. O Princípio Educativo. Jornalismo". Trad. Carlos Nelson Coutinho. Orelha de Leandro Konder. Quarta capa de Norberto Bobbio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. 334p.
Volume 3: "Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política". Trad. Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. Orelha de Francisco de Oliveira. Quarta capa de Pietro Ingrao. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, 428p.
Volume 4: "Temas de cultura. Ação Católica. Americanismo e fordismo". Trad. Carlos Nelson Coutinho e Luiz Sérgio Henriques. Orelha de Luiz Werneck Vianna. Quarta capa de Michael Löwy. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 394p.
Volume 5: "O Risorgimento. Notas sobre a história da Itália". Trad. Luiz Sérgio Henriques. Orelha de Octavio Ianni. Quarta capa de Valentino Gerratana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. 461p.
Volume 6: "Literatura. Folclore. Gramática. Apêndices: variantes e índices". Trad. Carlos Nelson Coutinho e Luiz Sérgio Henriques. Orelha de Alfredo Bosi. Quarta capa de Giorgio Baratta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. 495p.
Bibliografia Paul Tillich
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Écrits contre les nazis, 1932-1935, Paris, Genève, Québec : Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1994. Christentum und soziale Gestaltung. Frühe Schriften zum religiösen Sozialismus, Evangelisches Verlagswerk Stuttgart, Gesammelte Werke II, 1962. Trad. fr. Nicole Grondin e Lucien Pelletier.
La lutte des classes et le socialisme religieux [artigo publicado no Religiöse Verwirklichung de 1930. Gesammelte Werke, II, pp. 175-192] in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, tradução de Nicole Grondin e Lucien Pelletier, 1992.
Perspectivas da Teologia Protestante nos séculos XIX e XX, São Paulo, ASTE, 1999. Texto original: Perspectives on 19th and 20th century protestant theology, New York, Harper and Row Publishers, Inc., 1967. Tradução de Jaci Maraschin.
Bibliografia outros
BERGER, Peter. Rumor de anjos: a Sociedade moderna e a redescoberta do sobrenatural. 2ª Ed. Petrópolis/RJ, VOZES, 1997.
______________. O Dossel sagrado: elementos para uma teoria social da Religião. São Paulo, PAULINAS, 1983.
DURKHEIM, Emile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo, PAULINAS, 1980.
DUSSEL, Emile. Teoria Marxista da Religião. São Paulo, PAULINAS, 1980.
FERRAROTI, F. [Et Al] Sociologia da Religião. São Paulo, PAULINAS, 1990.
HOURTAT, François. Sociologia da Religião. São Paulo, ATTICA, 1994.
ORTIZ, R. Notas sobre Gramsci e as ciências sociais, São Paulo, Revista Brasileira de Ciências Sociais, Out. 2006, vol.21, no. 62.
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RADICE, L.L. "Um marxista diante dos fatos novos no pensamento e na consciência religiosa", Revista Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, Ano III, Número 16, novembro/dezembro de 1967.
REGO, J. Reflexões sobre A Teoria Ampliada do Estado em Gramsci, Recife, Caderno Cultural do Jornal do Commercio, 5/04/1991.
WACH, Joachim Sociologia da Religião. São Paulo, PAULINAS, 1990.
Para compreender relações
Texto de Naira Pinheiro dos Santos
“Escute-o: pode ser que você tenha algumas coisas importantes a lhe dizer, mas o momento em que ele chega em casa não é o mais oportuno. Deixe-o falar primeiro, lembre-se que os assuntos dele são mais importantes que os seus.
Não o receba com as suas reclamações e problemas: não reclame se ele chegar atrasado para o jantar ou mesmo se ele passar a noite inteira fora. Considere que isso é menos importante, se comparado ao que ele pode ter tido que suportar durante o dia. Instale-o confortavelmente. Proponha-lhe que ele se recline descontraidamente numa poltrona confortável ou que ele vá se deitar na cama. Prepare-lhe uma bebida fresca ou quente. Ajeite o travesseiro e proponha-lhe tirar os sapatos. Fale-lhe com uma voz doce, calma e agradável. Não faça perguntas sobre o que ele fez e não coloque jamais em questão a sua capacidade de julgamento ou a sua integridade. Lembre-se de que ele é o chefe da casa e que, enquanto tal, ele exercerá sempre a sua vontade com justiça e honestidade.
Logo que ele tenha terminado de jantar, retire rapidamente a mesa e lave a louça: Se o seu marido se propuser a te ajudar, recuse a sua oferta, porque haveria o risco dele se sentir obrigado a repetir o feito e, depois de uma longa jornada de trabalho, ele não tem nenhuma necessidade de trabalho suplementar. Encoraje o seu marido a se dedicar aos seus passatempos favoritos e aos seus centros de interesse e mostre-se interessada, sem contudo lhe dar a impressão de invadir o seu domínio. Se você tiver pequenos passatempos faça-os de tal maneira que você não o aborreça com conversas, porque os centros de interesse das mulheres são freqüentemente muito insignificantes comparados àqueles dos homens”.
Este texto te escandalizou? Se não, talvez você deva rever os seus conceitos. Em particular o conceito que Deus tem de homens e mulheres: “Agora vamos fazer os seres humanos, que serão como nós, que se parecerão conosco [...] Assim Deus criou os seres humanos; ele os criou parecidos com Deus. Ele os criou homem e mulher” Gn:1.26a, 27, Bíblia NTLH). Ele não criou nenhum/a de nós para sermos ‘o segundo sexo’, mas é assim que as mulheres têm sido vistas e tratadas durante muito tempo (e na verdade ainda o são), em praticamente todo, se não em todo o mundo. Basta dizer que esse texto foi editado na França há não tanto tempo atrás: em 1960. Até 1965, na França, as mulheres eram consideradas ‘menores’, nem conta bancária podiam ter a não ser com autorização do marido! Se te parece que essa dependência a que eram submetidas as mulheres faz sentido do ponto de vista do evangelho, talvez você deva se perguntar se o que te orienta é mesmo o Espírito de Deus através do evangelho, ou certas tradições de interpretação. Senão vejamos, em 1Co:11, texto do qual freqüentemente se lança mão para afirmar a subordinação das mulheres aos homens, o apóstolo Paulo afirma o seguinte, nos versículos 11 e 12: “No entanto, por estarmos unidos com o Senhor, nem a mulher é independente do homem, nem o homem é independente da mulher. Porque assim como a mulher foi feita do homem, assim também o homem nasce da mulher. E tudo vem de Deus” (Bíblia NTLH).
Mas a secundarização das mulheres não é uma especificidade francesa, como todos/as sabemos. Num Brasil ainda bem recente, de 1979, Doca Street foi absolvido pelo júri com o argumento de que cometera o assassinato de Ângela Diniz em ‘legítima defesa da honra’, por sentir-se traído por ela. Apenas dois anos depois, em 1981, o recurso do promotor obteve sucesso e, com o auxílio da pressão dos movimentos feministas pelo fim da violência contra as mulheres, Doca Street foi condenado. O caso de Doca Street não era nenhuma exceção: até então vários outros homens haviam obtido a absolvição utilizando-se do mesmo argumento. Como vemos, a secundarização das mulheres se faz presente também no âmbito dos órgãos de justiça. De fato, ela ainda é uma realidade: a biofarmacêutica cearense Maria da Penha Maia Fernandes teve que lutar por 20 anos, desde 1983, para que justiça fosse feita aos atos de violência e tentativas de assassinato por seu marido, professor universitário, e que a tornaram inclusive paraplégica. Sua luta resultou na promulgação da lei que leva o seu nome em agosto de 2006, e suscitou reação de um juiz do estado de Minas Gerais que, alegando ver nela “‘um conjunto de regras diabólicas’ e lembrando que ‘a desgraça humana começou por causa da mulher’ [...] considerou inconstitucional a Lei Maria da Penha” (conforme publicado pelo jornal Folha de São Paulo em 21/10/2007). Com base nesses argumentos o juiz negou pedidos de medidas de proteção para as mulheres vítimas de violência por parte de seus maridos.
O Segundo Sexo
Ao afirmar, em meados do século XX, que “ninguém nasce mulher: torna-se mulher” Simone de BEAUVOIR (1980:9) chamava a atenção para o fato de que o sexo, aparecendo como dado natural, tem na realidade muito pouco de ‘dado’, ‘natural’ e bastante de socialmente construído. Ou seja, mesmo aqueles elementos identitários inscritos nos corpos compreendem uma parcela ínfima de natural, e uma grande parcela de construção simbólica, isto é, de elementos que resultam do processo de socialização num determinado ambiente sócio-cultural. Construção simbólica, cultural, através da qual nos relacionamos com o outro, percebemos e somos percebidos pelo outro, agimos e nos situamos no mundo em relação ao outro e com o outro e que implica também uma espécie de economia, que possibilita sintetizar uma série de informações através de códigos estabelecidos. Tais códigos, internalizados, permitem automatizar a resposta a um sinal, reafirmando a percepção da ordem simbólica como ordem ‘natural’ das coisas e, portanto, socialmente legítima. É assim que, características, comportamentos e destinos que não lhes são ‘inatos’ ou ‘inerentes’, mas que são sócio-culturalmente atribuídos aos indivíduos antes mesmo de nascerem, passam a ser associados ‘naturalmente’ com ‘atributos naturais’ deste ou daquele sexo. De fato, uma série de coisas na vida da pessoa já são definidas, a partir do seu sexo, antes mesmo dela nascer: quais cores vai usar; com que brinquedos ela vai brincar e quais brincadeiras lhe são permitidas e até estimuladas e quais lhe são proibidas ou coibidas; para quais assuntos, matéria ou disciplinas o seu interesse será ‘despertado’ (na verdade dirigido), em casa pelos pais, e na escola pelos professores e colegas; se vai ou não ajudar a mãe nas tarefas domésticas; como vai se sentar no metrô ou no ônibus; como vai expressar suas emoções, quais expressões serão estimuladas (o choro ou a violência?) e quais serão contidas; se vai prestar serviço militar obrigatório ou não, se vai herdar ou não a profissão ou a empresa do pai... À medida que tal ‘predestinação’ vai se realizando na vida da pessoa, ela confirma ou reafirma que tais ‘interesses’ estão ‘naturalmente’ associadas ao seu sexo.
São muitas e variadas as instâncias de produção das diferenças entre os sexos – a medicina, a escola, o Estado, a religião, as teorias econômicas, etc. - todas concorrendo em graus diversos e de diversas maneiras para que as diferenças se expressem, ou sejam representadas, de tal ou qual forma. Uma forma que não valoriza igualmente os sexos, mas que hierarquiza as diferenças. Por exemplo, afirma-se com frequência que ‘o homem é racional, a mulher é emocional’. Na sociedade ocidental moderna, em que a razão é valorizada e a emoção é menosprezada atribui-se aos homens a qualidade de racionais, como se as mulheres também não o fossem, ou como se os homens não fossem eles também emocionais, embora sejam educados a manifestar suas emoções sob expressões diferentes daquelas que são permitidas às mulheres. Além do mais, toma-se a parte pelo todo também na compreensão do que seja razão, nomeando como racionalidade aquela porção dela que é valorizada ou instrumental nas sociedades modernas ocidentais. Assim, não apenas construímos as diferenças, mas também a hierarquia das diferenças, que resulta em relações de gênero assimétricas.
Gênero
A palavra gênero tem tido usos diversos: é muito comumente usada como sinônimo de sexo, mas outras vezes seu uso remete a esses aspectos históricos e sócio-culturais associados aos sexos, a que nos referimos há pouco. A nossa abordagem procura dar conta desses diversos aspectos envolvidos na compreensão e no tratamento que a sociedade dispensa às pessoas de acordo com o seu sexo. Nesse sentido, compreendemos gênero não como uma categoria inerte e isolada de ‘feminino’ e ‘masculino’, ‘homem’ e ‘mulher’ com características inerentes, ‘naturais’, mas sim como construções culturais - papéis sexuais - que se constituem como relações hierárquicas entre os sexos e frente aos sexos. No dizer de Joan SCOTT: trata-se de “um elemento constitutivo das relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos e um primeiro modo de dar significado às relações de poder” (1990:14).
Em outras palavras, gênero, enquanto conceito teórico, não se refere aos sexos – masculino/ feminino – mas às relações sociais de sexo, constituídas como relações de poder, uma vez que envolvem uma hierarquização das diferenças percebidas e sócio-culturalmente construídas entre os sexos. Dizemos que o gênero é transversal. Quer dizer, tal relação hierárquica entre os sexos, abrange todas as esferas da vida social: na sexualidade, no trabalho, na vida doméstica e familiar, na igreja ou nos sindicatos é a mulher que serve o homem (socializada para servir); onde quer que ela esteja ou atue ela é, em geral, secundarizada. Os produtos, as ciências, as estruturas políticas, religiosas, econômicas e sociais são concebidos para o homem (socializado para dominar); os seus interesses, o seu trabalho, as suas ações são, em geral, socialmente mais valorizados do que os das mulheres.
Gênero e Religião
Como vimos, são muitas as instâncias sociais nas quais a hierarquia entre os sexos é produzida e reproduzida. Mas, se ela permeia e é construída por praticamente todas as instâncias e instituições sociais, há uma peculiaridade na religião que torna o seu papel mais efetivo e eficaz na construção da desigualdade, ou da igualdade. O diferencial está no seu poder simbólico. Em primeiro lugar pelo caráter sagrado de que a sua mensagem se reveste e, em segundo lugar, porque essa mensagem não fica confinada ao plano metafísico, mas fornece orientação para a vida, no dizer de GEERTZ (1989), um padrão ético de comportamento que se impõe como compromisso.
Deus é eterno e Ele falou aos seres humanos ao longo da história. Isso significa que a sua mensagem teve que ser adequada à cultura do tempo em que ela foi comunicada, a fim de que ela fosse inteligível ao povo. Isso significa também que há sempre o risco e a possibilidade de que idéias ou estruturas hierárquicas que permeiam as sociedades na qual foi produzida sejam incorporadas à mensagem religiosa. Mesmo que de início o propósito da relação estabelecida na mensagem não seja o de afirmar o sentido hierárquico presente na sociedade na qual ela se originou, ela pode vir a revestir tal hierarquia de um sentido sagrado, mesmo que isso esteja em conformidade com interesses mundanos de uma determinada época e não com a vontade de Deus. Por exemplo, ao afirmar que Jesus se assentou à direita de Deus Pai a mensagem bíblica remete a uma hierarquia de valor, na medida em que, para a pessoa destra, a mão direita é mais importante do que a esquerda. Não creio que Deus quisesse afirmar com isto que as pessoas destras têm um valor diferente das canhotas, mas simplesmente utilizou uma figura para dar a idéia da força e autoridade de Jesus. No entanto, num contexto em que a maioria das pessoas é destra ou se pretendem destras, uma tal afirmação pode servir a um propósito mundano de valorizar diferentemente quem é destra e mesmo de sacralizar essa hierarquia: de fato em certas sociedades as pessoas canhotas foram ou ainda são estigmatizadas e mesmo demonizadas. É a hierarquia da diferença e não a diferença em si que constitui aqui o problema e que afronta e se opõe ao propósito inclusivo de Deus.
Esse mesmo processo pode ocorrer, e na verdade ocorre, em relação ao sexo dos indivíduos, de tal modo que certas interpretações de conceitos bíblicos não apenas instauram uma hierarquia sexual, como também justificam e legitimam a ordem sexual vigente, sacralizando-a. Assim, quando se toma um referencial religioso - por exemplo - o homem é o cabeça e a mulher é auxiliadora- para afirmar uma hierarquia entre os sexos, sacraliza-se a hierarquia das diferenças, quer sejam elas construídas pela própria religião, quer sejam construídas por outras instâncias sociais. Neste último caso a religião se constitui em poder legitimador de uma assimetria construída pela sociedade. Em ambos os casos, ela viabiliza a sua consecução na realidade prática.
Como a assimetria se expressa na prática? Em lugares ou papéis sociais hierarquicamente diferenciados. Continuando com o nosso exemplo: o cabeça é aquele que secularmente é tido como o chefe de família, o provedor, enquanto que à mulher cabe o cuidado da família, dos filhos. O provedor é aquele que recebe o reconhecimento econômico e social, enquanto que o cuidado da família, expresso no trabalho doméstico não é reconhecido nem financeiramente nem socialmente, mas se impõe como compromisso diante do conteúdo sagrado do papel da mulher enquanto ‘cuidadora’ do marido e dos filhos, especialmente do seu papel de mãe (e isso muito embora a concepção atual de mãe tenha se afirmado na sociedade ocidental somente no século XVIII , conforme BAUER, 2001).
Por outro lado, se o aspecto sagrado das doutrinas religiosas pode atuar corroborando perspectivas hierárquicas e práticas assimétricas na medida da persistência de interpretações baseadas em tradições, a assimilação de perspectivas mais igualitárias também podem ganhar impulso na prática, em face do sentido de compromisso ético que tal conteúdo sagrado impõe. Por exemplo, de acordo com Maria das Dores Campos MACHADO (1996:39), o uso do mesmo critério de redenção para homens e mulheres favorece “uma redefinição dos papéis masculino e feminino” entre os pentecostais, verificando-se também a busca de “aperfeiçoamento de alguns atributos do ideal de mulher predominante na sociedade inclusiva”, a “tentativa de transcender o lugar de subordinação reservado às mulheres na ordem patriarcal” e mesmo revisão radical do comportamento social e religioso dos homens, atenuando o contraste da conduta masculina em relação à feminina, especialmente no que diz respeito à dupla moral sexual. É bom lembrar contudo que, de acordo com a autora, essa perspectiva mais igualitária não chega a avançar “a ponto de derrubar a ordem hierárquica que reserva aos homens o papel proeminente de cabeça do casal e cabeça da igreja”.
As hierarquias de gênero têm conseqüências sociais
Tais atribuições de papéis, claramente hierarquizados, têm conseqüências sociais, muitas vezes mais amplas do que podemos imaginar. Conseqüências que são de ordens diversas, de acordo com os diversos aspectos das desigualdades de gênero, e se estendem às mais diversas áreas da vida social: pesquisas indicaram que até mesmo o grau de desenvolvimento tecnológico industrial possível numa sociedade depende de como se estruturam as relações de gênero nessa sociedade. No entanto, nos ateremos aqui a conseqüências que advém mais diretamente de apenas um dos muitos aspectos que derivam das desigualdades entre os sexos. Trata-se daquelas que resultam da atribuição de responsabilidade predominante ou mesma exclusiva das mulheres sobre os afazeres domésticos e cuidado dos filhos. E, na verdade, destacamos aqui apenas algumas de suas conseqüências sociais:
- resulta em desvalorização moral e monetária do trabalho doméstico, inclusive quando é exercido profissionalmente, contribuindo para a permanência de segmentações étnicas e de classe observadas na sociedade brasileira;
- justifica e legitima a omissão do Estado e o abandono de mulheres (principalmente de baixa renda) e de seus filhos pelos pais e pela sociedade, com impactos evidentes sobre a dignidade dessas mulheres e crianças, e também na segurança e na saúde pública;
-repercute também no valor do trabalho profissional das mulheres, tanto do ponto de vista monetário (menor remuneração para cargos semelhantes aos dos homens), quanto do valor simbólico (sua contribuição é sempre vista como renda auxiliar), o que por sua vez se desdobra em desvalorização geral do trabalho, com impacto sobre a renda familiar;
-o próprio espaço doméstico sofre o impacto da desvalorização das atividades tidas como femininas. De acordo com Marta PORTO (2004:140) a sociedade de consumo despreza as práticas femininas de fruir o tempo “porque se circunscrevem ao espaço doméstico”, ao mesmo tempo em que mulheres de baixa renda encontram limitações de ordem sócio-econômica para o exercício de lazer em outros espaços que não o doméstico.
Como construir a igualdade? Alguns caminhos possíveis
O texto que abre este artigo e que foi reproduzido de um manual escolar de economia doméstica para meninas, editado na França em 1960, ilustra bem o quão hierarquicamente se constituíam as relações entre os sexos até há bem pouco tempo. Hoje pode nos parecer evidente que as ações ali sugeridas não derivam de simples atos de amor da esposa pelo seu esposo, mas sim da constituição hierárquica de papéis sociais ‘masculinos’ e ‘femininos’, na medida em que valoriza diferentemente os assuntos, os interesses e o trabalho das mulheres dos homens, e que confere a estes a prerrogativa de serem servidos sem serem molestados e de fazer o que bem entenderem com o seu tempo sem serem submetidos a questionamento. No entanto há alguns anos proposições como as dessa literatura provavelmente foram muito comuns (mais do que hoje em dia quando, apesar delas terem uma apresentação mais moderna, ainda vemos circular entre membros das igrejas esse tipo de mensagens), e louvadas nas igrejas porque associadas com um ideal de submissão feminina. Ao simplesmente aceitá-lo como verdade, sem questionar se esse é o padrão de submissão que Deus propõe, não apenas nos submetemos às razões mundanas, como deixamos de cumprir o nosso papel transformador na e da sociedade. Não só perdemos a bênção que resulta de estarmos debaixo da graça e do amor de Deus, como a de sermos nós uma bênção. Mesmo com o grande avanço registrado nas relações entre os sexos desde os anos de 1960, as hierarquias sexuais ainda persistem e, como vimos, têm um custo social. Cabe a cada um e a cada uma de nós enquanto igreja de Cristo construir os caminhos rumo à igualdade a partir da coragem de uma reflexão séria e comprometida com a vontade de Deus para todos os seres humanos. Procuro contribuir aqui com algumas idéias quanto a possíveis posturas e/ou passos a serem dados nesse sentido.
Em primeiro lugar, ao afirmar que Deus “não faz acepção de pessoas” queremos afirmar que o propósito libertador de Deus se estende a todas as pessoas, independentemente de sua condição social, étnica, de raça, classe, sexo, física e intelectual. Isso remete à necessidade de desconstruir conceitos em busca da dignidade humana, do projeto inclusivo de Deus. Exemplo: se o aspecto sagrado das doutrinas religiosas cristãs atuou corroborando a escravidão durante muito tempo, a partir do momento em que compreendeu a escravidão como algo que feria a dignidade humana e, portanto, que se colocava contra a vontade de Deus, o cristianismo encontrou no conteúdo sagrado dessa nova perspectiva igualitária a força para fazer a crítica da sociedade e o sentido de compromisso ético necessário para dar impulso e efetividade prática a essa nova compreensão. O apego ao tradicionalismo, em contrapartida, pode resultar no ensino de leis humanas como se fossem mandamentos de Deus (Mt 15:8-9), ou de tradições de interpretação que podem acabar se revelando como simples adequações de padrões tradicionais mundanos a referenciais bíblicos. Exemplo nesse sentido, no que se refere às relações de gênero, está em 1Co 11:1-16 (leia atentamente, do início ao fim).
Em segundo lugar, embora devamos estar sempre atentos/as ao fato de que avanços tecnológicos podem requerer novas justificativas para legitimar seus interesses, associados a novas e/ou antigas desigualdades, manter um certo nível de sintonia com os avanços da sociedade pode favorecer perspectivas mais igualitárias. Afinal, a vontade de Deus pode mudar de acordo com o contexto histórico? O avanço da ciência, do conhecimento, das condições materiais também nos são proporcionados por Deus e ele os instrumentaliza na consecução e na nossa compreensão do seu projeto progressivamente inclusivo. E, finalmente, se faz necessário atentar para as ambigüidades e subjetividades em contextos específicos, de modo a permitir ampliar e corrigir caminhos em direção à eqüidade. Exemplo: ser responsável por administrar as finanças da casa, dependendo do contexto, pode significar mais opressão, pela sobrecarga física e emocional, ou mais autonomia para as mulheres; semelhantemente, um grande envolvimento de mulheres no trabalho da igreja pode se dar numa perspectiva de subserviência ou pode ser indicador de avanço em direção à eqüidade.
É bom lembrar, no entanto, que uma ação transformadora do mundo requer uma ação transformadora no mundo. Ela começa na própria casa, compartilhando os afazeres domésticos e o cuidado dos filhos (particularmente por parte dos homens), procurando preservar a dignidade na relação conjugal, educando os filhos e filhas na igualdade e ensinando-os que todas as tarefas, todo tipo de trabalho tem valor e deve ser respeitado e estimulando-os, também aos meninos, a partilhar os afazeres domésticos, respeitando e valorizando o trabalho e a pessoa da empregada. Promovendo esse tipo de comportamento também em outros espaços, no mínimo através do seu próprio exemplo: quando estivemos na Missão Kairós tivemos a oportunidade, todas e todos de cooperar no serviço de mesa em todas as refeições.
No ministério pastoral, saber ouvir as mulheres sem preconceitos, ou buscar ouvi-las também. Não é raro que pastores atribuam às mulheres a responsabilidade por dificuldades de relacionamento na família, mesmo sem tê-las ouvido, e sem uma perspectiva crítica dos papéis e atitudes que são socialmente exigidos de acordo com o sexo. É comum, por exemplo, que as mulheres se sintam sobrecarregadas não apenas fisicamente, mas também emocionalmente, frente à dificuldade de cumprir com todas as responsabilidades que lhe são atribuídas no trabalho, na casa e na família. No aconselhamento saber discernir os conflitos de gênero (por exemplo, casais enfrentam problemas e até se separam porque, estando presos aos seus papéis sociais, não aceitam que a mulher sustente a casa quando o homem está desempregado); em sua atuação profissional (por exemplo, você tem apreciado e valorizado igualmente o trabalho das mulheres, tem buscado que elas tenham as mesmas oportunidades que os homens em termos de cargos, funções e salários, ou tem feito acepção de pessoas?) na política (buscar, por exemplo, uma licença paternidade digna desse nome não é nenhuma vergonha e nenhum ‘atraso’ para o País - os países mais desenvolvidos do mundo que o digam) ou no evangelismo devemos atuar e promover ações que favoreçam a igualdade, e então sim, poderemos esperar que a ação de transformação do mundo seja efetiva.
Uma história, um motivo a mais para ser pela igualdade
Queremos finalizar com uma história, uma história que nos moveu em busca de explicação para a situação vivida por mulheres e crianças moradoras de um bairro central de São Paulo, mas que tem características de bairro periférico. Uma história que nos move em busca da igualdade como uma das condições de superação de realidades como essa que relatamos a seguir. A nossa igreja possuía uma pré-escola e uma congregação nesse bairro e, tendo participado durante anos desse trabalho comunitário, tomamos contato com as carências da população de baixa (ou nenhuma) renda que habita ali. Há no bairro um grande número de habitações coletivas que normalmente denominamos de cortiços, forte presença de mulheres de baixa escolaridade e baixo nível de profissionalização e sem meios de sustentar os seus próprios filhos, freqüentemente abandonadas pelos maridos/pais de seus filhos. Dada essa sua condição – de baixa escolaridade e falta de formação profissional - uma grande parte dessas mulheres sobrevivem de seu trabalho como diaristas, uma atividade pouco reconhecida e de baixa remuneração. Algumas, sendo analfabetas, encontram dificuldades de obter emprego até mesmo nesse campo e, sendo sozinhas, não encontram meios de freqüentar cursos de alfabetização de adultos - normalmente ministrados no período noturno - por não terem com quem deixar os seus filhos/filhas. Outras, para poder trabalhar quando surge uma diária, deixam eventualmente seus filhos/filhas sozinhos/as em casa, às vezes trancados/as dentro do cômodo que ocupam nas habitações coletivas, criando problemas com os inspetores públicos e arriscando-se a perder a guarda dos filhos/filhas. Muitas fazem a ronda das igrejas em busca de cestas básicas, de leite, de remédios. Outras ainda, no momento em que não encontram outro meio para fazer frente à necessidade imediata de sobrevivência, recorrem eventualmente (e não regularmente) à prostituição o que, por vezes, resulta em nova gravidez diante da falta de acesso a produtos e métodos contraceptivos.
As crianças, numerosas na região, além de estarem expostas a essa condição familiar, e de freqüentemente serem obrigados/as a ficar cuidando sozinhos/as de seus/suas irmão/irmãs menores, enfrentam uma série de outras dificuldades, como a falta de locais para estudar, brincar e desenvolver suas aptidões. Não há na região parques públicos e os locais em que residem mal lhes dão condições de estudar – é possível encontrar crianças sentadas no chão frio do corredor, à porta do cômodo que ocupam, tentando fazer juntas a sua lição ou seus estudos. A abertura das escolas nos finais de semana promovida durante um período pelo governo foi motivo de grande alegria para muitas dessas crianças, que encontraram nelas um de seus poucos espaços de lazer, além da própria igreja, para aquelas que a freqüentam. No trabalho que realizamos, com o apoio da igreja pudemos ver crianças crescerem, por exemplo, nas suas aptidões musicais, de modo que são hoje já pré-adolescentes tocando bateria ou violão ou violino. No entanto, também testemunhamos a morte de crianças. A taxa de mortalidade infantil está diretamente associada ao grau de analfabetismo das mulheres. De fato, era comum que tivéssemos que auxiliar as mulheres até na administração dos remédios às crianças pois, não sabendo ler e mesmo tendo conseguido os remédios, muitas vezes ela não sabem como aplicá-los. Mas não é só por motivos de saúde que essas crianças morrem. Por ocasião da morte de um dos meninos, assassinado na linha do trem pouco tempo depois de ter sido liberado da FEBEM, a mãe, que havia sido recentemente abandonada pelo companheiro, ficou muito abalada, e sem condições de tomar qualquer iniciativa. Alguns e algumas adolescentes da igreja foram então solicitar ao pai que comparecesse para apoiar a mãe, mas ele simplesmente os/as ignorou. Situações semelhantes a essa se repetem ali e, embora o tráfico de drogas não seja muito comum na região, o envolvimento de crianças na marginalidade é um fato.
Há, portanto, muitas carências ali que não são supridas pelo setor público, que nem mesmo as toma em conta. Afinal criar e educar filhos/filhas ‘não é tarefa do Estado e nem de homens’, mesmo que estes sejam os pais. Será que a situação seria diferente caso as pessoas pensassem diferente, caso as relações de gênero não fossem tão desiguais? Será que o valor do trabalho dessas mulheres seria reconhecido? Será que elas poderiam gozar de uma situação melhor frente aos seus companheiros, lhes exigir participação na educação e cuidado dos filhos, inclusive em termos financeiros? Será que elas - e seus filhos - seriam tão facilmente abandonados pelos companheiros e pelo Estado? Será que as crianças e a sociedade estariam mais seguras, será que teríamos um número tão grande de crianças abandonadas e marginalizadas no Brasil?
É claro que a solução desse problema não se esgota no fim das desigualdades entre os sexos, mas ela é uma condição sine qua non. Em países como a Suécia, por exemplo, os pais podem tirar até 13 meses de licença paternidade e isso não só tem permitido aos pais ficar mais tempo com os filhos, como tem reduzido o número de divórcios no país. Sem dúvida, com relações de gênero igualitárias a maior parte do percurso rumo à superação dessa realidade brasileira de abandono teria sido percorrida.
Enfim há muitos motivos pelos quais devemos nos sentir desafiados (especial e principalmente os homens) e desafiadas (as mulheres aqui não são sujeitos passivos, elas também têm uma grande parcela de responsabilidade e de contribuições a oferecer para a construção da igualdade de gênero) a perseguir a igualdade, entre todos os seres humanos, sem dúvida, mas nos referimos especialmente, ao menos aqui, à igualdade entre os sexos. Se não por saber que as mulheres são imagem e semelhança de Deus tanto quanto os homens, se não por amor àquelas mulheres que são parte da sua própria vida, sua mãe, sua irmã, sua esposa, sua tia ou sua filha, se não por querer que todas elas possam ser tratadas com a dignidade que Deus lhes reservou, se não houver qualquer outro motivo ainda que seja a sua própria segurança, ainda assim queremos desafiá-lo/a a buscar a igualdade de estatuto (familiar, econômico, político, social...) entre os sexos, ao menos por amor do evangelho, porque o próprio Jesus nos incitou a ter amor para com o nosso próximo, para com essas mulheres e crianças tão próximas de nós nas ruas e semáforos de cada cidade brasileira.
Bibliografia
BAUER, Carlos, Breve história da mulher no mundo ocidental, São Paulo, Xamã Editora, Edições Pulsar, 2001.
BEAUVOIR, Simone de, O segundo sexo: a experiência vivida, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980.
BÍBLIA Sagrada NTLH (Nova Tradução na Linguagem de Hoje), Sociedade Bíblica do Brasil, Barueri, 2000.
GEERTZ, Clifford, A interpretação das culturas, Rio de Janeiro, Editora Guanabara Koogan, 1989.
MACHADO, Maria das Dores Campos, Carismáticos e pentecostais: adesão religiosa na esfera familiar, Campinas: Editora Autores Associados; São Paulo: ANPOCS,1996.
PORTO, Marta, “Em busca de kairos” In: Gustavo Venturi, Marisol Recamán , Suely de Oliveira (orgs.), A mulher brasileira nos espaços público e privado, São Paulo, Fundação Perseu Abramo, 2004, pp.137-148.
SCOTT, Joan, “Gênero: uma categoria útil de análise histórica” In: Educação e Realidade, vol.16, nº 2, Porto Alegre, 1990, pp.5-22.
Sítios eletrônicos
Forum Vie Quotidienne, www.comlive.net/sujet-100770.html .
Folha de São Paulo, www.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2110200719.htm
Religião e afrobrasilidade
Exclusão, criatividade e transcendência
Tu és o louco da imortal loucura,
O louco da loucura mais suprema.
A Terra é sempre a tua negra algema,
Prende-te nela a extrema Desventura.
Mas essa mesma algema de amargura,
Mas essa mesma Desventura extrema
Faz que tu'alma suplicando gema
E rebente em estrelas de ternura.
“O assinalado”, Cruz e Souza (primeira e segunda estrofes).
Ao percorrer os caminhos da afrobrasilidade ao longo dos últimos três séculos encontramos as raízes que explicam a miséria da nação. As bandeiras da emancipação, da democracia e da justiça social continuam urgentes hoje tanto quanto em épocas passadas. Essas bandeiras, sociais e políticas, traduzem a fragilidade do protestantismo evangélico no Brasil, que, no correr das últimas décadas, parece ter crescido muito, mas pouco tem feito em relação aos excluídos. Embora o princípio da liberdade religiosa tenha sido parte integrante da vida e fé dos primeiros batistas ingleses e a luta pela liberdade vista como um direito humano, é importante lembrar que o protestantismo histórico brasileiro, herdeiro das tradições sulistas norte-americanas, se não foi abertamente escravista, foi condescendente e omitiu-se diante da exclusão forçada dos afrobrasileiros. E a história batista no Brasil confirma isso.
“A Denominação Batista também foi atingida pelo divisionismo ocasionado pelas atitudes frente à escravidão. Em 1845, os batistas norte-americanos separaram-se conforme o posicionamento contra a escravidão. Organizou-se a Convenção Batista do sul para abrigar as igrejas que admitiam o trabalho escravo, representando delegações de oito estados do sul escravista. Foi a Convenção Batista do Sul dos EUA que estabeleceu a Denominação Batista em solo brasileiro. (...) A guerra de Secessão, na década de 1860, concretamente demonstrou a divisão vigente na sociedade e no protestantismo norte-americano. "Nos Estados Livres, a ascensão dos evangélicos de mentalidade reformista tinha dado um novo sentido de direção e de propósito moral a uma classe média ascendente tentando se adaptar a uma nova economia de mercado. O Sul com seus degredados trabalhadores cativos e seus brancos pobres e preguiçosos - parecia estar, para a maioria dos nortistas, num processo de violação flagrante da ética trabalhista protestante e do ideal da concorrência aberta".
Após a derrota do sul dos Estados Unidos, muitos confederados, inclusive ex-combatentes, vieram tentar a sorte no Brasil, especialmente em São Paulo. A relação entre o protestantismo e a vida política, para os agentes da imigração norte-americana para o Brasil era olhada de forma maneira bastante estreita, já que parte deles, pastores protestantes, a exemplo do Rev. B. Dunn, via o país como uma nova Canaã, a terra prometida onde os confederados derrotados poderiam reconstruir suas vidas, seus lares e suas propriedades, incluindo a mão-de-obra escrava. Em seu livro Brazil, The Home for Southieners, Dunn apresentou o país dessa maneira, o que ajudou os sulistas olharem o Brasil como uma alternativa segura. O médico M. F. Gaston, por exemplo, veterano do Exército Confederado e originário da Carolina do Sul, que escreveu Hunting a Home in Brazil, faz no livro um relato minucioso das vantagens que os sulistas encontrariam aqui. O sudeste brasileiro, com terras quase virgens, era apresentado como possibilidade para bons empreendimentos. Ele disse, após ter visitado as terras da região de Campinas, que “as vantagens para o cultivo do algodão nessa região dão-lhe primazia sobre a parte meridional dos Estados Unidos. O elemento adicional do trabalho escravo está aqui apto a trazer resultados que não podem ser assegurados pelo trabalho assalariado nos Estados Sulistas; e tão logo os negros se tenham familiarizado com o modo adequado de trabalhar o algodão, poderemos antecipar uma produção excedendo a qualquer uma que já tenha sido realizada nos Estados Unidos”.
A propaganda desses agentes da imigração surtiu efeito: cerca de dois mil e quinhentos sulistas se deslocaram para São Paulo. A esperança de encontrar terras em abundância com mão-de-obra escrava mobilizou famílias inteiras. E assim chegaram as primeiras famílias batistas à colônia de Santa Bárbara D’Oeste. Porém, nem todos os batistas aqui chegados eram favoráveis à escravidão. Na verdade, os batistas tiveram duas atitudes frente à ela: os primeiros colonos eram favoráveis e foram proprietários de escravos. Já os missionários e os batistas brasileiros em geral, após a abolição, em 1888, condenaram o escravismo como incompatível com a fé cristã. Essas diferentes atitudes demonstram as dificuldades que tinham para tratar do assunto. Em Santa Bárbara D’Oeste, primeiro núcleo batista, o trabalho escravo existiu como mão-de-obra usada na agricultura e em tarefas domésticas. Os colonos batistas eram senhores de escravos, a exemplo da senhora Ellis, dona de um sítio e que providenciara hospedagem nos primeiros meses ao casal de missionários W. Bagby, fundador da Primeira Igreja Batista do Brasil. Conforme o diário da senhora Bagby, “depois de dormir uma noite na capital paulista, os missionários tomaram o trem para Santa Bárbara, onde chegaram sob forte aguaceiro. Na estação os aguardavam os enviados da senhora Ellis, com dois cavalos e um escravo, para carregar a bagagem. A estrada até o sítio estava bem lamacenta mas ao chegar, foram carinhosamente recebidos”.
Conforme conta Crabtree, a Junta de Richmond, nos EUA, ao avaliar, em 1859, as possibilidades de envio de missionários para o Brasil, admitiu que havia similaridades entre os dois países e uma vantagem que deixaria os missionários norte-americanos bem aclimatados em terras brasileiras, o fato de, em ambos os países, haver escravidão: “o Brasil era como os Estados Unidos, tem escravos e os missionários enviados pela Convenção Batista do Sul não podiam sentir-se constrangidos a combater a escravatura e assim envolver-se na política do país”.
E o missiólogo batista Donaldo Price confirma as razões de tal escolha: “Os primeiros batistas que aqui chegaram, chegaram como imigrantes, não como missionários. Chegaram depois da derrota sulista na guerra entre os estados, ou a guerra civil norte americana. E queriam vir para uma nação que ainda tivesse escravatura, assim escolheram o Brasil”.
Passados quase 120 anos do decreto que reconheceu o direito do povo negro à liberdade, a ideologia do ocultamento ainda domina o pensamento protestante. Assim, Elisabete Aparecida Pinto e Ivan Antonio de Almeida denunciam que na organização do IV Ciclo de Reflexão e Debates do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero, Etnicidade e Saúde da FALA PRETA!, em 1998, que teve como tema Religiões e a Inclusão/Exclusão de Pobres, Negros, Mulheres no Mundo Globalizado, “esta dificuldade foi percebida pela ausência (...) das Igrejas Pentecostais, Neopentecostais e Batistas. Essas instituições aceitaram o convite, confirmaram presença, porém no dia e hora marcados não se sentiram preparadas para a natureza do debate”.
Em razão da ideologia do ocultamento, é necessário entender que as bandeiras emancipatórias são indissociáveis da pregação das boas novas, e precisam ser vividas como tradução do cristianismo que professamos. Assim, ética cristã e democracia não podem ser olhadas como excludentes. Ao contrário, se complementam e precisam ser vivenciadas na Igreja e além-muros, se desejamos fazer com que o significado histórico do projeto protestante evangélico marque nossa presença no futuro da nação.
Uma hipótese de esperança: o princípio protestante
A partir dos clamores éticos da profecia bíblica, lida através da cosmovisão luterana da Reforma protestante, Paul Tillich apresentou uma compreensão da práxis cristã que ele chamou de princípio protestante. Assim, o princípio central do protestantismo seria a doutrina da justificação pela graça apenas, significando que nenhuma pessoa ou comunidade humana pode reivindicar para si a dignidade divina em consequência de conquistas morais, de poder sacramental, de sua santidade ou de sua doutrina. Consequentemente, a autonomia profética precisa sempre criticar, condenar e transformar o status quo ou os sistemas morais, políticos e sociais que se consideram sagrados. Cada protestante tem que decidir por si próprio se determinada conjuntura, doutrina ou sistema social é verdadeiro ou falso, se os profetas existentes em seu meio são verdadeiros ou falsos e se o poder estabelecido é divino ou demoníaco. Para os protestantes a decisão será sempre pessoal.
Tal protestantismo entendido como expressão crítica e autônoma existe onde quer que se proclame o poder do novo ser e onde se denuncie situações-limite que ameacem o sentido da vida. É aí que se encontra o protestantismo e em nenhum outro lugar. É possível que o protestantismo sobreviva nas religiões organizadas, mas não depende delas, talvez por isso a maioria das pessoas experimente o sentido da situação-limite fora das igrejas, já que o princípio protestante pode ser proclamado por movimentos pertencentes tanto ao domínio secular, sem qualquer filiação eclesiástica, assim como por pessoas e grupos que por meio de símbolos protestantes expressam a situação humana em face do incondicional. Se nessas situações proclama-se com mais autoridade o princípio protestante do que nas igrejas, então é aí e não nas igrejas que o protestantismo se torna vivo e atual. Tomando-se por base tal compreensão, entendemos a luta histórica do povo negro e de seus descendentes no Brasil como um clamor permanente contra situações-limites a que estiveram e estão expostos.
A chamada a um posicionamento transcendente, de resistência ao impacto da herança de exclusão deveria levar a Igreja protestante a elaborar uma mensagem para o mundo afrobrasileiro. Mensagem de esperança. Mas a igreja que não aprendeu a protestar é sempre tentada a emancipar o afrodescendente através da submissão à hierarquia e à tradição, esquecendo-se que ele já experimentou a autonomia e que esta é uma experiência transformadora.
O conceito de situação-limite traduz aquela ameaça a tudo que dá sentido final à existência, e este o diferencial do protestantismo. Esta expressão, como vimos, nasceu em torno da justificação pela graça, através fé, já que a vida em liberdade significa a aceitação da exigência incondicional de se realizar a verdade e se fazer o bem. Assim, o reconhecimento da existência da situação-limite traduz-se em juízo e transformação, realça a diferença entre a religiosidade que faz a defesa da hierarquia e da tradição e o princípio protestante. A justificação pela fé é, então, entendida a partir da situação-limite. Por isso, sem uma relação universal com o mundo ético a noção de autonomia da pessoa não basta para construir uma ética. Ou seja, não se funda uma ética protestante apenas sobre o terreno da pessoalidade. Mas é importante entender que não existe uma interpretação absoluta da essência, fonte da ética, já que essa essência não é uma grandeza estática, mas se realiza de forma dinâmica na existência. Por isso, não se pode subscrever nem a construção de uma ética social absoluta, nem uma construção de tipo racionalista. Toda compreensão real da essência e como conseqüência toda ética real são concretas. Essa essência se situa naquele momento especial, pleno de liberdade e que revoluciona conceitos, ações e destinos. A universalidade desse tempo kairótico comporta riscos concretos, já que não se move num universal abstrato, separado da situação atual, o que é válido tanto para a pessoa, quanto para a consciência ética de um grupo social, no nosso caso da brasilidade em sua relação com a afrodescendência. Exatamente por isso, toda realidade essencial comporta dois aspectos, aquele a traz de volta à origem, “ao fundamento e abismo de todo ser, e um outro que indica seu caráter particular, sua inserção na finitude”.
Assim, a realização da essência da brasilidade, em sua relação com a afrodescendência, deve se orientar em direção a ela própria, na medida em que essa manifestação de sua origem criativa remete ao que é perene nela. Exprime o que lhe é próprio, suas solidariedades no plano formal e sua finitude. Por isso, uma ética da brasilidade deve transportar ao transcendente e ao mundo, que em última instância são o bem decisivo de nossa existência concreta. Ao nos posicionarmos por uma ética que parte da essência de nossa brasilidade nos posicionamos por uma ética da vida. E tal compreensão leva-nos a estudar o desenvolvimento criativo desta essência brasileira enquanto vida que irrompe na história, criadora de um novo ser.
E a partir daí podemos afirmar que a experiência do cristianismo protestante em sua essência pode ser uma experiência transcendente ao nível da materialidade afrobrasileira, uma experiência que deve acontecer em todas as situações. Nesse sentido, tal protestantismo não poderia ser identificado com um tipo determinado de organização social, mas ser portador de poder e oferecer aos afrobrasileiros uma mensagem de vida, tanto para a pessoa como particularidade, como para as comunidades como um todo. Exatamente por isso, apresenta-se capenga toda forma de cristianismo, protestanstismo, evangelicalismo que se fecha na pura interioridade. Mas também não se pode dizer que o cristianismo do princípio protestante é um movimento que parte mecanicamente da interioridade em direção à exterioridade, apropriando-se de formas culturais afrobrasileiras ou simplesmente passando ao largo delas. Na verdade, ele toma forma a partir delas, mas também dá forma às expressões culturais afrobrasileiras. Dessa maneira, um tal cristianismo do princípio potestante está interpenetrado pela consciência experiência estética, ética e pelos modelos sociais da afrobrasilidade.
O princípio protestante, ao fundamentar-se numa ética do amor-companheiro, daquele que parte e reparte o pão, tem uma postura crítica diante da ordem social que se apóia na opressão e na exclusão social. Nesse sentido, clama pela necessidade de uma ordem na qual o sentido de comunidade seja o fundamento da organização social. Esta ética do amor propõe uma economia solidária onde a alegria não seja fruto do ganho, mas do próprio trabalho. E condena o egoísmo de classe, onde cada qual procura enriquecer através da exploração de seu próximo e das conseqüências desse processo, como o privilégio da educação para uma elite. Tais pecados sociais são limitação do bem, porque impedem a universalização do amor;
alienação da vontade, porque degradam a possibilidade de escolha dos agentes morais; e
dependência do mal, porque aprofundam raízes e escravizam a comunidade. Diante disso o princípio protestante propõe que se enfrente tais pecado com
autonomia crítica, solidariedade e transformação social, por acreditar que tais posicionamentos políticos geram justiça, paz e participação solidária.
Ora, se rupturas espirituais estão sempre associadas a rupturas econômicas, da mesma maneira que um processo de unidade espiritual vem associado a um processo de unidade econômica, como considerou Tillich, o fracionamento espiritual característico de nossa épocas traduz fracionamento econômico, distanciamento e choque entre classes. Tal situação nos exorta a buscar a construção de um novo processo cultural de unidade de onde brote unidade e solidariedade social e econômica, mas também espiritual. Ora, se é viável sonhar e lutar por processos de desenvolvimento que combinem mudanças espirituais e transformações econômicas e sociais, podemos afirmar que o protestantismo está eticamente obrigado a fazer uma escolha, ou participa do processo, atuando a favor desse desenvolvimento ou entra em processo de caducidade, ao afastar-se da vida real das comunidades afrobrasileiras nas quais está inserido.
Seja qual for a nossa opinião ética sobre a relação protestantismo/afrobrasilidade, um fato deve ser ressaltado: é necessário para o protestantismo manter um relacionamento com as pessoalidades, comunidades e cultura afrobrasileira, já que a rejeição da afrobrasilidade em nome de um protestantismo sem raízes contradiz a universalidade do cristianismo. E se o cristianismo não somente pode, mas deve manter um relacionamento com a afrobrasilidade, devemos nos perguntar se o contrário da premissa é verdadeira: pode a afrobrasilidade ter um relacionamento construtivo com o protestantismo? Para muitos, a tradição histórica de ausência e negação da negritude nega a possibilidade dessa aproximação, mas devemos ver que tal concepção mais que nada traduz uma relação de causalidade ideológica. Por isso, as pessoalidades, comunidades e culturas afrobrasileiras estão desafiadas a construir atitudes diferentes em relação ao princípio protestante e em relação às estruturas ideológicas do protestantismo. A história do protestantismo no passado e no presente é passível de muitas críticas. Suas opções fizeram como que dificultasse seu relacionamento com parte da população afrobrasileira excluída de bens e possibilidades. Mas, ao contrário do que pode parecer, não podemos dizer que a ideologia branca do protestantismo de missões seja um fenômeno constitutivo do protestantismo. Antes, é uma herança da cultura burguesa.
Embora, haja razões históricas para criticar o protestantismo, erramos quando negamos a existência da base solidária do ideal cristão. Quer dizer, há setores do movimento de resistência do povo negro que vê com desconfiança o protestantismo. Mas, se as idéias de emancipação do povo negro não traduzem nenhuma oposição essencial, de princípio, ao cristianismo que vive o princípio protestante, aos cristãos cabe ter uma atitude solidária e fraterna com as reivindações e lutas da afrobrasilidade. Atitude solidária e fraterna deve ser entendida como a realização do princípio do amor cristão, que entende a necessidade de eliminar as condições que geram miséria e exclusão. Tal atitude traduz a urgência de combater os fundamentos da exclusão racial e social e de ações para a construção de uma outra ordem social, que inclua excluídos e desapropriados de direitos e bens. Isto porque o princípio protestante só existe como ideal ético quando traduz anseios e esperanças dos mais variados setores das comunidades.
A escravidão gerou miséria e exclusão
Joaquim Nabuco foi o primeiro brasileiro a apresentar uma visão globalizadora de nossa formação histórica. E o fez numa pequena obra de propaganda: O Abolicionismo. Nela, ele mostrou que a escravidão, que durou três séculos, não constituía um fenômeno a mais, de modo que deveria ser analisado em igualdade de condições com a monocultura e a grande propriedade agrária.
Para Nabuco, foi a escravidão que formou o Brasil como nação. Ela é a instituição que ilumina a compreensão de nosso passado. E é a partir dela que se definiram entre nós a economia, a organização social, a estrutura de classes, o Estado, o poder político e a própria cultura. A escravidão foi a protagonista por excelência da história brasileira. Historiadores, sociólogos e antropólogos começam a entender assim; porém, como representantes da Igreja, nós protestantes, raramente reconhecemos essa dívida intelectual, cultural e social. O autoritarismo tão típico de nossa elite, a dificuldade na construção da cidadania e a exclusão social estão intimamente ligadas a esses trezentos e setenta anos de escravidão e são as heranças trágicas da brasilidade. Assim, a escravidão gerou miséria e exclusão.
Nossa cultura relacional e os seus códigos devem ser entendidos a partir de uma chave dupla: é necessário partir das matrizes antropológicas, mas não se pode esquecer as pressões globalizantes. E as matrizes antropológicas foram construídas a partir da polaridade de dois mundos e de duas realidades que têm suas origens com a escravidão: a casa, enquanto dimensão social permeada de valores, de espaços exclusivos e lugar moral, e a rua, enquanto movimento, trabalho, tripalium. Essa situação traduz a relação existente entre senhores e escravos. A afirmação antropológica do padre Antonil, nosso primeiro economista, no século dezoito, de que “o Brasil é um inferno para os negros, um purgatório para os brancos e um paraíso para os mulatos” não é uma constatação biológica. Era um inferno para os negros porque para estes não havia esperança a não ser a morte, geralmente prematura. Para os portugueses era o purgatório porque estes acreditavam na possibilidade de fazer fortuna e voltar a Portugal. E era um paraíso para os mulatos porque estes já livres da escravidão: podiam transitar entre brancos e negros, crescendo em importância social pelo papel mediador que lhes era confiado.
Assim, o paraíso aqui é definido como resultante de um relacionamento cultural. Locus do mulato ou mulo, animal ambíguo, híbrido, incapaz de reproduzir-se enquanto tal. Apesar da grosseria racista do termo, será ele aquele que rompe a dualidade cultural, tão típica das sociedades protestantes e calvinistas, que opõe bem e mal, deus e diabo. Aqui, ao contrário, com a construção da cultura afrobrasileira e com o mulato, dá-se a síntese que traduz nossa cultura relacional.
Ótimo exemplo é o nosso Macunaíma, um herói sem nenhum caráter, de Mário de Andrade. Nos países de cultura protestante burguesa, o negativo é o que está no meio. Aqui, o que está no meio é a virtude.
Antonio Manzatto (1994) analisa a antropologia dos personagens amadianos. Para ele, Jorge Amado vai além do regionalismo e realiza uma síntese magistral da identidade do brasileiro, extrapolando os marcos estéticos da literatura, para formalizar as bases da cultura relacional afrobrasileira, embora não faça a crítica do que se esconde atrás e por baixo da aparente cordialidade do brasileiro.
A cultura relacional esconde a injustiça social e a opressão sexual. Afirmamos que o Brasil foi formado por três matrizes: brancos, índios e negros, o que, filtrado pela cultura relacional, leva a uma ilusão, a uma mentira, como se brancos, índios e negros tivessem optado pela construção do país. A verdade é que portugueses brancos e aristocráticos exterminaram índios e escravizaram negros.
Claude-Lévi Strauss em O cru e o cozido (1964) nos leva a conhecer, por meio de uma abordagem estruturalista, como foi determinante no desenvolvimento da humanidade a passagem da alimentação crua para a cozida. A partir do título de inspiração culinária, Claude-Lévi Strauss refere-se às exigências do corpo e aos laços elementares que o ser humano mantém com o mundo. Assim, através da oposição aparentemente trivial entre o cru e o cozido, apresenta a força lógica de uma mitologia da cozinha, tal como concebida pelas tribos sul-americanas. Depois, traz a tona as propriedades gerais do pensamento mítico, onde descobrimos uma filosofia da sociedade e do espírito. E é interessante que este pensamento mítico vai empapar a cultura relacional brasileira.
No Brasil há um código relacional que traduz uma equivalência entre comida e sexualidade, que tem como fundamento o prazer, e apresenta novos parâmetros para o cru e o cozido, relacionando alimento, comida e sexo.
Para a cultura afrobrasileira, alimento é o que mantém os seres vivos, a comida, aquilo que dá prazer, e o sexo é sempre um tipo de comida. O alimento é geral e universal, mas a comida dá identidade e, como conseqüência, quem come tem o controle. O alimento cru por excelência é a salada, algo de pouco sabor, sem maiores atrativos, diferente da comida que é bem cozida, como papa ou pirão. O alimento é aquilo que é difícil de engolir, já a comida é arroz com feijão, síntese da afrobrasilidade. Herdeiros que somos das culturas das irmandades de angolanos, benguelas, jejes, nagôs e outras, onde o cuidado pela preservação da vida da comunidade cabia à mulher, na cultura afrobrasileira é ela quem faz a mistura e quem dá a comida. E mulher é dona Flor, moquequeira dengosa, articuladora de temperos, de cama e mesa. Ou Gabriela, de cravo e canela.
Tempo e construção da vida
Na cultura relacional afrobrasileira, o tempo vivido disputa com tempo lembrado. O tempo vivido é a rua, o movimento, é o tripalium. O tempo lembrado é o sonho, é o que foi e que deveria continua a ser. O tempo vivido é o suor e o cansaço.
A festa é a ruptura do tempo vivido. É o momento em que o corpo deixa de ser gasto pelo tripalium e é gasto pelo prazer. Talvez por isso, o maior acontecimento relacional da afrobrasilidade é o carnaval. É o momento do contrário. Troca-se o dia pela noite, a casa pela rua. A regra é o excesso. Não é uma festa de máscaras mas de fantasias. É uma leitura da liberdade considerada fim das regras e convenções. Vive-se o fim da miséria, o fim da escravidão, o fim do pelourinho. É a utopia socialista em versão brasileira. Todos somos iguais diante da possibilidade do prazer. Ou como canta Ney Matogrosso:
“Não existe pecado do lado de baixo do Equador / vamos fazer um pecado rasgado / suado / a todo vapor / me deixa ser teu escracho / capacho / teu cacho / diacho / riacho de amor / Vê se me usa / abusa / lambuza / que a tua cafusa não pode esperar / quando a lição é de escracho / olha aí / sai de baixo / que eu sou professor / deixa a tristeza pra lá / vem comer / vem jantar / sarapatel / caruru / tucupi / tacacá / vê se me esgota / me bota na mesa / que a tua holandesa não pode esperar / deixa a tristeza pra lá / vem comer / vem jantar / sarapatel / caruru / tucupi / tacacá (Ney Matogrosso, Não existe pecado ao sul do equador”.
Letra e música: Chico Buarque e Ruy Guerra. In: "Feitiço Elektra", 1978.).
Os códigos da afrobrasilidade caminham a par com a questão racial. A solução relacional para a injustiça social é a miscigenação e para a opressão sexual, o sincretismo. A oposição entre cultura latina, cultura indígena e cultura negra não se tornaram irreconciliáveis, mas deram origem a uma síntese, que é a cultura popular afrobrasileira.
Essa cultura mestiça, essa síntese, é entendida como a maneira de o brasileiro viver a vida, seu gosto pela festa, pela música, pela dança, pela comida e pelo sexo. Mostra uma forma de viver em que a vida não é algo acabado e definido, mas que se vai construindo no concreto do cotidiano vivido. Essa é uma característica muito especial da cultura relacional afrobrasileira, na qual a vida tem de ser reelaborada a cada dia. Não é uma forma cultural fixa, mas vai-se modificando conforme se vai vivendo.
Esses dados são fundamentais para se entender a questão da identidade do afrobrasileiro. Sua identidade não existe como algo dado. Também a identidade vai sendo construída, e os elementos externos e as pressões mais novas (isto é, globalizantes) vão sendo deglutidos e vividos no hoje que se vive.
A cultura relacional afrobrasileira
O concreto e imediato da vida do afrobrasileiro o leva a ser um ser relacional. Mais do que estar situado diante das coisas e da natureza, o realizar-se do afrobrasileiro como ser dá-se através do relacionar-se. Assim, não se considera prisioneiro do destino, das forças das coisas ou da natureza.
É um ser que procura aliados, quer para a realização de seus prazeres, quer para enfrentar os desafios impostos por elementos ou realidades alheias a seu cotidiano. A essa procura de alianças, o afrobrasileiro chama de amizade e companheirismo. E se ele pode relacionar-se com seus pares, também o pode fazer com a transcendência. Para o brasileiro, o relacionar-se com o transcendente jamais significa uma negação do humano. Daí a intimidade que aparenta ter com a divindade.
Nas religiões afrobrasileiras, que nasceram do sincretismo, das quais a Umbanda talvez seja o caso mais peculiar, os elementos constitutivos da personalidade dos orixás são traduções antropológicas do afrobrasileiro, inclusive de seus códigos relacionais.
Tanto o ideal de liberdade como outras características do afrobrasileiro traduzem uma profunda dimensão coletiva. Isso não elimina ou massacra sua pessoalidade, mas, na maioria dos casos, lhe permite reafirmá-la. E o massacre não acontece porque o afrobrasileiro é coletivo e comunitário, mas porque não sobrevaloriza as estruturas sociais. Assim, ao desprezar as estruturas, ao negar qualquer redução ao papel de simples engrenagem, reafirma a amizade e a solidariedade como formadoras do coletivo. Para ele, a liberdade, a amizade e a solidariedade acontecem na comunidade. É difícil imaginar o afrobrasileiro solitário. Ao contrário, a imagem cultural e social que temos dele, e que toda a cultura popular reflete é a do homem e mulher cercados de amigos, conhecidos e parentes. A sua práxis religiosa é sempre coletiva. A religião é sempre um acontecimento comunitário, quer falemos da Umbanda ou do pentecostalismo popular. Para o afrobrasileiro, a religião não pode ser vivida individualmente. A idéia de que a religião é questão de foro íntimo é uma abstração branca, calvinista ou tridentina. Ao contrário, na cultura afrobrasileira todos discutem a religião do outro, opinam e querem vê-lo junto na mesma comunidade.
E em relação às festas não poderia ser diferente. E festa implica comida, música e dança. Em condições normais, o afrobrasileiro não come, nem bebe sozinho. A comunidade é o espaço onde sua pessoalidade e criatividade atingem os níveis mais altos.
A criatividade afrobrasileira
Um pensamento protestante que parta da realidade da cultura relacional afrobrasileira não pode desrespeitar a negritude. Não pode negar o mundo negro considerado parte integrante da humanidade criada à imagem e semelhança de Deus. Ao contrário, deve partir da realidade antropológica da criatividade afrobrasileira, que em amplo espectro se traduz numa antropologia da aventura e do risco enquanto fonte da liberdade que busca.
Razões geográficas, históricas e raciais, nos últimos três séculos, levaram ao mergulho no desconhecido e plasmaram no afrobrasileiro essa atração pela aventura e pelo risco. O afrobrasileiro ama o desafio, não como futuro planejado, mas como espaço para a criatividade. Para ele, desafio é sempre se lançar à aventura da ruptura de regras, é dizer não às convenções e sobreviver pela coragem.
Quando enfrenta esses desafios, que vai da sobrevivência no trapézio da economia informal ao transformar-se em Mané Garrincha nos gramados do mundo, está de fato modelando sua identidade. Mulato, não teme mergulhar nos desafios da cultura branca e globalizada.
Aventura implica a possibilidade do fracasso. E fracasso faz parte do risco. Mas ao viver a dialética desse movimento, o afrobrasileiro constrói sua identidade, ainda que a um preço muito alto. Na verdade, é fazendo assim que ele sente-se livre e dá asas à sua criatividade, sem se preocupar com a construção do futuro. E se não fosse assim não estaríamos diante do afrobrasileiro.
A dificuldade em globalizar o afrobrasileiro repousa aí: na cosmovisão de que a vida humana deve ser entendida como aventura e prazer. Como algo que não pode ser planejado, organizado, dimensionado, mas vivido. Dessa maneira, viver é estar aberto ao novo, ao desafio, ao que ainda não foi vivido, nem mesmo se planejou viver. A ação antropológica do afrobrasileiro nasce da possibilidade de escolher a vida que sonha viver, que ele tem liberdade para escolher viver. Nesse sentido, quer viver a cada dia um novo sonho. E como para ele ficção e realidade se entrelaçam, sua maior construção é o carnaval, já que gira ao redor da festa e do prazer. Comida e sexo, futebol e carnaval surgem como expressões maiores da possibilidade da utopia.
O pensamento protestante não pode estar preocupado em adaptar o homo afrobrasiliensis à globalidade banalizadora, mas em entender os elementos da imago Dei que permeiam essa riqueza civilizatória.
A busca do transcendente
A afrobrasilidade é um modo de ser, uma maneira de existir. O afrobrasileiro não se diferencia simplesmente pela sua cor de pele. A pele negra tem uma história, uma história de negações e de resistências. É preciso, pois, compreender que o afrobrasileiro se autocompreende, num primeiro momento, em sua história de negação, e por isso se afirma negro. A afrobrasilidade é afirmação deste que é negro e negra: é negação da negação. Este afrobrasileiro, destituído de sua história, vive imerso em si mesmo e numa sociedade que promove a ruptura de seus valores étnicos, sociais e culturais, mas quer iniciar uma outra história, onde não é João ninguém, Maria nenhuma.
Mas a história do povo negro não começa com a escravidão. Afirmar a afrobrasilidade é afirmar uma proposta em que a afrobrasilidade é mais do que uma evidência, é afirmar uma história que foi excluída. Implica compromisso com a causa de um povo. Se a cultura relacional afrobrasileira tem um caráter mágico, fortemente empapado no maravilhoso, isso se dá porque o dia-a-dia desse ser humano está ligado à busca da transcendência. Nesse sentido, o elemento que vai além e ultrapassa o concreto do dia-a-dia do afrobrasileiro é o transcendente.
Essa presença do maravilhoso caldeia toda a malha relacional, indo do afrobrasileiro simples ao que alcançou o sucesso e a glória. É importante, no entanto, entender que o maravilhoso relacional da cultura afrobrasileira não nasceu de um processo pacífico, mas violento, do choque entre o universo transcendental de brancos e a matriz sacralizadora da natureza da religiosidade negra. A contra-reforma produziu genocídio e escravidão, macerando o universo religioso de povos e nacionalidades.
A recuperação da história do povo negro como tradição e cultura liga-se à necessidade de conscientização da identidade afrobrasileira. Aquele que esquece nega o esquecido, reprimindo ou suprimindo. A identidade está imbricada à memória. Evocar a memória é provocar e transformar.
Dessa maneira, reconhecendo os elementos negativos da cultura relacional afrobrasileira, que se traduziu na tentativa de esconder as injustiças sociais sofridas, podemos resgatar o que ela construiu de positivo. Afirmar a cultura à qual pertencemos é o primeiro passo para construir um pensamento protestante afrobrasileiro, que compreenda a identidade do povo negro em sua busca de felicidade e transcendência.
A antropologia mostra-nos um afrobrasileiro em busca da felicidade imediata e da transcendência, possibilitando ao pensamento protestante uma compreensão dos elementos da revelação e da imagem de Deus aí embutidos. Não devemos temer o afrobrasileiro, mas conscientemente reconstruir raízes e memória. Esse caminho dará fundamentos a velhos sonhos, traduzirá a boa notícia como resposta imediata e concreta para a utopia que se desfaz na quarta-feira de cinzas.
Ser negro traduz metanóia e por isso a afrobrasilidade constitui-se num desafio não só para os negros. A afrobrasilidade deve ser uma práxis, uma atitude de resgate diante da história de negação do negro. Desse ponto de vista, colocar para a nova igreja a afrobrasilidade como princípio protestante implica resgate de uma história de sofrimento e dor e redenção diante das possibilidades que estes sofrimento e dor construíram. O lugar fundamental da gestação da afrobrasilidade do ponto de vista do princípio protestante dá-se no locus da comunidade negra, espaço de formação da identidade negra, como vida resgatada. Mas, considerando que o princípio protestante possui dimensões que transcendem o locus, é importante estabelecer paradigmas que o viabilizem. Paradigmas esses que possibilitem a cada comunidade traçar seu caminho de liberdade, de acordo com sua realidade e necessidade, sem perder o vínculo com o conjunto da mensagem de redenção. Nesse sentido, não basta construir um pensamento da negação, mas um pensamento da afirmação da afrobrasilidade. Não somente uma práxis do protesto, mas uma práxis da proposta, uma práxis da libertação que permita levar a riqueza dos sonhos ancestrais à sociedade afrobrasileira de conjunto.
Num primeiro momento, abertura à transcendência é sofrimento e cruz. Motor da liberdade cristã, quando esta se revela no aspecto da supressão do ser humano imediato. É a exigência de romper com o existente aceito. Essa ruptura, no entanto, exige persistência na determinação e no sofrimento em nível imediato, sem a qual não há liberdade dentro da ordem existente (Ballestero, 1970, p.110-111).
Contudo, abertura à transcendência não se resume a esse primeiro momento. Na verdade, é diametralmente oposto a ele, traduz outra realidade, outra natureza. A unidade transcendência/humilhação/cruz é superficial como realidade imediata. Por isso, a emergência da transcendência passa pela morte do mundo, porque a realidade entrou em caducidade. Sofrimento e cruz refletem essa impossibilidade de vida e de eternidade. A transcendência é regeneradora porque acontece no mais fundo da própria raiz humana. É no momento da morte de seu consciente, que o mais profundo da intencionalidade humana se revela.
A interioridade cristã não é consciência cartesiana. É um tempo de negação de todo objeto possível, tempo de vazio interno que possibilita a abertura ao sagrado. É nesse momento que a transcendência aparece como disponibilidade transparente da consciência. Dessa maneira, a transcendência do afrobrasileiro não pode realizar-se a não ser como articulação viva da subjetividade e como sua obra. A morte do afrobrasileiro imediato é o ato que faz possível ressurgir o verdadeiro afrobrasileiro, a partir daquilo que lhe é inalienável e próprio. Fazendo uma releitura de Lutero podemos dizer que o cristão “é servo em tudo e está submetido a todo mundo”, então... o cristão “é senhor de todas as coisas e não está submetido a ninguém” (Luther, 1955, p. 225).
Se entendermos a dialética desse processo, teremos elementos para construir uma práxis afrobrasileira do princípio protestante. Uma práxis que parte da negação, mas vai além, transcende, e que fará de todos nós senhores da vida que nos foi entregue.
Tu és o Poeta, o grande Assinalado
Que povoas o mundo despovoado,
De belezas eternas, pouco a pouco...
Na Natureza prodigiosa e rica
Toda a audácia dos nervos justifica
Os teus espasmos imortais de louco!
“O assinalado”, Cruz e Souza (terceira e última estrofes).
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Mitos da religiosidade evangélica brasileira
“O velho protestantismo está cada vez mais distanciado dos novos movimentos de lastro cristão. Não se pode mais ignorar as significativas diferenças que há entre eles, sob pena de cometer equívocos nos resultados das pesquisas. O pesquisador atual não pode furtar-se ao, às vezes, penoso labor de precisar classificações e conceitos. É preciso que distinga bem, ao estudar qualquer novo movimento religioso, o limite exato em que o velho protestantismo deixa de estar presente. Quando seus princípios básicos de liberdade – a justificação pela fé, a sola scriptura, o livre exame e o sacerdócio universal dos crentes – não estiverem presentes ou se apresentarem obscurecidos por outras práticas religiosas, não há mais protestantismo”. Antonio Gouvêa Mendonça.
A academia em suas análises sobre o fenômeno evangélico brasileiro na alta-modernidade urbana criou três lugares comuns: mercado, trânsito religioso e fundamentalismo. Na verdade, essa leitura reducionista da realidade traduz um defeito que nasce de suas bases teóricas de análise, fundamentadas sobre os trois petits cochons da sociologia: Marx, Durkheim e Weber. É a partir dessa trindade que nossos estudiosos se debruçam sobre o fenômeno religioso. Esses três pensadores das ciências sociais, por mais importantes, tinham em comum um ponto de partida no mínimo questionável: a idéia de que a religião é sempre conseqüência, resultante de fenômenos ou situações sociais e nunca fenômeno fundante, embora relacional com contexto cultural de época, situação e geografia.
Quando o fenômeno evangélico explodiu no Brasil, a partir dos anos 1950, a sociologia brasileira encontrava-se desarmada para analisar e entender o que estava a acontecer. Isto porque suas bases situavam-se nos século dezoito e dezenove. É verdade que grandes processos de revolução religiosa já tinham acontecido no mundo moderno, a começar pela Reforma na Europa, com seus desdobramentos continentais nos Estados Unidos. Isso só para falar do movimento protestante no Ocidente. Mas conhecemos as dificuldades de Marx para entender o fenômeno religioso como fundante e criador de contextos e novas relações dentro de determinada sociedade. Durkheim embora caminhe no sentido de entender estruturalmente o fenômeno religioso, construindo conceitos e parâmetros a partir das religiões antigas, ditas primitivas, e não monoteístas, formata leituras que até hoje são recitadas como compreensões definitivas sobre o fenômeno religioso, as estruturas dessas instituições e a relação entre líderes e fiéis. Depois que Marx entrou em declínio com o fim do pensamento soviético, fato marcado nas universidades européias, Weber foi tirado do ostracismo e passou a ser reverenciado, assim como todo o historicismo alemão. Ora, se partimos daqueles que influenciaram o historicismo de Weber, em especial Ritschl e Troeltsch, vemos que eles consideravam o fenômeno religioso que estudavam típico ao Ocidente e, mais ainda, europeu. Dessa maneira, Weber entendeu o calvinismo como base para a expansão do capitalismo nos Estados Unidos, principalmente.
Assim, o que poderia fazer a sociologia brasileira diante da explosão do fenômeno evangélico no Brasil a partir dos anos 1950? Ora, voltar aos pais da sociologia. E assim foi. E assim é. E a explosão do fenômeno evangélico passou a ser vista como efeito de causas como a migração, a urbanização e a ruptura com a estrutura agrária e patriarcal. Mas, com a débâcle do marxismo, nos anos 1980, e o boom neoliberal que varreu o mundo, a sociologia trouxe o neoliberalismo travestido de espírito crítico para dentro da casa e passou a ver o fenômeno evangélico no Brasil como um subproduto do mercado capitalista. Donde, as idéias de mercado e seus componentes se transformaram em conceitos da sociologia e instrumentos de análise para o fenômeno religioso. Vendo dessa maneira o fenômeno evangélico, a sociologia reduziu o fenômeno, jogou fora todas as experiências anteriores que ajudaram a construir o Ocidente protestante e criou outro conceito, o de trânsito religioso. E tudo que passou a acontecer no Brasil virou trânsito religioso. Mas e antes em outras regiões do planeta? Foi o trânsito religioso que mudou a cara da Alemanha, dos países nórdicos ou mesmo da Inglaterra e Estados Unidos? Porque lá podemos utilizar o conceito de conversão trabalhado por Weber e por que não aqui? Sabemos, claro que sabemos, que as condições são diferentes. Mas, em relação ao fenômeno evangélico brasileiro duas componentes dificultam a análise: o preconceito diante de algo que impacta e desnorteia o mundo acadêmico e a limitação de suas bases teóricas.
Definidos assim os limites necessários, afirmamos a importância de Marx, Durkheim e Weber para a sociologia e para todos aqueles que se dedicam ao estudo da religião. Mas aqui queremos utilizar como referencial um trabalho de Paul Tillich só agora traduzido para o português: Teologia da Cultura. Desejamos, dessa maneira, a partir da teologia da cultura e de teóricos como Bauman, Mendonça, Robertson e Santos analisar a relação entre evangelicalismo, urbanização e a busca por fundamentos, e construir uma leitura própria dos caminhos transitados pelo evangelicalismo urbano brasileiro, em suas diferentes formas.
Caminhos da espiritualidade
Uma das questões que nos perguntamos quanto relacionamos cidade e religião é se, de fato, o evangelicalismo outorga sentido às massas urbanas. Na verdade, podemos dizer que o ser humano é um ser potencialmente espiritual, e que essa espiritualidade pode se expressar de várias formas, mas que a religião no mundo urbano, nos grandes centros brasileiros, ocupa um espaço privilegiado enquanto tradução dessa espiritualidade, isso é verdade. Ora, a espiritualidade é a dimensão da profundidade do espírito humano e no mundo urbano brasileiro essa busca, por vários fatores, é incrementada e direcionada ao evangelicalismo. Basta ver que no Brasil urbano a igreja evangélica cresceu 267% nos últimos dez anos (Ronaldo Lidório, Rede Sepal). Assim, se a população brasileira urbana é religiosa, essa religiosidade é catalisada pelo permanente processo de evangelização protestante dos últimos 150 anos.
Que a espiritualidade traduzida nas religiões das cidades da alta modernidade está presente em todas as ações do espírito humano, na ética, na estética, no conhecimento, isso é fato registrado pelas ciências da religião e pela teologia. Por isso, quando na cidade alguém conscientemente rejeita a religião, ou seja, se diz agnóstico ou ateu em nome de uma ética, de uma estética, ou por causa da busca de conhecimento, está a rejeitar a religião em nome da religião. Isto porque ela é o fundamento, a profundidade e a substância da vida espiritual do ser humano.
Em razão disso podemos dizer que enquanto fenômeno urbano o evangelicalismo é fator de agregação e desagregação. Podemos, até explicitar essa dualidade com um exemplo recente. Durante os anos da ditadura militar no Brasil, algumas igrejas e denominações apoiaram o governo militar, a repressão, e tivemos até casos de torturadores protestantes e evangélicos, membros de igrejas importantes. Assim, o evangelicalismo é desagregador quando se liga à corrupção, ao clientelismo e às benesses. Mas agrega quando defende a vida humana. Com isso, constatamos que o evangelicalismo pode ser uma coisa ou outra ou mesmo, dialeticamente, ambas.
A busca por fundamentos
A Reforma desde os seus primeiros momentos buscou fundações. Conhecemos os princípios basilares apresentados por Lutero: a justificação pela fé, a sola scriptura, o livre exame e o sacerdócio universal dos crentes. A partir desses conceitos de liberdade, que depois foram acrescidos, surgiu um conjunto de princípios em cima do qual se levantou a teologia reformada. Tal construção foi vista como base que legitimou e autorizou a expansão de uma das maiores revoluções religiosas da história humana. E, assim, surgiu a teologia reformada como fundamento de todos os protestantismos e também dos evangelicalismos, com seus diferentes matizes e leituras.
“Seu apego à letra da Bíblia, ao mesmo tempo em que a interpreta dogmaticamente, tem engessado o protestantismo no cipoal da ortodoxia mais fria que pode existir. O fundamentalismo, além de violar o sagrado princípio da Reforma, que é livre exame – por ter-se especializado em publicar Bíblias com notas e referências, verdadeiros tratados teológicos --, voltou a submeter o protestantismo a um simples sistema de crenças ao qual o fiel se submete intelectualmente. A extrema racionalidade fundamentalista, com sua filosofia da história – história linear construída em etapas ou dispensações em que a última encerra com a segunda vinda de Cristo para iniciar o milênio --, levou o protestantismo ao desinteresse total pelo mundo. O pior nesse sistema é que o esperado milênio deverá vir com a derrocada do mundo a fim de cumprir todas as profecias bíblicas. É, assim, a mais estranha filosofia: quanto pior, melhor”.
O Brasil desde 1940 vem numa acelerada marcha de urbanização. Em 1940, 30% da população do país, 40 milhões de pessoas viviam em cidades. Em 2006, 56,3 milhões de brasileiros viviam nas nove maiores regiões metropolitanas do país. Segundo dados do IBGE (2007), hoje 83% da população moram em cidades, 140 milhões de habitantes. Portanto, 8 em cada 10 brasileiros vivem em núcleos urbanos.
E o movimento protestante/evangélico soube montar a cavalo no processo de urbanização brasileiro. A procura protestante/evangélica por fundamentos é uma mostra de que o movimento não traduz um movimento espontâneo, mas procura construir raízes que lhe deem estabilidade e permanência. As antigas construções institucionais e religiosas brasileiras, primeiramente calcadas no catolicismo rural e depois no protestantismo de migração e de missão, estão presentes nessa procura evangélica por fundamentos e são um fenômeno urbano. E por ser a alta modernidade líquida e fluída, sem definições precisas e sólidas, o movimento protestante/evangélico urbano necessita um permanente olhar a frente. Assim, as necessidades estruturais da sociedade brasileira e o descontentamento nem sempre definido e claro das populações urbanas fornecem elementos para a compreensão da busca de fundamentos por parte dos novos movimentos evangélicos presentes no espaço urbano brasileiro.
Ao acrescentarmos a variável urbanização à alta modernidade, entendemos que a procura por fundamentos é também produto da globalidade e que, embora possa assumir formas antiglobais, sua tendência é partilhar as características da globalidade. Ou seja, a alta modernidade surge como desequilíbrio e traz insegurança para as massas. E o movimento protestante/evangélico, calcado em fundamentos, apresenta-se como opção de sentido de vida e esperança para essas mesmas massas. Por isso, não podemos dizer que o fenômeno protestante/evangélico urbano brasileiro seja mero produto da correlação entre urbanização e alta modernidade.
Os estudos publicados pelo IBGE mostram que, em 1970, a população protestante/evangélico tinha 4,8 milhões de fiéis. Em 1980, passou a marca dos 7,9 milhões. Em 1991, avançou a barreira dos 13,7 milhões. Em 2000, acima de todas as previsões estatísticas, ultrapassou os 26 milhões de adeptos. Durante a década de 90, a velocidade de crescimento da igreja protestante/evangélica foi quatro vezes maior que a da população brasileira. Atualmente, o movimento como um todo tem 20% da população, ou seja, 35 milhões de adeptos.
Devemos reconhecer, porém, que a multiculturalidade brasileira tem suas correlações com a globalidade, e que não há cidades de refúgio na temporalidade globalizada. As culturas brasileiras estão integradas na ordem de um conjunto maior que é a própria brasilidade na alta modernidade, integrada cultural e economicamente à globalidade da produção e do consumo capitalistas. Assim, dentro desse panorama, o protestantismo evangélico, em seus diferentes matizes, leva a uma viagem da tradição em direção à alta modernidade.
Uma das características do fenômeno religioso urbano, e aí se enquadra o movimento protestante/evangélico em seus diversos matizes, é a procura por fundamentos. Tal tendência pode ser ilustrada nas propostas de volta às tradições históricas da Reforma, o que aparentemente entra em choque com a globalidade. Mas essa volta às tradições históricas faz parte da própria globalidade. É o lado misterioso dela. Assim, há uma procura pelas tradições históricas do protestantismo brasileiro, o que implica em ressignificar o estudo e a interpretação da Bíblia, o louvor e a adoração nas igrejas e até mesmo os currículos de faculdades de teologia. A caminhada em direção às tradições históricas, à nacionalização do culto e à compreensão da teologia parte dessa luta da alta modernidade pela busca da autonomia e da expressão local, mas traduz também o desejo, e aí entra a globalidade, de que a igreja local contribua para a espiritualidade mundial.
O estímulo da alta modernidade às expressões das religiosidades locais implica numa combinação sincrética de práticas ditas locais com adaptação às práticas alheias às circunstâncias locais. Assim, expressões do fenômeno protestante/evangélico urbano são ressignificadas. São produções sintetizadas e sincretizadas de diferentes tradições cristãs e, até mesmo, não-cristãs. São formas particulares de adaptação à urbanização e uma resposta aos efeitos da tribalização da alta modernidade.
A maioria do movimento protestante/evangélico contemporâneo aparentemente parte das necessidades religiosas dos diferentes estratos urbanos. Mas é, também, multinacional e mantém alianças com instituições forâneas. Nos últimos vinte anos desenvolveu uma solidariedade entre estratos urbanos, marcados pelos contatos e pela crescente participação com os Estados Unidos da América. Esses setores do movimento protestante são conduzidos como opinião mundial, e capitalizam a preocupação geral com uma identidade protestante genérica e dela se alimentam. Mas tal fenômeno não é negativo, se entendermos que estimula, ao participar da globalidade, o reconhecimento de que o evangelicalismo local só é possível numa base cada vez mais global. Ou seja, para os protestantismos e evangelicalismos urbanos pensar globalmente é cada vez mais necessário a fim de tornar a própria noção de protestantismo urbano viável. O evangelicalismo urbano está globalmente institucionalizado, embora apresente complicações dispersas.
A urbanização produz variedade e a diversidade é, em muitos sentidos, um aspecto básico da globalidade. Mas, e esta é uma complicação, a diversidade pressupõe na globalização a preservação de enclaves da particularidade em meio à crescente homogeneidade e uniformidade. Ou seja, dentro do conjunto movimento protestante/evangélico vamos encontrar singularidades que rompem as uniformidades e também as não-uniformidades. Podemos sintetizar essa idéia dizendo que a urbanização envolve a simultaneidade da globalidade e da localidade.
Globalidade e localidade
É por isso que, quando falamos em evangelicalismo urbano, apontamos para a comunicação interdenominacional. Esta questão está correlacionada com o processo urbano de compressão do espaço e do tempo. Ela é uma reação positiva ao aumento da compressão do espaço e do tempo urbanos. Outro aspecto importante é que a comunicação interdenominacional é em si mesma uma manifestação da urbanização. A comunicação interdenominacional se faz em todos os níveis, está presente nas salas de aula, na presença marcada da mídia, e já chegou às igrejas e aos cultos. Mas na mídia traduz a utopia da diferença e funciona como o espaço aberto dos símbolos. Nesse sentido, não apresenta a diferença autêntica, mas faz uma descrição simbólica, adequando evangelicalismo e religiosidades não-cristãs às características contemporâneas da urbanização das religiões.
Os protestantismos e evangelicalismos urbanos tendem estão à procura de fundamentos autênticos, numa busca por bases sólidas, mas não por um centro. Mas tal busca por fundamentos nem sempre é bem resolvida por causa das inter-relações sociais. Ou seja, os evangelicalismos, assim como outras religiosidades urbanas na alta modernidade apresentam um forte grau de inautenticidade. Está claro que o evangelicalismo não é, por natureza, inautêntico em relação aos seus objetivos, mas muitas vezes chega próximo ao delírio na inautenticidade da experiência que oferece às pessoas. Por isso, o evangelicalismo globalizado, ou aquele de expressão local, solitário, é um espaço e tempo de produção da diferença, mas também de contínua produção da globalidade. Tal situação remete à urbanização global e à tendência de acomodação e de homogeneização do evangelicalismo.
A produção e consolidação da diferença e variedade é um ingrediente essencial à urbanização, que está envolvida na múltipla variedade do evangelicalismo. Ao mesmo tempo, as micro-expressões protestantes e evangélicas ocorrem no contexto das práticas protestantes globais. Assim, os evangelicalismos têm que se acomodar à materialidade do mundo urbano com suas contingências e à multiculturalidade, inclusive para dar sentido às necessidades de seus fiéis.
É importante nessa análise reconhecer os esforços do evangelicalismo em correlacionar o mundo global com o local. Isto porque o evangelicalismo em sua diversidade tem que responder às questões de suas micro-expressões dentro do contexto do interesse local, particular, mas também global. Assim, a questão do evangelicalismo urbano emergiu com força significativa na vida brasileira nos últimos quarenta anos do século vinte. E à medida que os protestantismos da urbanização cresceram, outra estrutura começou a ser construída, aquela do evangelicalismo como casulo para o crente que não quer se expor. E aí voltamos à força crescente da comunicação interdenominacional e da mídia, mais especificamente a televisão. É o caso do crente que quer ter acesso ao movimento protestante e evangélico, mas quer permanecer no casulo. Acessa as localidades protestantes globais. E como a televisão tem presença persuasiva, mas impossibilita o relacionamento vivencial entre local e global, em última instância se vive no evangelicalismo via televisão o triunfo da globalidade abstrata sobre a localidade experimentada. Nesse sentido, os evangelicalismos da mídia televisiva subestimam a localidade do espaço protestante. Menosprezam as urbanidades reais, cheias de conflitos e tensões, e falam a linguagem do protestantismo genérico.
A abordagem da urbanização do evangelicalismo brasileiro parte das generalizações empíricas referentes à crescente compressão do protestantismo em um campo global único, bem como de idéias conceituais sobre os modos pelos quais os protestantismos deveriam ser mapeados em termos sociológicos. As duas hipóteses desta elaboração estão relacionadas. Nos início dos quarenta anos de revolução protestante urbana no Brasil, a questão da busca de sentido era central. No final da década de 1970 teve início o ressurgimento dessa busca de sentido e o debate na academia tendia a vê-lo como fenômeno político-religioso, expressão da identidade social. Hoje, no entanto, vemos a busca por fundamentos, analiticamente, enquanto problema de particularidade do cenário global. Ou seja, nos vemos obrigados a analisar a construção global do fenômeno e como se deu essa busca por fundamentos e sentido no evangelicalismo urbano.
Quando analisamos a primeira hipótese, focamos a compressão espaço temporal, que percebe a necessidade das cidades em expressarem suas identidades através de propósitos internos e externos. Olhando dessa perspectiva, a busca evangélica por fundamentos é uma reação e não uma criação da globalidade. Mas, a partir da segunda hipótese, vemos que a expectativa de identidade é construída dentro do processo geral de globalidade.
Quando falamos de urbanização brasileira na alta modernidade estamos nos referindo aos caminhos específicos que as cidades tomaram nos últimos anos na construção de suas singularidades. Mas também que no processo geral da globalidade, as cidades brasileiras, por razões geográficas e por suas diferentes expressões de multibrasilidade, tenderam a um processo de diferenciação. Estes dois aspectos, no que se refere ao evangelicalismo urbano estimularam os fundamentalismos propriamente ditos, conforme conceitualização de Robertson, gerando dois tipos de leituras e vivências: a totalizante e a antitotalizante.
Os evangelicalismos que se situam no campo do fundamentalismo totalizante apresentam um empenho estratégico de ligar sua urbanidade à globalidade, sob a suposição de que suas teologias e doutrinas e mesmo suas expressões eclesiológicas possam ser mais bem resolvidas no reconhecimento de ser enclave de um contexto maior. Mas consideram que seus desafios só podem ser resolvidos ao nível urbano. Essa leitura se expressa principalmente naquelas entidades e mesmo agrupamentos de tradições e heranças históricas, chegadas com os protestantismos de imigração e missão, que pensam seus desafios de forma estritamente analítica e constroem uma visão de mundo que acaba por excluir a cidade. De todas as maneiras, devemos entender que quando realçamos a globalidade tendemos a nos perguntar: mas podem as urbanidades não ser partes da globalidade? Ora, tal questionamento surge quando se pensa apenas a relação globalidade/ urbanidade em termos de grande/pequeno, forte/fraco, civilizado/nativo. A noção de globalidade refere-se à universalidade em sua plenitude, mas não é a única dimensão da expressão evangélica.
Já os evangelicalismos que se situam no campo do fundamentalismo antitotalizante, ao enfrentaram a questão globalidade/urbanidade não colocam a globalidade no centro da discussão. Ao contrário, dão importância ao fato de que as cidades brasileiras na alta modernidade se transformaram e continuam a se transformar em espaços de conquista. Por isso se voltam para as culturas regionais. Só que também as expressões urbanas, locais e regionais também se tornam cada vez mais globais. De certa maneira, o fundamentalismo antitotalizante nega a globalidade em seu sentido primeiro, como processo autônomo, e por sensibilizar que a principal dinâmica da globalidade envolve um processo de urbanização, privilegia o espaço urbano com suas possibilidades e desafios.
Ora, o fundamentalismo evangélico brasileiro é urbano, o que facilita a emergência de movimentos que buscam o significado imediato das cidades e procuram ressignificações globais para as questões enfrentadas por seus membros. A globalidade das cidades leva à busca global por soluções localizadas. Tal busca leva aos cultos contextualizados às necessidades dos estratos sociais marginalizados e à proposta de reconstrução da vida. Tal compreensão, nesse tipo de fundamentalismo, repousa sobre a procura da pessoa urbana por respostas atávicas à globalidade. Essas respostas atávicas expressam atitudes antitotalizantes.
Para o fundamentalismo antitotalizante o centro da teologia e da prática não é apenas a procura por fundamentos, mas a correlação entre a busca por fundamentos e a comunidade, onde as crenças caminham pari passo com a saudade de algo que ficou para trás. Dessa maneira, o fundamentalismo antitotalizante trabalha com um sentimento de perda, de nostalgia. Mas, quando a procura por fundamentos é organizada em bases extra-urbanas a ideia de volta aos fundamentos reais fica problematizada.
E aqui uma questão deve ser levantada: a possibilidade de a pessoa urbana globalizada ser livre sob tais condições. A multiplicação das narrativas evangélicas coloca em discussão a teoria da escolha racional e abre espaço para outra ideia, a da seleção racional de espiritualidades e valores.
Caso olhemos apenas do ponto de vista da alta modernidade, os evangelicalismos urbanos brasileiros sugerem a existência de um campo global fluido e desordenado. Nessa perspectiva, escolha racional traduziria modos padronizados em que as preferências seriam exercidas em situações cada vez mais complexas de escolha. Tal leitura privilegia a heterogeneidade e a variedade. Mas se olharmos a partir da seleção racional de espiritualidades e valores, supomos homogeneidade global e humana. A primeira leitura destaca a cidade, a segunda a globalidade. Mas como vimos no correr do estudo há uma convergência dos fenômenos.
A procura por fundamentos foi uma marca do protestantismo, mas na urbanidade brasileira aprofundou-se o conservadorismo fundamentalista, quer totalizante ou antitotalizante. Mas é preciso entender que tais fundamentalismos viabilizaram o movimento evangélico. Hoje a busca por fundamentos tem que encarar a realidade da comunicação interdenominacional, a fala inteligível entre protestantismos diferentes. Mas tanto em interesse, como em aparência, a comunicação interdenominacional, por mais confusa que possa parecer, aponta para conexões imprevisíveis e crescentes. Os protestantismos vivem numa urbanidade que é um espectro de diferenças entrecruzadas. Esta é a urbanidade onde os protestantismos funcionam, onde o aqui e agora não está mais isolado, nem está definido. Por isso, a questão da busca por fundamentos preocupa. E essa procura associa, de forma estranha, mas compreensível, a defesa tanto de fundamentos totalizantes como antitotalizantes.
Para entendermos o papel do evangelicalismo na urbanidade brasileira é necessário compreender que Deus é o Deus da cidade. Isso significa, em primeiro lugar, que Ele é o Deus que atua na cidade com vistas a um objetivo. Com o cristianismo e sua mensagem, o círculo trágico da sucessão dos deuses do politeísmo, com poderes ilimitados e injustos sobre os povos, foi superado. Em Cristo se salva o universo. Vivemos a plenitude da história e a história alcançará, no reino universal de Deus, o reinado da justiça e da paz. Esta é a mensagem cristã para as cidades.
Ou nas palavras de Tillich:
“Existe uma zona média entre o princípio absoluto do amor e as situações concretas sempre em mutação. Esses princípios são a democracia, a dignidade de todos os seres humanos, a igualdade perante a lei etc. Não são imutáveis como o princípio absoluto, mas mediadores entre o princípio supremo e a situação na qual vivemos. Esta idéia impede a identificação da mensagem cristã com determinados programas políticos. Permite, entretanto, que o cristianismo não se afaste dos problemas reais da existência humana histórica. Os teólogos americanos criaram, assim, nova maneira de pensar a ética social cristã, tornando a mensagem da igreja relevante não apenas para a relação do indivíduo com Deus, mas também de Deus com o mundo”.
A partir daí podemos falar do papel do protestantismo no futuro próximo. Em primeiro lugar, é de se esperar, por sua base ética expressa no Sermão do Monte, que o protestantismo e o evangelicalismo expressem publicamente seu papel político: a defesa da democracia, da dignidade de todos os brasileiros, da igualdade perante a lei, enfim a defesa da justiça. As pessoas compreendem a necessidade de justiça e a política, com base no poder, cumpre uma função legítima quando serve às reivindicações da justiça. Às vezes, o protestantismo se perde, cai na espiritualidade negativa, ao negar a diferença, e se torna instrumento de segregação e exclusão.
Mas será que os protestantismos, no Brasil urbano, estão preparados para lidar com este quadro de comunicação interdenominacional? Bem, não é possível falar de comunicação interdenominacional sem falar de poder. Por isso, fica uma questão: amor e poder são compatíveis? Os protestantes e evangélicos, como qualquer outra ordem institucional, têm uma existência objetiva que remete à prática do serviço ao próximo, por isso, não podemos deixar que protestantes e evangélicos se tornem totalitários, ou seja, não reconheçam os limites de seu poder. E esse limite é o amor. Dessa forma, numa sociedade democrática, urbana e plural, os protestantes e evangélicos podem, a partir de seus limites, conviver e seguir o caminho da justiça.
“Onde estão as pessoas para as quais queremos comunicar o evangelho de tal maneira que possam fazer uma decisão genuína? Podemos dar uma resposta geral, imediatamente. Todos os que participam na existência humana. É uma resposta universal. Mas não é simples. Pensemos um pouco nas implicações da participação na existência humana”.
E continua:
“A primeira coisa que devemos fazer é comunicar o evangelho como mensagem aos que entendem sua própria situação. O que podemos fazer, e com êxito, é demonstrar a estrutura da ansiedade, dos conflitos e da culpa. Essas estruturas, que realmente refletem o que somos, estão em nós, e se estamos certos, também estão presentes nos demais seres humanos. Quando mostramos a eles essas estruturas, é como se tivéssemos um espelho no qual se contemplariam. Se tal procedimento terá êxito, ninguém sabe. Trata-se do risco que devemos tomar. É o mesmo risco que os missionários sempre tomaram. Não pode ser substituído por evidências. Mas não podemos usar evidências para mostrar a natureza humana como ela é. Só o podemos fazer em termos de risco. Assim, tornamo-nos humildes; podemos saber como somos (embora se trate do mais difícil dos conhecimentos), mas nunca saberemos como seremos. E não podemos medir o que seremos a partir do que somos agora. Surge, então, a pergunta: qual evangelho comunicaremos? Há este consolo. Ninguém está obrigado a falar para todas as pessoas em todos os lugares e épocas. Comunicação envolve participação. Quando não há participação, não há comunicação. Estamos diante de uma condição limítrofe porque nossa participação é inevitavelmente precária”.
Por isso, a apologética cristã só tem sentido na participação, na comunicação e no testemunho. Quando falamos de testemunho estamos resgatando Barth, que entendia vida cristã como plenitude do Espírito. Aí está a chave da questão: sem plenitude do Espírito não há participação, comunicação, testemunho e a apologética que sair daí não terá amor. Antes, será uma arma de guerra: conduzirá à segregação, à exclusão e à morte. Quando analisamos o protestantismo brasileiro, que busca fundamentos para a reconstrução de identidade e intervenção social, devemos ter claro que comunicação e participação interdenominacionais podem ser ferramentas eficazes no projeto protestante de levar a mensagem cristã a todas as pessoas deste país.
Bibliografia
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CARLOS, Ana Fani Alessandri, Espaço-tempo na metrópole: a fragmentação da vida cotidiana, São Paulo, Contexto, 2001.
MARICATO, Ermínia, Metrópole na periferia do capitalismo: ilegalidade, desigualdade e violência, São Paulo, HUCITEC, 1996.
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ROBERTSON, Roland, Globalização, teoria social e cultura global, Petrópolis, Vozes, 2000.
SANTOS, Milton, A natureza do Espaço, técnica e tempo, razão e emoção, São Paulo: Edusp, 2002.
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TILLICH, Paul, Teologia da Cultura, São Paulo, Fonte Editorial, 2009.
Religião e espiritualidade
Os desafios à igreja evangélica brasileira
Desejo abordar a questão das espiritualidades da igreja protestante/ evangélica a partir da fenomenologia da religião. Quanto falamos em fenomenologia da religião falamos de como captar o lado único da experiência religiosa. E utilizamos como método científico a observação, explicando as simbologias e as crenças. Assim, a fenomenologia procura compreender a espiritualidade a partir do ponto de vista do fiel, bem como o valor dessa espiritualidade na vida do mesmo. Por estas razões evita os juízos de valores e os conceitos de época.
Quando olhamos para a espiritualidade da igreja protestante/ evangélica podemos ver dois tipos de espiritualidades: a exotérica e esotérica. A espiritualidade exotérica é aquela que pertence ao lado de fora, racionalista e literalista. Assim, esta espiritualidade apresenta estruturas de crenças que procuram explicar os mistérios do mundo através de leituras racionalistas da revelação, ao invés de utilizar testemunhal ou experiência direta. Apresenta, também, na maioria das vezes, uma interpretação fundamentalista da fé, das doutrinas e da dogmática.
Já a espiritualidade esotérica traduz a ideia de uma espiritualidade íntima, que se situa no interior, naquilo que vem de dentro. O fato de a espiritualidade esotérica, que também podemos chamar de mística, apresentar-se como oculta não surge do fato de ser secreta, mas porque traduz uma experiência direta ou percepção pessoal. Esta espiritualidade não acredita em dogmas por obediência, mas faz a viagem das experiências pessoais. Sua base é a experiência direta e esta experiência pode ser validada por outras pessoas desde que executem o mesmo experimento. E o maior experimento da espiritualidade mística é o êxtase.
Para explicar esta espiritualidade vamos recorrer à matemática. Não há prova de que menos um elevado ao quadrado é igual a um, ou seja, (-1)2 = 1. Não há prova empírica para tal afirmação. Mas, consideramos o enunciado acima verdadeiro por lógica interna. Não há menos um (-1) no mundo exterior, só na mente. Mas isso não significa que tal afirmação não seja verdadeira, já que é validada por matemáticos, ou seja, por aqueles que sabem como funciona o experimento lógico-matemático. Para a espiritualidade esotérica o processo é parecido: a experiência do êxtase é conhecimento interno, que pode ser validado por outros fiéis, aqueles que conhecem a lógica interna da experiência do êxtase.
Dessa maneira, o oculto da espiritualidade esotérica reside no fato de que se não há o experimento, não há condições de conhecer. Ou seja, essa espiritualidade está oculta para aqueles que não realizam o experimento. De certa forma, podemos dizer também que as espiritualidades esotéricas das igrejas evangélicas apresentam uma unidade no que diz respeito ao Espírito e à natureza da sua identidade. Superficialmente, as estruturas das igrejas de espiritualidade esotérica variam, mas na essência são semelhantes, e refletem de certa forma a unanimidade do Espírito acerca das leis fenomenologicamente reveladas.
Já as espiritualidades exotéricas não apresentam esta unidade estrutural, isto porque repousam sobre peculiaridades culturais e de época que transformadas em construções racionalistas, hermenêuticas, doutrinas e dogmáticas, as levam ao choque. É verdade que os textos antigos e suas simbologias podem ser interpretados como alegorias ou metáforas para as questões transcendentais. Mas, como estamos fazendo fenomenologia, devemos dizer que os fiéis da espiritualidade exotéricas não veem as simbologias dos textos como alegorias, mas revelação que deve ser lida e entendida literalmente.
A espiritualidade esotérica, que vem de dentro, no entanto, dá significado para aos textos e seus símbolos a partir da experiência interior, do êxtase, e não de um sistema exterior de crença.
No correr do século vinte, no Brasil, na igreja protestante/ evangélica essas duas espiritualidades se confrontaram. Cada uma delas apresentava argumentos contra a outra. Fracionamentos aconteceram e essas espiritualidades se afastaram. Mas é o caso de perguntar: elas são antagônicas ou correlatas? Na verdade, a espiritualidade exotérica, por privilegiar o texto, as doutrinas e os dogmas, situa-se no passado, enquanto a espiritualidade esotérica por situar-se dentro, na experiência da pessoalidade, situa-se no presente, apesar de fazer na maioria das vezes uma leitura estática e privatizada desse presente.
Por isso, a correlação dessas espiritualidades nos leva aos três desafios vividos hoje pela igreja evangélica brasileira.
Vou sintetizar o que quero dizer e depois a gente desenvolve essas idéias. Diria que em relação ao passado devemos ser conservadores; em relação ao presente devemos ser criticamente contextuais, contemporâneos e conterrâneos; e em relação ao futuro, revolucionários.
Esses desafios de vida evangélica para a igreja brasileira nascem da própria experiência profética. Os profetas clássicos do Antigo Testamento eram ao mesmo tempo revolucionários voltados para o passado e conservadores impulsionados pela paixão do futuro. Nada faziam sem invocar a tradição. No entanto, suas mensagens apontavam para os tempos futuros. Os profetas sabiam servir-se do passado para a crítica do presente. Todos tinham uma coisa em comum: uma atitude realista. E ao contrário dos profetas falsos interessavam-se pelo concreto do presente: eram contextuais, contemporâneos e conterrâneos. Não viviam envoltos em véus de ilusões e, por isso, condenavam o palavreado inútil e a eloqüência abstrata. Mas, a pregação do futuro não constituía o essencial de seus ministérios, eram antes fruto e resultado do conhecimento do mundo, de suas contradições e possibilidades.
Se partirmos dessa compreensão, podemos dizer que nosso compromisso com o passado é a manutenção de nossas heranças, da qual a Palavra de Deus é a principal delas. Guardamos, estudamos, refletimos sobre o que diz e transmitimos àqueles que não conhecem o rico passado que nos deu origem. Não negamos nossas origens, sabemos de onde viemos e devemos ser maduros para entender o que fizemos de certo e de errado na história. Ao compreender assim o passado, dizemos que no correr dos séculos existiram homens e mulheres que interpretaram a situação espiritual de suas épocas. Eis aqui o ponto de intersecção entre a manutenção do passado e o tempo presente: a inquietude e o descontentamento em relação aos acontecimentos sociais e religiosos concretos.
Nesse sentido, deveria existir busca semelhante de respostas àquelas dos antigos profetas e a ação consciente dos líderes evangélicos e da igreja. Como os profetas deveríamos concretamente representar nossas comunidades, nossa terra brasileira, nosso mundo. Mas, ao lado das organicidades contextual, contemporânea e conterrânea, precisamos exercer autonomia em relação às pressões sociais, já que é dessa postura que nasce a força crítica e a compreensão de que diante da realidade há alternativas diferentes daquelas expressas pelo presente.
E se compreendemos que não basta o exame da situação espiritual do presente, como totalidade e permanência para fazermos diferença e transformarmos o mundo, é necessário entender as exigências lançadas adiante e, nesse sentido, ir além do próprio presente.
Ora, se presente não pode ser apreendido apenas a partir do passado e de sua conservação, porque se procuramos a transformação do mundo, se estamos envolvidos com a construção do Reino de Deus, esse fazer não pode repousar exclusivamente na experiência da conservação. Porém, ser contextual, contemporâneo e conterrâneo não significa negar a existência de alternativas diferentes daquelas expressas pelo presente. Quando analisamos a ação dos profetas em relação ao presente, vamos constatar que eles não testemunhavam em benefício do presente. Eles diziam não ao presente. Mas esse não era um não abstrato, era um não concreto, que partia da militância contextual, contemporânea e conterrânea deles. Isto porque só através dessa condenação concreta e real do presente podemos, de fato, denunciar os símbolos das forças demoníacas no presente, que no caso do Brasil são as exclusões social, racial, de gênero e outras.
E é a partir dessa compreensão do que significa estar envolvido com o presente para ir além dele, que podemos falar do futuro, não de um futuro vazio, mas de um futuro construído a partir de novos conteúdos.
Esse futuro deve ser momento concluído, texto, tempo e lugar onde a própria eternidade se faz agora e aqui. Repare, o futuro construído pela manutenção do passado, pela crítica contextual, contemporânea e conterrânea do presente não é um futuro qualquer, mas momento novo e pleno: é um futuro onde se completa aquilo que é significativo.
Esses desafios, em especial o da relação da conterraneidade com o Reino de Deus, discuto no meu livro, “Deus é brasileiro, as brasilidades e o Reino de Deus”, que está sendo lançado em fevereiro de 2008 pela Fonte Editorial.
No livro digo que a partir dos clamores éticos da profecia bíblica temos uma compreensão da práxis cristã, que podemos chamar de princípio protestante. Este princípio central do protestantismo é a doutrina da justificação pela graça apenas, significando que nenhuma pessoa ou comunidade humana pode reivindicar para si a dignidade divina em conseqüência de conquistas morais, de poder sacramental, de sua santidade ou de sua doutrina. Conseqüentemente, a liberdade profética precisa sempre criticar, condenar e transformar o status quo ou os sistemas morais, políticos e sociais que se consideram sagrados. Cada evangélico, e aqui prefiro usar a expressão protestante, tem que decidir por si próprio se determinada conjuntura, doutrina ou sistema social é verdadeiro ou falso, se os líderes existentes em seu meio são verdadeiros ou falsos e se o poder estabelecido é divino ou demoníaco. Para os protestantes tal decisão será sempre pessoal.
Esses são os desafios protestantes, entendidos como expressão crítica e livre, para a igreja brasileira e seus líderes. Nesse sentido, é bom lembrar que onde se proclama o poder do Cristo e onde se denuncia as situações-limite que ameacem o sentido da vida, aí está o protestantismo no seu sentido mais profundo e abrangente.
Mark C. Taylor, um referencial necessário
O que podemos pensar depois da morte de Deus, do desaparecimento do sujeito, do fim de história e do livro? A partir destas perguntas, Mark C. Taylor transforma a teologia moderna numa a-teologia pós-moderna.
A pós-modernidade nos dá a sensação de perda irrevogável e falta incurável. Esta ferida é infligida pela consciência obsessiva da morte de nossos egos. Estamos por um tempo entre tempos e num lugar que não é lugar nenhum. Nossa reflexão deve começar por aqui. Neste tempo e espaço limiar, a filosofia desconstrutiva e o criticismo oferecem ricos, embora ainda inexplorada, recursos o estudo da religião. Uma das características da desconstrucão é seu desejo de confrontar a questão da morte de Deus, embora nem sempre diretamente. As perspectivas levantadas pela crítica do desconstrutivismo acerca da morte de Deus levam a áreas tão distintas como a psicologia contemporânea, a lingüística e a análise histórica. Devido a sua notável perda de significado e à dissolução da tradição filosófica e da teologia ocidental, não seria absurdo dizer que a desconstrucão é a hermenêutica da morte de Deus.
Há um verso de Friedrich Nietzsche que pode nos servir de guia para uma leitura da pós-modernidade: “Agora celebramos, seguros da vitória comum, / a festa das festas: / O amigo Zaratustra chegou, o hóspede dos hóspedes! / Agora o mundo ri, rasgou-se a horrível cortina, / É hora do casamento entre a Luz e as Trevas...”
Nietzsche pensa a ausência de horizontes. Em Além do Bem e do Mal, ele pensa contra a modernidade: faz um libelo contra os valores da modernidade, como o sentido histórico, a objetividade científica e, logicamente, a fé num Deus absoluto e numa razão autônoma. Assim, é o caso de perguntar: é possível continuar existindo algum contato com a realidade, quando a virtualidade fica indistinguível e até mesmo mais autêntica que o original, quando podemos criar mundos sintéticos que são mais reais que o real, quando a tecnologia gloza a natureza?
Hoje, um teólogo e filósofo norte-americano percorre, sob outras condições, questionamentos idênticos aos levantados por Nietzsche: Mark C. Taylor. Ele é professor no Williams College, onde ensina religião, filosofia, crítica literária, arte, arquitetura e fronteira eletrônica. É um pioneiro no uso da tecnologia de teleconferência em sala de aula e já publicou 14 livros.
Ao trabalhar a questão da virtualidade na sociedade pós-moderna, Taylor vai utilizar um conceito que já vinha sendo usado na crítica literária, a idéia de imagologia. Antes, na teoria literária, e agora na filosofia de Taylor, a identidade do sujeito não pode ser encarada como uma forma de ser plena e apriorística, mas como realidade dinâmica ou relacional, onde se cruzam questões de identidade pessoal e social, o que também se dá na virtualidade, que acaba sempre por revelar uma dimensão estrangeira, que é manifestação de um outro. Na medida em que há constante busca identitária, o confronto com este outro supõe sempre uma comparação, explícita ou implícita, e se integra naquilo que, na terminologia filosófica de Taylor será a imagologia, estudo das representações do outro, que também pode ser entendido como virtualidade.
Nos últimos anos essa questão tem sido tema tanto da arte e da ciência e agora da própria teologia. As mídias têm demonstrado a força das realidades artificiais.
Essa questão, realidade e imagem na sociedade imagológica, já tinha sido analisada por psicólogos da escola piagetiana. Segundo eles, é difícil ensinar a pensar de modo lógico a um menino que está sob o bombardeio de imagens distantes da lógica, como acontece nos programas infantis. E onde até mesmo as entrevistas ao vivo fazem parte da criação de algum gênio da publicidade. A moda e o show bizz, por exemplo, fazem parte desta realidade, onde o que é apresentado pelo entrevistador não tem nada a ver com a realidade da audiência ou com o próprio artista/produto, já que suas imagens sofrem uma transformação mágica para poder ser popular, ou pelo menos este é o objetivo.
Para Taylor, a sociedade imagológica leva à ansiedade que circula acima e debaixo do chão em Nova Iorque, que tem crescido e emaranhou-se num complexo tecnológico e de redes financeiras que tornam o terrorismo global possível.
“Com a informação e o dinheiro que correm ao redor do mundo à velocidade da luz, nenhum de nós está seguro, porque qualquer um está no controle. As redes de terroristas assombram a estrutura e através da Web atuam nas comunicações e sistemas financeiros globais. Eles foram mais efetivos utilizando as tecnologias contra nós do que nós em nossa capacidade de usar essas tecnologias contra eles. Nós não seremos capazes de enfrentar redes de terroristas até que melhoremos a compreensão da lógica e operação de nossas próprias redes. Nestas teias emaranhadas e nas redes, está o limite entre nós e eles, dentro e fora, para quem nada é fixo e imóvel, mas restos fluidos e móveis”.
Vivemos, por isso, ainda segundo Taylor, um momento de complexidade sem precedentes, onde as coisas mudam mais rapidamente que nossa habilidade de compreender, por isso devemos resistir à tentação de procurar respostas simples. “As mesmas redes que conduziram à nossa superioridade econômica e militar durante a última década, nos fazem vulneráveis agora. Nossa força se tornou nossa fraqueza”.
Diante disso, será possível distinguir entre realidade e virtualidade na sociedade imagológica, se a tecnologia constrói a nova realidade? Bem, para Taylor vivemos um mundo colocado num processo de equilíbrio instável. E para entender isso, ele nos leva às margens do sistema.
A teoria da complexidade
“A complexidade é marginal e fenômeno emergente. Nunca está fixa, a complexidade é móvel, é sempre momentânea e o momento marginal de seu aparecimento é inevitavelmente complexo. Longe de ser um estado, o momento emergente, repetidamente, constitui e reconstitui o fluxo de tempo, enquanto impulso que mantém tudo em movimento. É significante que a palavra momento derive da idéia de impulso em latim, mostrando movimento como sendo também impulso. Embora freqüentemente representasse um ponto simples, o momento é inerentemente complexo. Seus limites não podem ser firmemente estabelecidos, porque sempre estão trocando de modos, que dão fluidez ao momento. Vivemos o domínio do intermediário, que a teoria da complexidade tenta entender”.
A dinâmica do caos e da complexidade, explica Taylor, parte de certas características que diferem em importância e modos. A teoria do caos foi desenvolvida como um corretivo para os sistemas fechados e lineares de físicas de Newton. Diante da ausência de ordem, caos é uma condição na qual a ordem não pode ser averiguada por causa da insuficiência de informação. Enquanto a física de Newton imagina um mundo abstrato governado por leis definidas, que determinavam completamente as coisas reais, a globalidade não é transparente porque não temos a informação adequada e necessária para estabelecer leis, assim toda operação é sempre inacessível. Embora haja razões para esta situação, duas são notáveis neste contexto.
Primeiro, sistemas finitos não estão fechados, mas estão abertos e incompletos. E, segundo, alguns sistemas envolvem relações que não podem ser entendidas em termos de modelos lineares de causalidade. Nos sistemas recorrentes é impossível medir as condições iniciais com precisão para determinar as relações causais num período muito limitado de tempo. Então, a imprevisibilidade é inevitável. Ao contrário dos sistemas lineares, nos quais causas e efeitos são proporcionais, em sistemas recorrentes, a avaliação é complexa, porque esses sistemas se auto-alimentam e na recorrência geram causas que podem ter efeitos desproporcionados.
Em contraste com teoria de caos, a teoria de complexidade está menos interessada em estabelecer a fuga ou o caos determinado. Oscilando entre ordem e caos, o momento de complexidade é o ponto no qual ego-sistemas organizados emergem para criar novos padrões de coerência e estruturas de relação. Tendo crescido fora das investigações das ciências biológicas, a percepção de teoria da complexidade pode ser usada para iluminar as questões sociais e culturais.
E Taylor cita o biólogo Stuart Kauffman, que escreveu At Home in the Universe: The Search for the Laws of Self-Organization and Complexity, onde pergunta o que há de comum entre as moléculas que se apressam em auto-reproduzir metabolismos, as células que coordenam esses comportamentos para formar organismos multicelulares e os ecossistemas e os sistemas econômicos e políticos? A possibilidade da vida, que evolui entre um regime equilibrado de ordem e caos, é o que há de comum entre esses processos.
A hipótese é esta: a vida existe enquanto extremidade do caos. Partindo da metáfora da física, a vida existe ao lado de um tipo de transição de fase. A água existe em três estados, gelo sólido, água líquida e vapor gasoso. Começamos a ver que idéias semelhantes podem ser aplicadas aos sistemas complexos. Sabemos que as redes de genomas que controlam o desenvolvimento do zigoto podem existir em três regimes: ordenado congelado, caótico gasoso e líquido aquoso, localizados na região entre ordem e caos. É uma hipótese adorável, para Taylor, que sistemas de genomas ordenem regimes de transição entre uma ordem e o caos.
Em tais sistemas, o regime ordenado congelado também coordena as sucessões complexas das atividades genéticas necessárias. Mas, nessas redes, também o regime gasoso caótico, perto da extremidade de caos, pode coordenar atividades complexas e evoluir. A partir das redes, com que Kauffman está preocupado, a análise pode ser estendida à comunidade social e às dimensões culturais. Equilibrado entre uma pequena ou grande ordem, o momento de complexidade é o meio no qual a cultura de rede está emergindo.
E Taylor projeta a discussão da teoria da complexidade para a teologia, ao afirmar que a noção de que as fundações referentes a Deus tenham desaparecido é ameaçadora para muitas pessoas. Esse assunto é um tema recorrente em teologia. Pensadores importantes na história de filosofia ocidental, como Nietzsche, colocaram tal discussão na ordem do dia e influenciaram pensadores pós-modernos como Derrida. Uma das coisas que golpeia o pensamento moderno é a ênfase desses filósofos na importância de entender que a idéia da morte de Deus é uma metáfora, assim como a teoria da complexidade é uma metáfora ao nível da física.
Há freqüentemente rastros de metafísica nas palavras que usamos: entender é um exemplo disso. Entender algo é não agarrar alguma coisa superficialmente. O ato cognitivo envolve apreensão dentro de condições de superfície e relativos à profundidade. A distinção entre informação e entender é muito complexa. No domínio onde as pessoas pensam em informação, devemos falar de sobrecarga de informação. Somos bombardeados com informação de todos os tipos.
Entender é um modo de organizar e estruturar a informação. Na revolução da informação, dispositivos filtrantes estão começando a emergir. É crucial entender o poder das pessoas que criam estas grades culturais. Este é um dos temas de Imagologies. Essas grades culturais desenvolvem-se gradualmente e mudam para prover vigamentos interpretativos que criam a possibilidade de construir compreensão de informação na qual estamos imersos.
Temos dois mundos, um é o mundo tradicional, o mundo da pessoa. É um mundo platônico, no qual o assunto percebido é colocado num nível agradável de fundação. Este mundo está presente, mas também está acima, é a transcendência. Esse modelo se torna um modo de saber. Quando começamos a conceber algo, concebemos figurando em termos de modelo. Através do contraste, descrevemos um mundo no qual um modelo diferente predomina. Temos interações de planos, modelos e processos. A pessoa poderia chamá-los locais de consumo. Uma estrutura não é aquilo que alguém busca. A pessoa enfatiza movimento e troca, troca de informação, bens, etc.
Os modelos de que falamos não são apenas conceituais. Na epistemologia de Kant, segundo Taylor, todo conhecimento emerge de uma interação entre o que ele chama categorias do entendimento e as formas de intuição, que são filtros através dos quais processamos informação. Kant vê essas categorias como universais. Se alguém pensa as categorias kantianas como um vigamento historicamente emergente de interpretação, em constante processo de formação, deformação e reforma, estamos diante de um salto como o das tecnologias de produção e reprodução em qualquer sociedade determinada. Começamos então a ver os modos em que processamos a experiência, onde o conhecimento é constituído em fluxo constante.
Não é apenas uma questão de como pensamos, é uma questão de como vemos, ouvimos e tememos. Quando vejo meus estudantes assistirem um filme, está claro para mim que foram socializados de modos diferentes do que fui. Eles vêem coisas que eu não vejo, eles ouvem coisas que não ouço, da mesma maneira que quando leio Hegel, vejo coisas que eles não vêem. As novas mídias abrem uma percepção nova e capacidades de apercebimento. O ponto em que se faz a troca também é uma questão importante. Uma das coisas que o estruturalismo nos ensinou é que em lugar de ser um local de origem, o assunto deve ser entendido como constituído dentro e pelas redes de troca no qual está imbricado. É um tipo complexo de reversão. Pensando nessas estruturas como criadas por um tema original, temos que pensar no assunto como uma função das redes estruturais nas quais está situada.
Essas redes estruturais levam a todos os tipos de formas. Podem ser econômicas, sociais, culturais, etc. Entender o sujeito como constituído por redes de troca é muito importante.
No século 19 tivemos o herói romântico, a figura de Beethoven, a idéia de gênio. Temos que voltar e olhar para a noção de gênio em Kant, que é crítico. O que constitui gênio? Originalidade. Ser original significa não ser influenciado por nada diferente do ego da pessoa. O gênio é, em efeito, o imóvel que tudo move da teologia aristotélica. Deus é o criador porque Deus não depende de nada diferente dele para criar. Aquela noção de criatividade como absolutamente original é deslocada no gênio romântico como aquele que cria fora dele. Criatividade romântica se estende à ética e à política. Kant define liberdade como autonomia ao invés de heteronomia. Heteronomia vem do nomos e do heteros grego que significa receber a lei de outro. O outro de quem se recebe a lei poderia ser o soberano Deus ou poderia ser um soberano político, o rei.
A troca da heteronomia pela autonomia é a troca de um condicionamento: é dar a lei para outro alguém, um condicionamento no qual a lei é dada ao ego da pessoa. Isto quer dizer, o indivíduo livre é alguém que não é determinado ou que se exclui. Este é o ego referencial da noção de liberdade. O modelo consiste em trocar a noção de assunto centrado, para uma visão do sujeito, em termos de sistemas de troca no qual assuntos individuais são algo como locais de consumo. Tomemos a noção de troca como crucial, mas pensemos em redes. Em lugar de assuntos que criam estruturas, estruturas criam assuntos. Cada assunto se torna algo como o nó de uma teia infinita de relações.
A situação da pessoa dentro daquela rede que envolve trocas de todos os tipos, econômicas, psicológicas, simbólicas, etc., constitui a particularidade do assunto. Esse é um dos momentos altos de Hegel. São as relações que constituem a particularidade de qualquer indivíduo. Nos tornamos indivíduos em virtude de nossa situação dentro de redes complexas. Estas, porém, não são redes fechadas e estáveis como os estruturalistas e Hegel pensaram, mas estão abertas e em constante mudança. Então, subjetividade nunca é um produto acabado; está em mudança porque as redes dentro das quais se inscreve estão em permanente mudança.
Todas as tecnologias podem se desenvolver de diferentes modos. Um dos problemas como percebemos o reino de Deus na terra é que não está separado da maneira como percebemos nossos piores medos. Da mesma maneira que Deus era onisciente e poderia controlar tudo, nas sociedades modernas tudo está sendo visto, exemplo são as tecnologias de vigilância que se tornam um poder penetrante e político.
Assim tais economias, a da representação e a da dominação, operam dentro de estruturas de referência que reivindicam para si o referir-se ao outro e são estruturas de ego-referência que usam o outro, humano ou divino, para a conformação de soberania.
O desaparecimento do ego
No esforço para afiançar sua identidade e estabelecer sua presença, o ego descobre sua inevitável diferença e ausência irreprimível. Embora lutemos para negar isto, esta é a realidade. A procura pela ego-presença em autoconsciência conduz à descoberta da ausência do ego. A auto-afirmação e a ego-negação provam estar ligadas indivisivelmente. Ser ego aparentemente tornou-se não ser ego. A viagem de volta ao ego é uma viagem perigosa – tanto quanto aquela da cruz. Na representação de si mesmo, o sujeito é quebrado e aberto. A quebra do sujeito é registrada pelo rastro. O rastro é, em geral, a abertura do sujeito à exterioridade, à relação enigmática do viver sem o outro e de um interior para um externo: espacial. A ausência sempre está presente, e o exterior é sempre isto: morte. O presente vivo sempre é marcado pela morte. E esta morte, esta morte eterna, é a não-conservação que assombra a presença. Dentro do espaço do rastro se inscreve uma cruz que marca o local do desaparecimento do ego.
É provável que a maioria das pessoas tenha alguma idéia do que é a realidade imagológica e de como a tecnologia é usada para prover uma interface mais íntima entre a coisa humana e a coisa relativa. E como se faz para que dados sensoriais se transformem em experiência real. No entanto, o fundamental é analisar a representação que se coloca por trás da imagem e dentro da estrutura. Pode-se dizer que tudo aquilo que o computador faz é uma simulação, mas para definir simulação é necessário das respostas científicas e matemáticas. Assim, a realidade da imagem, que poderia ser um novo paradigma, se tornou uma metáfora. É um conceito estranho e provocante, com um certo senso de aventura tecnológica. Esta filosofia da ego-reflexão, iniciada por Descartes, alcança seu ápice no idealismo especulativo de Hegel. Taylor explica:
“A Idéia hegeliana, que fundamenta toda a realidade, é uma totalidade estrutural na qual tudo está dentro e tem seu próprio outro. Alteridade e diferença são componentes essenciais da ego-identidade, a relação entre alteridade e diferença é, em última instância, ego-relação” (Tears, 93).
Assim, o outro, nos modernos projetos filosóficos de estruturas totalizantes, é um outro de valor utilitário na construção do ego. Quando o outro resiste a este papel, quando recusa ser usado ou consumido, sua territorialidade é invadida ou sua alteridade colonizada.
Dessa maneira, a realidade da imagem que o computador nos oferece termina sendo real. Promete a realidade virtual, que deixa de ser metáfora, e se transforma em criação verdadeira, global, fantástica, terrível. Nesse sentido, a imagem deixa de ser metáfora e se faz metafísica.
Assim, para Taylor, a globalização que tem suas próprias tecnologias, computarização, miniaturização, digitalização, comunicações de satélite, fibróptica e internet, criou a partir delas uma perspectiva que é a globalização. Ou seja, estamos diante da recorrência da teoria da complexidade. Se a perspectiva da Guerra Fria era a divisão, a perspectiva da globalização é integração. O símbolo do sistema de Guerra Fria era um muro que dividia o mundo. O símbolo da globalização é a Web, que une o mundo. O documento da Guerra Fria era o tratado. O documento da globalização é o sistema de transação.
“Estes processos de globalização criam uma nova cultura de rede cuja lógica complexa e dinâmica só agora começamos a entender. O contraste entre grades e redes clarifica a transição do sistema de Guerra Fria para o de cultura em rede. O sistema de Guerra Fria foi projetado para manter a estabilidade através de relações complexas e situações que deveriam ser simplificadas em termos de grades com oposições precisas: Leste/Oeste, esquerda/direita, comunismo/capitalismo, etc. Este era um mundo onde as paredes pareciam prover segurança. Paredes e grades, porém, não oferecem nenhuma proteção diante da possibilidade de se criar teias. Assim, as paredes se desmoronam e tudo começa a mudar”.
Uma nova economia desloca o velho e uma ordem mundial nova aparece no horizonte. Nesta situação, as oposições estruturais, que tinham formado o pensamento e a política, enquanto guia no tempo, se desfazem e o equilíbrio de forças desaparece. Considerando que as paredes dividiam e traduziam um esforço para impor ordem e controlar, teias unem e relacionam, emaranhando o mundo, transformando e definindo conexões nas quais ninguém realmente está no controle. Como proliferam conexões, a mudança se acelera, trazendo tudo à extremidade do caos.
Ou como dirá Derrida: “O fim do homem (como limite antropológico fatual) anuncia-se ao pensamento depois do fim do homem (como abertura determinada ou infinidade de um telos). O homem é o que tem relação como o seu fim, no sentido fundamentalmente equívoco desta palavra. Desde sempre. O fim transcendental só pode aparecer e desdobrar-se sob a condição da mortalidade, de uma relação com a finitude como origem da idealidade. O nome do homem sempre se inscreveu na metafísica entre estes dois fins. Só tem sentido nessa situação escato-teológica”.
Assim para Derrida, a unidade destes dois fins do homem, a unidade da sua morte, do seu acabamento, do seu cumprimento, envolve os conceitos de telos, eidos, ousia e alethéia. Dessa maneira, o pensamento do fim do homem sempre esteve prescrito na metafísica, no pensamento da verdade do homem. E o que hoje é difícil pensar é um fim do homem que não seja uma teleologia na primeira pessoal do plural. O nós que articula a consciência natural e a consciência filosófica assegura a proximidade a si entre fixo e central, para a qual se produz essa reaproximação circular. O nós é a unidade da antropologia e do saber absoluto, do homem e de Deus, do humanismo e da teologia. E é a partir daí que Taylor vai discutir a morte de Deus.
A morte de Deus
O niilismo reconhece que a reductio ad hominem é percebida atualmente como uma reductio hominis. A noite trazida pela morte de Deus é uma noite em que toda identidade individual perece. Quando os céus são negros, e Deus desaparece, o homem não se levanta autônomo e só. Ele deixa de estar de pé. Ou deixa de colocar-se a si próprio e ao mundo, deixa de ser autônomo e separado. Já não conserva individualidade e autoconsciência: já não conserva identidade e autonomia em si mesmo. A morte da transcendência de Deus encarna a morte do toda individualidade autônoma, um fim de tudo que é humanidade, criado à imagem do Deus absolutamente soberano e transcendente. Para o humanista devoto tal perda de ego é outra forma de desumanização que deve ser resistida vigorosamente.
Será que a realidade, que se pensava firme e objetiva, que sustentava o mundo das incertezas, desmoronou sob imagens? Em 1991, durante a primeira conferência sobre Realidade Virtual feita na Grã Bretanha, os participantes constataram que a tecnologia podia trabalhar a realidade a ponto de criar uma realidade que vai além. E a relação imagem versus realidade se tornou preocupação teológica, quando se descobriu que ela abria a possibilidade de uma reflexão que rompe as tradicionais relações entre transcendência e imanência.
Taylor, em um de seus trabalhos, O fim da Teologia, mostra que na modernidade a teologia oscilou entre enfatizar a transcendência ou imanência divinas. Os exemplos que dá para ilustrar esses extremos são Karl Barth, que procurou reafirmar a transcendência diante da degradação da realização humana, e Thomas Altizer que tentou restabelecer imanência divina como afirmação dos valores humanos. Em resposta a esses projetos, Taylor pergunta:
“O que não pensaram Barth e Altizer? O que a alternativa transcendência versus imanência omite? Há um elemento não dialético que vaga entre a dialética de um e de ambos? Este elemento poderia não ser nem transcendente, nem imanente? Este elemento abre o tempo-espaço de uma diferença diferente e outro outro -- uma diferença e um outro que não inverte, mas subverte as polaridades da reflexão teológica e da filosofia ocidental”.
Tal questionamento nos leva a um modo de pensar que nos mantém “abertos a uma diferença que não podemos controlar e nunca poderemos dominar”. Isto significa falar dos limites, uma parapráxis que resiste ao fechamento e niilismo do fundamentalismo religioso, que denigre o mundo, e do antifundamentalismo religioso, que santifica o mundo. Nem a não-declaração da religião fundamentalista, nem a declaração positiva do humanismo religioso criam espaços através do qual o sagrado pode ser olhado brevemente, uma afirmação de alteridade e diferença sem fim.
Taylor, como Nietzsche, mostra as falhas das estruturas totalizantes da verdade e explora os restos que sobraram. Em um movimento consoante com Nietzsche, Taylor em seu livro Erring, A Postmodern A/theology, e em seus escritos posteriores, expõe a relação entre estruturas lingüísticas de representação amarrada à “presença atual ou possível de um significado transcendental” e estruturas sociais, políticas, econômicas de dominação (Tears, 206). Assim, a noção de resto é explorada por Taylor em sua apresentação dos escritos de Derrida em Altarity (255-303).
Para Jaci Maraschin, cientista da religião, Taylor tem chamado a atenção para a falácia da visão platônica da vida e do mundo.
“Permitam-me citar este trecho de um de seus livros: ‘No fim, tudo se reduz à questão da pele. E dos ossos. A questão da pele e dos ossos é a questão do esconderijo e da procura. E essa é também a questão da detecção. Será a detecção ainda possível? Quem são os detetives? Quem são os detectados? Existe ainda alguma coisa que possa ser escondida? Existirá ainda algum esconderijo? Poderá ainda alguém continuar a viver escondido? Será que a pele esconde alguma coisa ou tudo não passa de pele? Peles roçando peles... peles, peles, peles, peles...’”.
Assim, continua Maraschin, nos anos setenta do século vinte, Barthes já suspeitava do que Taylor iria afirmar no final do mesmo século:
"Na multiplicidade dos escritos, tudo precisa ser desenredado e nada decifrado; a estrutura pode ser percebida, "desenrolada" (como a linha das meias) em todos os pontos e níveis, mas nada haverá debaixo disso; o espaço da escrita é para ser percorrido, não violado; a escrita oferece incessantemente o sentido para evaporá-la, da mesma forma, incessantemente, desenvolvendo a extinção sistemática do sentido. Precisamente dessa maneira a literatura (seria melhor daqui para a frente falar de escrita) ao recusar aceitar determinado ‘segredo’, transforma-se em atividade última, atividade essa verdadeiramente revolucionária posto que a recusa de fixar sentidos é, afinal, a recusa de Deus e de sua hipótese – razão, ciência e lei".
Assim, para Taylor, a morte de Deus é seguida pela morte do assunto autônomo. O desaparecimento de um requer o desaparecimento do outro. Deus não desapareceu, ele foi enterrado. Esta é a questão. Deus simplesmente não morre, Deus se torna o homem. Eu uso o termo homem, avisadamente, freqüentemente é um homem. É isso que acontece no Iluminismo e no século 19. O Deus criador é deslocado do assunto criativo.
Globalização e estruturas não-totalizantes
“Uma das coisas que precisam ser pensadas neste contexto é globalização. É o caso de perguntar qual será o impacto das tecnologias na noção tradicional de estado-nação. Podemos antever tais problemas quando vemos como os processos econômicos globais criam dificuldades para as economias locais e nacionais. Outra questão é a relação entre espaço físico e identidade política, já que a identidade geográfica e cultural é fundamental para a pessoa, enquanto mediação simbólica. Parte do processo de globalização seguramente é a globalização do capital, o fluxo livre de capital via fibra ótica através de redes no mundo inteiro,e por isso não restrito aos limites nacionais”.
As pessoas não falam sobre o outro lado da globalização, que é a questão do trabalho. Quando tecnocratas, uma elite empresarial internacional, ou trabalhadores pobres têm que sair de seus países para encontrar trabalho, estamos diante da nomadização do trabalho neste mercado global que está inseparavelmente ligado à globalização de capital. A desterritorialização do trabalho coloca de um lado a relação entre lugar físico e identidade política e de outro a noção de espaço simbólico. Da mesma maneira que as redes sofisticadas são para a comunicação, o lugar primário de comunidade e identidade pode ser trocado de lugar físico para espaço telemático, criando um tipo diferente de configuração política.
Espaço telemático é o espaço mediado pelas tecnologias de telecomunicações, televisão, rádio e internet. Aliás, Taylor em um de seus seminários procurou criar um espaço desterritorializado para suas aulas, o que o levou a considerar que esse processo não pode ser visto apenas como negativo.
Os processos de desterritorialização não são totalmente negativos. Se a pessoa olha para a Iugoslávia, e o tipo de lutas territoriais que acontecem lá, exemplifica Taylor, o esforço para retificar o choque territorial pode ser considerado positivo. Uma das oportunidades das novas tecnologias é criar um espaço para a troca global. E isso é muito importante para pedagogos que podem entrar nesse espaço para apresentar modos construtivos e criativos.
Há uma conexão entre os tipos de discussões da academia e da cultura relativo às perguntas do cânon literário. Há uma certa semelhança entre os debates dentro dos Estados Unidos e os tipos de desenvolvimentos que vemos em lugares como a Bósnia. As forças que emergem da globalização são irresistíveis. A internet criou um foro que nunca existiu. O mundo no qual nossos estudantes estão vivendo e trabalhando não é o mundo no qual fomos educados. Nós temos a tarefa de preparar os estudantes para o mundo no qual estão se movendo. O mundo seria melhor se nós e nossos estudantes nos encontrássemos no espaço comum de salas de aula globais.
Nossa amnésia cultural é extraordinária. Esquecemos que a universidade é uma invenção moderna. A fotocópia azul da universidade moderna foi posta abaixo por Kant no fim do século 18. A estrutura da universidade moderna tem como modelo a indústria moderna. Parece ingênuo pensar que as mudanças associadas ao modelo industrial, fabricando economia para um contexto pós-industrial de informação não leve a uma universidade pós-moderna.
E aqui Taylor arrisca-se a entrar no campo da futurologia, ao afirmar que a universidade pós-moderna será caracterizada por muitas das práticas pós-industriais. O número de universidades será reduzido. Haverá uma crescente especialização dentro das universidades. Como fica cada vez mais difícil para as universidades fazer todas as coisas, a noção de que cada universidade deve ser um todo se desmoronará. O que significa isso? Departamentos serão eliminados, programas serão reconstruídos e reconfigurados.
Mas há oportunidades nesta situação. Tipos diferentes de oportunidades educacionais surgirão para as instituições, não só para compartilharem recursos dentro uma nação, mas globalmente. Talvez nem toda universidade precisará de departamento de Filosofia. Tipos diferentes de instituições vão surgir. Será discutida a viabilidade da educação residencial. Terminou a idéia de alguém que recebe educação após o secundário deva ter entre 18 e 22 anos. Pessoas serão educadas em fases diferentes e ao longo de suas vidas e sempre poderão cursar uma faculdade residencial. Atualmente, cybercolleges já existem. Um dia não só terão cursos on-line, mas a pessoa poderá participar das discussões de sala de aula sem sair de suas casas.
Como estudioso de religião, diz Taylor, tenho que ser cauteloso em relação a reflexões milenaristas. Um dos desafios em relação a essas mudanças não está em divinizar nem em demonizar propostas. Penso que tais mudanças são inevitáveis e devemos refletir como a tecnologia pode ser usada para promover os valores com os quais estamos comprometidos.
Gosto da relação entre oportunidade e otimismo. É crucial entender o que está emergindo como oportunidade e não somente como ameaça. O fantasma de Hegel nunca está longe: a resistência ao processo de globalização é uma negação, e a negação se negará, afirmando os processos que está tentando resistir. Minha alma intelectual está suspensa entre Hegel e Kierkegaard. O trabalho que fiz em áreas do pós-estruturalismo, foi um esforço para repensar um encontro entre o Hegel e Kierkegaard. Penso que a desconstrução de Derrida e o pós-estruturalismo abarcaram todos os campos. Derrida entende assim, embora seus seguidores não necessariamente. Derrida entende a tradição filosófica, mas seus seguidores tendem à tradição filosófica só por causa dele. Não entendem a riqueza da tradição dentro da qual o pensamento de Derrida emergiu.
Para Taylor, dado a situação histórica do pós-estruturalismo, que emergiu em meio ao século 20 europeu, a persistência da crítica aos sistemas e estruturas como totalizantes é compreensível. Isto foi importante, porque permitiu abrir para a diferença e alteridade de modos novos e criativos. Tem sido política, intelectual e culturalmente importante ter feito o movimento da desconstrução. O problema agora é que o gesto da crítica aos sistemas e estruturas também se fez totalizante. Embora as estruturas hegemônicas não tenham desaparecido, temos uma tendência a fetichizar alteridade e diferença, de modo que não permite comunalidade e conexão. Esta é a razão que levou o pós-estruturalismo a viver um tipo de fechamento.
O desafio é repensar sistema e estrutura de tal um modo que possamos imaginar estruturas não-totalizantes, que possam criar possibilidades para conexão e cooperação, que reconhecem a necessidade e a inevitabilidade de interconexões sem ter essas estruturas repressivas.
Se não podemos imaginar aquela estrutura não-totalizante, parece que o futuro é escuro. Na lógica de redes e teias há um modelo alternativo para sistemas e estruturas. Pensar e cultivar estas redes poderiam criar a possibilidade para superar o impasse no qual nos achamos social e politicamente. Este é o terreno que precisa ser explorado. Políticos conservadores acharão um tal movimento insatisfatório. Resistirão porque imaginar a estrutura não-totalizante vai contra tudo o que eles consideram querido, conclui Taylor.
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Religião e prazer
Adélia Prado e Georges Bataille num diálogo pertinente
Adélia Prado e Georges Bataille têm preocupações comuns: o cristianismo e o prazer. Cada um a sua maneira, é verdade. Mas, ambos, por meio da literatura traduzem o paradoxo de, ao contrário do que vê o cristianismo, não considerarem o prazer humano como excrescência. Ao contrário, abordam a vida a partir daí, da experiência marcada pelo prazer. O prazer de viver. Por isso, neste texto partiremos do diálogo possível e necessário entre os dois autores. Tal leitura procura superar a acentuação da teologia do pecado, com a conseqüente culpa infindável, que perpassa a tradição cristã, no mínimo, pós-agostiniana. Aliás, a tradição cristã traduz este tropeço, uma vez que em sua metanarrativa fundante pesa a sombra de um instrumento de tortura, a cruz. Mas sem negar a dor e o mal, talvez seja possível, mesmo no cristianismo, recuperar o prazer de viver. Por isso, consideramos o diálogo Adélia/Bataille pertinente.
Até que ponto o comportamento humano é tão diferente do comportamento dos animais? Logicamente, responder a esta pergunta nos leva a discutir se de fato há liberdade e responsabilidade no comportamento humano. Se voltarmos, por exemplo, a Baruch Spinoza o comportamento humano deve ser descrito em termos de causas mecanicistas, como os demais fenômenos da natureza. E bom passa a ser apenas uma palavra para descrever coisas que nos dão prazer e mau coisas que nos causam dor.
Talvez seja necessário partir daí, da experiência marcada pelo prazer. O prazer de viver. Tal leitura procura superar a acentuação de uma teologia do pecado, com a conseqüente culpa infindável, que perpassa a tradição cristã, no mínimo, pós-agostiniana. Aliás, a tradição cristã traduz este tropeço, uma vez que em sua metanarrativa fundante pesa a sombra de um instrumento de tortura, a cruz. Mas sem negar a dor e o mal, talvez seja possível, mesmo no cristianismo, recuperar o prazer de viver. Ou, como disse Gonzaguinha, "viver e não ter a vergonha de ser feliz. Cantar e cantar a beleza de ser um eterno aprendiz. Eu sei que a vida devia ser bem melhor e será. Mas isso não impede que eu repita: é bonita, é bonita e é bonita". (O que é o que é, Gonzaguinha).
Assim, prazer, do latim placere, traduz a idéia de emoção agradável que resulta da atividade satisfeita, inclusive de gozo sensual, mas por oposição nos lembra dor e aflição. Nesse sentido, costumamos chamar aquele prazer que envolve a sexualidade de erotismo, já que aí está implícita a idéia de amor sensual. Por isso, erotismo pode ser considerado a indução ou tentativa de indução de sentimentos, mediante sugestão, simbólica ou alusiva, da questão sexual, o que nos leva ao prazer erótico na literatura.
Daí que neste ensaio sobre o prazer, partiremos de dois mal-compreendidos, uma poeta brasileira de primeira grandeza, Adélia Prado, e um filósofo francês, Georges Bataille. Ambos de formação católica, acusados de excessivamente prazerosos por críticos e teólogos. Por isso, tal diálogo é pertinente.
Adélia Luzia Prado de Freitas nasceu em Divinópolis, Minas Gerais, em 1935. Suas obras principais são Solte os Cachorros, conto, de 1977, O Coração Disparado, poesia, de 1978, Poesia: Bagagem, de 1979, e Cacos para um Vitral, romance, de 1980. Depois de anos sem publicar, lançou Oráculos de Maio, uma coletânea de poemas, e Manuscritos de Felipa, um texto curto, que ela definiu como experiência literária e religiosa
Adélia escreve para dialogar com Deus. O leitor entra só como testemunha e até um pouco como invasor. Mas, apesar dos fortes laços que tem com a religião, Adélia considera-se poeta e não profeta. "Meu projeto sempre foi escrever", ela diz.
Não a afeta que parte da crítica e também da comunidade dos poetas, fiéis a um velho preconceito, ainda a considerem mais evangelista do que escritora.
Seus poemas e sua prosa são, a rigor, longas conversas com Deus. E faz questão de dizer que não separa a experiência literária da experiência religiosa. “Muitos poetas, aqueles que se dizem ateus, apesar da grande poesia que fazem, não ligam uma coisa à outra. (...) Deus é o grande problema e a grande platéia, tanto que eu engano os críticos. Mas não engano Deus”.
Georges Bataille, 1897-1962, nasceu em Billon, Puy-de-Dôme, França. Filósofo e escritor francês, ficou conhecido como o metafísico do mal. Sua obra está marcada por três experiências centrais: a experiência cristã de sua formação católica e jesuítica, a experiência estética no âmbito do surrealismo e a experiência política de esquerda. Escreveu sobre sexo, morte, degradação e as potencialidades do prazer.
Considerava que o objetivo de todo intelectual, artista e teólogo, deveria ser a aniquilação da racionalidade em um ato violento, transcendental de comunhão. Bataille cursou teologia, com a intenção de ser padre, participou do movimento surrealista, mas acabou por se dedicar à sociologia, religião e literatura. Fundou e editou jornais. Foi o primeiro a publicar pensadores como Barthes, Foucault e Derrida. Casou-se duas vezes. Depois de divorciar-se de Silvia Maldés, sua primeira esposa, esta se casou com o psicanalista Jacques Lacan. Com sua segunda esposa, Diane de Beauchanais, teve uma filha.
Uma de suas obras mais polêmicas é a Histoire de l´oeil (1928), que foi filmada, e que influenciou, entre outros, a filmografia do diretor japonês Nagisa Oshima (Império dos Sentidos) e a produção do cantor pop islandês Björk Guödmundsdóttir. Outras obras importantes são Le bleu du ciel (1945), L´abbé (1950). No campo da religião produziu um clássico chamado O Erotismo. Sua bibliografia é muito vasta e influenciou alguns dos principais pensadores modernos, que não lhe poupam elogios, como Jürgen Habermas, Barthes, Foucault e Derrida. Um ano antes de sua morte, em 1961, Pablo Picasso, Max Ernst e Juan Miró organizaram um leilão de pinturas para ajudar Bataille a superar suas dificuldades financeiras. Bataille morreu em Paris no dia 8 de julho de 1962.
Em O Erotismo, Bataille apresenta uma chave de análise dos aspectos fundamentais da natureza humana, o ponto limite entre o natural e o social, o humano e o inumano. Bataille vê a experiência do prazer como aquela que permite ir além de si mesmo, superar a descontinuidade que condena o ser humano. E a partir dessa constatação, se propõe tratar da questão sob três perspectivas, o prazer dos corpos, o prazer dos corações e o prazer sagrado, já que o desafio é substituir o isolamento do ser, a sua descontinuidade, por um sentimento de continuidade profunda.
A santidade do prazer
A religiosidade primitiva, para Bataille, extraiu das proibições o espírito da transgressão, enquanto, a religiosidade cristã se opôs ao espírito de transgressão. A visão de bom e mau, prazer e pecado, nos limites do cristianismo está ligada a esta relativa oposição.
Há no cristianismo um movimento duplo. Nos seus fundamentos o cristianismo quis abrir-se às possibilidades dum amor que era princípio e fim. Quis encontrar em Deus a continuidade perdida, invocar os delírios rituais para além das violências reguladas, o amor total e sem cálculo dos fiéis. Os homens, transfigurados pela continuidade divina, eram chamados, em Deus, a amarem-se uns aos outros.
Assim, o cristianismo jamais abandonou a esperança de levar este mundo de descontinuidade ao reino da continuidade, abraçado pelo amor. O movimento inicial da transgressão derivou no cristianismo na visão duma superação da violência, que foi. transmutada no seu próprio contrário. Há neste sonho algo de sublime e trágico.
E para Adélia Prado, poética e religião se cruzam. Na verdade, ela vai além. Não separo, para mim elas são a mesma coisa. (...) a poesia é um fenômeno de natureza religiosa, pois tem um papel fundador, que me conecta ao centro do ser.
Sem dúvida, o prazer permeia os seus textos, prosa ou poética, de forma desafiadora. Tenho um pouco de pudor de contar, mas só um pouco, porque sei que vou acabar contando mesmo. É porque lá em casa a gente não podia falar nem diabo, que levava sabão, quanto mais... ah, no fim eu falo.
Voltando a Bataille, a transgressão é a desordem organizada, ao introduzir num mundo organizado algo que o ultrapassa. Mas essa organização, fundada no trabalho, tem por base a descontinuidade do ser. O mundo organizado do trabalho e o mundo da descontinuidade são o mesmo mundo. Se os utensílios e produtos do trabalho são coisas descontínuas, aquele que se serve do utensílio e fabrica produtos é também um ser descontínuo e a consciência da sua descontinuidade aprofunda-se na utilização e criação de objetos descontínuos. E é no mundo descontínuo do trabalho que a morte se revela: já que para quem trabalha a descontinuidade se faz presente, com poder, através da morte. Ela é tragédia elementar que evidencia a inanidade do ser descontinuo.
E a partir do poema Moça na sua cama, podemos ver como prazer, transgressão e descontinuidade se cruzam na poética de Adélia Prado.
Papai tosse, dando aviso de si,/ vem examinar as tramelas, uma a uma./ A cumeeira da casa é de peroba do campo,/ posso dormir sossegada. Mamãe vem me cobrir,/ tomo a bênção e fujo atrás dos homens,/ me contendo por usura, fazendo render o bom./ Se me tocar, desencadeio as chusmas,/ os peixinhos cardumes./ Os topázios me ardem onde mamãe sabe,/ por isso ela me diz com ciúmes:/ dorme logo, que é tarde.
Ao reduzir o sagrado, o divino, à pessoa descontínua de um Deus criador, o cristianismo foi longe e transformou o outro mundo num local onde se prolongavam todas as almas descontínuas. Povoou céus e infernos de multidões condenadas à descontinuidade eterna de cada ser isolado. Eleitos e condenados, anjos e demônios, transformaram-se em fragmentos, para sempre divididos, para sempre distintos uns dos outros, para sempre desligados dessa totalidade do ser à qual era contudo necessário religá-los.
Assim, o dilema está colocado: como continuar religioso sem perder o prazer? Tal como a proibição criou, na violência organizada das transgressões, o prazer inicial, proibindo a transgressão organizada, o cristianismo aprofundou os graus da perturbação sensual. E tal dilema está exposto em Moça na cama.
Sim, mamãe, já vou:/ passear na praça sem ninguém me ralhar./ Adeus, que me cuido, vou campear nos becos,/ moa de moços no bar, violão e olhos/difíceis de sair de mim./ Quando esta nossa cidade ressonar em neblina,/os moços marianos vão me esperar na matriz./ O céu é aqui, mamãe./ Que bom não ser livro inspirado/o catecismo da doutrina cristã,/posso adiar meus escrúpulos/e cavalgar no torpor/dos monsenhores podados./ Posso sofrer amanhã/ a linda nódoa de vinho/ das flores murchas no chão.
E o prazer se ligou à transgressão. Mas o mal não é a transgressão, é a transgressão condenada. O mal é o pecado. E o pecado de que fala Baudelaire. As narrativas dos sabbats, por exemplo, correspondem a uma procura do pecado. Sade negou o mal e o pecado. Mas teve que introduzir a idéia de irregularidade para transmitir o desencadeamento da crise voluptuosa. Teve de recorrer à blasfêmia. Sentiu que a profanação era inócua, se o blasfemo negava o caráter sagrado do bem, que pretendia macular. A necessidade e a impotência das blasfêmias de Sade são significativas. A Igreja negou o caráter sagrado do prazer, encarado como transgressão.
Por isso, filósofos e poetas negaram o que a Igreja considerava sagrado. Nessa negação, a Igreja perdeu em parte o poder religioso de evocar uma presença sagrada: perdeu-o quando o diabo deixou de estar na base duma perturbação fundamental. Ao mesmo tempo, os espíritos livres deixaram de acreditar no mal. Desse modo, encaminharam-se para um estado de coisas em que o prazer, deixando de ser um pecado, deixava de poder encontrar-se na certeza de fazer o mal, o que implica a destruição da sua própria possibilidade. Num mundo profano só haverá mecânica animal. A consciência do pecado pode manter-se, mas só se mantém ligada à consciência de um logro. O que nos leva, de novo, à Moça na cama.
As fábricas têm os seus pátios,/ os muros têm seu atrás./ No quartel são gentis comigo./ Não quero chá, minha mãe,/ quero a mão do frei Crisóstomo/ me ungindo com óleo santo./ Da vida quero a paixão./ E quero escravos, sou lassa./ Com amor de zanga e momo/ quero minha cama de catre,/ o santo anjo do Senhor,/ meu zeloso guardador./ Mas descansa, que ele é eunuco, mamãe.
Ultrapassar uma situação não pode significar regressos ao ponto de partida. Há na liberdade a impotência da liberdade, mas nem por isso a liberdade deixa de ser disposição de nós por nós próprios. As ações dos corpos podem, na lucidez, abrir-se, apesar dum empobrecimento, à recordação inconsciente duma metamorfose infindável, cujos aspectos não deixarão de estar disponíveis. O prazer dos corações, o prazer mais ardente, ganhará aquilo que o prazer dos corpos tiver perdido, o que nos remete à fêmea do louva-a-deus como heroína sadiana.
O prazer da santidade
O prazer nos deixa na solidão. Prazer é aquilo sobre que é difícil falar. Por razões que não são meramente convencionais, o prazer, principalmente o dos corpos, é definido pelo segredo. Não pode ser público. Tal experiência prazerosa situa-se fora da vida de todos os dias. No conjunto da nossa experiência, permanece separada da comunicação que fazemos das nossas emoções. Trata-se de tabu. Evidentemente que nada é completamente tabu, há sempre transgressões. Mas o tabu intervém para que se possa dizer que o prazer, sendo intensa emoção, já que nossa existência está presente sob a forma de linguagem, existe como se não existisse.
Há em nossos dias uma atenuação deste tabu, mas, apesar de tudo, o prazer ficará sempre como algo de exterior, algo que só é possível sob uma condição: sair para mergulhar na solidão, numa separação do mundo em que estamos. Assim, a experiência prazerosa leva ao silêncio.
Não sucede a mesma coisa com a santidade. A emoção experimentada na experiência da santidade pode ser expressa no discurso, pode ser objeto dum sermão. A experiência prazerosa, contudo, talvez seja vizinha da santidade. E Adélia Prado tem consciência disso:
Corro o risco é dos preconceitos, e o preconceito é um inferno. Há pessoas que não têm audição ao que estou falando, e sem ter audição têm opinião. Não tenho medo de virar guru. Para mim, a poesia tem uma qualidade de oráculo. Mas não sou uma divindade, sei que sou só porta-voz. Agora, se uma pessoa acreditar que o poema pode curar, é a força da palavra que está curando, não sou eu. Se a poesia faz bem, ótimo, a mim também ela faz muito bem. Eu fico só sofrendo. Se eu fosse grande igual ao Rosa, eu o imitaria, colecionando as críticas ruins de cabeça para baixo. É o que se diz a meu respeito: "Apesar do religioso, até aparece alguma poesia". Como se o religioso não fosse matéria de poesia. O registro católico, esse sim, é acidental, resulta de minha cultura, de minha herança familiar. O católico é acidental, mas o religioso é essencial. Podia ser budista, islâmica, judaica, mas seria sempre religiosa.
Isto não quer dizer que prazer e santidade tenham a mesma natureza. Mas que uma e outra experiência têm uma intensidade extrema. Quando se fala da santidade, fala-se da vida que determina a presença em nós de uma realidade sagrada, de uma realidade que pode nos perturbar completamente. A emoção da santidade e a emoção do prazer, quando traduzem uma intensidade extrema, nos aproximam de outras pessoas e nos afastam delas, nos deixam na solidão.
A passagem do prazer à santidade tem sentido, afirma Bataille. É a passagem do que é maldito e rejeitado ao que é abençoado e bendito. O prazer é crime solitário, que não salva senão opondo-nos a todos os outros, que não salva senão na euforia de uma ilusão, uma vez que aquilo que no prazer leva ao extremo grau da intensidade atinge-nos ao mesmo tempo com a maldição da solidão. Já a santidade faz sair da solidão, com a condição de aceitar este paradoxo -- felix culpa! -- cujo próximo excesso resgata.
Só um desvio permite nestas condições regressar aos nossos semelhantes. Este desvio merece sem dúvida o nome de renúncia, uma vez que no cristianismo não podemos simultaneamente operar a transgressão e gozar dela, e só outros podem gozar dela na condenação da solidão. O acordo com os seus semelhantes só é encontrado pelo cristão sob condição de nunca mais gozar daquilo que o liberta, daquilo que nunca é mais do que transgressão, violação das proibições sob as quais repousa a civilização.
Se seguirmos o caminho indicado pelo cristianismo, considera Bataille, podemos não apenas sair da solidão, mas aceder a uma espécie de equilíbrio, que escapa ao desequilíbrio primeiro e que nos impede de conciliar disciplina e trabalho com a experiência dos extremos. A santidade cristã abre-nos pelo menos a possibilidade de levar até ao fim a experiência desta convulsão final, a morte. Aquele que compreende a importância do prazer apercebe-se que esse valor é o valor da morte. Talvez seja um valor, mas a solidão abafa-o.
Talvez por isso, em 1992, antes de escrever O Homem da Mão Seca, Adélia fez seis meses de psicanálise. E ela garante: Já se disse que a religião do futuro será a psicanálise, o autoconhecimento. As igrejas, as instituições vão acabar, a igreja real é dentro de mim. Hoje ainda necessitamos do rito - mas um dia a instituição desaparecerá, para que se institua a igreja real, que está no coração de cada um. Jung disse que, para que a cura aconteça, o analista deve remeter o paciente à sua religião de origem. Ele descobriu a qualidade curativa da religião, ter um criador para adorar, para a gente não ficar feito boba. Deus é personagem principal em sua obra. Ele está em tudo. Não apenas Ele, mas a fé católica, a reza, a lida cristã.
E assim, na santidade de sua mineirice, Adélia diz que a religião dá sentido à vida, costura minha experiência, me dá horizonte. Acredito que personagens são álter egos, está neles a digital do autor. Mas, enquanto literatura, devem ser todos melhores que o criador para que o livro se justifique a ponto de ser lido pelo seu autor como um livro de outro. Autobiografias das boas são excelentes ficções.
Por isso, para Bataille, o santo vive como se morresse, mas vive a fim de encontrar a vida que é a vida. A santidade é sempre um projeto. Talvez não o seja em essência. A intenção da vida eterna liga-se à santidade como se liga ao seu contrário. Como se, na santidade, só um compromisso permitisse entregar o santo à multidão, entregar o santo a todos os outros: à multidão, ou seja, ao pensamento comum.
O mais estranho é que possa haver ligação entre a transgressão deliberada e a condição de não se falar dela. Este acordo é encontrado nas religiões arcaicas. O cristianismo inventou um caminho aberto à transgressão que permite se falar da transgressão. Reconhecemos assim que o pensamento, que vai além do cristianismo, tende a negar tudo o que se assemelha à transgressão, a negar tudo o que se assemelha à proibição.
Assim, no plano do prazer, temos a linguagem do prazer, que é negação da proibição, negação da transgressão que gera a proibição. Aqui, a palavra é a negação do que define o humano por oposição ao animal.
E Adélia Prado, majestosamente, nos mostra isso em seu poema Objeto de Amor.
De tal ordem é e tão precioso/ o que devo dizer-lhes/ que não posso guardá-lo/ sem que me oprima a sensação de um roubo:/ cu é lindo!/ Fazei o que puderdes com esta dádiva./Quanto a mim dou graças/ pelo que agora sei/ e, mais que perdôo, eu amo.
E quando entrevistada pelo jornalista Pedro Bial, em programa televisivo, no dia 27 de dezembro de 1998, ao ouvir a pergunta tantas vezes repetida... como uma senhora mineira, católica e mãe de família, podia usar expressão tão grosseira, Adélia Prado justificou o uso da expressão mal-dita afirmando que a palavra traduzia a sacralização do corpo, templo de Deus, em sua imagem e semelhança.
Bibliografia
Obras de Adélia Prado
POESIA
PROSA
BALÉ
A Imagem Refletida, Balé do Teatro Castro Alves, Salvador, Bahia. Direção Artística de Antônio Carlos Cardoso. Poema escrito especialmente para a composição homônima de Gil Jardim.
Em parceria
A lapinha de Jesus, com Lázaro Barreto, São Paulo, Vozes, 1969
Traduções
Para o inglês
Para o espanhol
Participação em antologias
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Um estudo de caso
O século XX trouxe um grande problema para o protestantismo norte-americano: as duas guerras mundiais. Em 1914, as igrejas protestantes, em sua maioria, consideraram a guerra contra a Alemanha justa e apoiaram a declaração de guerra em 1917, transformando-se em agências do governo.
Com o final da guerra, o crescimento do nacionalismo e o fortalecimento da política beligerante implementada pelo governo dos EUA, denunciadas pelo Comitê Nye, o protestantismo norte-americano tomou conhecimento do erro cometido. A partir daí fez uma volta à defesa de políticas pacifistas.
Com a II Guerra Mundial, a igreja norte-americana forneceu capelães para as forças armadas norte-americanas, deu suporte à Cruz Vermelha e no pós-guerra ajudou na reconstrução das igrejas irmãs européias.
Com o final da II Guerra Mundial, uma grande parte do mundo tornou-se comunista. Os países comunistas incluíam mais da metade da Europa, a maior parte da Ásia e um país latino-americano (Cuba). Durante os quase 40 anos que se seguiram, católicos e protestantes enfrentaram oposição e perseguição a sua fé nesses países: cristãos foram presos, internados em campos de trabalhos forçados e mortos.
Nos países do Ocidente, em especial nos Estados Unidos e na Europa, a proposta da democracia liberal de separação entre o Estado e as igrejas nacionais protestantes perdeu força e elas, mais uma vez, voltaram a exercer o papel de agências do governo.
Imperialismo e guerra fria
Alec Vidler considera que a Igreja da era da revolução tende a uma volta à ação social e à leitura orgânica e interiorizada das Escrituras, fatos que se equilibram com a tendência ao fracionamento e ao surgimento de seitas. Assim, a era da revolução é a era do cisma.
“Os homens hoje estão divididos entre aqueles que conservaram as suas raízes e perderam o contato com a ordem da sociedade existente, e aqueles que têm observado os seus contatos sociais e perdido suas raízes espirituais”.
O capitalismo contemporâneo favorece o surgimento do pensamento conservador protestante, que se aprofunda com a globalidade e com a crise do pensamento liberal. Para Roland Robertson, mesmo sem negar que certos aspectos da modernidade ampliaram em muito o processo de globalização, não podemos esquecer que a globalização contemporânea foi deslanchada faz muito tempo.
Por isso, podemos afirmar que o pensamento conservador protestante norte-americano, assim como suas expressões brasileiras, não cresceram por si só. Mesmo naqueles lugares onde os traços institucionais e culturais norte-americanos não estão presentes, mas se fazem presente os descontentamentos com a diversidade da modernidade, os fundamentalismos protestantes tendem a ganhar força.
A produção da diferença é um ingrediente essencial do capitalismo contemporâneo, crescentemente envolvido na variedade de micromercados, nacionais, culturais, raciais, étnicos, de gênero e socialmente estratificados. Ao mesmo tempo, o micromercado ocorre no contexto das práticas econômicas universais, onde o capitalismo tem que se acomodar à materialidade do mundo com suas contingências espaço-temporais e culturais.
O capitalismo contemporâneo apresenta, assim, generalizações empíricas referentes à crescente compreensão do mundo como um campo global único, onde os modos espaço-temporais e culturais devem ser mapeados.
O pensamento conservador protestante, com seu viés de defesa do capitalismo norte-americano, aparece a partir dos anos 70. Aparentemente, o fundamentalismo político-religioso é resultado da compressão do sistema intersocietário, ou seja, expressão da identidade social. Mas só dizer isso seria uma leitura redutora da realidade. É importante levar em conta o problema geral da particularidade do cenário global e da disseminação de idéias sobre o valor do particularismo.
É preciso focalizar a compreensão espaço-temporal, que leva à necessidade de todas as sociedades em declarar suas identidades para propósitos internos e externos. Nesse sentido, o fundamentalismo protestante seria reação e não criação. Mas é preciso também levar em conta a perspectiva de que existe um núcleo mais definido na idéia de que a expectativa da declaração de identidade é construída dentro do processo geral do capitalismo contemporâneo.
Para Lechner, o capitalismo tomou caminhos que reforçam sua singularidade no mundo. A este processo chamamos imperialismo. Assim, em teoria, o mundo passou a ser visto como entidade única ao longo de várias trajetórias, onde perdem força as sociedades nacionais, que foram ingredientes vitais no processo geral de formação deste capitalismo contemporâneo.
O processo de construção do imperialismo gerou modificações nos componentes centrais da cultura e da compreensão do que é o ser humano. A idéia de humanidade foi relativizada, quer a partir do processo de diferenciação dos estados nacionais, quer pela forte tendência na direção à unicidade mundial. O que contribuiu para o surgimento de interpretações concorrentes da história mundial e suas direções.
Colocados juntos, estes aspectos, relativização e proliferação de orientações quanto à situação global, estimulam a emergência do discurso sobre os fundamentos da fé cristã e sua ligação umbilical com a democracia liberal norte-americana.
Com a presença norte-americana no mundo, que faz frente ao crescimento do mundo comunista, o Brasil coloca-se na posição de país que integra o Ocidente democrático e cristão. Assim, a expansão dos interesses comerciais e ideológicos norte-americanos no Brasil, para além das questões de fé, levaram as igrejas protestantes a se alinharem na luta contra o comunismo.
Na América Latina, com a revolução cubana, aprofunda-se a Guerra Fria. De um lado, praticamente formando um bloco anticomunista, estão as igrejas protestantes e, de outro, a crescente mobilização, via sindicatos e partidos, das classes trabalhadoras e intelectuais.
A teologia da práxis libertadora
A partir da revolução cubana, opressão e miséria passam a ser realidades fartamente documentadas em todos os países latino-americanos. Mas tais fenômenos não são suficientes para explicar o surgimento dos movimentos de libertação e de uma teologia que cresceram a partir da vitória da revolução socialista em Cuba, em 1959. A existência da miséria não basta, é necessário que a pessoa oprimida perceba a necessidade de lutar pela própria libertação. Deve tomar consciência do estado de opressão e entender que tal situação pode ser vencida.
Assim, no final dos anos 70, quanto a teoria do desenvolvimento começou a entrar em declínio, a estratégia da revolução conquistou corações e mentes latino-americanos. Intelectuais e partidos políticos de esquerda abandonam a proposta do desenvolvimento, bandeira levantada entre outros pela Comissão Econômica para América Latina -- CEPAL, ligada à ONU, e promovida pelo governo de John Kennedy através da Aliança para o Progresso, e seguiram os passos de Che Guevara e Fidel Castro. Dessa maneira, a guerrilha surge na Colômbia, Guatemala e Bolívia, e vai-se espalhando pelo resto da América Latina. Seguindo o sentido revolucionário que começa a incendiar o continente, teólogos protestantes e católicos optam pela estratégia da revolução.
Essa é a origem primeira e o contexto da reflexão teológica que se desenvolve a partir de uma práxis concreta, num contexto político, social e cultural determinado. Nasce, a teologia da práxis libertadora.
Embora tenhamos elaborações como o da Conferência do Nordeste -- Cristo e o Processo Revolucionário Brasileiro, de 1962, e Towards a Theology of Liberation de Rubem Alves, entre outras, foi no encontro da Conferência do Episcopado Latino-americano, realizado em Medellín, em 1968, que a teologia da libertação adquiriu direito de cidadania. Não nasceu naquela ocasião, mas é a partir dela que se intensifica a reflexão teológica a partir da práxis da libertação.
Partindo das propostas do Concílio Vaticano II, a conferência de Medellín faz três afirmações que nortearão o pensamento dessa teologia: os países pobres estão submetidos ao imperialismo; a igreja latino-americana vive num meio social em processo revolucionário; a igreja latino-americana deve buscar sua transformação, diante da miséria e injustiça.
A cristologia dos documentos de Medellín tem um viés libertador. “É o próprio Deus que, na plenitude dos tempos, envia seu Filho para que, feito carne, libere todos os homens de todas as escravidões a que o pecado os mantêm subjugados: a ignorância, a fome, a miséria e a opressão, numa palavra a injustiça e o ódio que têm origem no egoísmo humano”.
Assim, a Conferência do Episcopado Latino-americano não vê a libertação reduzida à esfera espiritual, mas como ação transformadora que se estende ao ser humano enquanto totalidade, cobrindo as esferas das relações familiares, sociais e políticas.
Se as opressões do homem latino-americano direcionam a teologia da libertação, por outro lado, sofreu influência direta de teólogos europeus que procuraram interpretar a mensagem de Cristo e a história da salvação em base política. Esses teólogos, entre os quais podemos citar J. B. Metz, H. Cox e J. Moltmann, negavam a interpretação escolástica e as abordagens existenciais. Procuraram na práxis política uma interpretação da mensagem cristã. Ou como diz Metz:
“A salvação a que se refere a esperança da fé cristã não é uma salvação privada. A proclamação desta salvação empurrou Jesus para um conflito mortal com os poderes políticos de seu tempo. Sua cruz não está no privatissimum da esfera indivíduo/pessoa, e muito menos no sanctissimum da esfera puramente religiosa. Ela está além do umbral da reservada esfera privada ou da protegida esfera puramente religiosa. Ela está ‘fora’, como formula a teologia da Carta aos Hebreus. O véu do templo foi definitivamente rasgado. O escândalo e a promessa desta salvação são públicos”.
O bonapartismo militar brasileiro
O termo bonapartismo, como caracterização de regimes e governos, e em especial como estilo personalista de ditadores, foi cunhado por Karl Marx, em sua análise do golpe de estado de Luís Bonaparte, sobrinho de Napoleão.
“No 18 Brumário, Marx analisa as intenções e razões do golpe, mostrando como diante da crise de direção da burguesia, do acirramento das contradições sociais, e da crescente força do movimento de massas, a única saída para a burguesia era um governo forte, com base no aparelho militar, que se colocasse acima dos interesses imediatos de sua própria classe. Ou seja, surgia o governo de arbítrio, acima do Legislativo e do Judiciário.”
O termo passou a fazer parte da terminologia política do marxismo, enriquecida posteriormente por dois teóricos, preocupados com a tendência do surgimento de governos fortes no século XX: Antonio Gramsci e León Trotski. Por razões táticas, já que estava preso, Gramsci adota um sinônimo para bonapartismo, cesarismo. E analisa todo o período da Itália pré-fascista, principalmente.
“E Trotski faz uma previsão: a de que a tendência nos países dependentes e semicoloniais era a do surgimento de governos de tipo bonapartista, devido à própria fraqueza estrutural do capitalismo nesses países.”
“Um bonapartismo não é igual a outro. Não há dois governos bonapartistas inteiramente iguais, mas sempre terão características centrais semelhantes; a sua própria razão de existência será sempre uma aguda contradição e choque de classes e o debilitamento político da burguesia. Daí o papel das forças armadas, as restrições às liberdades e o surgimento de um Executivo que exerce o papel de juiz, de árbitro.”
Nesse sentido, a partir de 1964, os governos militares brasileiros foram bonapartistas. Mas o de Geisel, possivelmente como o de Castelo Branco, foi o mais típico dos quatro, já que não somente arbitrou, mas equilibrou-se entre interesses distintos, às vezes fazendo acordos, às vezes golpeando. Por isso, faremos a análise de seu governo e estilo por considerá-lo modelo do bonapartismo militar brasileiro.
Assim, entendendo o estilo de Geisel como uma conseqüência, ao menos em parte, do momento histórico em que governou, podemos traçar um perfil do “estilo político” do bonapartismo militar brasileiro, sem perder de vista algo importante: desde o início seu governo tinha como meta criar as condições para uma abertura política no Brasil, sem, no entanto, desestabilizar o poder burguês.
Choque militar e estilo bonapartista
O presidente Ernesto Geisel foi o primeiro presidente do movimento de 1964 que exonerou um ministro do Exército. Também foi o primeiro a punir ostensivamente um general do Exército, Ednardo D´Ávila Mello, em janeiro de 1976. E mandar prender em 1978, um general – Hugo Abreu – que poucos meses antes tinha sido um de seus assessores mais chegados.
Estes gestos sem precedentes indicavam um “estilo” de governar, que tem desnorteado analistas. Seu estilo é considerado, em geral, agressivo e personalista, e muitos militares sempre temeram que esses gestos pudessem colocar em risco a unidade corporativa das Forças Armadas, ou mesmo o regime de poder vigente no país.
“Mas essa interpretação era uma simplificação, já que não levava em conta as condições do momento, e o amplo leque de significações que cada gesto presidencial contém e produz. Em primeiro lugar, o general – dentro de sua meta de governo, “desenvolvimento com segurança” – sempre agiu em nome da hierarquia e da disciplina militar. Assim, combinando sua diretriz política de governo (a chamada “distenção”), as pressões sociais do momento e a estrutura hierárquica das Forças Armadas, podemos dizer que os generais Frota e d´Ávila Mello foram punidos por não adotarem a diretriz política do governo e por não cumprirem à risca, em suas áreas de responsabilidade, as ordens presidenciais.”
Como estamos falando de um governo bonapartista e de um “estilo bonapartista”, aqui diretriz política de governo e diretriz presidencial se combinam. Aliás, esta é uma das chaves para entender o bonapartismo: ele destrói as estruturas da democracia burguesa substituindo-as pelo “princípio do chefe”, que norteia a conduta no interior das Forças Armadas. Assim, hierarquizada militarmente a sociedade civil, chega o momento em que o governo e executivo, propriamente, se confundem.
Do ponto de vista estritamente político, os gestos do presidente ao punir homens da própria revolução tinha uma significação mais ampla, pois pretendiam justamente mostrar que Geisel podia e devia transcender o regime, estar acima dele, e colocá-lo sob o controle de princípios que supunha desvirtuado na prática. Nesse sentido, o general Geisel é o primeiro presidente pós-64, desde Castelo Branco, que pretendeu falar não em nome do regime, apenas, mas da nação como um todo.
Evidentemente, os generais presidentes anteriores também supunham falar em nome da nação. Mas devido à própria situação histórica, o momento os levou a esbarrar no jogo pendular entre “direita” e “esquerda”. Tinham limites estritos determinados, surgidos dos compromissos com setores específicos burgueses e dos acordos com a “linha dura”, o núcleo não castelista que se pretende portador da legitimidade e intérprete da “pureza revolucionária”. Claramente, o general Frota fazia parte desse núcleo de “puros”. De todas as maneiras, a incompatibilidade entre ele e Geisel não era ideológica, mas tática.
Podemos dizer, inclusive, comparando o governo Geisel com o de Médici, que embora mantendo seu profundo conteúdo de classe burguês, o “estilo bonapartista” de Geisel não é tão ideológico no sentido imediato do termo, já que não representa o setor militar comprometido com prescrições estritas, nem com grupos específicos da sociedade civil, mas com a estrutura capitalista da sociedade como um todo. Por isso seu governo foi mais complexo e contraditório e menos definido ideologicamente.
A forma faz o estilo
Os gestos autoritários de Geisel não foram aleatórios, nem são produto de um temperamento contraditório. Tudo indica que Geisel, e a inteligência técnico-militar que o rodeou, tinha metas a cumprir nestes cinco anos de governo, e de acordo a cada momento foi elaborando as táticas aparentemente mais viáveis a cada situação. Podemos dizer também que Geisel (e Golbery, logicamente) tinha uma noção aguda do momento de transição vivido no país. E tentou levar a cabo a reabilitação de um programa político. Implementando-o à maneira bonapartista: acima dos partidos, das classes sociais e dos próprios grupos funcionais, militares e tecnocratas, que estiveram na gestão do Estado até aquele momento.
Como toda estratégia bonapartista, a de Geisel visava à unidade nacional sob a hegemonia não contestada da burguesia. Esta estratégia durante o seu governo teve uma formulação política mais precisa, que era a de preparar o país para uma “conciliação nacional”. Conciliação esta supervisionada por seu sucessor – o general Figueiredo – e logicamente pelas Forças Armadas.
A esta estratégia, Geisel foi acrescentando em momentos precisos uma tática bastante utilizada pelo bonapartismo; aquela que consiste em dar a todos a nítida impressão de que é vítima constante de fortes pressões vindas do interior da sociedade, às quais precisa antecipar-se ou enfrentar.
“São os shows bonapartistas montados especialmente e que permitem ao executivo manter o autoritarismo. Geisel, o mais político dos presidentes do movimento de 64, obteve certos êxitos com esta tática bonapartista. E a utilizou intensamente.”
“Podemos citar alguns exemplos: o show montado ao redor da descoberta da gráfica do Partido Comunista, logo no início de seu governo (antes de completar um ano); o massacre da direção do Partido Comunista do Brasil; as cassações de parlamentares do MDB; o caso do general Sílvio Frota e outros militares e a repressão ao Movimento de Convergência Socialista.”
Mas já no final de seu governo, quando uma nova etapa da história do Brasil se abre, principalmente a partir das grandes mobilizações operárias e sindicais de 1978, esta tática começou a desgastar-se. Ela, ao contrário, causava um efeito inverso na sociedade. Já não atemorizava, mas incentivava. Isto porque o governo Geisel viveu dois períodos distintos: o antes e o depois de maio de 1978. E nem tudo que valia para março/abril de 1978 podia, por exemplo, ser aplicado em junho/julho do mesmo ano. Exemplo, a lei antigreve.
Assim, o bonapartismo de Geisel foi mais rico porque teve que dar respostas a um número de problemas sociais maiores do que seus antecessores e porque conseguiu fazê-lo sem ocasionar grandes e bruscas rupturas na estrutura autoritária do regime. Cabe, no entanto, perguntar: este estilo de governo repetiu-se com Figueiredo?
Ao invés de formalizar o problema do governo, dizendo que com Geisel se fecha um período e com Figueiredo se abre outro inteiramente novo, preferimos dizer: no governo Geisel está o velho e o novo, os dois coexistiram durante cinco anos e aliados às táticas específicas – inclusive à própria personalidade do governante – imprimiram um estilo à sociedade.
Acontece que até maio de 78, o bonapartismo podia arbitrar sem sofrer as pressões imediatas das mobilizações sociais. E por isso essa primeira parte do governo Geisel refletia mais o homem, mais o estilo. A partir de maio de 78, a própria figura do árbitro começa a ofuscar-se diante das pressões sociais e diante de um outro personagem que entra em cena, o movimento operário.
Ora, o governo Figueiredo manteve a política e estratégia bonapartistas, mas devido às próprias contradições da sociedade que começava a tomar contornos democráticos burgueses (fim do AI-5, da legislação repressiva, fortalecimento do legislativo, do judiciário e anistia), já não poderia utilizar as mesmas táticas que Geisel. Não teve as características bismarckianas que o general-presidente anterior imprimiu ao seu governo.
Geisel e Figueiredo foram bonapartistas, mas um tão diferente do outro como o próprio governo de Luís Bonaparte do governo do general Geisel.
Grandes planos, grandes derrotas
Entre o governo Médici e o governo Geisel há uma continuidade. Se o primeiro conseguiu, pela força do aparelho de repressão, com a ajuda do boom econômico e o apoio de um setor da classe média, acabar com a oposição armada e a guerrilha, o segundo planejou dar seqüência à luta contra o comunismo e a subversão através de uma política redistributiva, que visaria não somente melhores salários, mas também medidas indiretas.
“O II Plano Nacional de Desenvolvimento – II PND, divulgado em setembro de 1974 (e que teve suas linhas mestras elaboradas antes mesmo de Geisel tomar posse), estabeleceu claramente a política redistributiva como meta social e, mais ainda, como instrumento para o crescimento econômico.”
“Adaptando a política econômica a uma visão de que o boom já chegara ao fim, o governo tentava se adaptar à nova conjuntura, lembrando no segundo capítulo do II PND (Estratégia de Desenvolvimento e Modelo Econômico) a necessidade da formação de um mercado interno de massas, ante as incertezas em que o mercado mundial mergulhara por força da recessão nos países industrializados e da “crise de energia”. Para a formação desse mercado colocava `a importância da população como fator de demanda, além de sua função mais conhecida, como fator de produção`.”
Há uma continuidade entre Médici e Geisel, mas uma continuidade com revisão. E ao nível da política econômica, a revisão se dá no mesmo modelo “exportador” e “concentrador de renda”. Ao menos nos planos.
Até 1974, para os economistas alinhados ao governo, a larga disponibilidade de mão-de-obra a baixo custo era apresentada como um dos fatores para “atrair” os investimentos das multinacionais. A mão-de-obra, isto é, o homem brasileiro era considerado apenas “fator de produção”.
A partir do II PND há uma revisão dessa colocação e atribui-se à população o papel de “fator de demanda”, isto é, considera-se o homem brasileiro também como consumidor, cuja renda elevada por uma política deliberada permitiria a formação de mercado de massas e a expansão da economia.
A política de redistribuição de renda foi, assim, projetada também como instrumento de política econômica, da mesma forma que a concentração de renda foi uma opção no campo econômico, em governos anteriores. Essa característica da política distributiva não tira, evidentemente, seu aspecto social, tanto que o mesmo II PND previa que a política econômica do novo estágio devia assegurar:
“Aumento substancial de renda para todas as classes... Assim se poderá estabelecer uma sociedade em que, econômica e socialmente, as bases estejam sempre movendo-se para cima”.
“Redução substancial da ‘pobreza absoluta’, ou seja, do contingente de famílias com nível de renda abaixo do mínimo admissível, quanto à alimentação, saúde, educação e habitação”.
A ênfase que o governo pretendia dar ao lado “social” do desenvolvimento ficava clara nesta colocação:
“Para atender a esses objetivos será executada, no próximo estágio, política social que não constitua simples conseqüência da política econômica, mas também objetivo próprio”.
Mudar a política econômica sem reformular praticamente todo o arcabouço político que caracterizou o movimento de março de 64 é praticamente impossível. Assim, mudar o modelo econômico significava em última instância mudar o modelo político. E o governo de Geisel sabia disso. E isso foi dito por metáfora, quando logo depois de tomar posse, afirmou que interviria no sentido de constitucionalizar a Revolução, o que significa de fato extinguí-la como Revolução.
Mesmo tendo conhecimento das mudanças que deveriam ser adotadas no nível econômico, Geisel se viu impossibilitado de levar a cabo as reformas propostas pelo II PND. Não havia margem política para isso. Qualquer reforma mais séria significaria de fato um enfrentamento com as multinacionais que controlam a produção de bens de consumo e que se beneficiam diretamente do modelo concentrador.
Por outro lado, a insatisfação da classe média, que aos poucos ia perdendo privilégios, criava novos problemas: o das mobilizações. Assim, as propostas do II PND foram sendo esquecidas e o governo optou por uma política econômica conjunturalista, de tipo “go-and-stop”. Pois temia que uma política econômica mais audaz pudesse levar a sociedade ao desbordamento.
A opção política
Diante da dificuldade de aplicar a política econômica que havia elaborado ainda na época de seu escritório no Largo da Misericórdia, no Rio, e da ofensiva que setores democráticos e populares começavam a fazer no período eleitoral de 1974, o governo teve que fazer algumas adaptações na sua estratégia geral.
Se antes o plano era conseguir base social através de reformas na política econômica, desestabilizando a oposição, para então – e só então – no fim do governo fazer uma ofensiva política que levasse o país a uma abertura democrática, sem grandes desequilíbrios, logo em 1975 esse plano teve que ser reestruturado.
Face à impossibilidade de aplicação do II PND – pelas pressões surgidas do próprio poder – e da avançada oposição nas eleições “plebiscitárias” de 1974, o governo resolveu aceitar já no segundo ano a briga no terreno político. E recorreu à repressão e ao AI-5.
O ano de 1975 significou endurecimento, ruptura no plano original: caça aos comunistas, cassações e início dos debates sobre os contratos de risco para exploração do petróleo. Significou desde logo que o governo Geisel, ao contrário do que ele e seus teóricos desejavam, seria desde o início um governo engajado no debate político, visto sob o prisma da redemocratização. Mesmo não querendo (já que pensava discutir o problema muito possivelmente só em 1978) viu-se obrigado pelas pressões sociais aceitar o desafio quase que imediatamente.
E cada acontecimento político gerava outro. O descontentamento tomava corpo e forma de epidemia.
“A ofensiva repressiva de 1975 acabou gerando frutos diferentes do que esperava o governo. A morte de Herzog lançou milhares de pessoas às ruas, unindo estudantes e sindicalistas. Era o marco.”
“Se para Stalin, os estudantes eram a banda de música da revolução, a partir de 1976 eles começaram a fazer muito barulho, mas agora com apoio de amplos setores da sociedade. Discutiam e reorganizavam suas entidades e criavam o DCE Livre da USP – Alexandre Vanucchi Leme. O governo via apenas.”
A experiência de 1975 estava muito fresca ainda. O governo evitava novos atritos, preferindo tentar um diálogo no nível parlamentar. Mas sem grandes sucessos.
De todas as maneiras, aceitar o debate político durante o governo de Geisel significou sempre chegar a acordos no nível das elites do Parlamento, mas nunca – jamais – permitir que o movimento operário tivesse expressão nesse diálogo.
Assim, em 1977, quando trabalhadores distribuíram convites para uma manifestação de 1o de maio, a repressão veio violenta. Era perigoso permitir que trabalhadores se reunissem para discutir problemas como a questão salarial, o direito de greve, etc. E de certa maneira veio o desbordamento. Os operários foram às universidades e os estudantes vieram às ruas.
E de repente por culpa do governo, o ano de 1968 ressurgiu com a exigência: liberdade para os operários presos. O movimento democrático a favor dos trabalhadores se estendeu pelo país. E, inclusive, foi apoiado por entidades estudantis e profissionais de outros países, principalmente nos EUA, Portugal, França e Itália.
Essa situação aumentou em muito as contradições e os choques no nível do aparelho militar. A economia não ia bem e a política também não. Geisel enfrentou o seu inimigo mais difícil, a contestação militar encabeçada pelo general Sílvio Frota. Era a prova de fogo.
Derrubado Frota, libertados os operários do ABC e com um pacote de abril nas mãos, o governo preparou-se para enfrentar 1978 que, ao que tudo indicava, seria um ano difícil.
O início do fim
O ano de 1977 foi um ano de acumulação. Serviu para perder o medo, para reaprender a reivindicar. E o governo que vinha de planos de posições autoritárias inquestionáveis, começou a jogar na retranca.
Sem dúvida, aplicaria parte de seu programa político, mas não com a firmeza que imaginara no início. Não com o vento a favor. Muito ao contrário. Se durante quase todo o primeiro tempo procurou jogar na ofensiva, o ano de 1978 nos mostraria o governo utilizando uma tática nova, passando para a retranca e começando a falar macio. E assim foi.
Só que o movimento de 1977 tomou forma. Surgiram agrupamentos que propunham a unidade de trabalhadores e socialistas sob o mesmo partido. E pela primeira vez os trabalhadores se reuniram e comemoraram o seu 1o de maio no Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André com a presença – inclusive – de jovens socialistas que há um ano tinham sido presos.
“Depois de anos, socialistas e trabalhadores começavam a alçar a voz. A greve do ABC que começou em maio e que se espalhou pelos meses e pelo país arrancou a mordaça do povo. Todos sentiam que alguma coisa chegava ao seu fim. Não o governo, nem mesmo a participação dos militares na sociedade civil, mas o regime. Havia claros indícios de que o regime transicionava em direção à democracia burguesa, embora o governo ainda mantivesse sua característica bonapartista.”
“Em agosto, os socialistas foram reprimidos. Mas já era uma repressão diferente. Já não havia como repetir 1977. As eleições acabaram por aglutinar milhões de descontentes. Uma grande corrente pró-democracia tomava forma de norte a sul do país. E dentro dessa corrente surgia outra, a dos sindicalistas classistas organizados na oposição à direção da CNTI – Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria.”
As eleições de novembro e a participação crescente dos sindicalistas – que surgiram como um processo real de democracia – acabaram transformando o show bonapartista da sucessão presidencial num simples teatro burlesco. E, agora, quando socialistas e sindicalistas começam a discutir a viabilidade de um partido dos trabalhadores de caráter laborista, já não havia muito o que fazer por parte do governo.
Durante anos o bonapartismo foi a grande estrela do cenário político brasileiro. Mas o movimento de massas por suas próprias lutas recuperou o seu lugar e levantando o punho golpeou a estrela da usurpação.
Ernesto Geisel foi um bom político. Talvez o melhor que o movimento de 1964 conseguiu produzir. Mas o seu mérito político consistiu exatamente em sobreviver estes cinco anos. Não deixou obra alguma. Sua política financeira não foi aplicada e sua redemocratização não foi outorgada, mas conquistada. Em última instância foi derrotado. Derrotado pelos operários. Caso tenha pensado em ser um estadista ou entrar para a História, talvez tenha se decepcionado. Pouca coisa se pode dizer dele. Hoje nos lembramos de Geisel como nos lembramos de Dutra. Triste Bonaparte, cuja imagem se esfuma na História.
Bonapartismo e desenvolvimento
A partir de 1974 até o final do governo Geisel, o perfil da economia não sofreu grandes mudanças. Manteve-se numa situação de equilíbrio, financiado em parte pela entrada naqueles últimos cinco anos de cerca de US$ 33 bilhões, 15 a 20% dos quais sob a forma de investimento direto.
“Assim, até mesmo a recessão prevista por alguns economistas se viu minorada, compensada também pelo rendimento das indústrias de ponta, de algumas estatais e como não poderia deixar de ser pela apropriação de uma das taxas de mais-valia mais altas do mundo. Mas como não poderia deixar de ser, também, dentro do modelo econômico que caracterizou todo o período militar, a dívida externa acabou chegando a uma soma que estava por volta de US$ 40 bilhões, sendo que só de amortizações da dívida o país teria que pagar este ano cerca de US$ 5 bilhões.”
“E esta situação não deve parar aqui - tudo indica que a dívida continuará crescendo e com ela a dependência. Mas a constatação científica de que a dívida continuará crescendo não nos pode levar ao silogismo formal de que a situação econômica do governo do general Figueiredo será catastrófica. Assim como a constatação genérica e histórica de que o aumento da dívida externa leva à dependência não nos poder levar a pensar que o Brasil durante os próximos seis anos estará preso por uma bola de ferro aos ditames imediatos dos Estados Unidos.”
Assim, até aquele momento o Brasil não encontrou dificuldade para fazer o giro (roll-over) da dívida e para melhorar o seu perfil, através da amortização de empréstimos no curto prazo e a sua substituição por outros de prazo maior. Com isso, o governo herdou uma situação relativamente folgada quanto ao serviço da dívida.
O que permitiu ao Brasil reduzir o montante da dívida a vencer em 1978, de 35% do total para 17% em 1977 foi, sem dúvida, a excepcional liquidez do mercado internacional nos dois anos anteriores (falava-se em 600 bilhões de dólares no mercado de eurodólares). E essa liquidez se deveu em parte ao gigantesco déficit comercial norte-americano e ao não menos notável excesso de recursos apresentados pela Alemanha Federal, Japão e Suíça que, juntos, apresentaram um superávit três vezes superior ao dos países exportadores de petróleo.
Com a existência deste excedente de recursos aplicáveis, o Brasil não encontrou obstáculo, para conseguir o dinheiro que precisava para girar, aumentar e melhorar o perfil da dívida externa do país.
Mas tal situação começou a mudar a partir do governo Figueiredo, mas de forma tendencial e não brusca. A razão principal da mudança deveu-se à acentuada queda do dólar norte-americano, provocada pelo déficit comercial.
A associação entre a queda do dólar e a pujança econômica norte-americana tornou os EUA um mercado atraente para investimentos alemães, japoneses, suíços e da Opep. Por outro lado, a política de crescimento, apesar do déficit comercial, obrigou os EUA a buscarem mais recursos no mercado financeiro internacional, principalmente porque a tendência de grande setor de seu capitalismo financeiro é a especulação.
“O que é importante ser entendido é que em médio prazo a política dos EUA aliada à preferência dos grandes investidores pode começar a restringir a liquidez internacional para os demais países. E como conseqüência teríamos o aumento dos juros e a redução no prazo dos empréstimos. Para o Brasil, não no próximo ano, mas possivelmente dentro de cinco ou seis anos, isto pode significar um perigoso deterioramento do perfil da dívida.”
A questão do desenvolvimento
Para o marxismo o conceito desenvolvimento está intimamente ligado ao de forças produtivas. Mas dizer apenas isso significa impossibilitar uma resposta precisa de questões concretas. Daí que para chegar-se ao próprio conceito de forças produtivas é necessário fazer uma análise parcelada do problema, uma separação metodológica entre desenvolvimento e acumulação de riquezas, embora sabendo que os dois conceitos fazem parte de um conjunto maior que são as forças produtivas.
“Em nossa definição consideramos que a visão neomarginalista de Bresser Pereira ajuda a aclarar o conceito, permitindo trabalhar a contento ao nível da economia e dos chamados processos de revolução social vividos no capitalismo.”
Assim, “o desenvolvimento é um processo de transformação econômica, política e social, através do qual o crescimento do padrão de vida da população tende a tornar-se automático e autônomo. Trata-se de um processo social global, em que as estruturas econômicas, políticas e sociais de um país sofrem contínuas e profundas transformações. Não tem sentido falar em desenvolvimento apenas econômico, ou apenas político, ou apenas social. Na verdade não existe desenvolvimento dessa natureza, parcelado, setorizado, a não ser para fins de exposição didática. Se o desenvolvimento econômico não trouxer consigo modificações de caráter social e político, se o desenvolvimento político e social não for a um tempo o resultado e causa de transformações econômicas, será porque de fato não houve desenvolvimento”.
O desenvolvimento, portanto, é um processo de transformação global. Seu resultado mais importante, todavia, ao menos o mais direto, é o crescimento do padrão de vida da população. No processo de desenvolvimento, em termos clássicos da economia capitalista, o aspecto econômico é preponderante. “Mas o setor político pode transformar-se, em determinados momentos (e acredito que historicamente passou a ser fundamental, invertendo o processo clássico descrito por Marx. Aliás, este foi um dos grandes aportes de Rosa Luxemburgo à moderna ciência marxista), no foco dinâmico do processo de desenvolvimento, como aconteceu nas grandes revoluções operárias deste século.”
No caso brasileiro, o país se encontrava em sua terceira fase de acumulação e desenvolvimento capitalistas -- cuja arrancada se deu a partir da década de 60 -- e que se caracterizou pelo rápido crescimento do setor de bens de produção (intermediários e de capital), pela ofensiva do capital transnacional na produção fabril, pela crescente penetração do capital na agricultura, apesar das características tradicionais do setor, e na integração da economia local à economia mundial. Além de ter transformado, de fato a classe operária no sustentáculo da produção.
O programa estratégico do bonapartismo
Mas como se combinou essa discussão sobre desenvolvimento com o plano estratégico elaborado pela cúpula militar ligada à Escola Superior de Guerra para o Brasil.
Por ser bonapartista o regime, os militares e o governo que se sucederam a partir de 1964 formaram um todo. E nesse sentido, excluindo o governo de Vargas no período que vai de 1932 a 1943, eles foram os únicos que tentaram elaborar uma doutrina de conjunto (e para ser cumprida num longo período) para o desenvolvimento do capitalismo no Brasil. Antes de pensarmos sobre a viabilidade desse projeto integrado e a longo prazo de desenvolvimento, vejamos as bases sobre os quais se apoiou.
Levando em conta o material que tem sido publicado pelos principais teóricos da Escola Superior de Guerra podemos tirar a algumas quantas conclusões:
1-- Os militares consideram que o movimento de 31 de março teve um caráter de revolução, já que implica num processo tríplice: forma uma nova camada dirigente e tem como meta a destruição do pensamento tradicional, tanto a nível político, como econômico.
2 - Tendo em vista a crise anterior a 1964 (dos anos 1961-63), e levando em conta que para derrubar o governo de Goulart necessitavam do apoio dos setores tradicionais (que em termos estratégicos não mereciam nenhuma confiança), os militares passam a se considerar reserva moral da nação e única alternativa de governo. Tomando sua aliança com os setores tradicionais (ou oligárquicos) como tática, tentaram excluí-los do processo político, sempre que estes se apresentavam ousados ou como possível fator de aglutinação do descontentamento ou da oposição.
3 - É simplista dizer que o movimento de 31 de março é a expressão da penetração do capital transnacional no Brasil. Embora o movimento tenha desde o primeiro momento se considerado como parte da geopolítica ocidental, ele considera também que é possível o desenvolvimento a partir de uma acumulação da riqueza. Daí que a visão que têm é exatamente inversa à defendida pelas correntes nacionalistas radicais “que a dependência aumenta na proporção direta da entrada de divisas e investimentos transnacionais”. Aclarando. Uma das teses econômicas defendidas pelos teóricos da ESG, ao nível da economia, é que a entrada de capital transnacional pode gerar uma acumulação de riqueza, que se num primeiro momento apresenta-se como problemática, tende a produzir uma decolagem -- utilizando a expressão de Rostow --, ou seja, um processo gradual de desenvolvimento (a partir de um certo grau de acumulação). Daí considerarem de secundária importância no processo geral da economia a questão da dívida externa.
4 - Levando em conta a impossibilidade de fazer crescer a economia em todos os seus itens, a política econômica da “inteligência” militar tem sido a de criar o que eles chamam de “pólos de desenvolvimento”, começando pelos setores de ponta, já que estes por realizar mais rápido a mais-valia atraem mais investimentos estrangeiros. Já ao nível do Estado começaram (ou continuaram, esta seria a expressão correta) a dar importância ao setor de bens de capital, mas desde que estivesse relacionada diretamente com o resto do parque industrial brasileiro. Ou seja, a política de substituição de importações nesse setor só passa a ser prioritária quando seus custos sejam menores ou iguais aos do competidor estrangeiro. O que pode parecer uma contradição com um plano geral de desenvolvimento, mas que surge de um fenômeno concreto, a descapitalização da economia. Aqui também deve ser levada em consideração a política de construção de grandes obras (que junto à questão militar levou alguns economistas a verem características do modo de produção asiático no projeto militar), que está mais ligado à rápida realização da mais-valia do que pela intenção de diminuir as tensões sociais geradas pelo desemprego, embora seja importante notar que algumas dessas grandes obras têm claro fim estratégico.
5 - A teoria política desenvolvida pela ESG e sintetizada na Lei de Segurança Nacional mais do que expressar um fenômeno conjuntural de repressão mostra exatamente que os militares acreditavam estar enfrentando de fato uma revolução.
Mas, devido à internacionalização do capital e à interdependência da economia a nível mundial, é impossível um processo de desenvolvimento sem desequilíbrio, sem romper a relação estratificada entre os países industrializados e os países periféricos, ainda que esse desequilíbrio se dê dentro das margens do capitalismo.
Ou seja, a acumulação do capital e de riqueza terá sempre um limite, caso se mantenha a sangria que representa o déficit do balanço de pagamentos. E mesmo que se dê importância secundária a este fenômeno, o certo é que a sangria existe e é ela que funciona como um dos fatores de dependência e que torna impossível o desenvolvimento como meta integrada.
O que é certo é que o equilíbrio fracionado da situação mundial favoreceu naquele momento o projeto hegemônico brasileiro. De forma conjuntural, mas favoreceu. Em termos mais gerais e históricos, o pensamento militar, desenvolvido como teoria da ESG a partir principalmente de 1964, considerou que a liberdade deve estar condicionada aos ditames da razão segurança.
Esta é a lição dada por um dos teóricos da ESG, general Meira Matos, em palestra proferida em 1978 na Câmara Americana de Comércio para o Brasil, em Washington. Segundo o general: “O Brasil tem condições geopolíticas para emergir entre as grandes nações do mundo e se tornar um dos países mais importantes, uma potência em condições de influir nas decisões de ordem mundial”.
Nesta frase está sintetizado o projeto político-militar brasileiro. E uma leitura mais atenta do texto nos conduz à certeza de que o projeto de poder brasileiro incluía a construção de arsenal nuclear.
A noção de potência capaz de “influir nas decisões de ordem mundial” estava vinculada à posse de armas nucleares e à capacidade de dispará-las. Poder mundial sem poder nuclear era visto como ficção num mundo dominado pelo conceito de soberania. Em decorrência, o general Meira Matos e toda a inteligência militar consideraram que a busca de status de potência conduz a mudanças e a conflitos nas relações tradicionais.
Mas tudo tem o seu preço. E se no plano sul-americano o projeto do Brasil potência despertaria receios e reações, corridas ao poder militar pelos regimes militares, no plano interno o preço era a supressão da liberdade, pré-condição implícita na predominância da doutrina de segurança, tal como se depreende do pensamento do general Meira Matos. Ele próprio disse que a segurança é o ônus que o Brasil tem que pagar para “emergir entre as grandes nações do mundo”.
O pensamento batista e o bonapartismo
A primeira Igreja batista brasileira foi organizada em 1882, embora nessa época já existissem duas outras, organizadas por sulistas norte-americanos, residentes na região de Santa Bárbara do D'Oeste e Americana, em São Paulo.
Apesar dessa origem que remonta ao patriarcalismo escravista norte-americano, como explica o missiólogo batista Donaldo Price, há uma outra matriz, liberal, no pensamento batista que remonta às suas origens inglesas.
“(...) desde os primórdios do protestantismo no Brasil, seus seguidores estiveram associados a movimentos liberais, os quais favoreceram sua radicação. Há, portanto, entre o liberalismo brasileiro e o protestantismo uma afinidade de propósitos em muitos pontos.”
Esse paradoxo entre pensamento conservador, patriarcal e autoritário e pensamento democrático liberal possibilitou um rico diálogo entre o pensamento batista e o bonapartismo militar. E essa convergência aconteceu a partir da atitude batista em relação à presença dos Estados Unidos.
“Pelas páginas de O Jornal Batista evidencia-se que aquele país foi apresentado como um modelo político e religioso para a América Latina. A `outra América` é tratada como um novo Israel, com papel especial no plano de Deus para a história global, em função de sua formação protestante. A partir daí as relações entre os dois países devem ser incrementadas.”
Assim, o pensamento batista não traduz o liberalismo inglês do século XVII. Ao receber uma influência direta dos batistas do sul dos Estados Unidos, miscigenou-se e gerou o que chamamos de pensamento liberal conservador. Mesquida explica esta dialética que uniu a educação protestante de origem missionária à sociedade brasileira no final do século XIX e no correr da primeira metade do século XX, a partir de quatro hipóteses:
1. Do desejo das elites progressistas do sudeste brasileiro de se aproximarem dos Estados Unidos e de imitarem seu modelo político, econômico e cultural.
2. Do desejo interesse norte-americano de exercer hegemonia cultural, política e econômica no Brasil.
3. Ao fato de que a maçonaria contribuiu para a implantação dos protestantes no Brasil.
4. À desestruturação da sociedade brasileira nos últimos trinta anos do século XIX, fato que ofereceu oportunidade a autores sociais internos e externos de minar a ordem política, econômica e social.
Tal proposta de interpretação das razões que construíram o pensamento liberal de viés conservador, do protestantismo brasileiro é ratificado por Martins, em sua dissertação de Mestrado.
Segundo a pesquisadora, “a inter-relação entre o social e o religioso, durante os anos 70 e 80, nas igrejas batistas de Ribeirão Preto mostra que a população pesquisada percebe, de modo geral, a ausência de alterações no aspecto doutrinário (estritamente religioso), poucas e superficiais alterações adaptativas no aspecto estrutural e orgânico, e muitas decorrentes de alterações sócio-culturais observadas na membresia.”
“A percepção da secularização se evidencia pela disponibilidade entre liderança religiosa e membresia. Esta disparidade decorre da postura individualista da membresia na busca do atendimento de suas necessidades religiosas e materiais, rejeitando a ação política como forma de atendimento dessas necessidades. A liderança religiosa, por outro lado, vê no atendimento das necessidades materiais e/ou religiosas da membresia a possibilidade de ação política independentemente do momento de crise que deve ser o responsável pela rejeição sócio-política encontrada na membresia.”
Assim, os batistas no Brasil forjaram, à luz da tradição, seu pensamento político matriz liberal conservador, que facilitou penderem para uma aliança não explicita com o bonapartismo militar, a partir de suas relações históricas e ideais com os Estados Unidos.
Mas este não foi um processo linear. Antes do golpe militar de 1964, setores da inteligentsia batista traduziam seu liberalismo a partir de uma leitura do Evangelho social, proposto por pensadores batistas norte-americanos.
Assim é que m Manifesto publicado pelo O Jornal Batista em 14 de setembro de 1963, a Ordem dos Ministros Batistas do Brasil, entidade que congregava os pastores que serviam às igrejas da Convenção Batista Brasileira, em assembléia geral, realizada em Vitória, apresentou uma proposta que traduzia anseios diante do imperativo social vivido pela nação. É certo que tal Manifesto não refletiu o conjunto da denominação Batista Brasileira, mas expressou sentimentos de parte de sua lidarença.
1o Vice-Presidente - José Lins de Albuquerque
2o Vice-Presidente - Hélcio da Silva Lessa
Secretário-Geral - Tiago Nunes Lima
1o Secretário - Irland Pereira de Azevedo
2o Secretário - José dos Santos Filho
Tesoureiro - Otávio Felipe Rosa
Bibliotecário - Tércio Gomes Cunha
Procurador - David Malta Nascimento”.
Mas as pressões são fortes, tanto externas como internas, e crescem dentro da denominação os setores que fazem a leitura conservadora do liberalismo batista. E assim, os batistas se preparam para realizar uma Campanha Nacional de Evangelização que tem entre os argumentos para sua organização, o fato de que “a urgência dessa hora requer uma cruzada nessas proporções. As crises na atual conjuntura nacional e mundial exigem u´a mobilização total e apressada de todas nossas forças.”
E a discussão política torna-se acalorada em O Jornal Batista. Os setores conservadores, alinhados com a oposição ao governo de João Goulart, ganham espaço e expressão.
Assim, se discute se Jesus é revolucionário ou reacionário, e o articulista conclui que:
“1. Se temos o Novo Testamento por regra de fé e prática e a Jesus como nosso exemplo, por que, como ele, não nos colocamos acima das paixões políticas? Estamos como igrejas tentando diretamente influenciar na política e isto Jesus não fez!
2. Na suposição de estarmos sendo influenciados pelo Velho Testamento, cabe então dizer que até agora a nossa mensagem não está sendo dirigida nem ouvida pelos opressores, mas pelos oprimidos. Estamos colocando em suas bocas termos de reivindicações sociais, protestos pelas injustiças, semeando ódio e discórdias. Falamos aos crentes que se assentam nos toscos bancos de nossas igrejas, na sua quase totalidade paupérrimos e sem qualquer influência na administração pública. Isto Amós não fez; nem Paulo! Onde então a fonte de nossa inspiração revolucionária?”
E o jornal lança um apelo ao povo brasileiro, afirmando que “as sombras se estendem sobre a vida política brasileira; a hora é incerta. Cada relógio marca uma hora diferente, dependendo do sentido profético de cada pessoa. Greve, estado de sítio, eleições municipais. Muita gente preocupada fica nas ruas em ansiosa expectativa; a maioria prossegue em sua vida normal enquanto ouve, de um lado levantarem-se vozes alarmantes, tensas e nervosas, incitando o povo à confusão e revolta; de outro lado, vozes calmas, cheias de confiança comunicativa, dizendo que a calma reina no país. Eis o quadro do dia.”
“Como pode Deus nos abençoar enquanto falamos de revolução sangrenta e nos preparamos para matar nosso vizinho, amigo, e colega, e até o nosso irmão se for necessário, para estabelecer a só chamada justiça social?”
E o pensamento se atrela aos conceitos apresentados pelos teóricos da Guerra Fria. Num artigo sobre o comunismo, Natanael Rangel, um dos mais expressivos articulistas de O Jornal Batista na época, diz:
“Em 1903 Lenine fundou o movimento conhecido como bolchevismo com o apoio de dezessete companheiros. No ano de 1917, o mesmo Lenine conquistou a Rússia com um partido de aproximadamente 40 mil membros. Por volta de 1959 o partido de Lenine havia conquistado um bilhão de pessoas. Em uma geração o comunismo ateu arrebanhou para a esfera sob seu controle mais de um terço da população do mundo.”
“Há hoje no mundo cinco crianças aprendendo nas escolas pormenores sobre o comunismo ateu, para cada criança recebendo quaisquer ensinamentos, seja onde for, a respeito de Cristo. Tais fatos são atemorizantes, mas inelutavelmente verdadeiros, é o que revela o Dr. Fred Schwarz em “Você pode confiar nos comunistas”, livro que a crítica vem consagrando como um dos mais completos e mais perfeitos sobre o comunismo.”
“Para o Dr. Schwarz, batista de convicção, o comunismo não é apenas um sistema político e um sistema econômico mas também uma filosofia de vida que se opõe a todo e qualquer sistema religioso. Vale a pena ler “Você pode confiar nos comunistas”, à venda na Casa Publicadora Batista por apenas Cr$330,00.”
E aqueles que defendiam o Evangelho social passaram a ser tachados de comunistas.
“Dou logo nome aos bois. Trata-se doa agentes internos e externos da União Cristã de Estudantes do Brasil, particularmente de suas células acadêmicas – as associações cristãs acadêmicas.”
“Aquilo que em 1927 era uma União de Estudantes para o trabalho de Cristo, hoje não passa de mais um órgão bem disfarçado do Comunismo Internacional. “
“Para esses mentores, o testemunho cristão do jovem estudante é identificado com o mundo e participação na vida política através da universidade, `pondo-nos nós ao lado dos movimentos que realmente desejam transformações profundas´.”
“Que movimentos? Aí começa o chavão comunista. Condena-se a manutenção do estado atual e mobiliza-se a juventude para a luta contra a exploração e a miséria. Ninguém poderá ser neutro e ficar do lado da democracia e da livre iniciativa. A mocidade deve levantar-se contra os ´esquemas estruturais importados, isto é: contra os estados unidos da América do Norte´.”
“O que se pretende é retirar os jovens de nossas igrejas locais, para lança-los nas mãos dos agitadores comunistas. E a isto se dá o nome de ´testemunho cristão´. Uma obra perniciosa. Lobo sob manto de ovelha. Já é tempo de desmascarar o embuste comunista da UCEB.”
Mas da mesma maneira que inimigos externos foram atacados, inimigos internos eram descobertos e denunciados. O que obrigou até mesmo a Comissão de Ação Social da Convenção Batista ter de explicar que não apoiava a revolução.
“Na reunião de seu quorum local, realizada a 14 de dezembro de 1963, tomou a Comissão de Ação Social da Convenção Batista Brasileira conhecimento das considerações feitas pelo pastor Delcyr de Souza Lima em O jornal Batista de 14/12/1963 sob o título ´Rabo de Foguete´.”
“A despeito de não haver comparecido a qualquer das conferências promovidas pela Comissão de Ação Social sob o tema ´Cristianismo e Sociedade´ (apesar de ter recebido um exemplar do convite amplamente distribuído), permitiu-se o articulista fazer-lhe referências críticas, fundamentado apenas em informações verbais de terceiros. (...) Como bem se poderá verificar pelo texto gravado (e que será proximamente impresso), nunca falou o pastor Dr. Lauro Bretones de ´evangelho importado´, ou usou qualquer expressão que honestamente pudesse justificar a idéia de que se pretende ´atrelar a Igreja à Revolução´. “
“(...) pela sua grosseria e pelo seu absurdo deixamos de comentar, embora a repilamos com veemência, a insinuação de que atuamos no seio da Denominação com o mesmo espírito, métodos e propósitos dos agitadores comunistas. Confiamos na nobreza e na inteligência de nossos irmãos. E prosseguimos, olhos postos na gloriosa visão do Reino de deus! Pela Comissão de ação Social, Hélcio da Silva Lessa, relator.”
Veio o golpe e os batistas atrelam-se ao bonapartismo militar. Segundo o reverendo Jaime Wright, os evangélicos, de um modo geral, sempre aspiraram historicamente a uma rápida ascensão econômica e social.
E com o golpe se deram condições para que os evangélicos tivessem uma rápida ascensão social. Em 1964 esses evangélicos foram os primeiros a apoiar o golpe. “No centro de São Paulo, vi constrangido do meu escritório um grupo de estudantes do Mackenzie saindo às ruas no dia 2 de abril dando vivas à revolução.”
“Os presbiterianos estavam muito bem cotados dentro do sistema. Eu era presidente da Missão Presbiteriana do Brasil Central e responsável pelo trabalho da igreja americana no país. Fui denunciado várias vezes pelos líderes da IPB na época apenas por atuar em direitos humanos. Na época a IPB (Igreja Presbiteriana do Brasil) não aceitava isso como parte de sua missão. Certa vez, o diretor do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), em São Paulo, me disse que a repressão não estava preocupada com protestantes de modo geral, mas com os católicos. ´Os protestantes trazem seus probleminhas e ficamos sabendo de tudo´, disse-me o diretor.”
Azevedo afirma que a celebração do indivíduo, no pensamento protestante em geral e do protestantismo batista em particular, é uma resposta moderna ao problema do lugar do homem na sociedade. “No entanto, esta resposta convive com valores pré-modernos. Entre os batistas, a autonomia (rejeição a qualquer axiologia de origem exterior e transcende) convive com a teonomia e mesmo com a eclesiologia”. Talvez esses valores pré-modernos tenham facilitado o atrelamento dos batistas ao pensamento bonapartista militar brasileiro.
O pensamento batista durante o bonapartismo militar brasileiro consolidou-se a partir de duas matrizes, uma de origem liberal e outra conservadora. A primeira analisada por pensadores batistas como Azevedo e a segunda, também matriz, que é a ideologia missionária salvacionista, de origem norte-americana, que se fortaleceu diante das pressões do imperialismo e da Guerra Fria.
Tal realidade, levou uma parte expressiva da intelectualidade batista, e por extensão a Denominação, a reafirmarem os conteúdos conservadores e optar por uma práxis solidária com o regime e o bloco ocidental. Tal opção foi reforçada por contradições internas da Denominação, não resolvidas nas décadas anteriores, que são as do permanente choque entre a teologia salvacionista missionária e a teologia do Evangelho social, congênere não formatada da teologia da práxis social.
A leitura dos documentos denominacionais produzidos naquela época nos levam a crer que essas contradições ainda continuam vivas, mas não são discutidas. O que sem dúvida impossibilita aos batistas tomarem posições claras diante da realidade mundial e brasileira. A oscilação do pensamento batista poderá produzir, enquanto estas contradições não forem solucionadas ao nível da práxis, atuações ambíguas e escorregadias. Pode levar a Denominação a ficar à mercê das procelas do momento.
Ao fugir de sua história recente, os batistas deixam de trabalhar com fatos que permitiriam propor alternativas para desafios como a exclusão social e a miséria no Brasil. No entanto, é mais fácil retirar-se para o privatissimum da pregação salvacionista e evitar assim um choque com os fantasmas de origem.
Sabemos que o atual sistema-mundo ao impossibilitar a produção e reprodução da vida caminha para seu próprio fim, ao semear fome, doenças, terror e morte. As vítimas, bilhões de seres humanos, cujas dignidades e vidas são destruídas clamam aos Céus. E se Céus existem, estamos debaixo da ira.
Cabe ao intelectual não somente, com humildade diante do erro, reler sua história recente, mas produzir um estudo da religião condizente com a realidade do mundo, enquanto recurso ético diante de uma humanidade em perigo de extinção. Ao intelectual cabe a co-responsabilidade solidária. Sem dúvida, será desafiado a caminhar com dignidade na senda fronteiriça, entre os abismos da cínica irresponsabilidade ética diante das vítimas e a paranóia fundamentalista.
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Qual seria, então, a alternativa para se buscar a paz e as ações transformadoras em nosso país? Talvez devêssemos partir daquilo que a Reforma nos transmitiu: a consciência dos direitos da pessoa. Neste sentido, a questão é a viabilidade de uma comunicação interdenominacional e inter-religiosa que possibilite ações transformadoras para a conquista e manutenção dos direitos da pessoa. E isso só será possível quando estudiosos da religião, líderes religiosos e leigos de diferentes protestantismos, cristianismo e religiões não impedirem a construção de princípios comuns de defesa da vida humana.