teologia da existência e eternidade
introdução
o livro de slavoj zizek e john milbank, “a monstruosidade de cristo, paradoxo ou dialética”, editado em 2009, traz um diálogo entre zizek, que discute a possibilidade de um materialismo cristão, a questão a deidade de ieshuah, ou seja a encarnação de deus, e a leitura ortodoxa, podemos dizer tomista de milbank, que faz a defesa do escândalo da encarnação a partir da ontologia. e essa é a viagem que faremos neste diálogo entre existência e eternidade.
em 1967, jean-luc goddard fez um filme inspirado a partir de um artigo sobre donas de casa de um conjunto habitacional no subúrbio de paris, que se prostituíam para alimentar o consumo supérfluo. o título do filme se refere à paris dos anos 60, um retrato da sociedade de consumo, em meio à pobreza das massas e a tragédia da guerra do vietnã. nesta reflexão sobre espiritualidade e alta-modernidade, numa leitura a partir de slavoj zizek e john milbank, quero falar de duas ou três coisas que nascem da referida discussão.
tal abordagem, como o amor de goddard por aquela paris, também parte do coração – é pessoal e emocional, e nasceu em um jovem judeu, marxista, militante, que mais tarde, já com 37 anos reconheceu no rabino de nazaré o mashiah esperado. e é exatamente esse itinerário de construção de vida e teologia que me levam a uma empatia com o materialismo cristão pensado por zizek.
nesta reflexão, há três coisas que penso, quando tratamos de missão e alta-modernidade, numa leitura a partir da monstruosidade rabino de nazaré. a primeira coisa é que na modernidade colonial e eurocêntrica se conjugava missão a partir do verbo ir. mas neste momento de alta-modernidade em caos e crise se faz necessário pensar o verbo receber. a segunda coisa, é que naquela modernidade referida a lógica da expansão colonial e eurocêntrica era a dialética. mas nesta alta-modernidade somos chamados a pensar a analética. e como terceira coisa que penso sobre ela, é que na modernidade o rabino de nazaré era o logos joanino, mas nesta alta-modernidade o rabino de nazaré precisa ser entendido como aná-logos.
ora, estas três percepções permitem leituras críticas da monstruosidade do cristo, num confronto entre paradoxo e dialética, e colocam preocupações que devem ser levadas em conta quando se pensa missão e alta-modernidade.
como judeu que só aceitou o mashiah na maturidade, vivi e vivo a monstruosidade da encarnação. e o mesmo acontece com todos aqueles não-e discípulos do rabino de nazaré que pensam o cristianismo, quer sejam muçulmanos ou estelares. e essa monstruosidade da encarnação, eterno/humano, humano/eterno, não desafia apenas zizek, está presente no mundo da alta-modernidade, e tem a ver com os excluídos e expropriados do terceiro mundo.
quando pensamos a revolução da espiritualidade a partir da américa latina temos elementos para uma análise do clamor dos excluídos e expropriados a partir do conceito de outro. e vamos fazer isso, a leitura do mesmo -- aquele que se fecha em si, sente-se auto-suficiente, etnocêntrico e não aceita o outro, não aceita a alteridade --, trazendo para o momento presente a discussão entre slavoj zizek e john milbank.
a ontologia, a partir do iluminismo, ou melhor, a partir de hegel, e este é um dos problemas da abordagem tomista de milbank, não se baseou na relação pessoa-pessoa, mas na relação sujeito-objeto. essa ontologia de uma só pessoa levou ao discurso solipsista, onde não há espaço para o outro, pois é não-ser e negatividade. o olhar europeu colocou-se como superioridade em relação ao outro, externo, primitivo e subalterno, o que conduziu à colonização e à expropriação das vidas. tal situação teve justificação espiritual: o outro é revestido da impessoalidade do inimigo, do estranho, do inferior. donde, não há problema se for exterminado, já que este outro está fora da totalidade. nada acrescenta ou diminuiu à totalidade.
este mal é transmitido de geração em geração. a prática histórica ganha característica de lei. por isso, apesar de injusta, a exploração se torna legal. Mas a moralidade não tem como fundamento a legalidade, pois a prática justa vai além do estabelecido, da ontologia da totalidade, além da ordem legal vigente. a origem de uma moralidade justa não está no mesmo, mas no outro, por isso a prática originada no mesmo é uma prática alienante, dominadora e opressora.
no final dos anos 1960, a partir da constatação de que a dialética era limitadora para a formulação de uma teologia da práxis, enrique dussel e juan carlos scannone buscaram uma expansão da dialética hegeliana, que chamaram analética. a expressão traduziu uma releitura da analogia tomista. mas foi scannone quem utilizou o conceito opondo totalidade e alteridade, ao dizer: "tal processo, mais que dialético, para distingui-lo da dialética hegeliana, eu o chamo analético".
assim, dussel e scannone buscaram uma alternativa às dialéticas hegeliana e marxista clássica. o que foi possível pela afirmação da existência de um âmbito antropológico alterativo além da identidade da totalidade, que abria a possibilidade de uma refundação do fundamento, já que o próprio fundamento foi também fundado. mais tarde, dussel dirá que seu método parte de lévinas, mas que tem como pano de fundo a realidade latino-americana. a princípio foi formulado como leitura de uma ética da libertação latino-americana, mas ao definir a ética como filosofia primeira, a analética torna-se, em dussel, a compreensão apropriada a uma filosofia latino-americana de libertação.
em 1976, teólogos reunidos em dar-er-salam afirmaram que o método interdisciplinar na teologia, e por extensão a revolução da espiritualidade, tem que levar em conta a inter-relação entre as teologias e a análise política, psicológica e social. quando se afirma que a criação é fundamentalmente boa e que a presença do espírito no mundo e na história é contínua, é importante ter em mente o mal que se manifesta na alienação do ser humano nas estruturas socioeconômicas. as desigualdades são diversas e apresentam muitas formas de degradação humana, e por isso exigem fazer do evangelho “um bem novo para o pobre”. são exatamente essas leituras que nos levam a formular a necessidade de uma revolução da espiritualidade que chamamos da libertação.
em américa latina dependência e libertação, dussel afirma que na passagem diacrônica, desde o ouvir a palavra do outro até a adequada interpretação, pode-se ver que o momento ético é essencial ao método. somente pelo compromisso existencial, pela práxis libertadora no risco, por um fazer próprio, pode-se ter acesso à interpretação, conceituação e verificação da revelação do mundo do outro. dessa maneira, só aparentemente o pensamento europeu antepôs a teoria à práxis, pois o “eu colonizo”, o “eu conquisto” precedem o “ego cogito”. a exploração e a opressão criaram as condições históricas das quais nasceu uma espiritualidade da justificação e do paradoxo, uma falsa consciência da realidade. a práxis da dominação formou a subjetividade do conquistador: o eu moderno é imperial, livre e violento. o pensamento eurocêntrico e sua extensão estadunidense ocultam o conceito emancipador de modernidade como saída do estado de menoridade. o que traduz a justificação da práxis de violência por parte de culturas que se autocompreendem como desenvolvidas. esta superioridade impôs processo civilizatório de via única.
uma afirmação de zizek – “devemos, então, de um ponto de vista materialista radical, pensar destemidamente nas consequências de se rejeitar a ‘a realidade objetiva’: a realidade se dissolve em fragmentos ‘subjetivos’, mas esses fragmentos incidem de volta no ser anônimo, perdendo sua consistência subjetiva”, nos remete à questão do paradoxo.
o esquivar-se da realidade e de uma leitura materialista do cristo, a partir da ontologia do paradoxo nos leva à frase exposta por tertuliano de cartago, escritor cristão do século iii, “credo quia absurdum!”, creio porque é absurdo.
este absurdo paradoxal sobressalta à concretude e nos chama a mergulhar na imensidão do divino/humano. e a fechar os olhos e a dizer como o fez um judeu chamado shaul, que ficou conhecido como paulo, o pequeno: “os estelares pedem sinal e os gregos a sabedoria. mas nós pregamos a cristo crucificado, que é escândalo para os estelares, e loucura para os gregos”.
absurdo, escândalo, paradoxo ... tudo como fundamento da fé, essa mesma fé que justifica abraão em meio à loucura de um pai que deve sacrificar o “filho da promessa”. logo, a fé deixa de ser a emunah hebraica, que define posicionamento militar, e se transforma em paradoxo. não delírio ou devaneio, mas a loucura da confiança do divino, já que somos incapazes de compreender.
ora, desde paul tillich, enquanto herdeiro de hegel e do jovem marx, a práxis é a mediação entre a ontologia e a efetivação do real. esta correlação, que em tillich vai virar método, é a procura da superação das dialéticas anteriores, que tratavam do conhecimento do ser e de suas manifestações fora da práxis histórica. devemos, nesta discussão sobre missão e alta-modernidade também fazer este trânsito, ao construir uma lógica que não será hegeliana, nem marxista no sentido clássico, mas procurará correlacionar ontologia, lógica e metodologia na dinâmica da práxis da libertação.
essa correlação com a exterioridade caracteriza a mobilidade da espiritualidade da libertação que, por isso, será uma espiritualidade da práxis. desenvolve, pois, o caminho da correlação entre exterioridade e ontologia face à dinâmica da práxis, tratando das formulações de método que acompanham a superação dos horizontes ontológicos. dessa maneira, coloca a afirmação da exterioridade como fonte anterior às exigências da ontologia, fazendo o caminho que leva um cruzamento comum: a ética.
missão na alta-modernidade deve ser construída a partir de duas abordagens, o outro enquanto revelação de um mistério incompreensível da liberdade e a comunidade de fé enquanto infrestrutura que denuncia o poder excludente. e assim, a fé nasce ato da inteligência, é um modo de ver. quem é ou o que é que realmente ultrapassa o que se vê, que vai além do que se vê? em primeiro lugar, a esperança de que o outro se revelará concretamente. e é a possibilidade da produção e reprodução da vida o que vai além da visão do rosto. assim, a espiritualidade da libertação significa um pensar sobre um outro, mas um outro que se revela na história, que se revela através do outro, que é o mistério incompreensível de nossa liberdade. crer na revelação do outro é compreender o sentido da história.
para que a espiritualidade liberte é necessário descobrir o sentido do presente histórico. e esse desvelar o sentido do presente histórico chamou-se profecia, o falar diante. mas falar diante de quem? na modernidade, este falar diante levou a leitura formal do ir para falar diante. ora, se profecia é isso: falar do sentido dos acontecimentos presentes através da vida, nesta alta-modernidade de caos e crise, o desafio não é ir, mas receber. vivemos a localidade global, não somos chamados a ir, mas a receber, porque os excluídos e expropriados estão entre nós, conosco. assim, contra a lógica que não aceita a exterioridade, espiritualidade na alta-modernidade é no chão da vida receber e viver a fé.
espiritualidade libertadora reconhece a existência a partir da analética: onde o outro se apresenta como alteridade, pois irrompe como estranho, diferente, excluído, que está fora do sistema e clama por justiça.
ora, a ação libertadora é uma atividade de afrontamento, que diz respeito aquelas pessoas que sabem que é preciso consultar e interpelar, e não situar-se como espectadores passivos.
a analética é uma contribuição à questão metodológica, que parte da exterioridade, que é real devido à existência da liberdade humana, capaz de constituir outras histórias, outras culturas e outros mundos. a lógica hegeliana e por extensão a dialética só chegam até o horizonte do mundo, onde engolfa o outro anulando-o em sua alteridade. porém, além da identidade divina e além da dialética ontológica de heidegger existe um momento antropológico, que afirma uma nova maneira de pensar espiritualidade.
analético é o fato pelo qual o ser humano, comunidade ou povo se situa sempre além do horizonte da totalidade. o momento analético é o ponto de apoio de novos desdobramentos. entretanto, o ponto de partida do discurso metódico é a exterioridade do outro. como uma alternativa à dialética que trabalha com a contradição, identidade e diferença, o princípio não é o de identidade, mas de distinção. o momento analético segue uma sequência, a totalidade é posta em questão pela interpelação provocativa do outro. escutar sua palavra é ter consciência ética, é aceitar a palavra interpelante por respeito à pesso. é lançar-se à práxis do excluído e expropriado.
desde o século xvi a américa latina é um continente ontologicamente oprimido por uma “vontade de poder” exercida na totalidade mundial pela europa. “vontade de poder” é uma potência que não somente critica os valores estabelecidos, mas que propõe novos, propõe valores na totalidade a partir do lado dominante da bipolaridade. a américa latina tem então como ideal ser europeia.
na analética se faz necessária a aceitação ética da interpretação do clamor e a mediação da práxis. esta práxis é constitutiva, condição de possibilidade da compreensão: traduz ser levado à exterioridade, lugar do exercício da consciência crítica. sem o momento analético o método pode se dizer científico, mas se reduz ao fático natural, ao lógico ou matemático.
o momento analético é a afirmação da exterioridade: não é somente a negação da negação do sistema desde a afirmação da totalidade. é a superação da totalidade a partir da transcendentalidade interna ou da exterioridade daquele que nunca esteve dentro. o momento analético é crítico por isso: é a superação do método dialético negativo, mas não o nega, como a dialética não nega a ciência, simplesmente o assume e completa, lhe dá seu justo valor. afirmar a exterioridade é realizar o impossível para o sistema, é ouvir aquilo que surge a partir da liberdade não condicionada. só através da analética é possível comprometer-se com o outro, a ponto de arriscar a vida na luta pela libertação desse outro, além do que possibilita a justiça do sistema. como consequência, a analética é prática: é uma economia, uma erótica, uma política que trabalham para a realização da alteridade humana.
a questão pedagógica não é tratada por heidegger porque pensa que o “ser-no-mundo” procede unicamente do homem. mas se esquece que quem dá sentido ao meu mundo é o outro. é no processo pedagógico que se organiza o meu mundo. quando me descubro outro que está no outro, me descubro novo.
a analética, então, não é pura teoria como a ciência e a dialética, mas é prática, porque sua essência constitutiva é a ética. se não há práxis não há analética, porque a prática -- a relação entre pessoalidades -- é a condição para compreender o outro e exercer a plenitude da consciência crítica diante do sistema. o momento chave da leitura analética é o saber ouvir, o saber ser discípulo do outro, para poder interpretá-lo: isto é comprometer-se com sua libertação. isso implica em derrotar a totalidade ontológica divinizada, descer da oligarquia acadêmica e cultural, para expor-se a favor dos excluídos e expropriados pelo sistema.
ao citar o papa bento xvi, de forma crítica, zizek diz: “o papa condenou o ‘secularismo sem deus’ ocidental, no qual o dom divino da razão ‘foi deturpado numa doutrina absolutista’. a conclusão é clara: razão e fé devem ‘se juntar de uma nova maneira’, descobrindo seu fundamento comum no logos divino, e ‘é para esse grande logos, para essa amplitude da razão, que convidamos nossos parceiros no diálogo entre culturas’”.
em sua reflexão sobre a superação das totalidades ontológicas a partir da abertura à alteridade, dussel afirma que tal superação se dá com a metafísica, entendida como além da totalidade ou além do fundamento. e se dá assim porque a metafísica não é somente ontológica, mas opera através da descoberta de um mais-além do mundo. e como em grego “aná” significa mais além, e “logos” significa palavra, análogo toma o sentido de palavra que irrompe no mundo desde um mais além do fundamento. o método ontológico-dialético chega até o fundamento do mundo desde um futuro, porém se detém diante do outro como um rosto de mistério e liberdade,. por isso, quando o logos irrompe enquanto interpelante, deixa de ser paradoxo, é análogo.
dialético é um a-través-de. analético é logos que vai além. no logos, um primeiro momento, surge a palavra interpelante, mais além do mundo -- este é o ponto de apoio do método dialético, que passa da ordem antiga à ordem nova. esse movimento de uma ordem a outra é dialético, porém é o outro como excluído e expropriado que é de fato o ponto de partida. a leitura analética surge desse outro e avança dialeticamente, há uma descontinuidade que surge da liberdade do outro. este método tem em conta a palavra do outro como outro, implementa dialeticamente todas as mediações necessárias para responder a essa palavra, se compromete pela fé-posicionamento na palavra histórica, esperando pensar e viver com o outro.
os antecedentes da analética foram colocados pelos pós-hegelianos e por lévinas, não pelos filósofos modernos, nem por heidegger, porque estes incluem tudo na concepção do ser. mas, os verdadeiros críticos do pensamento eurocêntrico são os movimentos de libertação do terceiro mundo, porque escutam o outro, o não-europeu que foi excluído e expropriado. para este, que está mais além, a dialética não basta. é necessário a analética, capaz não de ver, mas de ouvir a palavra crítica do outro, capaz de despertar a consciência ética e aceitar essa palavra, por respeito e fé-posicionamento ao outro, cuja interpelação não é interpretada adequadamente porque sua fundação transcende o nosso horizonte. partimos da crítica de lévinas, mas em lévinas o outro é um outro abstrato, passivo. lévinas ficou no meio do caminho, porque tem uma pedagogia, mas carece de uma política: nunca imaginou que o outro possa ser um muçulmano. seu método se esgota no começo. por isso, há que ir mais além de lévinas e, por suposto, além de hegel e heidegger, que permaneceram numa alteridade equívoca e viveram uma metafísica da passividade.
“‘não há provas – e não pode haver – de que deus existe. em vez de ser motivado por provas, o fiel é motivado apenas pelo desejo de que deus existisse. essa, no entanto, é a melhor prova de que deus não existe, uma vez que só podemos desejar que exista aquilo que não existe. o teísmo é a melhor prova da não existência de deus’. isso, mais uma vez é o que lacan afirma efetivamente: os teólogos são os únicos ateístas verdadeiros”. (zizek, milbank, 2014, p. 384).
depois da questão judaica, marx faz a crítica econômica do cristianismo. essa crítica está dirigida às comunidades de fé, já que para marx elas são a expressão da miséria. mas também faz a crítica da religião quando analisa o "fetichismo da mercadoria", porque a leitura religiosa do mundo real só vai desaparecer quando desaparecerem as condições atuais de vida. mas por que é assim? em que consiste essa leitura do mundo real? porque o olhar religioso vê a existência separada das relações construídas pelos seres humanos. mas essa existência independente das relações sociais, essa existência não-real, é reflexo de outro real. essa divisão entre a aparência que encobre a existência e esconde a realidade é o fenômeno do fetichismo. o fetichismo da mercadoria, um modo estranho de fetichismo, consiste nisso: esconde o caráter social do trabalho e se manifesta como se fosse um caráter material dos próprios produtos do trabalho. ou seja, em relação à mercadoria, acontece o mesmo que no mundo da religião, a realidade se apresenta separada, alienada, das relações de trabalho, do essencial concreto e de seu produto, criando uma realidade aparente, como se o valor da mercadoria pertencesse por direito a sua própria estrutura independente.
uma espiritualidade da libertação é uma ética da vida. há aqui uma passagem da razão estratégica, enquanto campo estratégico de forças sem sujeitos, em direção à razão libertadora, situada ao nível da microfísica do poder. e entendo esta questão a partir das barricadas de maio de 1968. será que a razão libertadora, que se dá como síntese da ação crítico-desconstrutiva, num primeiro momento, para depois passar a ação construtiva de normas, subsistemas e sistemas completos, tem um componente que não é razão instrumental, mas razão de mediações a nível prático? se a razão estratégica visa chegar a um fim exitoso é preciso entender que enquanto razão crítica esse fim é uma mediação da própria vida humana, principalmente quando excluídos e expropriados são partícipes dessa ação.
é a partir dos excluídos e expropriados enquanto partícipes que a razão estratégico-crítica realiza a ação transformadora. mas quem é este sujeito das transformações e como se articula a espiritualidade com este sujeito histórico? ora, espiritualidade é a consciência ilustrada do cristianismo. agir pode vir de uma igreja estranha ao excluído e expropriado, mas que adere ao clamor da vida não por sentimentos necessariamente religiosos, mas por superação. por isso, a espiritualidade está sempre exposta às oscilações oportunistas, por não perder o vínculo ideológico com o chão materno e seu messianismo.
ora, a espiritualidade libertadora não é apenas uma razão estratégica que procura realizar os fins que as táticas e as circunstâncias impõem. na verdade, não tem as mãos livres. quando se trata de espiritualidade libertadora, em relação aos excluídos e expropriados, o êxito dependerá das condições de possibilidade, ou seja, será impossível separar teoria e prática. por isso, a espiritualidade da libertação deverá saber integrar os princípios enunciados na escolha de fins, meios e métodos, que levam à práxis crítica e posicionam o outro como análogo.
o sistema-mundo nesta alta-modernidade em caos e crise, ao impossibilitar a produção e reprodução da vida caminha no sentido de aprofundar seu próprio caos e crise ao semear doenças, fome, terror e morte. as vítimas são esses bilhões de seres humanos, cujas dignidades e vidas são permanentemente destruídas. a alta-modernidade e sua globalidade levam a um assassinato em massa e ao suicídio coletivo. são os cavalos do apocalipse. é nesse fetichismo do capital, que se apresenta como sistema formal performático, onde dinheiro produz dinheiro.
cabe por isso à espiritualidade levantar uma ética libertadora enquanto recurso diante de uma humanidade em perigo de extinção. a esta espiritualidade cabe a corresponsabilidade solidária, que parte do critério de vida versus morte, de caminhar com dignidade na senda fronteiriça, entre os abismos da cínica irresponsabilidade ética diante de excluídos e expropriados e da paranoia fundamentalista.
aqui estamos diante do sujeito histórico que aponta para a esperança escatológica, que se abrirá com o ir mais além da alta-modernidade, onde o ser humano excluído e expropriado não apenas do sistema, mas do direito à produção e reprodução da vida, colocará na ordem do dia a questão da revolução enquanto promessa escatológica. e a espiritualidade da libertação deve entender que tal ação e postura não nega o análogo do logos, mas que deve deixar de ser apenas hermenêutica teórica e desenvolver-se enquanto presença que fundamenta a transformação prática, já que isso só pode acontecer no sentido estrito de uma ética da libertação, não fundamentalista ou salvacionista.
é por isso que a espiritualidade da libertação deve se esforçar para apresentar um princípio universal: o dever da produção e reprodução da existência de cada ser humano. princípio este que é objetiva e subjetivamente negado pelo sistema-mundo e pela globalização.
e volto ao goddard de duas ou três coisas que eu sei dela, quando cita a frase do tractatus logico-philosophicus de wittgenstein: “os limites do meu mundo são os limites da minha linguagem”. só que em seguida vemos juliette andando por paris e dizendo: “mas o mundo sou eu”.
linguagem e pessoalidade, a espiritualidade libertadora caminha sobre o fio da navalha: de um lado está a negação de presença e recebimento do outro, e de outro o fundamentalismo pró-integração. por isso, estratégia e tática devem partir de critérios claros e de um princípio geral -- o dever da produção e reprodução da vida -- que possibilitem cumprir às mediações existentes. é nesse sentido que receber, e tudo o que isso implica, rompe a discussão tão moderna entre paradoxo e dialética. não há paradoxo porque o cristo é análogo e o método é analético. os fins estratégicos devem ser enquadrados dentro desses princípios gerais, a fim de que, com factibilidade ético-crítica a espiritualidade possa negar as causas da negação da vítima. essa é uma luta desconstrutiva, que exige meios proporcionais àqueles contra os quais a luta é travada.
mas se por um lado a espiritualidade traduz uma ação desconstrutiva nesta alta-modernidade de caos e crise, por outro promove transformações construtivas que se projetam na esperança escatológica. e deus existe nesta esperança e possibilidade de produção e reprodução da vida, e cristo já não é monstruosidade ou paradoxo, mas análogo. e é nesse sentido que deus existe e cristo é análogo, pois se projetam no eterno agora, planejado, realizado em progressão, mas nunca totalmente.
e assim, olhando o presente e o passado a partir do futuro, nós os descendentes apresentamos os limites da existência e as senhas do reino, sem dúvida, com o sol entre os dentes.
bendita seja a eternidade, que traz as sombras da noite, abre os portais, modifica os momentos, troca os períodos e organiza as estrelas. bendita seja a eternidade, que traz as sombras da noite.
a primeira chave
o chão firme da liberdade
digo à zlabya, aquela-que-anuncia, que o vento da justiça sopre sobre você, que a paz seja como riachos de águas, e que o fogo do amor traga alegria!
1.
querida zlabya, aquela-que-anuncia, estou escrevendo para você. escrevo do terceiro milênio, um futuro não muito distante, quase presente, para contar as coisas que vão acontecer e, ao mesmo tempo, poder conversar com você pessoalmente. você está no início da sua liberdade como pessoa grande, que pode escolher caminhos e destinos. escrevo sobre as memórias futuras, quando os descendentes darão voltas por este fundão besta, incluindo aí o que escutei e vivi. mas você não pode esquecer que a memória será sempre afetiva e seletiva. na verdade, ela apresentará os fatos que a gente viveu, a partir de um processo muito peculiar: dá primeiro as dores maiores, os momentos onde vivemos os limites da existência. mas não para aí. a memória fará sempre uma leitura épica, onde, por pior que tenha sido o momento, nos coloca como heróis.
mas se estou no futuro, posso falar do presente e do passado. é por isso que os velhos somos bons contadores de história e olhados pelos descendentes, e aí incluo você, como cavaleiros andantes de um futuro mítico. minhas experiências de amor e vida gerarão flores belíssimas, memórias que se multiplicarão com você.
as memórias são nossa história e minhas leituras, porque discorro sobre acontecimentos e nos levam a pensar o que não está aqui e agora, sobre o que é a eternidade. e quando isso acontece história e leituras se complementam e enriquecem as nossas vidas. o certo é que a memória ao apoiar-se nos fatos deixa de ser o relato de algo particular, vive um processo de amplidão que lhe dá grandeza. e a história, inversamente, ao recorrer à memória traz emoção e vida ao fato.
mas, como já disse parcialmente, acima, nossas memórias não se entreluzem apenas com fatos sociais, nossos pesadelos, assim como nossos sonhos transportam nossas memórias a um mundo mágico, um mundo onde o imaginário, às vezes, é tão real quanto a história vivida. transcende. por isso, essas leituras serão traduções de suas experiências com a eternidade, infinita e sem limites, criadora de todas as coisas, origem e fim do amor e da vida.
na antiga tradição dos longevos, o nome é som e designação que fala da natureza e da história daquele que está a ser nominado. os longevos falavam que a eternidade não poderia ter seu nome profanado porque seria violentar o sem-fim. e por isso somos chamados a calar diante do nome que não se pronuncia, separado para honra sem-fim.
os quatro sons dos longevos falam dessa infinitude, que nos apresentam a identidade e a história da eternidade sem-fim. até o ano de 586 antes da era comum, ou seja, até a destruição do primeiro templo, os longevos cantavam os quatro sons. mas depois optaram, por razões muito justas, em dizer com reverência meu senhor, meu senhor dos senhores. e mais tarde ainda, antes da era comum, meu senhor tornou-se, por causa do shemá aramaico, hashem.
quando estava diante daquele mato bravo que iluminado não pegava fogo, moshé ouviu o vento cantar eheieh acher ehieh. e entendeu que a eternidade dizia que ela era eterna sem-fim. mas, o vento não parou e cantou diferente iaueh acher iihueh, e assim moshé compreendeu que ela é quem dá vida ao que existe.
mas a eternidade sem-fim não é homem, nem mulher. por isso, ela pode ser também elohim, que parece macho e parece muitos. mas esse macho plural canta e diz que a eternidade é sem-fim e mãe de toda a vida, por isso é elohim ieuá. mas eu gosto de saber que essa eternidade linda e sem-fim, que é também macho e plural, é a guardiã das portas do vencedor, shomer daltot israel.
nessas memórias futuras apresento leituras para a sua vida presente, os dias fora e a caminhada em direção à última fronteira, o momento infinito de sermos os anjos que somos. quanta felicidade. esses acontecimentos farão parte da história de gentes e povos. muitos viverão textos parecidos e farão parte dessas memórias. alguns estarão ao seu lado e exercerão uma profunda influência em sua vida. outros apenas passarão. são personagens dos dias fora, e aparecerão com nomes e, às vezes, sobrenomes.
não há nesta atitude da memória nenhuma intenção de esconder a verdade, mas, ao contrário, o reconhecimento de que você ainda não atravessou a última fronteira. nesse sentido, nessas memórias os nomes mudarão conforme os lugares e tempos. jamais o nome traduzirá a fugacidade do momento, mas será a marca de uma vida.
quanto aos pesadelos, estarão presentes. é o inconsciente a revelar sua visão do mundo. é difícil dizer qual será maior: o pesadelo ou a realidade da dor. ambos serão terríveis e por isso se complementarão. e ficará mais fácil entender um no debruçar-se sobre o outro. é, inclusive, difícil dizer qual virá primeiro, já que o pesadelo poderá ser sentido como futuro que se faz presente, como leitura de um presente ainda não realizado.
ou como cantará um poeta: metade esquecida por mim, quero varar os limites impostos. e, assim, as histórias chegarão através da memória, que afetivamente virará leitura, a fim permitir a travessia da última fronteira com alegria.
bendita seja a eternidade, que ama as gentes e a vida plena de sentido, que nos apresenta os limites para que não sejam quebrados com ignorância, mas possibilita a liberdade de ir além. bendita seja a eternidade, que ama as gentes.
2.
o ontem é um dia importante
eu me chamo yoffe ben shemtós e minha mulher, sua avó, brianda nisi. estamos fazendo uma pequena viagem. Hoje eu sei que estavam conosco três limites da existência, que pousaram com duçura e violência sobre a minha vida adara, ahava e sharon. a pick-up é uma land rover defender 65, placa 420amw60, uma réplica daquelas do milênio passado, só que movida a energia solar. quem me deu esta máquina foi meu amigo de jornadas antoine leroy, como presente de aniversário pelos meus quatrocentos e oitenta anos, completados no dia três de janeiro. como você sabe somos uma nova espécie, longeva. tudo indica que aparecemos fazem uns dois mil e quinhentos anos. e não foi num lugar específico, mas em regiões diferentes deste vasto mundo. continuamos aparecendo e estamos todos vivos. sabemos, porém, que aos seiscentos anos viramos anjos. depois eu conto com mais detalhes. por ora, vou dizer apenas que os anjos são os guardiões e guardiãs da nossa longevidade. por isso, não há ancestrais entre nós, apenas descendência.
partimos de montpellier, no litoral do mediterrâneo francês em direção ao parque nacional de cèvennes, às oito da manhã de sábado, chegamos em anduze, cidade que dá entrada à região de cèvennes, por volta das dez da manhã. depois de dois cafezinhos e três chás, para pais e filhas, para esquentar o frio, começamos a atravessar o parque, construindo ziguezagues pelo vale, a margear o rio gard. cenário de campo da região de languedoc, com seus castelos, não muitos, suas fazendas e vinhas.
arquitetura medieval em pedra, cidades que se cruza em minutos. estradas secundárias, mas em ótimas condições. uma delas com um aviso, atenção pista com lombada, para dizer que a estrada não era muito boa. fiquei esperando buracos e desníveis, mas nada, apenas não era lisa como as anteriores.
quando o vale ficou para trás e iniciamos a subida da montanha numa estrada sinuosa com precipícios à esquerda, adara, ahava e sharon, limites da vida, moças do frio, realizaram peripécias naquele inverno. nevava levemente. mas, conforme subíamos, maior umidade e neve mais forte. não houve como resistir, descemos do carro e fizemos nossa primeira guerra na neve. foi a glória. brianda e os três limites, que não víamos mas lá estavam, pareciam crianças. a maior farra. preocupado com a possibilidade das quatro se resfriarem, coisa boba, impossível para quem viveu sob temperaturas de menos trinta centígrados, fiz as quatro voltarem para a pick-up. a alegria é a prova dos nove...
seguimos viagem debaixo de neve e da beleza das estradas emolduradas pelos pinheiros verdes, cobertos... como nos cartões postais de natal. chegamos a florac, já lá em cima, no meio de uma nevada que caía quase forte. segundo a tradição, os gauleses viviam na região, mas o nome da cidade veio dos romanos, algo assim como flor da água ou coisa pelo estilo. e eu me lembro de quando a reforma dos protestantes chegou a cèvennes trazida pelos mascates de genebra. eles trouxeram em suas malas, o livro antigo da tradição judaica-cristã traduzida para o francês. e as gentes de florac amaram as novas ideias de reforma. a primeira comunidade protestante surgiu em 1560 e o primeiro anunciador foi antoine coppier. mas depois disso correu muito sangue debaixo da ponte. mas essa história eu conto depois.
entramos num restaurante muito simpático, la source du pécher, cheio de hippies, o que parecia estranho e fora de época. tomamos chocolate quente e voltamos para o carro. estacionei numa pequena praça e almoçamos dentro da pick-up. brianda tinha preparado coxa de peru assado com batatas, suco de maça e pão, que aqui é sempre um capítulo à parte. amamos as baguettes, principalmente as traditions.
depois do almoço, fomos visitar o castelo de florac, reconstruído em cima dos escombros do velho castelo, destruído várias vezes. essas destruições e reconstruções estão presentes em minhas memórias, assim como o sangue derramado. de todas maneiras, não podemos esquecer que toda a região de cèvennes foi um polo das lutas pela liberdade de expressão e de pensamento, com a presença dos primeiros huguenotes.
nevava forte e a história cedeu lugar a uma nova e aguerrida batalha na neve, agora sem armistício ou mediação. brianda, a mãe, foi atacada sem dó nem piedade. e em nenhum momento reclamou das boladas recebidas. reagiu à altura, sem complacência. por fim, voltamos à pick-up e seguimos viagem para barre de cèvennes, outra região histórica, onde o protestantismo nascente produziu guerrilheiros e profetas.
mas aí tivemos o prazer de entrar na cidade debaixo de uma nevasca. em poucos minutos a neve cobriu o carro. descemos e fomos visitar uma velha igreja protestante. eu estava emocionado pelo momento sublime do encontro com a heróica convicção protestante que eu quase vi nascer, mas também, com brianda, adara, ahava e sharon, limites que são irmãs e destino da existência, inebriadas pela beleza da nevasca, soprada por ventos fortes.
assim como a neve... a cidade inteira estava branca. tudo branco. guerra de neve era pouco, o momento exigia algo mais grandioso. lembrei-me que a eternidade dirá sempre que assim como desce a neve e não volta, mas rega a terra, a faz brotar, dar semente ao semeador e pão ao que come, assim é a palavra eterna, que não volta, mas faz o que a eternidade quer e prospera no seu objetivo. agradecemos à eternidade pela vida.
um grupo de jovens passou por nós, no meio da rua, cantando, gritando, alucinados pelo momento. foi difícil deixar barre de cèvennes. mas tivemos que fazê-lo. eu não queria dirigir nas montanhas, à noite, debaixo de neve.
no caminho, brianda viu um mirante, grande, que se debruçava sobre o vale. paramos mais uma vez.
desta vez, adara, ahava e sharon fizeram anjos. para quem não sabe, consiste em se jogar de costas na neve de braços abertos e deitado fazer movimentos com os braços para marcar a neve. depois, de pé, olhar e ver no branco, em branco, um anjo com suas asas abertas. e fizeram outros anjos... e por fim num gesto solidário, como sombras, juntos, fizemos um boneco de neve. na verdade, boneca, porque vestiu o gorro e o cachecol rosa da sharon. não era uma boneca enorme, mas muito simpática.
e lá seguimos nós, parando mais uma vez num pequeno hotel e depois fazendo o caminho de volta. retornamos ao vale, passamos de novo por anduze, e seguimos para nîmes, cidade construída pelos romanos, que tem no centro uma arena, um coliseu, onde ainda se realizam corridas de touro. quando chegamos estava acontecendo uma. mas levei as meninas a nîmes só para uma rápida olhada. voltamos, já à noite para montpellier.
chegamos. e como li a placa da pick-up como, ao bater os olhos nela, tenha um maravilhoso final de semana, agradeci à eternidade pelo gostoso sábado branco de meus quatrocentos e oitenta anos, que, tocado pelos anjos nevados de adara, ahava e sharon, antoine nos proporcionou com o presente. e ao eterno, glória, pois diz que aqueles que esperam nele renovam as forças, voam como águias, caminham, correm e não se cansam.
atente para isso, a descendência é responsável pelo ontem, pelo hoje e pelo amanhã. é na construção da vida, escolhida ou imposta, mas aceita, e na sequência dela, que a descendência se faz comunidade humana. as realidades da terra e do céu são vaidade e correr atrás do vento quando é descartado o papel humano de cada dia. por isso, deve fazer a crítica do clerical e chamar as pessoas à liberdade do espírito, para que pense a vida, que é construída para além das aparências das coisas da terra e do céu.
as palavras mudam de sentido, e podem dizer coisas diferentes, quando as usamos sobre uma perspectiva diferente. palavras. você já pensou na importância delas? é, sem dúvida, um dos limites da vida. os descendentes devem acreditar que o universo foi feito pela palavra eterna. acreditar que a palavra tem poder, por isso deve ter uma palavra só, cheia de sentido, ou seja, quando você disser sim, que seja sim mesmo, e quando disser não, que seja não. mas a sabedoria nos diz que a vida se faz também por outras palavras. dessa maneira, o ato de criação e o fazer humanos não são iguais porque as palavras são diferentes.
ah! embora as palavras sejam diferentes, os temas da vida são sempre os mesmos temas: o amor e o desamor, a distância e a saudade, o tino e o desatino. a diferença, porém, é que se faz, sempre, por outras palavras. e tudo muda...
sou grato à eternidade, mas sem pieguices. diga você também muito obrigado porque as contingências da vida não fumegaram o pavio. lá na frente, eu serei o garoto que andava pela ruas sem saber que a vida vai além do meio fio, que há fronteiras. e lá ao longe, mas para mim perto, estará o mar. o veleiro. a liberdade, aprendida com moran, será negociar com os ventos e a maré. diante das mareações, a marinharia me fará, junto do tio, um menino livre.
por isso, a zlabya, apresento a leitura humana da convicção e do posicionamento, onde se aprende a degustar prazeres. não se faz às correrias, com sofreguidão. é um ato delicado, um caminhar por palavras, dançando com elas pelo universo em construção.
nesse sentido, eu e você, todos somos poemas da eternidade. somos projetos de uma artesã, daí que a poesia e a razão andam juntas. por isso, a paixão aproxima porque é sempre poesia e razão nos diferentes momentos. quero que você, descendência, curta com prazer em cada ser humano as palavras, as outras palavras, que nos trazem diferentes construções e universos.
é, agradeço à eternidade porque fazer leitura virou destino. o menino lá da frente atravessou o tempo, os jeans, as camisetas, os cabelos arrepiados e caiu aqui, do outro lado da vida. tempo de poesia e razão, o garoto de depois olha a plenitude, mas o homem de antes entende que o dó, o ré, e o mi solitários não são importantes, mas sim as notas do meu amigo murá, compositor, e os parabéns e sorrisos que a eternidade montou para você.
e volto às palavras, afirmativas, compostas, decoradas, sussurradas, que se bebem, que reboam, secas, vulgares... a identidade não pode ser definida facilmente, mas isso não significa que essa identidade não exista. aliás, a maioria das identidades não podem ser definidas facilmente. daí que tais identidades são também comunidades imaginadas, unidas por leituras historicamente sem exatidão precisa. os uns não são diferentes dos outros, qualquer etnia e sua identidade não é facilmente definível, pois tais conceitos dependem dos descendentes.
assim, zlabya, lembre-se: a aparente simplicidade engana. eis uma lição de mestre, traduzir o humano com simplicidade, sabendo que o simples dá trabalho e, ao contrário do que se pensa, nunca é primeiro, mas processo. e esse é o recado. fazer leitura é descobrir o prazer da palavra curta, na construção muitas vezes trabalhosa que produz aquilo que é poesia. ou seja, fazer leitura é descontrair e na imaginação construir novo, percorrendo se for possível o caminho de todos, de cada humano. e é assim que, sem estardalhaço, a leitura ocupa lugar nos corações, cheia de imagens e significados.
digo à eternidade: obrigado pelo agradável, bom e doce que expressará em letras a liberdade do marujo. e se o ontem é um dia importante, é bom lembrar que o remédio para a enfermidade da segregação de gênero e raça é a construção social da cidadania e da justiça. a via para a liberdade estará numa trilha aberta aos diferentes, comprometida com os direitos humanos, mesmo quando sua identidade pessoal relacione diferenças e contradições.
o sondar daquele menino lá na frente ajuda. o olhar deslumbrado porque a vida será a praça, os jardins e os repuxos brancos no entardecer, as pessoas que comporão o cenário como se tivessem sido colocadas lá pelo arquiteto. e o mar... uai! a humanidade coroa a glória. aceite o prescrito com convicção.
ouçam gentes, a eternidade é uma. bendita a glória do seu reino, que é sem tempo e sem limites. amemos a eternidade de alma, coração e força... e por que amar o eterno e o estado de ser eterno eternamente, a eternidade? porque é tempo infinito, sem tempo, fora do tempo, e porque é fora do espaço, sem limites, ilimitado. e porque a eternidade é o estado do eterno, e o tempo duração com alterações, sucessão de momentos, a eternidade é duração sem sucessões, nela não há alienação. a eternidade especializa a existência.
3.
brianda, bela e rebelde
tirei o pé do acelerador. o carro deslizou de lado e bateu forte no barranco. por alguns momentos, ninguém entendeu o que estava acontecendo. alexei estava com o rosto sangrando, o corpo amolecido pelo impacto. no banco de trás, brianda e reyna se recuperaram rápido do susto e saltaram do carro. juntos, os três agarraram alexei pelos braços e o puxaram para fora. estava pálido demais, cor de cera, a não ser pelo vermelho que continuava a lhe escorrer pela cara.
está morto, disse brianda. não, não está, respondeu reyna. e cada uma olhou para a outra, numa troca de olhares que todos conhecemos bem. são irmãs, se amam muito, mas de vez em quando se testam. e quando isso acontece, sai de perto. pensei, essas duas vão começar a brigar aqui, enquanto o alexei se esvai em sangue. ele está com a cabeça machucada. se for alguma coisa grave, a gente só vai saber depois. não dá para chamar o médico, agora.
as duas olharam para mim como se estivessem diante de um extraterrestre. pegaram uma estopa velha e suja de óleo, a única que havia na hora, limparam a cabeça de alexei e fizeram uma bandagem com uns trapos que estavam jogados no fundo do land rover defender, pau pra toda obra.
encostaram meu irmão no barranco e, então, voltaram ao mundo real. eram duas e trinta da madrugada. ali estavam quatro anunciadores clandestinos com uma van cheia de livros, tombado junto a um barranco da rua que nos separa... expropriados, expulsos, sob o domínio sutil, divididos em medo. as gentes dormem nas ruas, as casas estão vazias, a cidade não é povo, a guerra é dos pobres. na verdade, brianda tinha me avisado, cuidado que esses trilhos, escorregam. cuidado com essa curva perto do castelo, cuidado. mas, eu não escutava. estava preocupado com os livros, carga perigosa. não ouvi a voz no banco de trás. estamos perto de casa. uns cinquenta metros. o problema é se passa alguém.
recomposta da ira inoportuna, reyna ajeitou a blusa e a saia, que tinha subido até o alto da coxa. ela combinara a cor da saia com a cor da calcinha. e agora dava para ver isso. sacudiu a cabeça, passou a mão pelo cabelo, como se, de repente, estivesse acordando para a vida. vamos à luta, antes que alguém nos veja.
e mais uma vez os três voltaram a trabalhar juntos. eu abracei alexei o melhor que pude, agarrando-o como se fosse um bêbado e o arrastei até o prédio. as duas mulheres, cheias de pacotes, tentavam andar rápido na frente. não corriam. os livros formavam volumes pesados. era só o que faltava, serem agarrados agora, depois de uma viagem tão longa.
eu sabia que este era um trabalho de formiga. cansativo, suado e longo. a medida era a história. sorte que a história marchava a favor. na rua que nos separa, o apartamento de dois quartos e sala ampla, com rede, o grande charme da casa, e uma biblioteca impressionante, subversiva, não tanto pelos títulos, mas pelos próprios livros. deitei alexei na rede. ele gemeu. a testa e a cara estavam roxas. é, não é desta vez que ele vai empacotar. que bom. se ele morresse agora ia ser um deus nos sacuda.
brianda passou em direção à cozinha. já de pijama de seda preto com flores amarelas e rosas. elegante até para dormir. os pacotes estavam arrumados ao lado do oratório barroco italiano. peça de museu. eis aí um bom símbolo para a revolução eterna. o futuro encontra suas bases nos sonhos da piedade medieval. que loucura a permanência de uma peça de artesão, símbolo de vidas reclusas, de convicções que dormem nos museus.
brianda é italiana de abruzzo, terra do azeite mais gostoso de toda a itália. professora de sociologia na universidade de paris. é bem mais nova que eu, tem trezentos e sessenta anos bem vividos, com direito a ter conhecido augusto comte e émile durkheim, mas sobretudo ver maria antonieta perder a cabeça. postura perfeita, sempre desafiadora nas discussões, que ama não importa o assunto.
-- onde eu durmo? perguntou reyna. no dos hóspedes?
-- não quer comer alguma coisa antes? tem espaguete ao frutos do ma. agente acompanha com cava e depois tem tiramisù de sobremesa. vem também, yoffe, levanta dessa cama e vamos fazer um lanche porque o dia foi duro.
-- tiramisù?
-- é claro, reyna. e foi você quem me deu a receita, se lembra? aquele clássico, 500 gr di mascarpone, 400 gr di savoiardi, 100 gr di zucchero, 6 uova, caffè (12 tazze), cacao amaro, e scaglie di cioccolato. topo, per prima cosa preparate il caffè, se volete dare un sapore più leggero di caffè ai savoiardi, diluitelo con acqua, versatelo in una ciotola o comunque in un recipiente largo, zuccheratelo e lasciatelo raffreddare.
para quem não conhece esse doce afrodisíaco, maravilhoso, eu explico. ninguém sabe direito a origem do tiramisù, porque as mais diferentes regiões da itália afirmam terem inventado essa delicada sobremesa. mas as pistas remontam a três regiões, toscana, piemonte e veneto. de todas as maneiras, sabemos da existência de uma receita que foi guardada pelo cosimo de medici, grão-duque de toscana. por isso, durante muito tempo, o doce foi conhecido como "zuppa del duca". e de lá, contam os longevos, cosimo de medici fez chegar a receita a outras regiões da itália.
os sonhos mais lindos sonhei, de quimeras mil um castelo ergui. brianda, toda alegre, veio me imitando, a cantar a canção de nossa eternidade. desde que nos conhecemos nas terras dos brasis, a beira mar, ela cria estórias maravilhosas, de como lá aportaram bantos, gêges e nagôs vindos de um futuro sem fim para criar uma nova humanidade. e conta de uma bisavó que dançou uma triste melodia, de gritos e sussurros, ao vender seus filhos como grumetes para um navio das terras de nanquim. sempre que conta essa estória fica triste e eu posso ver aquela velha mulher da cor da noite, a se despedir dos filhos: vão meninos, porque o sol precisa do entardecer para descansar. vão meninos porque o carvão escreve bonito sobre o amarelo. vão meninos gerar a dinastia dos cabelos crespos com olhos rasgados. um dia ela conta esta estória com detalhes para você.
e a mãe... ah! a mãe! abruzezza das abruzezzas. ninguém em toda a terra dos brasis faz uma massa como ela. quando brianda canta, tem-se a nítida impressão que ele nasceu por aqui. é como se ela falasse de conhecidos, de um desses vizinhos que frequenta o mesmo bar e divide com a gente um sambinha que acabou de sair do forno. eu sempre estive apaixonado por brianda, desde que a vi pela primeira vez, num baile do paulistano da glória. tem gênio. é brava, doce e brilhante. é, esta é a palavra exata para defini-la, brilhante.
eu e brianda somos um doce paradoxo. sou rico em defeitos humanos e virtuoso como os longevos. penso sete desafios ao mesmo tempo e dou vinte e uma respostas na sequência. sou protestante, troco ideias na contra mão e não gasto tostão com o óbvio. e vai por aí.
glauber rocha, guimarães rosa, nélson rodrigues, gosto de rir. na verdade, gargalho. mas o que dá o maior tesão mesmo é ver brianda concentrada em suas produções teóricas. fico eletricamente contagiado.
-- yoffe, para de escrever nas nuvens. larga o alexei aí nessa rede e vem comer. afinal foi você quem deu a ideia.
qoh é o meu apelido. quem me deu foi sara, uma amiga poeta. é uma mulher impressionante, especialista na obra de sua xará sara copia sullam. talvez o nome a tenha levado a descobrir a original poeta italiana do século 17. de quem gosta de citar o poema que escreveu sobre hadassa.
la bela ebrea, che con devoti accenti gracia impetrò, da’piu sublimi cori; sicche fra stelle in ciel nei sacri ardori. felice gode le superne menti; al suon, che l’alme, dai maggior tormenti sotragge, ansaldo, onde te stesso onori spiegar sentendo i suoi più casti amori, i mondi tiene alle tue rime intenti; quindi l’immortal dio, che nacque in delo ala tua gloria, la sua gloria acheta; nè la consumerà caldo, nè gelo; colei ancor, che già ti fe poeta, reggendo questa, dall’empireo cielo porrà per sempre, ai carmi tuoi la meta.
sabe combinar tradição e utopia. e o meu apelido veio acompanhado de uma exposição impressionante. e disse o seguinte:
-- o sábio procurou entender o estar e o não-estar, a existência e aquilo que está fora e além dele, no jogo de seus movimentos. percebeu que não tinha controle sobre o movimento dos fenômenos do universo e viu que era preciso respeitar o espaço e o tempo para poder existir dentro do ritmo dos eventos.
mas não foi o único a pensar nessas coisas. a pergunta pelo não-estar, presente na história humana desde que ele é sapiens, levou à pergunta pelo sentido do estar. qohelet é aquele que sabe, e de forma magnífica trabalhou o tema da vida, de seus limites, e nos leva a pensar sobre a única realidade a que de fato temos acesso: a existência -- terreno afetivo e emocional que produz e repousa sobre a riqueza material das humanidades. o sábio numa abordagem existencial discute o estar, sua integridade e potencialidades. por isso, eu te batizo qoh meu amigo yoffe.
mas qohelet não foi o único a pensar a existência e seu limite último. o grego górgias traduziu no pensamento pré-socrático a dúvida sobre o não-ser e, por extensão, sobre o ser. disse que se houvesse alguma coisa, seria ser ou não-ser, ou ser e não-ser juntos. e se o não-ser existe, ele é e não-é ao mesmo tempo. mas é absurdo dizer que alguma coisa existe e não-existe ao mesmo tempo. para górgias, o não-ser não existe. mas prefiro pensar no conceito de estar, que é estado da existência, e não de ser que é essência do único que é, o eterno.
é interessante que qohelet apresentou o não-estar, aquilo que é limite, além da existência, de uma maneira que nos lembra górgias. disse que ninguém se lembra do que aconteceu no passado e que até as coisas que acontecerão no futuro também serão esquecidas. que ninguém se lembra dos sábios, assim como ninguém se lembra dos imbecis, pois no futuro todos estaremos esquecidos. há tempo para nascer e tempo de morrer, mas todos caminham para um mesmo tempo, pois tudo vem do pó e tudo volta ao pó.
disse, ainda, que felicitava os que já morreram mais do que os que estavam vivos. e considerou que mais vale o dia da morte do que o dia do nascimento. ou, mais vale ir a uma casa em luto do que ir a uma casa em festa. que ninguém é senhor do dia da própria morte e que nessa guerra não há trégua. por isso, um cão vivo vale mais que um leão morto, já que os vivos sabem que irão morrer; mas os mortos não sabem de nada e não tem recompensa nenhuma: sua memória já está no esquecimento. o amor, ódio e ciúmes pereceram com eles. e nunca mais participarão de qualquer coisa que se faz debaixo do sol.
agora pense comigo meu amigo qoh: é a consciência do não-estar que remete ao sentido do estar. e aqui há uma diferença básica com górgias, porque para ele a negação do não-ser é também a negação do ser e, por isso, constatou que não dá para dizer que algo existe; se alguma coisa existe não temos como conhecer sua existência; e se o ser existe não temos como explicar sua existência aos outros. temos então o ceticismo geórgico.
já o argumento de qohelet, a partir do não-estar, afirma o sentido do estar, único conhecido. a negação do não-estar do sábio expressa o desejo de estar em abundância, porque tem por limites as bordas do tempo de ser. o estar existe, mas tem espaço e tempo, ou seja, é existencial e histórico. por isso, é melhor o sentido do estar, a intensidade das ações do estar do que ficar na espera do não-estar. assim, quando o não-estar sinalizar que está chegando e se aproximar, teremos o prazer de ter estado plenamente, com intensidade, de forma abundante.
e, por isso, o sábio nos aconselha a aproveitar a vida, a ir em frente. a comer com prazer e beber alegremente o nosso vinho, pois o eterno já aceitou deliciado o nosso bem-fazer. sejamos felizes, diz o-que-sabe. enquanto vivermos na fumaça deste mundo, curtamos a vida com a pessoa amada, pois essa é a recompensa pelo nosso fazer debaixo do sol. e o que tivermos para fazer, façamos ótimo, porque o não-estar é nada e no nada não se faz, e no não-estar não existe pensamento, nem conhecimento, nem sabedoria. e depois do estar, vamos repousar no nada.
o fazer da existência vale a pena. o eterno aprecia esse bem-fazer humano, que tem seu próprio tempo, que integra a existência de cada pessoa na história dos fazeres humanos. é por isso que bereshit, o primeiro texto na torá, apresenta um ponto zero. o tempo zero vai do entardecer à meia-noite. é quando o sol desilumina o nosso espaço de forma gradual. o tempo do não-estar não é uma fratura do tempo, é tempo da história. o sábio não contempla a passagem do tempo, mas a vinda do tempo. o tempo significa nada ou pouco para o eterno, mas há um sentido de tempo para o humano. a conclusão do sábio é que temos de estar no tempo para dar valor à eternidade que brota do nada do não-estar.
-- falou e disse, sara! e aceito o qoh que você me oferece.
lembro-me que certa vez perguntei a ele como encarava a questão da violência, mais especificamente da violência revolucionária. e veja, zlabya, a resposta do poeta.
-- meu caro qoh, no rolo do bereshit, o eterno disse para a vida que o sofrimento seria a regra e a humanidade cresceria na dor. a violência estabelece uma proposição, um princípio atemporal e não espacial, sobre o qual a razão titubeia, uma vez que aparentemente transcende a concepção de humanidade, mas, ao mesmo tempo, reduz qualquer expressão humana, parece estar além da razão: é impensável. podemos, no entanto, partir do postulado de que a violência é em primeiro lugar ontológica, que nós chamamos de cruz. ela antecede toda violência manifesta. dizemos que entre os atributos da eternidade estão a justiça e o poder, entendemos então que a violência nasce do exercício desses predicados eternos. nesse sentido, a violência é ontológica. esta causa maior é a raiz sem raiz de tudo que foi e é violência. despida de atributos não tem, a princípio, nenhuma relação com a violência expressa. é a violência que é e está além da razão de ser violento.
o que é violência está simbolizado no ser violento sob dois aspectos: por um lado, é o não-espaço da subjetividade, aquilo que a mente não pode excluir, nem conceber por si mesma. por outro lado, a violência incondicionada é dinâmica. a consciência é inconcebível quando separada do movimento, pois é ele que leva à mudança. tal aspecto da violência é simbolizado na ideação “multiplicarei o teu sofrer e a tua conceição: em dor darás à luz filhos”. um símbolo gráfico da violência presente no parir a vida. este axioma fundador da violência, ontológico, remete àquilo que podemos simbolizar como características trinitárias da violência.
a natureza da causa da violência, derivada de causa aparentemente sem causa, aflora como consciência da violência, impessoal, que permeia a natureza. esta causa da violência é o campo da consciência, que transcende a relação com a existência e da qual a existência consciente é um símbolo condicionado. mas, ao atravessar pela negação a dualidade entre existência e consciência, sobrevém a tríade da violência: o espírito de violência, a consciência da violência e a matéria da violência.
espírito de violência, a consciência da violência e a matéria da violência devem ser consideradas não como independentes, mas correlações que constituem a base do ser ou estar violento. considerada esta trindade ontológica da violência como a raiz da qual procedem todas as manifestações violentas, a expressão “multiplicarei o teu sofrer e a tua conceição: em dor darás à luz filhos” assume o caráter de ideação do que ainda não é humano. ela é a fonte da força de toda violência individual e social e fornece os elementos para a análise da violência que perpassa o humano e sua história. ela parte da alienação existencial e por isso separa e une, distancia e aproxima, fomenta a injusta e estabelece a justiça. tal raiz pré-humana é o absoluto expresso no “multiplicarei o teu sofrer e a tua conceição: em dor darás à luz filhos”, base da violência objetiva. tal ideação do porvir humano é a raiz da violência individual e social, porque a substância pré-humana é o substrato da matéria violenta em seus diferentes graus.
a correlação dos aspectos da violência ontológica, de origem, é fundadora da existência enquanto violência manifesta. a ideação da humanidade, separada de sua substância, não se manifesta como violência individual e social, uma vez que é somente através de um veículo, a alienação da ideação, que a violência aflora como violência que é, como ato de distanciamento e aproximação, de iniquidade e justiça, que necessitou de base física para apresentar-se como momento de uma complexidade maior, natural e humana. da mesma forma, a substância do humano, separada da ideação da humanidade, permaneceria como uma abstração da qual a violência não poderia emergir. a violência-manifesta, assim, é permeada pela correlação distanciamento e aproximação, iniquidade e justiça, que é fundamento de sua existência como violência que se manifesta.
as correlações entre violência-manifesta e matéria da violência são símbolos da violência ontológica, presentes no universo manifestado da violência. essa correlação, distanciamento e aproximação, iniquidade e justiça, é alienação existencial, a ponte através da qual as ideias são impressas enquanto substância da natureza da violência, presentes na forma de leis da natureza e no contrato social, essencial para a sobrevivência do humano. a alienação, dessa maneira, é dinâmica da ideação do humano, é meio que guia a manifestação.
ou como disse lameque, conforme o relato mítico do ciclo da violência, quando não há contrato social: “ada e zilá, ouçam a minha voz. escutem, mulheres de lameque, as minhas palavras: matei um homem, porque me machucou. e um jovem, porque me pisou. se são mortas sete pessoas para pagar pela morte de caim, então, se alguém me matar, serão mortas setenta e sete pessoas da família do assassino”.
assim, a consciência humana procede também da ideação da violência, e fornece os meios que possibilitam à violência individualizar-se como substância do humano. a alienação em suas manifestações é o elo entre a existência humana e a matéria da violência, presença e paradoxo que equilibra vida e morte, permanência e destruição. por isso, o rabino de tarso, disse que o homem novo constrói a paz, porque derribou a parede da separação que estava no meio, a inimizade e aboliu a lei dos mandamentos na forma de ordenanças, para criar, nele próprio, o novo humano, fazendo a paz. essa á a boa notícia para todos os que estão mergulhados na violência da iniquidade da sociedade de classes, opressora do humano: propomos a violência dos excluídos de bens e possibilidades como justiça que constrói a paz.
e eu completei: sem poder não há justiça. e o que é o oposto da justiça? podemos dizer, iniquidade. certo, mas o oposto da justiça é também exclusão de bens e possibilidades, é a escravidão. por isso, muitas pessoas fogem da violência manifesta que se impõe a partir da justiça e do poder, porque buscam conforto e segurança. ora, o conforto e a segurança podem ser bons, mas não são de fato o bem maior. uma pessoa que passa a vida à procura de conforto e segurança no final pode se dar mal, porque quando se evita a dor, se evita construções mais profundas.
por mais que muita gente fuja temerosa diante da violência manifesta, mesmo daquela que nasce da justiça, a violência é inevitável, pois é fruto dos limites quebrados. há tempo para tudo, como disse o meu amigo qohelet, tempo de matar e tempo de curar, tempo de guerra e tempo de paz. portanto, se quisermos ter justiça e, consequentemente, paz, a chave não é eliminar a violência da justiça, mas ao contrário ser agente do poder que nasce da justiça.
o preço da justiça é o poder que se manifesta na proporção dos limites quebrados, quando a exclusão de bens e direitos exclui a possibilidade de cidadania e liberdade. nesse sentido, a violência manifesta, mesmo aquela que nasce da justiça, causa dor. a conquista e construção da liberdade se dá com dor. mas o que chamamos dor é muitas vezes esforço. o parto e o trabalhar a terra, metáforas da expansão humana, como disse o eterno para o casal que se lançava ao mundo, implicam em dor, em esforço. a partir daí podemos entender a relação entre violência e dor, e que, embora o esforço possa ser doloroso, diante da justiça não se pode fugir dessa realidade. quem deseja uma viagem confortável e segura vai perder as mais impressionantes conquistas da vida.
-- puxa, qoh, acho que nos entendemos.
tudo isso é verdade e uma convicção. e está estabelecido para nós que é o eterno e não há outro, e que nós somos as suas gentes. ele nos redimiu das mãos dos reis.
4.
morro porque não morro
zlabya, quero que imagine uma conversa transversa entre o sonho, a vigília e o pesadelo. não uma conversa que deve levar a leituras definitivas, mas a matutar percepções sobre a espiritualidade, a razão e a paixão. assim, o sonho diz: vivo sem viver em mim, e de tal maneira espero, que morro porque não morro
a vigília considera a leitura, um pensar sobre a eternidade que nasceu com os longevos, uma reflexão primeira, que se justifica enquanto construção precária da realidade. acha que o encontro das últimas causas não acrescenta nada à compreensão da natureza. e, que, só quando a humanidade para de olhar para cima e olha para si própria e ao seu redor pode pensar o conhecimento. acho que você vai gostar da vigília, mas penso que ela está enganada ao colocar a leitura fora do conhecimento. na verdade, se olharmos a leitura e, por extensão, o sonhar apenas como formas de um super-naturismo, eles se mostram, sem dúvida, superficiais.
-- vivo já fora de mim depois que morro de amor; porque vivo no eterno, que me quis para ele; quando lhe dei o coração coloquei nele um letreiro: morro porque não morro.
há algo no pensar da vigília que é desnorteador, em parte por sua veracidade: o comportamento do humano deve ser explicado de modo semelhante ao dos demais comportamentos na natureza. e a partir daí vai fundo, radicaliza: a princípio, não há liberdade, nem responsabilidade no comportamento humano. o fazer humano, até o mais íntimo, deve ser explicado por suas causas mecânicas, como fenômenos da natureza. assim, bom é simplesmente aquilo que dá prazer; e mal o que causa dor. mas, o que isso significa, amigo que vigia?
-- esta divina prisão do amor com que eu vivo fez do eterno meu cativo, e livre meu coração; e causa em mim tal paixão ver ao eterno meu prisioneiro, que morro porque não morro.
gostaria que aquele que vigia lesse as confissões do sonho, traduzidas na vida de uma jovem monja carmelita, teresa d'ávila, no livro de sua vida, onde contou seus momentos de êxtase: vi nele uma comprida lança de ouro e sua ponta parecia ser um ponto de fogo. parece que ele a enterrou muitas vezes em meu coração e perfurou minhas entranhas. quando retirava a lança, parecia também retirar minhas entranhas e me deixar toda em fogo do grande amor do eterno. a dor era tão grande que me fazia gemer, porém, a doçura dessa dor excessiva era tal que eu não podia pensar em ficar livre dela... a dor não é corporal, mas espiritual, embora o corpo tenha sua parte e mesmo uma grande parte. é uma carícia de amor tão doce, que então acontece entre a alma e o eterno, que rogo ao eterno em sua bondade faça com que seja experimentada por quem possa pensar que estou mentindo.
vamos ouvir agora o pesadelo, que vem traduzido no pensar de um maldito, george bataille. para o pesadelo a espiritualidade está marcada pelo prazer. o prazer de viver. e é esse tropismo ao prazer que leva à superação da ideia acentuada de separação, com sua culpa infindável. mas, aqui estamos diante de um paradoxo, pois a tradição enfrenta esta pedra de tropeço, pois enquanto construção simbólica pesa sobre ela a sombra de um instrumento de tortura do qual pendeu um fundador. de todas as maneiras, mesmo sem negar a culpa, a experiência do pesadelo recupera o prazer de viver e nos leva ao êxtase, através do prazer de saborear as frutas que a vida oferece, amargas e doces.
-- ai, que longa é esta vida! que duros estes desterros, esta cárcere, estes ferros em que a alma está metida! só esperar a saída me causa dor lancinante, que morro porque não morro.
é por isso que o sonho, em meio à solidão da cela, fala da liberdade do êxtase: durante os dias em que isso acontecia, ficava meio abobada; não queria ver nem falar, mas ficar abraçada com meu sofrimento que para mim era a maior glória. isto ocorria algumas vezes, quando o senhor queria que me viessem estes arrebatamentos intensos, que mesmo estando entre pessoas, não podia resistir. antes que esse sofrimento de que falo agora comece, parece que o senhor arrebata a alma e a põe em êxtase, e assim não há lugar para dor e padecimento, porque logo vem o gozar.
e o pesadelo, ao falar do sonho, que está presente em todos os movimentos da vida, mesmo os mais conservadores, diz que, como a proibição criou, na violência organizada dos transares, erotismo inicial, ao proibir a transgressão organizada, por sua vez aprofundou os graus da expressão sensual. e dá como exemplos as noites dos shabats, ou da solidão das celas, onde, por exemplo, o divino marquês escreveu os dias de sodoma: a única e suprema volúpia do desejo jaz na certeza de fazer o mal. homem e mulher sabem que é no mal que se acha a volúpia.
-- ai, que vida tão amarga de quem não goza a eternidade! porque se é doce o amor, não é a esperança longa. tira-me o eterno esta carga, mais pesada que o aço, que morro porque não morro.
se o prazer se liga à transgressão, como explicar o êxtase do sonho que não produz culpa? e aí é onde o pesadelo dá um show de bola, e completa aquele que vigia, quando critica o pensar da leitura. para o pesadelo, o mal não é a transgressão, é a transgressão condenada. o mal leva a errar o alvo e isso é o que chamamos de separação. e será do errar o alvo que poetas futuros falarão. da mesma maneira, as narrações dos shabbats falam de uma procura pelo alvo errado. mas, o poeta maldito e o sonho negam o mal e a separação, embora trabalhem com a ideia da irregularidade para transmitir o desencadeamento da crise voluptuosa.
-- só com a confiança vivo de que hei de morrer, porque morrendo, o viver assegura minha esperança. morte do viver se alcança, no tardes, te espero, que morro porque não morro.
o fundamento nega o caráter sagrado da atividade erótica encarada na transgressão. e os que sonham negam a negação desses fundamentos. nessa negação, os fundamentos, com o tempo, perdem então o poder de evocar a presença demoníaca: perdem-na na medida em que o inimigo deixou de estar na base de qualquer perturbação. hoje, os movimentos de poder estão a fazer o caminho inverso. mas, o certo é que aqueles que sonham, aqueles que são marcados pela experiência da leitura do êxtase, deixam de acreditar no mal. desse modo, encaminham-se para um estado de coisas em que o erotismo, deixando de ser uma separação, deixa de ser uma certeza de fazer o mal. na experiência da vigília, somos chamados à atenção: o erotismo é pura mecânica animal. mas, a partir dos sonhos, como aqueles de teresa de ávila, há um ultrapassar, sem que isso signifique voltar ao ponto de partida.
-- olha que o amor é forte, vida, não me seja molesta; olha que só me resta para ganhar-te, perder-te. venha já a doce morte, o morrer venha ligeiro, que morro porque não morro.
e por quê? porque, nos explica bataille, aquele que traduz o pesadelo, há na liberdade a impotência da liberdade, mas nem por isso a liberdade deixa de ser disposição nossa voltada para nós mesmos. as ações dos corpos podem, na lucidez, abrir-se à recordação inconsciente duma metamorfose infindável, cujos aspectos não deixarão de estar disponíveis. veremos, então, que, por caminhos não prescritos o erotismo se reencontra. chegamos, então, ao erotismo dos corações, ao erotismo mais ardente, quando, aparentemente, o erotismo dos corpos já sucumbiram. e voltamos aos versos nascidos no fogo do amor.
-- vida, que posso eu dar meu ao eterno, que vive em mim, se não é o perder-te a ti para melhor a ele gozar? quero morrendo alcançá-lo, pois tanto a meu amado quero, que morro porque no morro.
ou como diz a canção de um poeta da torá, o desejo é poderoso como a morte, e a paixão é forte como a sepultura. o desejo e a paixão explodem em chamas e queimam como fogo furioso.
faz com que nos deitemos em paz, eternidade, e que nos levantemos plenos de vida boa e para a paz. estende sobre nós a tenda a paz e favorece-nos com bons conselhos.
5.
o limite das onze horas
estamos no presente, não muito distante, quase um futuro. o lugar, uma terra florida, um campo de lavanda, um paraíso construído pela paz e pelo trabalho. o primeiro limite preparou um panelão de moules frites, devidamente acompanhado de vinho branco bem frio. comemos e nos refastelamos, naquela sala ampla, iluminada pelo sol da primavera, ao som dos beatles. tomamos café e eu acendi um cachimbo que foi presente de meu tio aeyal. depois, desci e fui até o parque. o primeiro limite me acompanhou e esticou-se embaixo da velha figueira. a tarde era leve e excessivamente suave, como só aquela terra sabe ser. o das onze horas virou-se para um segundo limite e comentou: ah! como é bom ser um limite, querida mestra de sonhos e palavras.
deu uma risadinha e terminou a frase, meio melancólica. como eu gosto de trabalhar com meu terceiro limite.
o limite primeiro, misturado no verde, contando nuvens, gosta de ouvir sua irmã. gosta de passar as tardes no loire florido, somando pássaros, perdidos de suas rotas, que costumam arribar aqui. o segundo limite entende perfeitamente a empatia angelical que o das onze horas nutre pelo terceiro limite.
o terceiro é um limite da origem. tenho várias leituras para esse limite: a fertilidade mágica da terra umedecida pelo orvalho, a lua branca que repousa no horizonte de montanhas no meio do azulão besta, o amor do algodão doce no entardecer na praça matriz, conforme as vivências que tenho com ela. shlomo edificou um castelo para ela nos arredores da cidade da paz. sharon palestina, hálito de rosas e mente feminina, usa tiara de flor d'enamorats, como símbolo de seu limite. voa por cima das videiras brotadas, despertando na irmã ahava uma doçura especial, um sabor de mel, um desejo de mesa farta, quando há muito tempo se está a esperar.
adara, que se diz o limite das onze horas, abriu a leffe radieuse, encheu a taça grande, de forma a destacar a espuma, e sorveu um gole comedido, mascado, como se comesse uma especiaria. depois disse para o limite que a ouvia: ahava, minha agraciada irmã, há anos futuros fui amiga de um humano sem limites. foi uma experiência inesquecível. viajemos no tempo e quem sabe talvez você entenda a lógica dos meus amores.
tudo começou num dia de inverno. havia esse humano duro de coração. perverso para nenhum limite colocar defeitos. nós nos conhecíamos, conversávamos pelas madrugadas e ele sempre me ouvia. uma noite ele se entregou a mim. queria a minha sabedoria e eu não lhe neguei. mais tarde, deu o seguinte depoimento aos libertadores que o interrogavam: havia uma sem limites, uma sem miolos, uma sei lá. já tinha trombado várias pessoas. uma coisa incômoda, sempre igual. as pessoas eram trombadas de madrugada e saiam desnorteadas, sem rumo, nem eira. sim. era exatamente assim. tocadas nos olhos, no rosto, e perdiam a visão do caminho. e tudo em apenas um mês. mas as pessoas fecharam os olhos e abriram os seus corações para a festa do dia de reis. e o castelo ficou encantado. eu, porque sou curiosa e creio em transformações, vibrei. e comigo ficou a frase de um jovem italiano, bom de pensamento: vecchio, perché il destino ci ha fatto nato nella vecchiaia.
dez da manhã. a uiraçu jovem usava branco e cinza. convidei-a para conhecer o castelo. ela piou, nervosa, e entramos. sem proferir palavras, eu cantava. va', pensiero, sull'ali dorate, va', ti posa sui clivi, sui coll, ove olezzano tepide e molli, l'aure dolci del suolo natal! sempre gostei de verdi. é a nostalgia, ela me agarra e não me solta mais. atravessamos o salão de entrada do castelo. a cutucurim a voar na frente e eu atrás. comecei a subir as escadas. del giordano le rive saluta, di sionne le torri atterrate. só minha respiração quebrava o silêncio. cheguei ao primeiro andar. continuei. íamos para o segundo... o mia patria, sì bella e perduta! o membranza sì cara e fatal!
ela rodopiou no ar. arpa d'or dei fatidici vati, perché muta dal salice pendi? e num movimento sublime saltou. senti uma dor no rosto. ela me arranhou uma, duas, três vezes. caí, sem rumo, nem eira. senti a dor das costelas na batida com os degraus.
não senti medo. só o mergulho. adara, você sempre diz que não há lugar tranquilo na cidade das gentes. mas o mundo estava silente. essa é a paz prometida. o hálito de outro, rasgar, sentir o branco e o cinza. passos. subia as escadas. como se tateasse os degraus. chegou bem à frente e perguntou: quem está aí?
segurava o corrimão. a que não via. o que estaria fazendo ali, ela e seus sons? estendi a mão direita. ela a tocou e subiu alguns degraus. a harpia voou. a menina de olhos blindados subiu e sentou-se quase à altura da minha cabeça, ao meu lado. brinquei de dedos com os dedos. ela quieta, parecia estar presa no tato. que sensação pode ser tão profunda? formigas e espelhos. eu sentia dor, o peso da harpia que voou, a respiração em compasso de espera.
dizem que sou a crítica da razão pura. não sou, não. lembro-me perfeitamente. o castelo foi se enchendo de gente, afinal era dia de reis, que deslizava do chão e do teto. primeiro, apareceram guerreiros em seus trajes de gala, que subiram as escadas e queriam ir para o segundo andar. pediram licença e seguiram seus caminhos. uma senhora grande e bonita desceu do lustre, será que foi isso mesmo? eu já não sabia quem era quem, mas isso não me incomodou.
a vida voltou ao velho castelo. havia burburinho, gente feliz, cantando e muitas cores. mas ninguém importunava. e eu ali, quieta, sentindo aquela paz de formigas. um guerreiro, quase um príncipe, tinha ficado bem em frente à escada. a uirurete desceu suave em sua direção, pousou como fada, sem fazer ruído. momento mágico de almas gêmeas.
eu e a menina blindada ficamos juntas. no meio da festa, deslizávamos pelos campos, eu na minha ancestralidade longeva e ela nas miríades de sons...
é necessário reconstruir o caminho do diálogo da convicção com a relação, já que somos a potência de ser, mesmo em seu sentido metafórico. e o poder da ancestralidade longeva supõe um objeto sobre o qual possa exercer seu poder. assim, a relação tem uma essência: o uso do poder. e o poder determina os caminhos da sociedade. e esse poder político recorre à autoridade social instituída e possibilita ao estado exercer coerção em nome do direito dos cidadãos. mas as convicções pessoais sobre a eternidade e sua soberania têm implicações no pensar a relação. ao optar por uma convicção espiritual privatizada, ofusca-se caminhos e mascaram-se práticas, às vezes, não éticas, mas de atitudes aparentemente piedosas. e dessa maneira, a relação não é por essa espiritualidade negativa, que apresenta propostas de uma ordem relação onde o amor sem poder supere o poder sem amor.
quando se propõe uma teoria social que contrapõe as relações de poder ao amor, é impossível integrar relação e estilo de vida. então, as comunidades de convicção rejeitam qualquer forma de poder representado na ordem econômica e relação sob o poder do estado. mas ao rejeitarem as relações de poder da sociedade, aceitam, por exclusão, já que a relação também se faz por omissão, o uso do poder que está instituído, pois, ao não defenderem uma retirada do mundo, colocam-se sob o poder presente. neste sentido, diferem do separatismo radical, que historicamente propôs a separação entre as comunidades de convicção e o estado em nome da liberdade de consciência. este separatismo acreditava que o fracasso das relações de poder são impedimentos para a manifestação da eternidade. era um fundamento de cunho liberal, fazia a crítica da relação e propunha o distanciamento físico dos poderes do mundo. o que nos obriga a admitir que traduzia uma atitude relação consciente.
hoje, a espiritualidade dos brasis não é separatista e não foge do mundo: acredita ter uma missão moral de transformação, mas, muitas vezes, nega a possibilidade de real envolvimento político, por temer o poder político. ora, se a comunidade dos discípulos do rabino de nazaré tem uma ética relação, deve utilizar os meios que possibilitam chegar aos fins que busca. rejeitar o poder é rejeitar relações. tal rejeição pode até ser aceita, desde que seus agentes tenham consciência do que estão fazendo e, coerentemente, proponham o abandono do mundo. quando uma comunidade acredita que a omissão diante da relação e do poder favorece à instalação do reino do eterno, tem-se a negação da relação como relação cristã, o que fortalece aqueles grupos que buscam o poder em benefício próprio. e, ao contrário do que crê o negativismo, tal postura não estabelece o reino da eternidade.
se não é possível falar de relação sem falar de poder, outra questão se coloca: amor e poder são compatíveis? a pergunta procede porque a espiritualidade remete à prática do serviço ao próximo, mas, em nome da espiritualidade e do amor ao próximo, comunidades do mashiah negam a possibilidade de todo e qualquer poder. tal postura apresenta-se como equívoco, pois o poder não é uma identidade morta, mas um movimento reflexivo, onde o ser se separa dele para depois retornar a ele de novo. o poder, dessa maneira, é tão maior quanto maior for a separação vencida. e o movimento que reúne aquilo que estava separado é o amor. mas se há um amor unificador, há o não-ser vencido e há o poder de ser, por isso, o amor é a base e não a negação do poder. tal amor é um ato da vontade, porém, não se pode forçar uma pessoa a amar alguém. já os atos políticos contêm elementos não voluntários, porque o poder do estado está associado a ações que podem estar fora da vontade da pessoa, enquanto o ato de amor está associado a ações do querer. outro fato importante é que o amor deve ser mediado pessoalmente. como a natureza voluntária do amor necessita da existência de uma pessoa que o ative, o amor sempre necessita de um agente moral livre. o estado, como qualquer outra ordem social instituída, tem uma existência objetiva e alcança seus fins indiscriminadamente. a relação da pessoa com o estado é uma relação cidadão/instituição, em lugar da relação eu/você, que possibilita a mediação pessoal que ativa o amor. além disso, o amor tem um caráter sacrificial. ou seja, possibilita ações que a despeito dos interesses particulares, imediatos, responde ao bem-estar do outro. conscientemente, é um perder para que outro ganhe. sacrificam-se direitos, sem estar forçados por obrigação legal, para que o outro seja beneficiado.
por ser livremente determinado, o amor vai além de uma obrigação moral ordinária. cumprir obrigação moral é responder à necessidade moral, é um ato de dever em lugar de um testemunho moral livre. é importante entender que esse processo de ir além da obrigação moral envolve, como paradoxo, uma vontade moral implícita. é por isso que o amor pode se transformar segundo as exigências concretas das pessoas e das instituições sociais, sem perder a dignidade incondicional. assim, podemos dizer que o amor é voluntário e livremente entregue, que envolve volição moral, deve ser mediado pessoalmente, é sacrificial. e, finalmente, que o amor vai além do dever ou da obrigação moral, embora implique, paradoxalmente, em obrigação moral ou realização de um dever de origem.
a relação implica em servidão não voluntária, já que sua natureza baseia-se no uso da coerção e da força para alcançar seus fins. é organização formal e opera impessoalmente, e os políticos, mesmo quando são trabalhadores e solidários, se ocupam de ações que levam terceiros ao sacrifício, por isso a necessidade da força e da coerção e, em última instância, do próprio estado. nessas condições, a maioria da população geralmente se considera satisfeita quando vive sob uma ordem relação, seja ela dirigida por trabalhadores e solidários ou não, que responde às exigências de sua obrigação moral. e quando isso não acontece podem levantar um chamado à rebelião contra o estado, a fim de exigir dele a realização daquilo que é sua obrigação moral. fazendo assim atuam no sentido de que não se torne totalitário, ou seja, negue os limites de seu poder de estado ou passe por cima das obrigações que tem com as pessoas. não obstante, mesmo para um governo dos trabalhadores, usar o poder do estado como meio de realizar o amor entre as pessoas é um contra sentido, pois moralmente não se pode coagir ninguém ao amor. tal coerção destruiria também a obrigação moral do estado, que baliza a diferença entre poder limitado e governo totalitário.
dado a dualidade entre poder e amor e o conflito aparente entre poder sem amor e amor sem poder, como a comunidade cristã, evangélica ou não, deve se situar frente à relação? colocada a questão nestes termos, de fato é difícil escolher entre ser massa, mas cidadão do reino, e ser um militante atuante à margem da salvação. como seguir o caminho cristão sem rebaixar a nobreza do amor no altar do poder político? a alternativa de reconciliação entre poder sem amor e amor sem poder é o conceito de justiça. e justiça, num sentido amplo, significa dar às pessoas aquilo que por direito lhes pertence. mas aqui outra questão se levanta: o que por direito lhes pertence? uma possibilidade de resposta é entender a justiça como a maneira através da qual o poder deve ser realizado. nesse caso, a justiça deve estar em sintonia com o movimento do poder, deve ser capaz de dar forma ao encontro da pessoa com outra pessoa. o problema da justiça no encontro surge do fato de que é impossível dizer como se organizará a relação de forças nesses encontros. a cada momento existem inúmeras possibilidades. e cada uma dessas possibilidades exige uma forma particular de justiça. assim, as reivindicações da justiça só podem ser operacionais numa comunidade se forem definidas com um grau significante de particularidade, pois a justiça requer julgamentos diferentes diante de reivindicações contraditórias. donde, não basta justiça como generalidade. é necessário trabalhar a compreensão de justiça no particular, para não cair no moral/mente, quando não se tem nada a oferecer por se falar de forma idêntica em tempos, espaços e situações particulares diferentes.
muitas vezes a rede das transformações, em especial sua corrente cristã, considerou que fazer justiça significava dar a cada pessoa aquilo que lhe é por direito, mas essa afirmação colocava algumas questões: se todas as pessoas têm igualdade moral, então essa igualdade deve se estender a todo grupo social, às relações econômicas e relações em que se fazem presentes. e se as pessoas são desiguais nas contribuições que fazem à sociedade, então essas desigualdades devem se traduzir nos grupos sociais e nas relações econômicas e relações. ambos os argumentos, sem dúvida, têm suas razões de ser. e fazem parte dos debates políticos entre os e discípulos do rabino de nazaré e o solidarismo das redes de transformação.
por encontrar dificuldades na formulação prática do conceito de justiça, as correntes do mashiah fundamentalistas têm rejeitado o conceito de justiça enquanto ordem possível na humanidade. a justiça enquanto ordem possível na humanidade traduz a idéia de que o ser humano tem um conhecimento universal do bem e por isso compreende a necessidade de justiça. o novo conceito defendido pelas comunidades fundamentalistas é o de que a justiça é uma ordem apenas possível através da redenção e, por isso, não existiria um conhecimento seguro de justiça fora da revelação. dentro dessa leitura teológica, só houve justiça na origem. assim, ao rejeitar a possibilidade de uma ordem universal fora da revelação, tal compreensão teológica leva a um problema de episteme, pois afirma que a razão não tem nada a dizer fora da revelação. essa visão teve e tem consequências práticas na elaboração de estratégias para a ação relação, porque define que só a partir da fé se pode falar com autoridade sobre justiça. ou seja, os e discípulos do rabino de nazaré não poderiam, como consequência, militar politicamente com não-e discípulos do rabino de nazaré, pois não há base secular para o envolvimento político dos e discípulos do rabino de nazaré. desse modo, ao negar o conhecimento natural do bem político, a única alternativa é omitir-se, porque relação é coisa mundana, ou estabelecer uma relação cristã sectária.
por isso, o fundamento nas terras dos brasis buscou impor normas retentivas, favorecendo o distanciamento dos fiéis da relação, ao contrário daqueles que defendem uma teologia do conhecimento universal do bem, que rechaça o negativo das ordenanças da redenção por isolar, alienar e separar a pessoa e a comunidade da prática relação. ora, numa leitura teológica do conhecimento universal do bem, a justiça deve estar baseada em reivindicações universais de direito, pois estabelecer justiça em base de autoridade sectária é violentar a compreensão de que todas as pessoas têm um conhecimento do bem: donde, todas as pessoas compreendem a necessidade de justiça. assim, a justiça deve ser definida dentro do contexto de uma determinada ordem social e deve ser aplicada em termos de particulares, pois fundamentar o argumento da justiça apenas na pessoa não é o bastante. e devido à universalidade das normas de justiça e à universalidade da consciência de justiça, uma pessoa pode ter procedimentos e práticas que aprofundem relações e programas que favorecem a justiça. é exatamente isso que os direitos cidadãos buscaram trazer para as alegrias representativas. é o reconhecimento de que os meios empregados não devem violentar os fins procurados. é necessário, ainda, reconhecer que as normas de justiça são objetivas e que existem independentemente da volição humana. consequentemente, podem ser feitas reivindicações em nome da justiça e podem ser rejeitadas reivindicações em nome da justiça.
considerando que o amor deve ser querência entregue, justiça exige reconhecimento independente da vontade humana. essa discussão sobre a justiça, nos leva à questão da alegria. a partir da revolução dos francos de 1789, as declarações de direitos passaram a se abrir com o enunciado de que os seres humanos são livres e iguais. foi assim que a terra dos euros assumiu a realidade da dimensão universal do direito à liberdade e à igualdade, que mobilizou os movimentos de libertação de escravos, mulheres e povos. a constatação desse direito à liberdade e à igualdade legitimou as revoluções burguesas, e a alegria representativa apresentou-se como a forma relação através da qual essas liberdades se exprimiriam. mas, a alegria representativa enquanto expressão da justiça entrou em crise, porque cultura da modernidade burguesa se encontrava em crise. na terra dos brasis, recentemente, tal situação foi presenciada e mobilizou milhões de pessoas em atos e tratos. mas, diante do possível desmoronamento iniciou-se um processo onde a alegria representativa funcionou não como forma relação de expressão dos direitos à liberdade e igualdade, mas como elemento de controle e restrição dessas liberdades. e as eleições surgiram, então, como alternativa para que o fim do regime militar não desembocasse numa derrocada de fragores e a mobilização das gentes levasse a uma ampliação da alegria participativa. essa alegria de amplo espectro, participativa, que surge à galope do movimento das gentes dinâmicas, é o que chamamos de revolução democrática. e nas terras dos brasis a revolução democrática, entendida como etapa anterior ao solidarismo e defendida pelos democratas radicais e reformistas, já tinha sido abortada, e o foi de novo, quando ficou claro que as mobilizações conduziriam à extinção do autoritarismo.
as terras dos brasis arrancaram na direção da alegria de participação. no entanto, voltaram a surgir condições para uma expansão da alegria de participação, onde a classe trabalhadora, com as redes de transformação, poderia marchar em direção ao governo, já que a constituição abrira essa possibilidade, e as mobilizações das massas, surgidas a partir da deterioração da ordem legal, davam às pessoas e aos movimentos o lugar de atores sociais. de fato, as eleições possibilitaram a conquista de espaços democráticos representativos, e permitiram que a voz social e relação dos trabalhadores fosse ouvida nacionalmente. e, possibilitou também que as intervenções dos trabalhadores fossem num crescendo diante do enfraquecimento da relação liberal. assim, os trabalhadores começaram a enfrentar seus adversários no próprio campo da luta eleitoral, conquistando espaços democráticos representativos, mas essas vitórias foram aos poucos, junto às redes sociais, fortalecendo as teses de que o objetivo era a revolução democrática, nesta etapa da democrático-burguesa da revolução, e não a conquista do poder e a construção de uma nova sociedade solidária.
a alegria representativa não é fim em si, mas instrumento de mediação das relações de poder. isto pode ser compreendido quanto se constata que a alegria representativa enquanto objetivo da revolução burguesa encontra-se em crise, porque se tornou escrava das leis de mercado. assim, como toda a sociedade burguesa, ela está submetida à economia. essa enfermidade crônica da alegria representativa levou os trabalhadores a viverem num mundo sem garantias. logicamente, se há crise cabe perguntar se pode haver transformação, embora se saiba que transformar não signifique necessariamente restaurar valores que já não respondem às necessidades de trabalhadores e excluídos. fazer assim seria heteronomia, que só reafirma o autoritarismo. transformar o princípio de liberdade e igualdade significa reinventar a alegria, o que se traduz na idéia solidária do incondicional da justiça. os valores podem ser reinventados, mas isso significa dizer que as gentes em movimento, autônomas, devem tomar essa alegria representativa de assalto, pois ela só permanecerá se mudar, porque não é um estado natural da sociedade, é sempre um ensaio.
por isso, necessita ser reinventada sempre, e diante da ditadura das leis do mercado, dos fundamentos e das mídias controladas pelos grandes grupos, a alegria tem que ser liberdade e igualdade para aquela maioria que não tem voz e vez. se a alegria é mediadora, embora não seja um fim em si, não basta que as pessoas votem, elejam governantes, e permaneçam distante das ações do poder: a alegria reinventada implica em participação. mas a alegria não pode ser recriada se partir daquilo que é pré-estabelecido. dizer que a alegria é uma mediação fundamental nas relações entre classes e redes, não significa que em todos os lugares ela será igual. se os seres humanos podem ser livres e iguais, as sociedades têm que se articular para a maioria excluída, e está é a realidade global, os direitos à liberdade devem levar aos direitos sociais, à igualdade. mas se não existirem as mesmas condições de possibilidade não pode funcionar a alegria, pois se não garante a realização da liberdade não se pode esperar que funcione enquanto mediação fundada sobre os princípios da justiça social. e não basta os mitos fundadores da alegria afirmarem o caráter universal de que todos os seres humanos são livres e iguais: esta só pode se realizar enquanto comunidade global ativamente participante. essa é a base da globalidade defendida pelos trabalhadores e solidários e tem sido uma das bandeiras levantadas pelas redes de transformações. e tal discussão nos remete, mais uma vez, à questão da eternidade da justiça.
se a eternidade da justiça está correlacionada à eternidade do amor, em termos teológicos amor e justiça não podem ser contrapostos. o amor pode ir além da justiça, mas nunca pode buscar menos que a justiça. o amor pode inspirar reverência à justiça, mas nunca pode ser desculpa para esquecer as reivindicações da justiça. e se a justiça é uma qualidade objetiva que estabelece direitos e obrigações, projetos podem e devem ser desenvolvidos pelas pessoas e comunidades para criar ações que sirvam às reivindicações da justiça. dado o fato que nem todas as pessoas buscam a justiça de boa vontade, o poder pode ser usado legitimamente quando serve à causa de justiça. isso significa dizer que o amor não pode usar o poder para alcançar seus fins, mas que a justiça têm que usar o poder para alcançar seus fins. tais distinções são necessárias porque não se pode dizer a um governo dos trabalhadores que ame, porque suas ações têm por base o poder, e porque as reivindicações do amor estão arraigadas em reconhecimento pessoal e particular ao invés de normas universais de justiça.
mas como os e discípulos do rabino de nazaré sociais proclamam, dentro e fora das redes de transformações, as boas notícias da autonomia, sensibilizam as comunidades para as demandas da justiça. consequentemente, permanece a justiça enquanto serviço de amor. assim, usar o estado como um instrumento de amor está fora do objetivo d a rede de transformações, pois levaria a um estado sectário, quando não totalitário. por causa disso, as normas distintivas da justiça serão usadas pela rede para delimitar o que é meu e o que é teu. negar a justiça em nome do amor seria negar os direitos das pessoas, que são a base de qualquer alegria representativa e participativa. o conceito de justiça, então, aliado aos de amor e poder apresentam as alternativas para as comunidades do mashiah ao pensar a ação relação n a rede de transformações. a relação, com base no poder, cumpre uma função legítima quando serve as reivindicações da justiça. amar, sem rejeitar o poder, indo além dos direitos e deveres estabelecidos pela justiça, possibilita um testemunho de justiça e uma motivação moral que coroam o ato justo. amar, através da mediação pessoal, complementa a justiça em suas demandas objetivas. por isso, podemos como síntese dizer que fome é exclusão da cidadania, da economia, da educação, da renda, do salário, da terra, da vida. porque, quando uma pessoa chega a não ter o que comer, tudo o mais já lhe foi negado. ou seja, é morte em vida. nesse sentido, a alma da fome é relação e o ato solidário é um movimento no sentido oposto a tudo o que se produziu até agora, é uma mudança de paradigma: olhar vesgo, diverso, para todas as relações, bases da construção radical. a exclusão produziu, a união destruiu, a cidadania será geral e irrestrita.
quando a justiça é negada, a relação torna-se escrava do poder. perde o eixo da vida da ação relação, já que a injustiça só será vencida pelo reconhecimento da dignidade da pessoa, e essa é uma tarefa relação. para conquistar tal dignidade, o poder deve ser exercido. assim, a síntese deste diálogo pertinente entre relação e religião é a justiça. esta é razão de ser da rede de transformações. mas para entender tal relação é necessário compreender o mito fundador e o que ele representa para o futuro da rede. o mito de origem da rede de transformações é o solidarismo, traduzido principalmente na experiência da revolução. essa realidade pode ser vista na preocupação sempre presente de defesa da revolução, de seus líderes e de suas ações relações, mesmo as mais discutíveis.
a origem é o que faz emergir. este aparecimento dá lugar a algo que não existia antes, que produz uma consciência própria, diferente da origem. a realidade daquilo que a rede de transformações é está colocado, mas também é algo que lhe é próprio. é uma tensão entre o ser-posto e o ser-próprio, já que a origem não liberta. não se pode dizer que a rede de transformações era e que não é mais. isto porque, a origem puxa, faz emergir, segura firme: é ela que estabelece a rede de transformações como algo, mas ser-posto no mundo significa amadurecer, envelhecer e, inclusive, morrer.
o comando já havia informado que haveria nova chuvas de estrelas. na segunda semana de abril foi lindo e triste. bem de manhã, uma névoa cobria o campo e as casas dos superiores, que não ficavam muito distante do castelo. todos gritavam. junto com a garoa fina caiam as bombas. de uma das rampas da casa, por entre o verde, corriam meus irmãos, vivos e mortos, com estrelas no coração.
fogos de artifício de carne e sangue desenhavam flores no céu. eu e aquela que não via, de mãos dadas, ouvíamos o dum-dum dos tambores e a festa vermelha do fim dos dias. de repente, veio a ordem de debandar. saíram os carros negros, limpos, fugindo para não sei onde. os guerreiros corriam e desapareciam, como se fossem névoa, apenas névoa. e aqui no castelo, eu e aquela que não via caminhávamos no vazio. mais uma vez estávamos sós. fomos caminhando devagar para longe do prédio. era melhor deixá-lo morrer sozinho, comido pelo mato, vendo suas paredes caírem de cansaço e de velhice. igual a mim, eu acho.
não, valorosos guerreiros, não sei o nome de ninguém. nunca me preocupei com nomes. nunca me lembrei de guardá-los. do comandante-em-chefe sei que era imponente, mas triste. gostava de ouvir os pássaros de manhã e à tarde escutava uma ninfa tocar cítara. era triste e só. ah! o meu monstro. foi meu apenas durante algumas horas. também não sei dos meus irmãos. ouvi dizer que os piedosos subiram aos céus, mas disso não há fala. não sei. é muito difícil saber dessas coisas, embora eu seja uma longeva sábia.
as pessoas são tocadas pelo amor. nada sensibiliza mais o humano, talvez por isso o rolo dos cânticos compare a paixão à força da morte, já que os dois estados se nos apresentem como definitivos. caso você já tenha estado apaixonada sabe como é.
6.
vou seduzir a minha amada
num domingo de janeiro preparei está leitura de manhã a partir daquilo que chamei lições de amor. foi um pensar na gratidão ao eterno, um jeito de dizer a ele que o amo. e pensando, me remeti a um filme, uma lição de amor, que conta a história de um pai com deficiência mental e uma filha, de sete anos, que começa a ultrapassá-lo intelectualmente. no filme, uma assistente social quer levar a menina para um orfanato, alegando que o pai não tem condições de criar a filha. foi nesse momento que me deparei com dois textos, o dos cânticos, e outro, também belíssimo, de um profeta mal compreendido e meio abandonado, oseias.
minha leitura da eternidade como um delírio, não faz o efeito que o materialismo esperava. na verdade, me leva a uma outra leitura: faço uma ponte entre as lições de amor da eternidade e a minha paixão por ela. e foi assim que surgiu esse pensar, num discurso sobre as minhas provas da existência da eternidade, que divido em três: o “noturno opus 9, no. 2” de chopin, a roda e a raiz quadrada de menos 1. talvez, você esteja achando que estou louco, o que pode não ser mentira, mas se tiver curiosidade e paciência, vai entender o caminho que trilhei. e esse caminho, que vai na contramão do que o materialismo diz, nos ajuda a entender porque estamos enamorados pelos temas centrais da fé cristã, criação, alienação e essencialização da vida. enfim, as lições de amor e essas minhas provas da existência da eternidade se correlacionaram e levam a uma teoria da existência.
eternidade e amor estão entrelaçados, e vejo isso quando sou obrigado a pensar uma teoria da existência. e, metodologicamente, a primeira coisa que devo me perguntar é se uma coisa existe ou não existe. e isso significa trabalhar com variáveis: uma coisa existe; uma coisa não existe; uma coisa não existe, mas já existiu, deixou de existir e não existe mais, porém poderia existir.
devo pensar também, e essa questão é um pouco mais complexa, que a existência existe. e ainda que eu diga que existência é espaço/tempo, como não temos espaço apenas, ou tempo apenas, a existência existe. não dá para dizer que a existência não existe, ela é realidade no cosmo, produz diferença no mundo. caso não existisse a existência, então, nada existiria.
mas, outra questão deve ser colocada: se posso falar numa teoria da existência, preciso entender que posso apreendê-la enquanto atos de conhecimento. e ato de conhecimento é uma ação consciente sobre algo que existe ou uma realidade. por isso, os atos de conhecimento nos remetem a pessoas que são conscientes e podem conhecer a existência através de seus processos e modos.
as pessoas são tocadas pelo amor. nada sensibiliza mais o ser humano do que o amor, como dissemos acima. e, por isso, o amor e a morte se nos apresentam como estados definitivos. caso você já tenha estado apaixonado ou apaixonada sabe como é.
e oseias contou que o eterno disse: “vou seduzir a minha amada e levá-la de novo para o deserto, onde lhe falarei do meu amor. ali, eu devolverei a ela as suas plantações de uvas e transformarei o vale da desgraça em porta de esperança. então ela falará comigo como fazia no tempo em que era moça, quando saiu do egito. mais uma vez ela me chamará de “meu marido”, em vez de me chamar “meu senhor”, meu baal. nunca mais deixarei que ela diga o nome baal, nunca mais ela falará desse deus. sou eu o senhor quem está falando. naquele dia, farei a favor dela uma aliança com os animais selvagens, com as aves, com as cobras, para que não ataquem a minha amada. quebrarei as armas de guerra, os arcos e as espadas. não haverá mais guerra e o meu povo viverá em paz e segurança. israel, eu casarei com você, e para sempre você será minha legítima esposa. eu tratarei você com amor e carinho, e serei um marido fiel. então, você se dedicará a mim, o senhor. naquele dia, serei o eterno que atende: atenderei o pedido dos céus, os céus atenderão o pedido da terra, dando-lhe chuvas. e a terra responderá produzindo trigo, uvas e azeitonas. assim, eu atenderei as orações do meu povo da terra da estrela. plantarei o meu povo na terra prometida para que eles sejam a minha própria plantação. e eu amarei aquela que se chama não-amada, e para aquele que se chama não-meu-povo eu direi: “você é meu povo” e ele responderá: “tu és o meu eterno”.
agora, vamos descontruir o texto de oseias e relacioná-lo com a teoria da existência. deslumbrar e fascinar são desafios da existência e isso está expresso do texto de oseias, quando o eterno diz: “vou seduzir a minha amada e levá-la de novo para o deserto, onde lhe falarei do meu amor”. a travessia do deserto, quando os hebreus fugiram do egito, foi um tempo de intimidade com a eternidade, uma porta de esperança, diferente do vale da desgraça, onde o soldado acã foi condenado à morte por traição.
assim, nessa correlação entre eternidade e amor, podemos discutir a existência a partir dos noturnos de frederico francisco chopin. esses noturnos eram cantos livres, que traduziam as experiências pessoais de chopin e expressavam sua espiritualidade. diria que os noturnos desse músico são o deserto do profeta oséias, espaço/tempo de intimidade com a eternidade.
particularmente, sou apaixonado pelo noturno opus 9 no. 2, que tem a propriedade de ser uma obra de criação e pertença de um humano sensível. é peculiar, diria inédita e exclusiva. e ao dizer essas coisas, afirmo não apenas que existe, mas sou obrigado a falar de sua natureza, de sua essência. ou seja, saber que o noturno opus 9 no. 2 de chopin existe, significa dizer que não existem outros noturnos opus 9 no. 2. só existe esse.
baal e îche são outros dois desafios da existência. e as lições de amor nos trazem de volta a oseias, quando o eterno diz: “ela me chamará de meu marido”. e isaías conta que o eterno disse: “não temas, porque não serás envergonhada; não te envergonhes, porque não sofrerás humilhação; pois te esquecerás da vergonha da tua mocidade e não mais te lembrarás do opróbrio da tua viuvez. porque o teu criador é o teu marido; o senhor dos exércitos é o seu nome; e o santo da terra da estrela é o teu redentor; ele é chamado o eterno de toda a terra”.
e mais uma vez a correlação entre amor e eternidade me remeteu a outro processo da existência, que vou analisar a partir de uma das mais simples máquinas que construímos: a roda. todos conhecemos as suas aplicações e sabemos que crescem a cada dia: vão do uso nos transportes à utilização nas mais diferentes máquinas mecânicas. mas é simples: caracteriza-se pelo movimento de rotação em seu interior. em mecânica diz-se que o seu fato mais importante é determinado pela a transmissão de força, velocidade e distância, que se dá pela relação entre o diâmetro da borda da roda e o diâmetro do eixo.
ora, a roda nos remete ao trocadilho que oseias fez com a palavra baal, que era o deus da fertilidade dos cananeus, mas cuja palavra significava também senhor e marido. oseias não quer que sua amada o chame de baal, mas de îche, homem, que por extensão poderia significar também marido e herói.
esse exemplo, o da roda, nos ajuda a entender a questão da existência, que não é uma propriedade que pertence, mas é o pertencimento a uma propriedade. pense na roda, no conceito roda e em todas que existem ou podem existir. a existência da roda consiste em participar de relações de predicados. assim, a existência da roda significa que pertence a propriedades ou é parte de propriedades. nesse sentido, a existência é sempre participação na relação de predicados. como baal ou îche.
celebrar a imagem que transcende é o desafio fundador da existência. “e para sempre você será minha legítima esposa”, disse o eterno sobre sua amada. oseias utiliza esse recurso para falar de uma aliança que transcende os predicados definidos pela existência.
ou como o eterno disse ao profeta jeremias: “quando esse tempo chegar, farei com o povo da estrela esta aliança: eu porei a minha lei na mente deles e no coração deles a escreverei; eu serei o eterno deles, e eles serão o meu povo. sou eu, o senhor, quem está falando. ninguém vai precisar ensinar o seu patrício nem o seu parente, dizendo: “procure conhecer a eterno, o senhor.” porque todos me conhecerão, tanto as pessoas mais importantes como as mais humildes. pois eu perdoarei os seus pecados e nunca mais lembrarei das suas maldades. eu, o senhor, estou falando”.
aqui entra o meu terceiro exemplo dessa correlação entre eternidade e amor e os desafios de uma teoria da existência: a raiz quadrada de menos 1 (√-1). como vimos, as coisas que existem tem suas propriedades. quando alguma coisa não tem condições de ter existência comprovada ou não tem pertença/predicados, ela fica fora das leis fundamentais da lógica e da existência dos atos de conhecimento. por isso, em matemática falamos em unidade imaginária i, enquanto solução da equação quadrática: x2+1=0, da qual decorre x2=−1.
ou, dessa séria questão existencial x=√-1, onde a unidade imaginária é i=√-1. dentro da lógica matemática não posso dizer que este número exista, ele é imaginário porque é um recurso da minha imaginação, pois não há número real cujo quadrado seja negativo. é isso é um fato. imagina-se, então, que haja números especiais, dotados de propriedades que satisfaçam essa exigência da imaginação. e assim a matemática criou uma classe de números: os imaginários, que não são reais.
e, agora, voltemos ao filme. o que os amigos do pai deficiente mental entendiam, e a assistente social não, era que havia entre o pai e a filha uma aliança maior, que transcendia em muito suas deficiências intelectuais, uma aliança de amor.
dessa maneira, nessa correlação tresloucada entre eternidade e amor digo que uma teoria da existência parte de três fundamentos: a diferença entre existir e não existir, e que essa diferença não é um atributo, não é uma propriedade; a existência não faz parte da essência de cada coisa, mas cada coisa, todas as coisas mostram diferenças entre natureza e existência; a mente transcende, produz representações que agregam conhecimento e constroem sentido para a existência. é o que o materialismo não entende, já que é carência, e que, por isso, no esfacelar-se do caminhar devemos deixar que a própria eternidade testemunhe amor e paciência.
assim, na correlação eternidade/amor, a existência deslumbra e fascina; é baal e îche; transcende e cria a imagem que alucina. e como adara disse: e a que não via? fiquei com medo. sei que o chefe de vocês é diferente, que acredita no que faz e no que diz e pretende fazer com que o país volte às normas da legalidade absoluta, com a supressão do arbítrio e dos sonhos. e eu fiquei com medo. chovia. era difícil andar. eu por causa da velhice e ela porque tropeçava nas raízes. o mergulho, era isso que eu tinha na cabeça. nem mais, nem menos. paramos ao lado de uma poça. o longe roncava como fera. não sabia se o futuro começava ou se o passado cochilava. devagar, segurei sua cabeça e enfiei na lama. ela deixou. seu corpo se contorceu um pouco, com arrancos. meu medo foi passando. levantei seu rosto. éramos iguais os dois, mortos, com máscaras de lama.
segui sozinho, sentindo uma paz esquisita. acho que é a mesma paz que sentia o velho castelo depois da chuva de estrelas. não sei. sinceramente, valorosos guerreiros, não sei mais nada. o seu nome... não me lembro bem, mas parece que era dores. é, só poderia ser dores.
e assim, conta adara, o corpo que eu consegui a duras penas, e que me deu tantos prazeres, foi fuzilado numa tarde de setembro. e como você pode ver, esse limite infernal só apareceu para bagunçar o coreto. com o fim da guerra e sem corpo em que me agarrar, resolvi mudar de ares. cheguei aqui como ave de arribação, sem eira, nem beira, agarrado num mestre de artes marciais, mas logo encontrei quem eu procurava.
uai! que sonho estranho. é isso que dá brigar com brianda. sinto uma culpa danada e depois fico sonhando essas loucuras. e é tão fora de propósito que não dá para contar para ninguém. e para quem haveria de contar? estamos em pleno voo. eu disse que gosto dos portenhos, quero ver uns tangos, bailar. é nenhum exílio nos impede de curtir tangos.
enaltecido, exaltado, honrado seja o nome do eterno de toda a terra, pois dele emanam as bênçãos e louvores. ele conforta e guia, é redentor por toda a eternidade.
7.
eles vão morrer
violência, tema recorrente dos tempos bicudos da pós-modernidade. tal realidade midiática nos leva a pensar e a viver como se a vida não tivesse a menor importância ou valor. e em nome de doutrinas, relações e religiões muitos são transformados em bombas humanas, assassinos seriais, legais ou não, que espalham a dor, o sofrimento e a morte. nesse clima de ódio e violência, é importante dizer que o primeiro pensar das escrituras estelares e as do mashiah, construído para o ser humano no bojo dos relatos da criação, é a leitura da vida.
a eternidade construiu o humano como semelhante, cheio de parecença, para curtir o fundão criado, fazer sexo, ter filhos, produzir criativamente. e a eternidade contou isso aos humanos e um dia isso foi registrado lá em bereshit, o livro primeiro das escrituras judaicas. e é interessante que quem registrou a história que ouviu dos antepassados disse que a eternidade curtiu a beça tudo aquilo. achou genial o que tinha feito, tanto que deu por terminado o seu trabalho e foi descansar.
as histórias se multiplicam. há histórias que falam da importância da vida nas escrituras judaicas, e há histórias sobre a vida e sua singularidade nas tradições de gentes e povos. na tradição judaica, conta-se que quando os escravos fugiram do egito com os soldados egípcios correndo atrás deles e já estavam atravessando o mar vermelho, anjos resolveram cantar um hino de gratidão, mas a eternidade não permitiu e disse: eu criei o ser humano, cada um deles é criação minha, como poderei cantar se muitos vão se afogar neste mar? eis a universalidade da vida: todos fomos construídos pelo eterno, todos somos parecença, quer escravos hebreus ou soldados egípcios. as leituras judaicas da vida nos levam a isso: a vida é direito universal porque a eternidade ama a vida de pessoa, de todas as pessoas -- foram feitas por ela e têm o jeitão dela.
nesse sentido, a partir das leituras da vida podemos dizer que há não diferença entre as gentes, cada pessoa ocupa um lugar especial no coração da eternidade, para ela é como se todos fôssemos únicos. o respeito pela vida de cada um e de todos e a negação do ódio e da violência dirigem a leitura da vida. criar e educar pessoas traduz-se em ensinar, em primeiro lugar, que quem destrói uma única vida destrói todas e a própria criação. e quem cuida e salva uma única vida salva o mundo. cuidar e salvar uma única pessoa é semear a paz para que ela reine entre os seres humanos. para o ninguém possa dizer: o meu pai é maior do que o teu pai.
o homem do mau da maldade antíoco introduziu a cultura grega na cidade de david e impôs o culto olímpico na terra e no santuário dos estelares. o santuário foi assolado. porcos e outros animais foram ofertados no altar. estabeleceu-se um tempo abominável de desolação. à semelhança de babilônia, foi estabelecido um decreto de morte para o povo. fabricaram estátuas, aboliram o culto a ieuá e o pacto da circuncisão foi abolido. as mulheres que circuncidavam seus filhos eram mortas, segundo a ordem do rei, e penduravam os meninos pelo pescoço em todas as casas onde os achavam, e trucidavam os que os tinham circuncidado.
e os habitantes da cidade de david fugiram por causa deles, e a cidade tornou-se morada dos estrangeiros, tornou-se estranha aos seus naturais, e seus próprios filhos a abandonaram. o seu santuário ficou desolado como um ermo, os seus dias de festa transformaram-se em pranto, e os seus sábados em opróbrio, as suas honras em nada.
havia sete irmãos que foram um dia presos com sua mãe, e que o homem do mau da maldade por meio de golpes de azorrague e de nervos de boi, quis coagir a comerem a imunda carne de porco. um dentre eles tomou a palavra e falou assim em nome de todos. que nos pretendes perguntar e saber de nós? estamos prontos a morrer antes de violar as leis de nossos pais. o rei, fora de si, ordenou que aquecessem até a brasa sertãs e caldeirões. logo que ficaram em brasa ordenou cortar a língua do que falara primeiro e, depois, lhe arrancar a pele da cabeça, e lhe cortar também as extremidades, tudo isso à vista de seus irmãos e de sua mãe.
em seguida, mandou conduzi-lo ao fogo, inerte e mal respirando, para assá-lo na sertã. enquanto o vapor da panela se espalhava em profusão, os outros com sua mãe, exortavam-se mutuamente a morrer com coragem. o eterno nos vê, diziam, e certamente terá compaixão de nós, como o diz claramente moisés no seu cântico de admoestações: ele terá compaixão de seus servos. morto desse modo o primeiro, conduziram o segundo ao suplício. escalpelaram-no e perguntaram depois: comerás carne de porco ou preferes que teu corpo seja torturado membro por membro? ele respondeu: não! -- no idioma de seu país. e padeceu então os mesmos tormentos do primeiro. prestes a dar o último suspiro, disse:
-- homem mau da maldade, tu nos arrebatas a vida presente, mas o rei do universo nos levantará para a vida eterna, se morrermos por fidelidade às suas leis. a eternidade pergunta por que, às vezes, olhamos o mundo com raiva. por que andamos de cara fechada? quando fazemos o bom da bondade, sorrimos. quando frutificamos no mau da maldade, a fração e o distanciamento se colocam à espreita. e esse é o desafio à nossa liberdade, que deve construir alegria, justiça e paz. mas o bom e bonito não estão sempre em nós. é quando dançam a comunhão e a solidariedade e reinam os desejos e paixões do ego humano. dentro de nós a vontade de fazer o bem bom é sempre capenga. nem sempre fazemos o bem bom bolado, mas justamente o mau da maldade que não maquinamos fazer. mas, se fazemos o que não queremos, já não somos o humano pleno de sentido, mas o humano capenga. assim sabemos que o que acontece é isto: às vezes, queremos fazer o bem bom, mas só fazemos o mau da maldade. é como se existisse um estado diferente agindo naquilo que fazemos, um estado que pugna contra os planos que a mente bola. esse estado de alienação nos torna cativos da fração e da separação que age em nossas vidas. e ficamos frustrados, raivosos, tristes! quem pode nos livrar da alienação e da fração? que a eternidade seja louvada, pois ela derrama sobre nós o novo ser que dá sentido pleno à vida e vence a estado que me faz distante e separado. somos o desafio: viver a vida de sentido no novo ser, transformados por completa mudança de mente, a realizar a vontade eterna do que é agradável, bom e perfeito.
após este, torturaram o terceiro. reclamada a língua, ele a apresentou logo, e estendeu as mãos corajosamente. pronunciou em seguida estas nobres palavras: do céu recebi estes membros, mas eu os desprezo por amor às suas leis, e dele espero recebê-los um dia de novo. o próprio homem do mau da maldade e os que o rodeavam ficaram admirados com o heroísmo desse jovem, que reputava por nada os sofrimentos.
após a morte deste, os carrascos aplicaram os mesmos suplícios ao quarto, e este disse, quando estava a ponto de expirar declarou:
-- é uma sorte desejável perecer pela mão humana com a esperança de que ieuá nos levante; mas, para ti, certamente não haverá levantar para a vida.
arrastaram em seguida o quinto e torturaram-no. mas ele, encarando o rei, disse:
-- ainda que mortal, tens poder sobre os homens, e fazes o que queres. não penses, todavia, que nosso povo é abandonado por ieuá! espera, verás quão grande é a sua potência e como ele te castigará a ti e à tua raça.
depois deste, fizeram achegar-se o sexto, que disse antes de morrer:
-- não te iludas; nós mesmos merecemos estes sofrimentos, porque pecamos contra nosso ieuá, e em conseqüência recebemos estes flagelos surpreendentes. mas não creias tu que ficarás impune, após haveres ousado combater contra ieuá.
particularmente admirável e digna de elogios foi a mãe que viu perecer seus sete filhos no espaço de um só dia e o suportou com heroísmo, porque sua esperança repousava em ieuá. ela exortava cada um no seu idioma materno e, cheia de nobres sentimentos, com uma coragem exemplar, realçava seu temperamento de mulher.
-- ignoro, dizia-lhes ela, como crescestes em meu seio, porque não fui eu quem vos deu nem a existência, nem a vida, e nem fui eu mesma quem ajuntou vossos membros. mas o criador do mundo, que formou o homem na sua origem e deu existência a todas as coisas, vos restituirá, em sua misericórdia, tanto o espírito como a vida, se agora fizerdes pouco caso de vós mesmos por amor às suas leis.
receando, todavia, o desprezo e temendo o insulto, antíoco solicitou em termos insistentes o mais jovem, que ainda restava, prometendo-lhe com juramento torná-lo rico e feliz, se abandonasse as tradições de seus antepassados, tratá-lo como amigo, e confiar-lhe cargos. como o jovem não deu importância alguma, o homem do mau da maldade mandou que a mãe se aproximasse e o exortasse com seus conselhos, para que o adolescente salvasse sua vida. como ele insistiu, ela consentiu em persuadir o filho. inclinou-se sobre ele e, zombando do cruel tirano, disse-lhe na língua materna:
-- meu filho, compadece-te de tua mãe, que te trouxe nove meses no seio, que te amamentou durante três anos, que te nutriu, te conduziu e te educou até esta idade. eu te suplico, meu filho, contempla o céu e a terra, reflete bem: tudo o que vês, ieuá criou do nada, assim como todos os homens. não temas, pois, este algoz, mas sê digno de teus irmãos e aceita a morte, para que no dia da misericórdia eu te encontre no meio deles.
logo que ela acabou de falar, o jovem disse:
-- que estais a esperar? não atenderei às ordens do rei; eu obedeço àquele que deu a lei a nossos pais por intermédio de moisés. mas tu, que és o inventor dessa perseguição contra os estelares, não escaparás à mão de ieuá. quanto a nós é por causa de nossos pecados que sofremos e se, para nos punir e corrigir, o eterno vivo e senhor nosso se irou por pouco tempo contra nós, ele há de se reconciliar de novo com seus servos. ímpio, não te exaltes sem razão, embalando-te em vãs esperanças, enquanto levantas a mão sobre os servos do céu; tu ainda não escapaste ao julgamento do eterno todo-poderoso que tudo vê! enquanto meus irmãos participam agora da vida eterna, em virtude do sinal da aliança, após terem padecido um instante, tu sofrerás o justo castigo de teu orgulho, pelo julgamento do eterno. seguindo o exemplo de meus irmãos, entrego meu corpo e minha vida em defesa das leis de nossos pais e suplico ao eterno que ele não se demore em apiedar-se de seu povo. tomara que tu, em meio aos sofrimentos e provações, reconheças nele o eterno único. enfim, que se detenha em mim e em meus irmãos a cólera do todo-poderoso que se desencadeou sobre toda a nossa raça.
abrasado de ira e enraivecido pela zombaria, o homem do mau da maldade maltratou este com maior crueldade do que os outros. morreu, pois, o jovem purificado de toda mancha e completamente entregue ao senhor. seguindo as pegadas de todos os seus filhos, a mãe pereceu por último.
voltando ao primeiro livro das escrituras judaicas, vemos que ele se descreve como o livro da história humana. e é interessante o que esse livro fala da criação e da história de um primeiro casal: ele era o da-terra e ela a-vida. este é sentido dos nomes hadam e hawah. a construção dessas duas pessoas, da-terra e a-vida, ao se dar no final da construção do universo, mostra o valor que têm para o eterno e sua eternidade: são menores, aparentemente pequenos, mas valem mais, pesam tanto quanto todo o universo. a história humana é a história de uma pessoa, de duas pessoas, de todas as pessoas.
e será que eu posso fazer da minha mulher, escrava. ou, em outras palavras, posso explorá-la? não, não posso. será que posso fazer dos meus pais, escravos. ou, em outras palavras, posso explorá-los? não, não posso. será que posso fazer de meus filhos escravos. ou, em outras palavras, posso explorá-los? não, não posso. e por que? porque devo amar o humano como semelhante, como igual. esteja ele ao lado ou distante, é sempre próximo. este princípio é fundamental na leitura da vida. as relações humanas implicam em reciprocidade, deve levar ao companheirismo, ao fundamento de origem: da-terra e a-vida estão por trás de toda a humanidade.
as escrituras estelares nos falam da obrigação de amar o estrangeiro, ou seja, aquele que nos parece diferente. esse é o princípio da paz entre os povos. por isso, as leituras estelares e as do mashiah da vida propõem que a paz prevaleça, seja formulada como lei a obrigação de cuidar e proteger os diferentes e as minorias. este é o sentido maior da justiça.
assim, se perguntarem: um homem pode explorar pai, mãe, mulher, filhos? sabemos que a resposta é não. e de novo a pergunta: um homem pode explorar aquele que é diferente dele por credo, raça, sexo ou sob qualquer outro aspecto? muitos acharão que sim. mas quando tenho em minha frente uma pessoa, tenho um igual e, por mais diferente que seja, é meu irmão. ser justo é reconhecer a liberdade dele, seus direitos e cuidar para que tenha uma vida digna, como humano que é.
o respeito e o cuidado por tudo aquilo que é humano, pelo ser e por sua terra e vida, é leitura da existência, que nasce da compreensão de que somos semelhantes, cheios de parecença com o eterno. a imagem está em um, em dois, em todas as gentes.
que o nome seja exaltado e santificado no mundo que ele criou, conforme sua vontade e que venha seu reinado sobre nossos dias, nossas vidas e sobre a casa da estrela, em breve rapidamente.
a segunda chave
as muitas águas da justiça
8.
quero o azul dos teus olhos
“quem é fraco numa crise é realmente fraco”. provérbios 24.10. quando falamos de crises lembramo-nos de problemas que nos cercam ou que são externos a nós. o que está fora é uma parte da questão, a outra é como nós enfrentamos os problemas. o provérbio acima não fala do que está acontecendo no mundo, mas analisa a nossa maneira de enfrentar as crises.
esse provérbio se divide em três momentos. primeiro fala da pessoa que é fraca. a palavra hebraica que traduzimos por fraco, pode ser mais bem traduzida por frouxo. não como expressão grosseira ou agressiva, mas como metáfora de algo que está solto, que não tem firmeza. assim, quem se mostra frouxo, fica desalentado, deixa cair a bola, relaxa e afunda.
o segundo momento do provérbio é a expressão idiomática “dia da sara”, que foi traduzida na versão em linguagem de hoje por crise. a expressão “dia da sara” tem o sentido de “aquela que importuna” ou “de esposa rival”. isto porque na tradição do judaísmo antigo, sara, mulher de abraão, era vista como brava e brigona, que maltratou agar, a ponto dessa última fugir de casa.
devemos nos lembrar que a família hebraica antiga era poligâmica e a esposa chamada de rival era aquela que em determinado momento entrava em choque com a outra, ou com as outras e desestabilizava o equilíbrio da família. para o senhor, esse era um momento da crise. o homem era o senhor e regente dessa família de estrutura patriarcal, e caso se mostrasse frouxo, diz o ditado hebraico, perderia o controle da situação, entraria em depressão e afundaria.
o provérbio parte de uma realidade cultural, ilustrada na família patriarcal machista, onde as mulheres se chocam, e o marido não pode ser frouxo.
apesar de não concordarmos com a estrutura poligâmica, patriarcal e machista dessa família, a lição do provérbio permanece válida. assim, contextualizado, podemos dizer que a atitude que você deve tomar diante da crise não pode ser de alguém que se deixa desorientar e afundar.
a crise aí descrita fala de um momento onde há um elemento desestabilizador, que enlouquece um ambiente ou uma situação. ser frouxo, ter uma atitude de “deixa estar que depois melhora” pode levar todos a afundarem juntos. esse é o momento da liderança consciente, momento de encarar o problema com sabedoria e firmeza.
como aconselhou o rabino shaul, devemos estar alertas, ficar firmes na fé, ser corajosos e fortes. que deus lhe dê firmeza e sabedoria para enfrentar problemas e conquistar vitórias!
rua santa clara. posto 4. o sol está de derreter asfalto. dá para fritar ovos na atlântica. aeyal joga peteca com os amigos. a filha de nabukov, de maiô cavado nas costas, lembra o escritor russo, ao menos na minha cabeça de menino.
--yoffe, passa dagelle nas minhas costas.
obediente, gosto dessa mistura do cheiro do bronzeador com a maresia, cumpro à risca, devagar, a ordem recebida.
caio e tercius, à beira d’água, fazem seus castelos de areia, que a arrebentação, feroz realidade, desfaz um a um. como formigas insistem, gritam e dançam, quando uma onda maior alisa a areia.
miriam fez para mim um calção que é uma bandeira. pegou uma blusa estampada de rosas grandes e como costura muito bem fez um calção lindo, o mais colorido de toda a praia. mas caiu bem.
e a turma, uma gang atribulada, quase todos do externato duque de caxias, elogiou. minha pequena, jussara, cujo pai trabalha na souza cruz, ela me deu de presente um pacote do recém-lançado minister, me agarrou pelo braço e saímos... eu com ela, ela com o rebelde dela.
jussara tem 14 anos, faz balé e mora na serzedelo correia. eu tenho 16 e fui aluno de latim do pompílio da hora no atheneu são luís, no catete. o velho pompílio gostava do meu latim, eu era o melhor aluno dele. certa vez, me expulsou da sala. e me fez sair pela janela, aos gritos:
-- você não é digno de sair pela porta.
pulei. e quando já estava fora, me fez voltar à sala, com um ensinamento estranho:
-- nunca viva de maneira que possam dizer para você: “puxa yoffe, nunca imaginei que você fizesse isso”.
pompílio, primeiro negro humano a ser nomeado embaixador na áfrica, dando lições de transgressão a seu pupilo.
jussara me agarra pela cintura, rindo e apontando para o mar. a gangue, de calções abaixados, brinca de boto furando as ondas...
morena de olhos azuis, ela não é bonita, é linda. a vida toda se resume nisso: futebol de areia todas as tardes depois das quatro, toda televisão que dá para ver, muito livro e jussara para me levar ao cinema. e saímos na maior pinta. eu de rancheira e camisa de banlon branca e ela de vestido de fustão rodado. depois do cinema, comemos waffles ali na n. s. de copacabana.
os anos começam a desabrochar. lá em casa, aeyal e a filha de nabukov deram adeus ao juscelino kubistchek, um pouco preocupados com os ares que sopram. aeyal prefere o general lott, mas o povo vai de jânio quadros. o jeitão do magrela não me agrada. é o homem da caspa de talco, do sanduíche de mortadela e da vila maria, em são paulo.
toda minha família sempre foi juscelinista, até o tio aeyal que é austríaco e veio para cá no meio da guerra. magro, um metro e noventa, cabelos lisos e negros, foi atleta do flamengo. remava. foi capataz de fazenda. levou um tiro de um peão, na barriga. casou-se com minha tia iracema, que era estilista e dona de loja no centro. depois da morte de iracema veio a filha de nabukov, filha de mãe espanhola e pai italiano. bailarina. é vinte anos mais nova que o aeyal e doze anos mais velha do que eu. é amiga, confidente e, às vezes, mãe. esta última função é a que menos gosto.
alguns anos depois da morte do shemtós, aeyal e a filha de nabukov me convidaram para morar com eles. os dois filhos, caio e tercius, vieram mais tarde.
hoje, aeyal tem loja de moda, um jaguar 53, usa tanga na praia, um escândalo que a filha de nabukov aprova, e joga religiosamente peteca com os amigos domingo de manhã na praia.
-- no que você está pensando? está tão calado.
-- o azul dos teus olhos é mais bonito que o azulão besta do mar.
-- bobo!
-- é verdade. prefiro esse azul aqui àquele lá.
-- bobo duas vezes. aquele lá é maior. olha, nem fim tem...
-- é, mais o teu eu posso levar comigo.
-- só se eu deixar...
-- e você deixa?
-- depende...
-- de que?
-- ué, para onde?...
-- quero o azul dos teus olhos como farol, que baila, na ilha, no meio do mar...
-- puxa, então eu deixo.
a eternidade concede a paz e a vida para o povo da estrela e todos nós. a oração do justo aplaina os montes e vales da existência.
9.
moças enjauladas
as situações de limite exemplificam as maravilhas do renascer em vida. vemos isso, por exemplo, na expressão do rabino de nazaré "onde pouco é perdoado, pouco amor é mostrado".
lembro-me de uma moça nigeriana, aminal lawal, que foi condenada por ter um filho dois anos depois de separar-se do marido. seria apedrejada, conforme ordena a lei islâmica, a sharia.
há mais de três mil anos, uma jovem chamada raabe, na palestina, também correu o risco de ser assassinada.
e para entender o milagre do renascer em vida faço uma rápida correlação entre as histórias de aminal e de raabe. mas é bom lembrar que a cultura da época situava a prostituição como comércio ilegal do amor sexual. e perdão diante de tal culpa e limite era, desculpa, renúncia às consequências punitivas justificáveis em face desta ação que transgredia preceitos afetivos jurídicos, morais e religiosos.
a sharia é a aplicação do alcorão na prática cotidiana, e em alguns países ainda é aplicado como lei. assim, a morte por apedrejamento era um costume no oriente médio, e essa norma também fez parte da torá judaica.
aminal, a moça muçulmana, teve um filho fora do casamento. e por isso devia ser apedrejada. mas o mundo ocidental se manifestou pela revogação da sentença. então, os juízes islâmicos, pressionados pela opinião pública, usaram um subterfúgio para salvar aminal. alegaram que segundo a tradição islâmica um bebê pode estar em gestação por um período de até cinco anos. ou seja, aminal poderia estar grávida do marido.
mas, me lembrei de uma caminhada pelo red light district, área livre de amsterdam para o consumo de drogas e sexualidades várias, que fica entre warmoesstraat, oudezijds voorburgwal e oudezijds achterburwal e suas ruas perpendiculares. é aqui que, por trás de cada vitrina de néon vermelho, moças se colocam, corpos à mostra, a espera de clientes.
o red light district é, na verdade, um parque temático sexual, onde são desovados diariamente milhares de turistas e adolescentes que chegam em ônibus pulmann. note-se que é proibido tirar fotos das moças que estão nas vitrinas. é um bairro que faz o tipo boêmio, embora aqui tudo seja milimetricamente planejado. está cheio de bares, sex shops e tabacarias onde você pode comprar sementes de maconha das mais diferentes qualidades. a atmosfera é surrealista.
as moças nas vitrinas me lembraram a boneca barbie, que já passou dos 50, mas continua a ser a plastificação da sexualidade de consumo. aquelas moças estão barbificadas sob as luzes de néon, numa espécie de jogo virtual, onde personalidades e imagens sexuais são criadas para transmitir uma ideia de liberdade que não existe no mundo real. falo de jogo virtual porque as vitrinas transmitem a sensação de interação on-line, de plataforma virtual, presente no imaginário da garotada que se pluga ali. a moça não existe, mas sim a personagem, ou avatar, que recebe a missão de seduzir. a noção de jogo é sutil, mas está presente e é desafiante.
as moças estão de roupas íntimas, ou nuas, com um olhar maroto para os passantes. caso haja interesse, negociarão serviços e preços. o serviço padrão é 15 minutos de sexo oral e coito por 50 euros. o que acontece nas vitrines não é domínio do real, mas o virtual usado como plataforma de jogos da imaginação. o comportamento sexual acaba sendo irrelevante ou responsável por emoções de vida real. num jogo desse tipo, a função do olhar e os possíveis mergulhos no imaginário é o que conta. por isso, vemos grupos de jovens, tirando sarro, desafiando uns aos outros, como se estivessem num parque de diversões. não basta olhar, é necessário ser olhado e as moças sabem disso, e provocam com piscadelas ou um sorriso mais provocante e dirigido. e a garotada vem abaixo, como se tivesse realizado uma conquista de verdade. sexo com a moça da vitrina é de simples execução. afinal, com a personagem não se dialoga, se pergunta quanto custa. por isso, apesar da expressão grotesca, é um fast food para jovens em bando.
após um século de lutas femininas por direitos e sentido de vida, é difícil, mesmo sob o argumento econômico de que elas fazem assim porque querem, olhar sem constrangimento mulheres enjauladas.
aqueles que defendem a permanência da prostituição de vitrina em amsterdam dizem que tem vantagens, porque as moças são seus próprios patrões, não têm que pagar percentagem dos rendimentos para o proprietário de um bordel -- a não ser o aluguel razoavelmente alto do quarto – e pode escolher seu próprio horário de trabalho. além do que, dizem, como há um fluxo interminável de clientes, podem faturar algumas centenas de euros por dia de trabalho. e porque trabalhar aqui pode ser mais seguro, pois com um gesto de mão podem acionar um botão para chamar o proprietário ou a polícia.
mas a verdade é que tal exposição humilha. elas estão expostas lá na vitrina para que todos possam ver e, por isso, a maioria delas não vive em amsterdam. não querem ser reconhecidas por amigos, parentes e vizinhos. outro fato importante é que a maioria delas não é natural dos países baixos, mas moças que vieram da europa oriental ou da södra unionen.
o red light district é o mais antigo bairro de amsterdam. tem fachadas do século xiv, canais e becos encantadores. aqui está a mais antiga igreja da cidade, a igreja de são nicolau, construída entre 1366 e 1566. e como o bairro era point da marujada, aqui na igreja você encontra as tumbas de almirantes em pinturas e esculturas de barcos. a torre octogonal é de estilo gótico-renascentista, era uma referência para os barcos que atracavam no porto.
zlabya, raabe, a moça da cidade de jericó, depois da sua libertação, tornou-se mulher de salmon, filho de calebe, e mãe de boaz. é bom lembrar que as prostitutas na antiguidade, cultuais ou não, começavam seu ofício ainda na puberdade. na vida escura e duvidosa dessa jovem, prostituta e mentirosa, deve ter brilhado a centelha de que com os hebreus havia um eterno maior do que todos os deuses que ela conhecera. a cidade de jericó estava em pânico, temendo um ataque dos hebreus, e entre o povo se comentava o que o eterno dos hebreus fizera na saída do egito e durante a caminhada no deserto: soubemos que o senhor secou o mar vermelho diante de vocês quando saíram do egito. também ficamos sabendo como, a leste do rio jordão, vocês mataram seom e ogue, os reis dos amorreus, e destruíram os seus exércitos.
zaná é uma palavra hebraica que pode ser traduzida como praticar prostituição, mas seu sentido literal quer dizer manter relações sexuais ilícitas. é a palavra que designa a atividade de raabe, a jovem que escondeu os espiões enviados por josué. tal palavra normalmente se refere a mulheres e apenas duas vezes diz respeito a homens. a forma feminina é usada para indicar a prostituta. tais pessoas recebiam pagamento, tinham marcas características que as indicavam, tinham suas próprias casas e deviam ser evitadas. poucas vezes, a mulher com quem o ato é cometido é identificada como mulher casada, mas também nunca se afirma que é solteira.
ambas mulheres, aminal e raabe, foram consideradas prostitutas, conforme o costume de suas culturas. a primeira adulterou e a segunda, segundo estudiosos, era uma sacerdotisa da religião dos cananeus, ou seja, uma prostituta cultual. ambas mereciam a morte, mas renasceram para a vida pelo milagre do perdão. e perdão implica em libertação oferecida e esquecimento, por isso não importa mais se aminal adulterou ou se raabe era prostituta. mas há uma diferença, não sei se para aminal houve de fato libertação.
já raabe confiou na misericórdia e no poder da eternidade e renasceu em vida. e fez um declaração marcante ao reconhecer que o eterno estava acima dos deuses cananeus: a eternidade é em cima no céu e aqui em baixo na terra.
estas palavras, proferidas por raabe, são sentido pleno da vida e contrição.
centenas de anos mais tarde, o rabino de nazaré, descendente da prostituta raabe, disse a um religioso que o convidou para jantar: você está vendo esta moça? quando entrei, você não me ofereceu água para lavar os pés, porém ela os lavou com as suas lágrimas e os enxugou com os seus cabelos. você não me beijou quando cheguei; ela, porém, não para de beijar os meus pés desde que entrei. você não pôs azeite perfumado na minha cabeça, porém ela derramou perfume nos meus pés. eu afirmo a você, então, que o grande amor que ela mostrou prova que os seus alvos errados estão perdoados. mas onde pouco é perdoado, pouco amor é mostrado.
perdoar é esquecer, libertar, renascer. eis o milagre que cobriu raabe. mas como ficam as outras moças enjauladas?
10.
o inverno de todos os levantar-se
a contemplação de iohanan, também conhecido como o apocalipse, não deve ser lido como fonte de argumentos em prol de iminente fim do mundo. para fundamentar tal visão, partimos da análise de teólogos como agostinho, de reconhecido peso na história da igreja, e de teólogos contemporâneos como hans schwars, que escreveu o mistério das sete estrelas.
o núcleo da contemplação de iohanan dispõe-se em três septenários, que recapitulam a história da humanidade e da igreja sob forma simbólica, mostrando que as calamidades da história estão englobadas num plano sábio do eterno. este dirá a última palavra, mas o livro não permite calcular a data da consumação dos tempos ou da parusia do messias. o apocalipse é um livro de conforto e esperança e não um livro de desgraças. deve ser lido dentro dos parâmetros do gênero literário apocalíptico, que tem estilo e linguajar próprios. quem não leva em conta tais peculiaridades corre o risco de deduzir do texto o que ele não quer dizer.
a contemplação de iohanan, com seus símbolos, leva muita gente à tentativa de calcular a data do fim do século presente. por isso, antes de qualquer coisa, vamos trabalhar com os critérios deduzidos do próprio gênero literário apocalíptico e apresentar os problemas suscitados pelo livro e as soluções mais plausíveis para o mesmo.
querida zlabya dividiremos esta reflexão em quatro partes: o que é um apocalipse? o contexto histórico da contemplação de iohanan. e sua interpretação. questões especiais.
a palavra grega apokálypsis quer dizer revelação. o gênero literário apocalíptico esteve voga entre os estelares nos dois séculos anteriores e posteriores ao mashiah. a sua origem se deve ao fato de que os profetas foram escasseando em israel após o exílio babilônico, 587-538 antes da era comum -- os últimos profetas bíblicos, ageu, malaquias e zacarias, exerceram o seu ministério nos séculos seis e cinco antes de o.
após o século quinto o povo da terra da estrela continuou sujeito ao jugo estrangeiro: retornando do exílio babilônico em 538 a.e.c., ficou sob o domínio persa até alexandre magno (336-323 a.e.c.) da macedônia, que conquistou a terra da estrela, anexando-a ao império macedônico.
após a morte do imperador, a palestina ficou sob os egípcios, na dinastia dos ptolomeus, até o ano de 200 antes da era comum nesta data, os sírios ocuparam e dominaram a terra da estrela, constituindo aí o período dos antíocos ou selêucidas.
as questões escatológicas que surgem durante o período macabeu traduzem três tipos de preocupações: como israel se libertará da dominação pagã e o reino de deus se realizará? qual o destino último dos justos e dos pecadores? quando terminará o caos e a maldade na história?
acontece que as guerras e as violentas transformações sociais vividas por israel não levantaram apenas questões escatológicas, mas também éticas e políticas. assim, durante esses anos de crise generalizada, a visão espiritual rompeu suas cadeias formais e permitiu uma produção multifacetada até então inédita na história judaica. esquematicamente, podemos agrupar este processo de produção de novas idéias em três grandes grupos: nacionalista, de sabedoria e apocalíptico.
para falar dos três é preciso entender que a visão profética clássica nasce de uma profunda compreensão do momento presente e do coração de deus. nesse sentido, o profeta clássico tem sempre um conhecimento da dialética do momento presente e, chamado pelo eterno, apresenta sua vontade ao povo. mas, o profeta não é apenas um analista crítico e sim um atalaia que prega uma postura correta diante do eterno. nesse sentido, a profecia clássica sempre foi também um exercício ético.
a história da terra da estrela sob os macabeus foi uma história de crise social. tempo que permitiu o surgimento e necessitou a presença de profetas. tempo onde a memória dos servos do eterno emergiu com toda a sua radicalidade: ele está ao lado do perseguido e contra o perseguidor. esta memória se transformou numa visão global da história. e não nasceu da acomodação, nem da alienação diante da injustiça, mas da compreensão daquele momento presente e da vontade do eterno para seu povo escolhido.
sem dúvida, o eterno falou a seu povo através de sábios e mestres, mesmo quando estes, para evitar a perseguição e o martírio, reeditavam antigos manuscritos, traduziam para a realidade presente histórias memoriais, e, sobretudo, omitiam seus verdadeiros nomes. durante todo o período, antigas promessas foram apresentadas com maiores detalhes. avivados pela palavra profética, o povo tomou conhecimento da revelação do eterno. se há na história da revelação um desenvolvimento gradual e se a base histórica da revelação é linear, mas o desenvolvimento da fé não o é, no período macabeu chegou-se a um processo combinado, onde aspectos até então pouco definidos emergiram com claridade.
dessa maneira, quer nos escritos éticos, quer nos escritos políticos, encontramos uma visão profética, resgatada da memória dos textos bíblicos antigos. mas, sem dúvida, essa revolução do pensamento religioso estelar alcançará seu momento de maior expressão com a literatura apocalíptica.
situamos na época dos macabeus, período que vai da ascensão dos selêucidas até 67 antes da era comum, a seguinte literatura: apócrifos éticos, literatura de sabedoria: tobias; sentenças de ieshua ben sirah, eclesiástico; livro da sabedoria de salomão. apócrifos políticos, literatura nacionalista: i macabeus, ii macabeus. apócrifos apocalípticos, literatura de revelação: judite, ii esdras e baruch. entre os pseudepígrafos da era dos macabeus, temos a carta de aristéia; o livro dos jubileus; os oráculos sibilinos; enoque etiópico; e o testamento dos doze patriarcas.
como a profecia anterior, a contemplação de iohanan é uma revelação de aviso do julgamento do eterno e promessa de salvação. mas sob vários aspectos, é uma transformação na forma e conteúdo da experiência de revelação do judaísmo anterior.
os profetas clássicos, por exemplo, falavam à sua própria sociedade, o que requeria imediatas escolhas políticas e éticas, que podiam afetar ou modificar o juízo divino iminente. para eles, o futuro permanecia aberto, porque a decisão do eterno poderia mudar, caso a comunidade se arrependesse.
os apocalípticos, no entanto, encaram a história como um processo fechado e unificado, vendo a sua própria era como derradeiro elo de eventos que se desenrolam em sequência pré-ordenada. ao contrário das promessas escatológicas da profecia clássica, que viam um “fim dos dias” no futuro distante, o autor apocalíptico crê que a meta está a seu alcance: está aqui o fim da dominação pagã, a completa salvação da terra da estrela, a manifestação final do reino do eterno na terra. o escritor apocalíptico oferece um panorama muito mais amplo da ascensão e queda de vastos impérios, mas seu interesse em relação ao mundo real e imediato é muito menor que o do profeta clássico. seu olho focaliza outro mundo.
outra diferença entre a profecia clássica e a literatura apocalíptica envolve sua proximidade com o reino do céu. os profetas clássicos, com exceção de ezequiel, eram reticentes nos relatos do que viam durante a revelação. sua tarefa principal era comunicar a ordem oral e não apresentar uma descrição visual da corte divina. já o apocalíptico descreve suas visitas ao céu com pormenores, mencionando os anjos pelos nomes e falando dos palácios, sala do trono e membros da corte celestial que cercam o divino rei.
o simbolismo misterioso e a ênfase na escatologia indicam uma ligação com a profecia tardia do pré-exílio, mas o pensamento apocalíptico deve muito à tradição da sabedoria helenística.
o ponto mais importante de contato entre a literatura apocalíptica e a sabedoria grega é a idéia de uma ordem cósmica predeterminada. anteriormente, foi a idéia de inacessibilidade que levou às meditações de eclesiastes sobre a ilusão do esforço humano. agora, a literatura apocalíptica traduz essa ordem em plano providencial do eterno para a história.
a preocupação do escritor apocalíptico com o definitivo não cessa com a história. o poder do eterno não pode ser limitado pela morte, de modo que a escatologia política é tanto pessoal como histórica. assim, o capítulo doze de daniel é o primeiro texto bíblico a referir-se claramente à ressurreição dos mortos: “alguns para a vida eterna, outros para a vergonha e desprezo eternos”. no final dos dias, os justos “que dormem no pó da terra” retornarão para “brilhar como as luminárias do firmamento... como estrelas, para todo o sempre”.
é importante notar que é no período macabeu que a idéia da ressurreição toma corpo, a ponto de transformar-se numa idéia-força do judaísmo popular daí para a frente. a fé na ressurreição dos mortos aparece de forma muito clara em ii macabeus e é o fundo da história do martírio dos sete irmãos. antes, só temos em todo o antigo testamento dois versículos que falam do ser levantado da morte.
outras obras importantes que fazem parte da literatura apocalíptica da época -- embora considerados apócrifos e pseudepígrafos, por não estarem no cânon estelar -- são os livros de enoque, ii esdras e baruch.
enoque é uma obra longa, uma edição de fragmentos vários. no correr do livro, o narrador enoque (gn. 5.21-24) descreve suas visitas aos extremos da terra e sua ascensão aos palácios celestiais. o livro inclui um tratado sobre astronomia, poemas sobre o destino derradeiro do justo e do pecador, e uma seção chamada similitudes, referente ao eleito ou filho do homem, que será mandado pelo eterno nos últimos dias para julgar a humanidade.
em ii esdras, o narrador sente-se perplexo ante as calamidades que recaem sobre israel, o aparente abandono em que o eterno deixa seu povo e pergunta por que tão poucos merecerão a vida eterna. um anjo dá a esdras conta do significado da história e seu fim, instruindo que escreva e esconda “setenta livros” que consolarão os que viverem antes dos últimos dias.
baruch, de quem se diz ter sido escriba de jeremias, trata de questões similares. contém uma oração de confissão e de esperança, um poema sapiencial, no qual a sabedoria é identificada com a lei, um trecho profético, onde a cidade de david personificada se dirige aos estelares da diáspora e onde o profeta a encoraja com a evocação das esperanças messiânicas.
a importância dessa coleção de textos sob o nome de baruch é nos levar às comunidades da diáspora e de nos mostrar como a vida religiosa também lá, distante, estava relacionada com a cidade de david, pela oração, pelo culto à lei, pelas promessas proféticas e pelo espírito messiânico.
assim, a partir dos diferentes textos apocalípticos podemos definir os elementos formais desse gênero de literatura: a pseudonímia do autor. é um contemporâneo dos seus primeiros leitores, mas fala como se fosse um personagem antigo. o caráter reservado das revelações. estas foram comunicadas ao personagem da antiguidade; deviam, porém, ficar em segredo até os dias do autor do apocalipse. frequentes intervenções de anjos. estes aparecem, nos apocalipses, ora como ministros do eterno que colaboram com a providência divina na dispensação da salvação, ora como intérpretes das visões ou revelações que o autor do livro descreve. um simbolismo singular. animais podem significar pessoas e povos; feras e aves representam geralmente as nações pagãs; os anjos bons são descritos como se fossem homens, e os maus como estrelas caídas.
o recurso aos números é frequente, explorando-se então o simbolismo dos mesmos -- 3, 7, 10, 12, 1000 como símbolos de bonança; 3 ½, como símbolo de penúria e tribulação. é a exuberância do simbolismo dos apocalipses que torna difícil a compreensão dos mesmos. o leitor deve entender esse simbolismo a partir de passagens bíblicas e extra-bíblicas paralelas. há símbolos que se repetem com a mesma significação: gafanhotos, águias, cedro, três anos e meio, mil anos ... os autores de apocalipses se sentem livres para conceber seus símbolos, suas visões e personificações. propõem cenas sem se preocupar com o verossímil da realidade. nesse sentido constroem virtualidades, conforme vemos na descrição da cidade de david futura. e uma forte escatologia.
os apocalipses se voltam todos para os tempos finais da história e os descrevem apresentando a intervenção do eterno em meio a um cenário cósmico, o julgamento dos povos, o abalo da natureza, a punição dos maus e a exaltação dos bons, estando reservado para israel nesse contexto um papel de relevo e recompensa.
este traço diferencia a profecia do apocalipse. a profecia é sempre uma palavra dita em nome do eterno (propheemi = dizer em lugar de). nem sempre visa ao futuro, refere-se muitas vezes a situações do presente, procurando sacudir os homens de sua indiferença ou da hipocrisia de vida, levando-os a conduta moral digna e correta. a profecia tem um caráter moralizante, válido para os contemporâneos, mas nem sempre voltado para a escatologia.
nos apocalipses o foco moral perde força: o que preocupa iohanan são os acontecimentos finais da história, que redundarão em derrota definitiva dos maus e prêmio para os bons. os símbolos e visões, que os profetas já cultivavam, tornam-se os elementos dominantes na forma literária dos apocalipses.
assim, durante o período macabeu muitas idéias novas afloraram em meio à vida judaica. podemos citar desde o ressurgimento da figura da mulher, com a história de judite e a personificação da sabedoria, o casamento monogâmico, o batismo, e elementos conceituais da doutrina do espírito. mas, sem dúvida, duas idéias revolucionaram o judaísmo: a recompensa apresentada pelas profecias apocalípticas, que se traduz concretamente na ressurreição; e a promessa da autoridade profética, restauradora da justiça, apresentada na figura do mashiah.
essas duas idéias deram uma vida nova ao judaísmo, fazendo com que transcendesse às formalidades das leis e rituais. a partir desse momento, surgiu um judaísmo da pessoa comum, cheio de fé na aparição iminente do messias e na recompensa divina através da ressurreição. esse judaísmo ocupou as ruas, subiu os montes, fugiu para o deserto.
os romanos em 63 antes da era comum invadiram o território palestino e impuseram seu jugo aos estelares, jugo que perdurou até que o povo da terra da estrela foi expulso da sua terra no ano 70 da era comum, com a queda e ruína da cidade de david. nessas circunstâncias de vida o povo da terra da estrela, não tendo profeta, sentia necessidade de ser consolado e alentado para não desfalecer. foi então que autores estelares se puseram a cultivar o gênero literário apocalíptico, que tem afinidade com a profecia, mas não se identifica com esta.
iohanan tinha razões para consolar seus companheiros perseguidos e predizer a vitória final do bem sobre o mal, porque esta é anunciada pelas profecias e promessas feitas a israel. o autor de um apocalipse nada acrescenta a essas promessas, apenas as tornam atuais, repetindo-as de maneira enfática em momento penoso da história do seu povo e anunciando para breve o cumprimento das mesmas. de resto, a salvação, já oferecida pelo eterno em fases anteriores de tribulações da terra da estrela, era penhor de que o senhor não abandonaria seu povo.
no fim do século primeiro depois da era comum tornava-se cada vez mais penosa a situação dos discípulos do rabino de nazaré disseminados no império romano. em verdade, ieshuah deixou este mundo, intimando aos discípulos para que aguardassem sua volta gloriosa; não lhes quis indicar, porém, nem o dia nem a hora de sua vinda, pois esta deveria ser tida como a de um ladrão que aparece imprevistamente à meia-noite; vigiassem, pois, e orassem em santa expectativa. todavia, apesar da sobriedade das palavras de ieshuah, os discípulos esperavam que a sua vinda se desse em breve, enquanto ainda vivesse a geração dos apóstolos mesmos. à medida, porém, que se passavam os decênios, essa esperança se dissipava; a não poucos parecia que o mashiah havia esquecido a sua igreja e que vão era crer no evangelho.
a situação se tornara ainda mais angustiosa desde que nero, em 64, desencadeara a primeira perseguição violenta contra os discípulos do rabino de nazaré. ser discípulo equivalia a ser tido como inimigo de césar. havia naturalmente um confronto entre mentalidade cristã e mentalidade pagã, e por viverem numa sociedade pagã, os discípulos do rabino de nazaré se abstinham de participar de festas de família, das celebrações cívicas, dos jogos públicos, e de profissões e ramos de negócio, que traduziam a mentalidade politeísta e supersticiosa da época.
na ásia menor o ambiente estava carregado dessa presença do pensamento do pensamento pagão: o culto ao imperador era ponto chave da fidelidade de um cidadão romano. desde 195 a.c., esmirna possuía um templo consagrado à deusa roma. em 26 d.c., as autoridades da cidade ergueram outro santuário em honra à tibério, lívio e ao senado. em pérgamo, desde 29 a.c., se instituiu o culto ao imperador. na cidade de éfeso, nos inícios do reinado de augusto, foi construído um altar dedicado a ele, que ficava no templo de diana. os habitantes da ásia menor praticavam estes cultos e sentiam beneficiados pelos governantes de roma, já que eles puseram fim às guerras civis na região, o que assegurou à população desenvolvimento da indústria, do comércio e da cultura.
outro perigo para o cristianismo se fazia notar na ásia menor em fins do século i. as gentes dessa região era religiosa, de sorte que dava acolhida não somente às religiões tradicionais do império e ao cristianismo, mas também aos cultos de mistério de mitra, cibele e apolo, trazidos do oriente. tais mistérios fascinavam pela sua índole secreta e por sua promessa de divinização.
esse estado de coisas permite tirar a seguinte conclusão: na ásia menor uma religião que, como o cristianismo, professasse rigorosamente um deus único e transcendente manifestado por um só salvador, ieshuah, devia necessariamente defrontar-se em breve com formidável aliança de todas as forças do paganismo: sistemas religiosos, interesses políticos, planos econômicos deviam armar-se num combate unânime e cerrado contra o monoteísmo cristão; ser discípulo do mashiah, em tais circunstâncias, significaria sofrer o ódio e o boicote geral de parentes, amigos e concidadãos não discípulos do rabino de nazaré, de tal modo que até mesmo na vida cotidiana do lar o cristão se sentiria sufocado por causa de sua fé.
assim, o império romano realizou dez perseguições contra os discípulos do rabino de nazaré, dirigidas por nero (64), domiciano (95), trajano (112), marco aurélio (117), sétimo severo (fim do segundo século), maximiano (235), décio (250), valeriano (257), aureliano e diocleciano (303).
a situação sugeria a não poucos discípulos de ieshuah ou a apostasia em relação ao divino mestre ou uma espécie de pacto com as idéias do paganismo, de sorte a dar origem ao sincretismo religioso (caracterizado principalmente pelo dualismo ou o repúdio à matéria que a mística oriental muito propalava). foi em tais circunstâncias sombrias que iohanan quis escrever a contemplação vivida.
a finalidade do livro torna-se assim evidente. o autor visava, acima de tudo, alentar nos seus fiéis a coragem; a contemplação de iohanan, em consequência, é essencialmente o livro da esperança cristã ou da confiança inabalável no senhor em ieshuah e nas suas promessas de vitória. pergunta-se então: como terá iohanan procurado levantar o ânimo e corroborar a esperança dos leitores? haverá, em nome de deus, prometido dias melhores aqui na terra em recompensa da fidelidade a cristo, de maneira que quem fosse hostilizado por causa de ieshuah viria a ser estimado pelos concidadãos e acariciado por prósperas condições de vida temporal?
como se sabe, grande é o número de sistemas que tentam interpretar o apocalipse. todos concordam sobre o sentido geral do livro, que quer anunciar a vitória do bem sobre o mal, do reino do mashiah sobre as maquinações dos pecadores. divergem, porém, quando tentam indicar a época precisa em que o apocalipse situa essa vitória. as diversas teorias se agrupam sob os títulos seguintes:
sistema do fim dos tempos: iohanan estaria descrevendo os embates finais da história. esta interpretação esteve em voga na antiguidade; foi posta de lado na idade média; do século xvi aos nossos dias é mais e mais prestigiada principalmente por parte de correntes que profetizam o fim do mundo para breve;
sistema da história antiga (do século i aos séculos iv/v): o apocalipse descreveria a luta do judaísmo e do paganismo contra os discípulos do mashiah, luta que terminou com a queda da roma pagã (476) e o triunfo do cristianismo;
sistema da história universal: o apocalipse apresentaria, sob a forma de símbolos, uma visão completa de toda a história do cristianismo; descreveria sucessivamente os principais episódios de cada época e do fim do mundo.
todas estas interpretações são, de algum modo, falhas, pois não levam em conta suficiente o estilo próprio do livro e querem deduzir do apocalipse notícias que satisfaçam aos anseios ou à curiosidade do leitor. por isto, deixando-as de lado, propomos a leitura da recapitulação, proposta por alio. examinemos essa teoria:
antes do mais, é necessário observar que nem todo o livro do apocalipse está redigido em estilo apocalíptico. as coisas que são, revisão da vida das sete comunidades da ásia menor às quais iohanan escreve; o estilo é sapiencial e pastoral; as coisas que devem acontecer depois. esta é a parte apocalíptica propriamente dita, para a qual se volta a nossa atenção. observemos a estrutura dessa parte: a corte celeste, com sua liturgia. o cordeiro "de pé, como que imolado", recebe em suas mãos o livro da história da humanidade. tudo o que acontece no mundo está sob o domínio desse senhor, que é o rei dos séculos. notemos assim que a parte apocalíptica do livro se abre com uma grandiosa cena de paz e segurança; qualquer quadro de desgraça posterior está subordinado a essa intuição inicial.
o corpo do livro, que se segue, compreende três septenários: os sete selos: as sete trombetas: as sete taças.
pergunta-se: uma estrutura construída de forma tão sofisticada poderá ainda ser o reflexo imediato da história tal como ela é vivida pelos homens? não seria, antes, o fruto de um arranjo lógico ou do trabalho de alguém que reflete sobre os acontecimentos e procura discernir alguns fios condutores por debaixo das diversas ocorrências da vida cotidiana?
sabemos que o estilo de iohanan é comparado ao voo de uma águia que gira em torno do objeto contemplado até finalmente dar o bote ou dizer claramente o que quer. levando em conta esta peculiaridade de estilo, podemos dizer que o autor não expõe os sucessivos acontecimentos concretos da história do cristianismo, mas apresenta a realidade invisível que se vai afirmando por trás dos episódios visíveis da história.
em outros termos: o apocalipse apresenta (sob a forma de símbolos) a luta entre ue satanás, luta que é o fundo e a coluna dorsal de toda a história. cada septenário (o dos selos, o das trombetas e o das taças) é uma peça literária completa em si mesma; o número sete, aliás, significa plenitude ou totalidade, segundo a mística dos antigos.
após os três septenários, ocorre a queda dos agentes do mal: a queda de babilônia, símbolo da roma pagã; a queda das duas feras que regem babilônia, o poder imperial pagão e a religião oficial do império; a queda do dragão, supremo instigador do mal.
em contrapartida, a seção final mostra a cidade de david celestial, esposa do cordeiro e antítese da babilônia pervertida. os versos 22.16-21 constituem o epílogo do livro. aprofundemos um pouco mais o sentido do tríplice septenário central do apocalipse.
o primeiro, o dos selos, nos dá a ver a paulatina abertura do livro que está nas mãos do cordeiro. é o septenário mais sóbrio e nítido, que, pode-se dizer, resume o livro inteiro; examinemo-lo de perto:
o primeiro selo corresponde a "um cavalo branco, cujo cavaleiro tinha um arco. deram-lhe uma coroa e ele partiu vencedor e para vencer ainda". o cavalo branco reaparece em 19,11-16; seu montador é o senhor dos senhores e o rei dos reis. - consequentemente dizemos que o primeiro septenário se abre com uma figura alvissareira: a do verbo de deus ou evangelho que, vencedor, porque já propagado no mundo, se dispõe a mais ainda se difundir. sobre este pano de fundo vêm os três flagelos clássicos da história:
o segundo selo corresponde ao cavalo vermelho, símbolo da guerra; 0 terceiro selo é o do cavalo negro, símbolo da fome negra e da carestia que a guerra acarreta; o quarto selo é o do cavalo esverdeado, símbolo da peste e da morte decorrentes da guerra e da fome (6,7s). aí estão os três flagelos que afligem os homens em todos os tempos e que as escrituras do povo da estrela frequentemente menciona.
depois disto, o quinto selo apresenta os mártires no céu pedindo a deus justiça para a terra ou o fim da desordem que campeia no mundo. reproduzem o clamor dos justos de todos os tempos ansiosos de que termine a inversão dos valores na história da humanidade. em resposta, é-lhes dito que tenham paciência e aguardem que se complete o número dos habitantes da cidade de david celestial.
o sexto selo já nos põe em presença do desfecho da história: chegou o grande dia do juízo final. aparecem então os justos na bem-aventurança celeste: os estelares representados por 144.000 assinalados, e os provenientes do paganismo, a constituir "uma multidão inumerável de todas as nações, tribos, povos e línguas"; celebram a liturgia celeste.
aqui se encerra propriamente o primeiro septenário; compreende em suas grandes linhas os aspectos aflitivos da história da humanidade e o anseio dos justos para que a ordem se restabeleça; a consumação da história é, para os fiéis, vitória e felicidade. a consolação que iohanan quer transmitir aos seus leitores, consiste precisamente em mostrar que as calamidades sob as quais os homens gemem, estão envolvidas num plano sábio de deus, onde todos os males estão dimensionados para que sirvam à salvação das criaturas e à glória do criador. eis aí a síntese do apocalipse apresentada com clareza no primeiro septenário.
e o sétimo selo corresponde a um silêncio de meia-hora. sim, o livro se abriu por completo. iohanan espera a execução dos desígnios de deus contidos no livro aberto. este silêncio de meia-hora é o "gancho" que remete ao segundo septenário.
o segundo e o terceiro septenários retomam o conteúdo do primeiro com algumas variantes. observemos, para começar, que terminam cada qual com a consumação da história. o segundo septenário tem em vista principalmente os flagelos que afligem o mundo profano: a terra, a vegetação, as águas, os astros... ao contrário, o terceiro septenário tem em mira as sortes da igreja perseguida pelo dragão (satanás) e seus dois agentes (o poder imperial pagão, que manipula a religião oficial do estado pagão). observemos dentro do segundo septenário o "gancho" do qual pende o terceiro septenário: é entregue a iohanan um livrinho, doce na boca e amargo no estômago. como entender isto? -- o segundo septenário apresenta a execução do plano de deus contido no livro cujos selos se abriram. portanto, se deve haver outra série de revelações, deve haver também outro livro que as traga; é precisamente este que iohanan recebe, amargo no estômago, porque portador de notícias pesadas para os discípulos do rabino de nazaré fiéis.
merece atenção especial o intervalo ocorrente entre o segundo e o terceiro septenários. ele prepara a série das taças, apresentando os grandes protagonistas da história da igreja: a mulher e o dragão no capítulo 12; as duas bestas, manipuladas pelo dragão, sendo que a primeira sobe do mar, quem olha da ilha de patmos para o grande mar, se volta para roma e representa o poder imperial perseguidor, ao passo que a segunda besta sobe da terra -- quem de patmos olha para o continente próximo, volta-se para a ásia menor, onde campeia o culto religioso do imperador.
a sede capital destes dois agentes é babilônia, a roma pagã. o cap. 12, ao apresentar a mulher e o dragão, é também uma síntese da mensagem da apocalipse e da história da igreja, que será comentada na quarta parte deste estudo. - como dito, os agentes do mal estão fadados a perecer, como se lê em 17,1-20,15, dando lugar à cidade de david celeste e à bem-aventurança dos justos.
por conseguinte as calamidades que o apocalipse apresenta a se desencadear sobre o mundo, não hão de ser interpretadas ao pé da letra; antes, depreender-se-á o seu sentido à luz das cenas de paz e triunfo que iohanan intercala entre as narrativas de flagelos (enquanto os justos padecem na terra, há plena segurança no céu, conforme o apocalipse). justapondo aflições na terra e alegria no céu, iohanan queria precisamente dizer aos seus leitores que as tribulações desta vida estão em relação estrita com a sabedoria de deus; foram cuidadosamente previstas pelo senhor, que as quis incluir dentro de um plano muito harmonioso, plano ao qual nada escapa.
em consequência, ao padecer as aflições da vida cotidiana, os discípulos do rabino de nazaré deviam se lembrar de que tais adversidades não esgotam toda a realidade, mas são apenas as facetas externas e visíveis de uma realidade que tem seu aspecto celeste e grandioso. as calamidades sob as quais os discípulos do rabino de nazaré do primeiro século se sentiam prestes a desfalecer, não os deveriam impressionar, constituíam como que o lado de baixo de um tapete que, visto no seu aspecto autêntico e superior, é um verdadeiro tapete oriental, cheio de ricas cores e belos desenhos.
eis a forma de consolo que iohanan queria incutir aos seus leitores, não só do séc. i, mas de todos os tempos da história: os acontecimentos que nos acometem aqui na terra são algo de ambíguo ou algo que tem duas faces: uma exterior, visível, a qual é muitas vezes aflitiva e tende a nos abater; outra, porém, interior, invisível aos olhos da carne, mas perceptível aos olhos da fé, a qual é grandiosa e bela, pois faz parte da luta vitoriosa do bem sobre o mal; é mesmo a prolongação da obra do cordeiro que foi imolado, mas atualmente reina sobre o mundo com as suas chagas glorificadas. por isto, enquanto os discípulos do rabino de nazaré na terra gemem (ai, ai, ai!), os bem-aventurados na glória cantam (aleluia, aleluia, aleluia!).
no céu os justos não se acabrunham com o que acontece de calamitoso na terra: continuam a cantar a deus porque percebem o sentido verdadeiro das nossas tribulações. no dizer de iohanan, essa mesma paz e tranquilidade devem tornar-se a partilha dos discípulos do rabino de nazaré na terra, pois, embora vivam no tempo e no mundo presentes, já possuem a eternidade e o céu sob forma de semente, semente da graça santificante, que é semente da glória celeste.
assim o apocalipse oferece uma imagem do que é a vida dos seguidores do rabino de nazaré e a vida da comunidade de fé: é uma realidade simultaneamente da terra e do céu, do tempo e da eternidade. na medida em que é da terra e do tempo, apresenta-se aflitiva. este aspecto, porém, está longe de ser essencial: no seu âmago, a vida do cristão é celeste e, como tal, é tranquila, à semelhança da vida dos justos que no céu possuem em plenitude aquilo que os discípulos do rabino de nazaré possuem na terra em germe.
o capítulo doze sintetiza toda a história da igreja sob a forma da luta entre a mulher e o dragão, figuras paralelas às da mulher e da serpente. este trecho apresenta uma mulher gloriosa e sofredora ao mesmo tempo. está para dar à luz um filho que um monstruoso dragão espreita para abocanhá-lo. a mulher gera seu filho, que tem os traços do messias. ele escapa ao dragão e é arrebatado aos céus. dá-se então uma batalha entre miguel com seus anjos e o dragão, que acaba sendo projetado do céu sobre a terra, onde procura abater a mulher-mãe, perseguindo-a de diversos modos. mas o próprio deus se encarrega de defender a mulher no deserto durante os três anos e meio ou os quarenta e dois meses ou os mil duzentos e sessenta dias de sua existência.
vendo que nada pode contra essa figura grandiosa, a serpente antiga atira-se contra os demais filhos da mulher, tentando perdê-los. que significa este capítulo? está claro que o dragão representa satanás, aquele que é "mentiroso e homicida desde o início".
quanto à mulher, não pode ser identificada com algum personagem individual, mas é a mulher que perpassa toda a história da salvação. com efeito; já à primeira hawah, mãe da vida, deus prometeu um nobre papel na obra da redenção. a primeira hawah se prolongou na filha de sião, o povo da terra da estrela, do qual nasceu o messias. a filha de sião culminou na segunda hawah, a igreja de cristo. por isso, a mulher é gloriosa, mas sofredora como o povo da terra da estrela, pois os filhos que ela gera estão sujeitos a ser atingidos pela sanha do dragão, que age neste mundo como um adversário já vencido, mas desejoso de arrebanhar os incautos que lhe deem ouvidos. agostinho diz que o demônio é um cão acorrentado: pode ladrar, fazendo muito barulho, mas só morde a quem se lhe chegue perto. por último, esta mulher-mãe, igreja que exerce sua maternidade por toda a história da salvação, se consumará na cidade de david celeste, a esposa do cordeiro.
a batalha entre miguel e o dragão não corresponde à queda original dos anjos, mas significa plasticamente a derrota de satanás, vencido quando cristo venceu a morte por sua ressurreição e ascensão. deus permite satanás tentar os homens nestes séculos da história da igreja, com um fim providencial, provar e consolidar a fidelidade dos crentes. satanás só age por permissão de deus.
a duração de 1260 dias ou três anos e meio que a mulher passa no deserto, não significa cronologia, mas tem valor simbólico. com efeito, três anos e meio, 42 meses e 1260 dias são termos equivalentes entre si: correspondem à metade de sete anos. sete é o símbolo da totalidade, da perfeição, da bonança e, por conseguinte, a metade de sete é o símbolo do que está inacabado, da dor. portanto, três anos e meio (e as expressões equivalentes em meses e dias) no apocalipse traduzem toda a história da igreja na medida em que não é algo concluído, que é a penosa luta da igreja entre a primeira e a segunda vinda de cristo, no deserto deste mundo.
e o capítulo vinte fala de um aparente reino milenar do rabino de nazaré sobre a terra, estando satanás acorrentado. o milênio seria inaugurado pela primeira ressurreição, reservada aos justos apenas, aos quais seria dado viver em paz e bonança com cristo. terminado o milênio, satanás seria solto para realizar a seu ataque final, que terminaria com a sua derrota definitiva. dar-se-iam então a segunda ressurreição, para os demais seres humanos, e o juízo final.
a teoria milenarista, entendida ao pé da letra, foi professada por antigos escritores da igreja: justino (+165), irineu (+202), tertuliano (+ após 220), lactâncio (+ após 317). agostinho (+430) propôs novo modo de entender o texto, a partir a leitura de iohanan 5.25-29, onde se lê: “em verdade, em verdade vos digo, aquele que ouve a minha palavra... passou da morte para a vida. em verdade, em verdade vos digo, que vem a hora, e já veio, em que os mortos ouvirão a voz do filho de deus e os que a ouvirem viverão”.
“não vos admireis disto, pois vem a hora em que ouvirão sua voz todos os que estão nos sepulcros. os que praticaram o bem sairão para a ressurreição da vida, os que, porém, praticaram o mal, sairão para a ressurreição do juízo".
nesse trecho, o senhor distingue duas ressurreições: uma, que se dá "agora" ("e já veio"), no tempo presente, quando ressoa a pregação da boa nova: é espiritual e publicitada através do batismo; equivale à passagem da vida no pecado para a vida na graça que santifica. a outra é futura e se dará no fim dos tempos, quando os corpos forem transformados pela vida na graça por enquanto latente nos salvos.
assim, no apocalipse a ressurreição primeira é a passagem da morte para a vida que se dá na conversão de cada cristão, quando este começa a viver a vida sobrenatural ou a vida do céu em meio às lutas da terra. a segunda ressurreição é, sim, a ressurreição dos corpos, que se dará quando cristo vier em sua glória para julgar todos os homens e por termo definitivo à história.
mil anos designam a história da igreja na medida em que é luta vitoriosa ("mil" é um símbolo de plenitude, de perfeição; "mil felicidades", na linguagem popular, são "todas as felicidades"). pela redenção na cruz, cristo venceu o príncipe deste mundo, tornando-o semelhante a um cão acorrentado, que muito pode ladrar, mas que só pode morder a quem voluntariamente se lhe chegue perto (agostinho).
é justamente esta a situação do maligno na época que vai da encarnação à parusia do mashiah ou no decurso da história do cristianismo. por isto os três anos e meio que simbolizam o aspecto doloroso desses séculos (já estamos no vigésimo-primeiro século), são equivalentes a mil anos, caso queiramos deter nossa atenção sobre o aspecto feliz, transcendente ou celeste da vida do cristão que peregrina sobre a terra: a graça santificante é a semente da glória do céu.
assim se vê quanto seria contrário à mentalidade de iohanan tomar ao pé da letra os mil anos do capítulo 20 e admitir um reino milenário de cristo visível na terra após o término da história atual.
o sistema da recapitulação proposto merece a preferência aos demais, pois é o que mais leva em conta a mentalidade e o estilo de iohanan. este, também no seu evangelho, recorreu ao estilo da recapitulação em espiral. contudo não se pode negar as alusões do apocalipse aos personagens e situações da história antiga -- nero, a invasão dos bárbaros, roma, babilônia ...
mediante essas referências, iohanan não tinha em vista deter a atenção do seu leitor sobre episódios da antiguidade, mas mencionar tipos característicos de mentalidades humanas ou de situações de vida que acompanham toda a história da igreja: assim nero vem a ser o protótipo dos soberanos políticos que perseguem a igreja em qualquer época -- há muitas reproduções de nero através da história. por isto também o número seiscentos e sessenta e seis da besta do apocalipse, adversária dos discípulos do rabino de nazaré, equivale, segundo a interpretação mais provável, à expressão kaisar neron, imperador nero.
roma e babilônia, por sua vez, designam de maneira típica o poderio deste mundo que, com seus mil atrativos de esplendor e prazer, procura seduzir os discípulos de cristo para o pecado. a luta a que iohanan assistiu, entre roma pagã e a igreja, é evocada no apocalipse não por causa da luta propriamente dita, mas dentro de uma perspectiva mais ampla, isto é, a fim de simbolizar e predizer o combate perene que se vai travando entre o poder diabólico e cristo através dos séculos, até terminar com a plena vitória de ieshuah.
estas considerações concorrem para evidenciar quanto é vã a tentativa de descobrir a predição de fenômenos estranhos da hora presente (bombas atômicas, explosões, enchentes e secas, discos voadores) nos quadros da contemplação de iohanan. estes são quadros típicos e perenes, quadros que se reproduzem por todo o decorrer da história, variando apenas de aspectos.
a sua mensagem abrange todas as situações análogas: querem, sim, dizer que as desgraças da vida presente, por mais aterradoras que pareçam, estão sujeitas ao plano da eternidade que provê, a qual tudo faz concorrer para o bem daqueles que 0 amam.
reyna dá a sua famosa risadinha, não liga para as contemplações do profeta. é pé no chão. sarcasmo puro. ela é libertária, já está com os solidários, mas discorda da ala reformista. reyna é a nossa rosa luxemburg.
e ela me lembra duas outras mulheres-guerreiras, que fogem aos parâmetros de gênero colocados pela cultura patriarcal estelar-cristã. a primeira faz parte da literatura humana, é diadorim.
de diadorim, disse guimarães rosa, através de riobaldo, no grande sertão: veredas -- “montado à baiana, gineta, com estribos curtos e rédea muito ponderada, bridando bem, em seu argel travado, às upas: cavalo bulideiro, cavalo de olhos pretos conforme como a noite”.
“guerreava delicado e terrível nas batalhas. (...) como era que era: o único homem que a coragem dele nunca piscava; e que, por isso, foi o único cuja toda coragem às vezes eu invejei. aquilo era de chumbo e ferro”.
mas diadorim, “que quando ferrava não largava” tinha seu inimigo nomeado: hermógenes.
“vigiei diadorim; ele levantou a cara. vi como é que olhos podem. diadorim tinha uma luz. reponho: em tanto já estava noitinha, escurecendo; aquela escuridão queria mandar os outros embora. o que diadorim reslumbrava, me lembro de hei-de me lembrar, enquanto o eterno dura. mas, entre nós dois, sem ninguém saber, nem nós mesmos no exato, o que a gente acabava de fazer, entestando nos fundos, definitivamente por morte, era o julgamento do hermógenes”.
“eu dizendo que a mulher ia lavar o corpo dele. ela rezava rezas da bahia. mandou todo o mundo sair. eu fiquei. e a mulher abanou brandamente a cabeça, consoante deu um suspiro simples. ela me mal-entendia. não me mostrou de propósito o corpo. e disse…
diadorim - nu de tudo. e ela disse:
- 'ao eterno dada. pobrezinha…'
e disse. eu conheci! como em todo o tempo antes eu não contei ao senhor - e mercê peço: -- mas para o senhor divulgar comigo, a par, justo o travo de tanto segredo, sabendo somente no átimo em que eu também só soube… que diadorim era o corpo de uma mulher, moça perfeita… estarreci. a dor não pode mais do que a surpresa. a coice d'arma, de coronha…”
grande sertão: veredas, caminho e descaminho, verde e seco, limite. diadorim possui jeitos de fêmea, atos másculos de jagunço, “homem é rosto a rosto: jagunço também: é no quem-com-quem”: bravo e a feroz na luta. sempre pronto para o combate, diadorim “se fazia em fúria”, “de pancada”, “ansiando raiva”.
a segunda mulher-guerreira é jael e faz parte da literatura hebraica antiga. dela nos conta juízes 4.
“porém sísera fugiu para a barraca de jael, mulher de héber, o queneu. ele fez isso porque jabim, rei de hazor, estava em paz com a família de héber. jael saiu da barraca para encontrar sísera e lhe disse: entre, meu senhor. entre na minha barraca. não tenha medo. então ele entrou, e jael o cobriu com um tapete. e sísera pediu a ela: por favor, me dê um pouco de água porque estou com muita sede. ela abriu um odre de leite e lhe deu de beber. depois cobriu sísera de novo. e ele disse: fique na porta da barraca e, se alguma pessoa vier e perguntar se há alguém aqui, diga que não”.
“sísera estava muito cansado e caiu num sono profundo. aí jael pegou um martelo e uma estaca da barraca, entrou de mansinho e fincou a estaca na cabeça dele, na fonte. a estaca atravessou a cabeça e entrou na terra. e ele morreu. quando baraque chegou, perseguindo sísera, jael saiu para encontrá-lo e disse: venha cá, e eu lhe mostro o homem que você está procurando. então baraque foi com ela e encontrou sísera no chão, morto, com a estaca atravessada na cabeça”.
jael, a cabra selvagem, no século 12 antes da era comum matou sísera, o chefe das milícias cananeias. débora, profeta efraimita, disse que jael era a mais abençoada das mulheres, porque pegou uma estaca numa mão e uma marreta noutra e esmagou a cabeça de sísera, furou e deixou a cabeça dele em pedaços.
é isso mesmo, dançando débora cantou que jael foi a mais bem-aventurada das mulheres porque sísera, o diabo encarnado, isso sou eu quem está dizendo, caiu morto aos pés dela.
a história em juízes 4 fala de uma época sem limites, como os sertões das gerais de guimarães rosa. jael não era efraimita e juntamente com seu homem, héber, fazia parte de um clã nômade, queneu. mas por bravura guerreira foi elogiada por baraque, mor chefe da jagunçada efraimita. e foi bem-vinda no bando.
num momento de dispersão dos clãs hebreus, débora convocou baraque e seus guerreiros para lutar. o texto estelar de juízes mostra a liderança de débora, e a coragem de jael, em oposição à racionalidade militar de baraque e a miserabilidade de sísera. o texto ressalta o papel carismático da profeta ao exortar homens e convocar os clãs à união. essa convicção e posicionamento é dançada com gritos de vitória e o ritmo quente da música cananeia-palestina. mil e trezentos anos depois, na carata cristã aos hebreus, o autor fará menção ao tempo dos juízes, cita baraque, mas omite débora e jael. e a mulher-guerreira parece esquecida.
no que se refere a diadorim e jael é necessário desconstruir as ideias de exclusão da mulher-guerreira e analisar os relatos sob uma nova leitura.
a mulher-guerreira não é a mãe, nem a esposa, nem a prostituta, nem a feiticeira. ela deve ser procurada ali onde não estão as anteriores. assim teremos diadorim e jael para homem nenhum botar defeito. igual a reyna.
11.
a canção de reyna
“mulheres da cidade de david, eu sou negra e bela. sou negra como as barracas do deserto, como as cortinas do palau de salomão”. cantares de salomão.
zlabya, talvez você conheça essas imagens de amor deste que é considerado um dos mais belos poemas da humanidade. mas, a moça em torno da qual gira a narrativa é motivo de acirrada polêmica, já que o livro de cantares traz à tona os detalhes dolorosos da animosidade entre grupos étnicos no reinado de salomão.
aqui estamos diante de uma constatação fundamental: a moça inspiradora dos poemas de amor do livro de cantares era uma bela negra. e quando as filhas da cidade de david, que faziam parte da casta dominante ligada à corte, protestaram ao descobrir a paixão do rei, a sulamita respondeu ao clamor preconceituoso com a famosa afirmação: "eu sou negra e formosa, ó filhas da cidade de david, como as tendas de quedar, como as cortinas de salomão".
na versão inglesa king james a moça era negra, porém bela, mas no texto estelar não há distinção entre "porém" e "e". a conjunção hebraica “ve” pode ser traduzida por "porém" e "e". o tradutor decidirá por um ou por outro com base no contexto. mas, tanto no inglês, como no português, a escolha pode fazer uma diferença enorme.
mas, por que os tradutores ocidentais optaram pelo “porém”? porque essas traduções foram feitas através do filtro cultural branco e racista, a partir da versão latina dos textos estelares e discípulos do rabino de nazaré, a vulgata, que introduziu o “porém”: “nigra sum sed formosa”. eu sou negra, “porém” formosa. não negra e bela, mas bela apesar de negra.
no texto estelar de reis, no primeiro livro, encontramos a história da rainha do sul, ou seja, rainha de sabá. uma mulher inteligente, que fez perguntas duras a salomão. queria saber se ele era tão sábio quanto se comentava. assim, o antigo texto estelar está interessado nela por causa de sua inteligência. mas um fato significante sobre sabá é que ela era negra. não se sabe exatamente de que região. poderia ser do iêmen ou do norte da áfrica, possivelmente a etiópia. os falashas, estelares etíopes, e os rastafares reivindicam ser descendentes de menelik, o filho de salomão e sabá. e também para os discípulos do rabino de nazaré negros de todo o mundo, sabá surge como ícone racial e é vista como a musa de cantares de salomão.
o poeta w. b. yeats releu o versículo “sou negra e bela” e poemou assim: salomão cantou a sabá e beijou a face negra dela.
onde os discípulos do rabino de nazaré africanos celebraram a cor negra de sabá, o cristianismo europeu marginalizou sua história. na rainha de sabá viu a história de uma mulher pagã, uma mulher estrangeira que tinha se rendido à convicção hebreia. em sua rendição, aparentemente, sabá perdeu também a cor negra de sua pele.
assim a história de uma mulher sábia não combina com a história de uma negra, e tal leitura produziu uma terrível alienação na igreja cristã europeia e norte-americana, que levou o terror e o medo ao “outro de cor negra”. dessa maneira, o “outro de cor negra” foi domesticado, seduzido e subjugado. e a leitura cristã do texto é que sabá capitula a salomão e torna-se culturalmente “branca”.
sabá foi companheira de salomão e o texto pode ser lido assim. mas a tradição, a partir da vulgata, fez dele um conquistador e dela uma conquista, gerando ideologias como a da vitória da europa sobre oriente, do homem sobre a mulher e do branco sobre o negro.
mas os textos estelares falam de negros e de nações africanas como cuxe, mizraim e pute, que hoje são etiópia, egito e líbia. e até a construção do canal de suez, em 1859, não se fazia distinção entre as terras bíblicas. o cenário da atuação divina cobria também a península do sinai, o egito, que está na áfrica. e israel era visto como parte do continente africano. só com a construção do canal de suez, a áfrica passou a ser olhada como continente separado do oriente médio. nos textos estelares e dos discípulos do rabino de nazaré, a terra do povo é uma nação africana e semita, e a mensagem que leva ao mundo teve início nesse continente negro.
e, embora muitos humanos da áfrica vejam as comunidades dos discípulos do rabino de nazaré como de origem europeia, a análise da história demonstra que a religião da terra da estrela teve origem multirracial e que começou a ser escrita na áfrica.
a canção da sulamita é a preferida de reyna, mulher-guerreira consciente de raça e gênero que diz: “eu sou negra e bela, como as barracas do deserto, como as cortinas do palau de salomão”.
12.
não toquem na vida do yoffe
são paulo, vila santa isabel. é noite de sexta-feira. noite de festa em bairro da periferia. bailes de são iohanan em cada esquina. uma senhora, em seu quarto, porta fechada a chave, de joelhos, abraça a bíblia, como se fosse um filho muito querido e ora:
-- senhor, eu não sei do yoffe. não sei porque largou a manchete, viajou para tão longe, o que está fazendo e como está vivendo. ah! senhor, ouve esta mãe. acalma o coração dele, dê-lhe paz. ajuda ele, pai adorado. eu gosto tanto dele, mas ele me escreve tão pouco. ajuda também a reyna. é uma moça tão boa. não permita que yoffe a faça sofrer.
miriam não vê, mas alguns mensageiros da eternidade acompanham com atenção e reverência aquela oração de fé. ela está conversando com o eterno criador dela e deles. suas asas, enormes, estão abertas. o ambiente brilha com intensidade. ah! se ela pudesse ver. se pudesse... de memória, aquela simples e pequena mulher de fé, começa a orar o salmo 91...
-- aquele que habita no esconderijo do altíssimo, a sombra do onipotente, descansará...
de olhos cerrados, coloca a bíblia sobre a cama, junta as mãos com força, como se estivesse esperando já, nesse momento, a resposta do eterno. e completa a oração.
-- porque a mim se apegou com amor, eu o livrarei, pô-lo-ei a salvo, porque conhece o meu nome. ele me invocará, e eu lhe responderei, na sua angústia eu estarei com ele, livrá-lo-ei, e o glorificarei. saciá-lo-ei com longevidade e lhe mostrarei a minha salvação.
as lágrimas escorrem por seu rosto. rosto de mãe que recorda o filho ainda pequeno orando com ela o pai nosso. sorri, como se o menino estivesse ali, do seu lado. lembra-se dele, no colo do pai, ouvindo as histórias de um rapaz corajoso, que enfrentou sozinho um gigante chamado golias. e o menino vibra, pula, quando o pai imita o barulho da queda do filisteu.
era um apartamento gostoso aquele de santa teresa, no rio. ela cheia de vida, moça ainda, não tinha muito do que reclamar. era apaixonada pelo marido. pena que a vida às vezes muda tão bruscamente. shemtós morreu de complicação cardíaca. foi tudo muito rápido. perderam o apartamento. tiveram que ir para perdões. ela e os dois filhos, um pequenino, com apenas três anos. foram para a fazenda do ari. ela ficou lá uns meses e voltou para o rio. tinha que conseguir trabalho, alugar casa, cuidar das crianças.
e aquela jovem mãe, criada em berço de ouro, que nunca tinha trabalhado na vida, mostrou-se tão valente como o garoto davi. foi massacrada pelas circunstâncias. empobrecida, moravam num quarto alugado na rua paissandu, ali no flamengo. o menor, já tinha 12 anos, mas só andava em más companhias. o dia todo na praia. o yoffe trabalhava e estudava. lia a bíblia, tinha amigos crentes. o eterno, sem dúvida, haveria de ajudá-lo.
mas a vida era muito dura. recebiam ajuda da igreja, além de pacotes de trigo e leite em pó doados pela aliança para o progresso. num momento de desespero, cortou os pulsos. e em plena crise, foi internada em um castelo psiquiátrico em jacarepaguá.
de pé, miriam coloca a bíblia sobre a mesa. e continua a lembrar-se das visitas que o yoffe lhe fazia aos domingos. ela sedada, estava inchada pelos medicamentos, quase não conseguia andar. ria da situação, para não deixar o filho chorar de desespero. mas ela sabia que um jovem não resolve muito bem certos problemas.
meses depois, recebeu alta. casou-se com um professor de são paulo, dono de uma escola no bairro do carrão. mudou-se para a casa dele. casa grande, de dois andares, que entre outros confortos tinha uma biblioteca. levou o rapaz alex. yoffe afastou-se dela, da família, de todos.
passaram-se anos. será que ele me odeia? será que ele não vai me perdoar, nunca, pelos anos difíceis que vivemos? pela fome? a esta mãe só restava a oração. e como crente que era, orava todos os dias pelos dois filhos, em especial pelo pródigo.
se ela pudesse ver a revoada de anjos ao redor da casa, naquelas noites de oração. era um quartel-general do eterno no quarteirão. mas ela sabia que não estava sozinha. no mínimo, uma dezena de pessoas orava diariamente pelo yoffe. as tias lucy e alice, que temiam por sua vida, e vários irmãos de sua igreja, que tinham iniciado uma corrente de oração por ele.
e foi assim, por misericórdia e amor, que o eterno ordenou a seus anjos guardarem a vida do yoffe. é certo que essa guarda só podia ir até certo ponto. yoffe declarava-se ateu e, conscientemente tinha rompido todos os relacionamentos com a fé. só confiava em si próprio. e não queria ajuda de ninguém. mal sabia ele que a seu lado, como conselheiro chegado, havia um limite, ahava, o limite das onze horas. e como ahava não trabalhava sozinha, lá estavam em parceria permanente, sharon e adara. o inferno particular de yoffe era alucinado, degenerado e violento. mas quem definia o rumo era ahava.
os mensageiros do eterno já haviam advertido aos limites: eles não tinham permissão para tocar na vida do rapaz. mas permaneciam à distância. há uma lei que nem o eterno viola. é o livre arbítrio que ele próprio deu às pessoas. assim, yoffe tinha o direito inalienável de escolher seus conselheiros e amigos. daí a cena, sem dúvida estranha, que acompanhava sua vida. estava sempre rodeado dos três limites, que o envolviam opressivamente, formando uma névoa negra e compacta. a certa distância, em revoada atenta, sempre havia três anjos. eles não penetravam a névoa, mas sua presença era uma lembrança permanente para os limites, da ordem que tinha vindo do trono do eterno: não toquem na vida do yoffe.
miriam não podia ver o mundo espiritual. mas estava em seu coração a lembrança dos momentos em que a intervenção divina salvara a vida do menino. quando ele tinha apenas um ano de idade, ela estava fazendo um mingau e por algum motivo afastou-se do fogão por momentos. a criança, andando desequilibradamente, apoiou-se com força no fogão e a panela de mingau fervendo entornou sobre ela. desesperada, uma das tias, iracema, pegou o menino e o colocou debaixo do chuveiro frio. a pele de todo o corpo escorreu e ficou no fundo da banheira. durante dias, entre a vida e a morte, yoffe ficou internado, nu, sobre folhas de bananeira.
miriam orava insistentemente para que a criança não morresse. e fez um acordo com o eterno eterno. prometeu que a criança seria dele, para ele, conforme fosse o desejo dele. deu seu primogênito como oferta ao senhor. nazireu do eterno. sem dúvida, ela fica lembrando... o eterno ouviu sua oração e aceitou sua oferta. a segunda guerra mundial tinha terminado fazia um ano, e da itália chegou uma pomada milagrosa: penicilina. três vezes por dia, passavam a pomada em todo o seu corpo. um mês depois teve alta.
que bom saber que o eterno cumpre o que promete. yoffe estava sob a guarda da eternidade. miriam só tinha que ter paciência. qualquer dia ele entraria por aquela porta e a saudade cederia lugar à alegria do reencontro.
13.
o segundo limite da vida
noite alta, o segundo limite da vida, mestra da lucidez e palavras, ficou pensando na viagem e na última coisa que o primeiro limite, morador dos castelos de edom, dissera antes de se retirar para a sombra de sua figueira: “limite bem sucedido trabalha em equipe. nós estamos incompletos: o terceiro limite é a parte que falta para criarmos o paraíso que desejamos”. palavras difíceis, como poderia catalogá-las?
amo essa terra, adoro essa hora da meia-noite. pensou. sem lua, sem aragem, esse silêncio de tudo. essa é a hora dos meio tons. não está gelado, mas faz frio. está escuro, mas não completamente. existe o mais e o menos. é a hora mais difícil para os humanos. eles ficam inseguros, procurando algo que se mova, que faça um ruído. ao menos uma folha, mas nada. e eu também fico quieta, acompanhando a ordem natural do momento. é certo que o céu está cheio de nuvens, que brincam de fantasmas com as estrelas. mas eles nem percebem. são seres medrosos.
às vezes, vem uma nuvem gorda, roliça de gula, e engole um punhado de estrelas. e fica mais escuro. é aí que as árvores e seus galhos secos começam a se espreguiçar. é o momento. vem um vento frio, desses que saem do fundo do inferno. sacudo a solidão eterna, espicho as pernas, vou até a cidade da consolação e começo a falar com os vivos.
sou amiga de merodach e sarpanitu. vivi e fui adorado em borsipa, mas na primavera desse país, o primeiro limite ia passando pela beira do grande rio do deus-morto, quando ouviu um soluço fino. um lamento do fundo das trevas. era eu. tinha sido desterrada, exorcizada para os confins do inferno. depois de muitas eras, vim para o cinturão de fogo. é aqui, a 2.660 metros, bem no alto, rodeado de neve, a minha casa, hueñunauca, há doze mil anos acendo o osorno.
e lá em baixo, no llanquihue, refletido no lago, vê-se a silhueta do vulcão que esquenta as minhas noites geladas. sua presença imponente domina a paisagem.
quem olha para a maravilha, mal pode imaginar os estragos que eu orquestro. na primavera, quando os loucos se apaixonam, derreto o gelo e formo um violento aluvião de barro, cinza, lava e troncos, que arrasta tudo que encontra pela frente. depois da corrida do vulcão, deixo fluir a lava, que incendeia tudo por onde passa. fiz isso em 1851 e foi um sucesso, mas agora tenho outros planos. gosto do gelo das geleiras. esta é a minha casa, a casa do limite. e foi por esses vulcões que entrei no mundo da violência e da morte, pelas mãos da minha irmã, o limite das onze horas.
posso estar velha e passar as noites aterrorizando os humanos que encontro, mas tenho bom ouvido. gosto de colecionar as palavras, tirando delas todo sentido, misturando tudo num saco de gatos -- que linda expressão --, e depois soprar nos ouvidos desatentos, convencendo salvos e perdidos de que tudo o que se ouve reflete apenas a loucura do mundo dos homens. falar sobre a vida não é fácil, já que eu estou do outro lado. mas é minha especialidade. a memória humana é uma colcha de sensações. eles sempre se lembram da dor das pedras. o momento suave é fugidio, escorrega na lembrança, mas o chute fica grudado. assim são eles. suas lembranças estão escritas no corpo: a mentira dita casualmente, o roubo rápido e furtivo, o aborto que ninguém soube. tudo fica escrito. até as marcas da saudade não se apagam. e para eu soprar no ouvido deles, basta uma leitura lenta, quase uma tradução de cada cicatriz, de cada marca.
aprendi a caçar os fantasmas humanos. mergulho no charco de suas vidas, farejo sentimentos escondidos, estraçalho lembranças esquecidas, levanto cadáveres antigos e mal cheirosos. não há matagal ou pântano que eu não atravesse para chegar à uma boa história de desespero. quem me ensinou esta especialidade limítrofe foi o limite das onze horas. no início ela me disse que o mundo das palavras fica aqui, entre ruínas, e que, por isso, não havia razão para eu me afastar. bastava aprender, com ela, a viajar na memória dos humanos. sempre levo comigo uma bolsa. é a bolsa onde guardo as palavras que vou achando no meio do caminho. são palavras fáceis, como exatamente, que parece precisa, mas que transformo numa centopéia lânguida. ou palavras difíceis, como formidável, que vira uma trilha de formigas incendiadas. são palavras de pobre, como cuspe, frio e maleita. são palavras das quatrocentas, como treme-treme e sezão. junto todas elas e à noite vou tirando-as do saco.
tenho o meu catálogo, que é infinito como as estrelas do azulão. e aí, sozinha, vou colocando cada uma delas na sua forma. e ficam todas sem alma: as más, as boas, as alegres, as tristes, as grandes, as pequenas, as gordas, as finas, as de morte. e vou formando frases, que classifico de furtivas, de paixão e destruidoras. o limite é formidável é, logicamente, uma frase furtiva, pois compara o velho limite das onze horas a uma centúria de formigas flamejantes. na semana santa vou comungar é uma frase de paixão, pois se refere à morte de um deus. e a paixão e a morte são irmãs-gêmeas. ninguém está vendo é uma das minhas frases prediletas, é destruidora. é a porta de entrada da minha casa.
ao contrário de nós limites, na vida das gentes sempre ocorre um encontro de grande significado, encontro que modifica o prumo de seus sonhos. lembro-me de um jornalista que não tinha dúvidas. vivia com uma jovem italiana e, no fundo do coração, queria ser o dono do mundo. nessa época, eu, e meus dois outros limites trabalhávamos juntos. tínhamos organizado uma grande festa.
era noite de lua cheia. corpos cheios de limites tinham montado gigantescos labirintos, que terminavam num círculo formado por toras de madeira. representavam os mortos esquecidos e os lembrados. no meio do círculo, comida. do fundo da terra e do oco das árvores saiam sons lindos e terríveis. sons de cantar, dançar e de fazer sexo. nunca me esqueço. o luar cobriu a floresta. sharon vestida de teias e chorando a sinfonia quatorze de shostakovich penetrou no labirinto e depositou um gato, chamado miró, numa cova rasa. eu, cheia de palavras, resfolegando e soltando fumaça pelas narinas, recitava uma pequena carta de artaud: ... somos a força da vida, mas esta não é eterna, seja ou não o hálito de deus, o que respira não é eterno, e até o hálito-deus tem seu tempo contado.
e sharon pensou: e se vida for uma só. e se a morte do miró for também a minha morte. e se esses dias, quando a vida dele vai se esvaindo, for também um esvair-se da minha vida. e se esses dezessete anos de vida em comum, dividindo a mesma casa, conversando em idiomas diferentes, mas muitas vezes multiplicando emoções e sentimentos, são parte de um todo que eu vejo como caleidoscópio? claro, eu sei que você vai dizer que não é nada disso. que ele é apenas um gato e eu sou apenas uma humana, não tão racional neste momento. e outros vão me achar boba, cheia de sentimentos infantis, piegas, porque estou com emoções em desequilíbrio e triste porque o gato do rabino que, na verdade, é o gato da filha do rabino, está a morrer de velhice aos dezenove anos de vida felina.
e a vida vai deixando ele devagar. vai morrendo aos minutos, às horas, mas de forma vagarosa. não está sofrendo, só deixando de viver. o gerúndio aqui é o jeito mais perfeito de dizer, vai deixando de viver. é como se a vida estivesse nele em camadas, e fossem se desfazendo no ar. ou quem sabe, se de fato tivesse sete vidas que fossem se desprendendo não uma a uma, mas cada uma delas em primeiro lugar formasse uma bolha de vida ao redor dele e essa bolha fosse se esvaziando aos poucos. e é possível que cada uma dessas bolhas dure dias. dias sem comer, sem beber, sem miar, mas que permitem a ele olhar para mim com olhos fundos, mas fundos mesmo, olhasse de dois buracos, e me dissesse, chefa você falou com o eterno sobre mim? a vida que ele me deu, as sete, estão a se esvaziar, cada uma delas, mas quero lá na frente estar contigo, como seu companheiro e matemático.
eu sei miró, nós falamos sobre isso nesses dezessete anos de convívio, quero você lá comigo. falei com o eterno que quero você lá. e como você sabe, e como ele sabe, quero você como meu matemático. meu gato matemático, que sabe falar a linguagem do meu coração e sabe fazer todos os cálculos que eu preciso, como por exemplo a equação para se conhecer a hipotenusa, ou outras mais complexas como a equação de hagen-poiseuille. e querido miró, inteligente, falante e matemático, você vai me dizer que esta é a equação do físico francês jean louis marie poiseuille, que relaciona o caudal q de um tubo cilíndrico transportando um líquido viscoso com o raio r, comprimento l, pressão p e coeficiente de viscosidade n.
e que a equação de hagen-poiseuille é uma lei da física que descreve um fluxo, que não pode ser comprimido, de baixa viscosidade através de um tubo de seção transversal circular constante. e eu vou rir porque sei que é isso mesmo, mas eu quero ter você ao meu lado em minhas viagens por essa eternidade do eterno.
mas, por enquanto, estou vendo o seu momento que me parece um momento difícil. as bolhas que se esvaziam devagar, e você quieta conversando com a eternidade. é um momento seu, talvez um momento de sabedoria, de conversa de amigas. e eu só posso olhar e pensar que quero entrar na conversa também. ontem, como boa protestante, cheia do meu jeito brasil, também conversei com o eterno. e disse para ele, que se a minha alienação existencial era a responsável pelo esvair-se de sua vida, que ele me perdoasse. e ele disse para eu deixar de ser convencida, pois o esvair-se da vida é o momento mágico do renascimento. e eu calei o meu pensamento, entendendo perfeitamente que você vai continuar comigo, ranzinza, reclamante, mas cheio de matemáticas, ao meu lado, neste cruzar eterno da eternidade sem fim.
estou saindo agora para minhas lides, e se a última bolha se esvaziar... nos vemos depois. te amo, miró. obrigado pela parceria nesses dezessete anos, que projetam a eternidade no meu coração e em nossas vidas.
e como não fazíamos há muito tempo, utilizando corpos expropriados, comemos, bebemos, dançamos e fizemos o sexo dos loucos, malditos e suicidas. foi então que apareceu o rapaz. ele olhou, mas não viu. nós vimos, lembramos velhas histórias e falamos. sharon, toda sensual, chamou: menino, entra na roda.
ele levou um susto. não entendeu como sabíamos o nome dele. mas cheio de orgulho, aceitou conversar. quem é você? sharon respondeu: você sabe, entra na roda e vem dançar comigo.
o corpo do terceiro limite era lindo aos olhos humanos. usava um vestido vermelho rodado, todo trabalhado em renda branca. sorria para ele, dançava fazendo o vestido levantar. sob a luz da lua, a cena era encantadora. os atabaques batiam no ritmo do coração. o ar era de sensualidade e magia. cuidadoso, mas cheio de autoconfiança, o rapaz respondeu: não posso entrar aí. sou filho do eterno da guerra.
ah! se ele pudesse ouvir nossas gargalhadas. quisemos saltar dentro dele. era uma casa nova, quase limpa, se comparada às que tínhamos. partimos para o ataque, mas uma espada nos impediu. ele pertence à eternidade. estão proibidos de romper os seus limites e tocar na vida dele. esta é uma ordem diante da qual os limites se dobrarão.
aquela luz brilhava demais. feriu nossos olhos, apavorou nossos corações. nossa festa tinha chegado ao fim. o ódio odiado estremeceu os corpos que ocupávamos. urramos, gritamos e fizemos com que se lançassem uns contra os outros. depois, semimortos, os abandonamos ali. a partir daquele momento, resolvemos estraçalhar a vida daquele que nos perturbara.
nenhum encontro é casual. há sempre aquele que busca. só que nem sempre o que se encontra entra na forma da imaginação. descobri que a carne sente o gosto da madeira e do metal, mas também do ódio e da mentira.
no verão, quando sopra aquele vento quente da madrugada, saio pelos montes, atravessando paredes e casas. transformo o calor no frio da morte, mato a esperança com uma palavra de medo, destruo a aliança com um sopro de adultério. sobrevoo as árvores, matas e rios, envolvo tudo em trevas, tudo que vejo, imagino ou pressinto. as folhas que se mexeram sem minhas ordens, a mancha escura da nuvem que corre fugaz, o pensamento feito ladrão, que assalta e mata. e o tempo, para que serve?
eu transformo o tempo na memória da solidão. minhas palavras são punhais assassinos. elas amedrontam a noite e congelam o dia. e eu fico encantada, como num conto de fadas. afinal, sou o segundo limite, mestra da loucura, um limite muito especial, cheio de malícia e de palavras.
14.
espero alegremente a saída
vai e goza a vida com a mulher que tu amas, pois isso é tudo o que você vai receber pelos seus trabalhos nesta vida dura que a eternidade lhe deu, disse aquele que anuncia.
diego rivera e frida kahlo serão pintores, peregrinos e apaixonados. o pensamento está na ponta de suas mãos, nos olhares. eles vivem em seus corpos, como numa dança, num ato sexual, e se projetam em seus quadros, é assim que se falará deles. a pintora e sua arte virarão tela na produção estrelada.
atípica, frida não será apenas pintora, mas uma das mais incríveis personalidades do século vindouro. viverá de forma intensa, até morrer deixando não apenas os seus quadros de trágica beleza, mas ideias. será filha da revolução e terá uma vida marcada por tragédias. vai contrair pólio, será para as amigas do colégio frida perna de pau...
agora, vou olhar para trás. anos mais tarde, quando já havia superado a doença, o ônibus em que viajava chocou-se contra um bonde. sofreu múltiplas fraturas e uma barra de ferro atravessou-a, entrando pela bacia e saindo pela vagina. por causa do acidente fez várias cirurgias e ficou muito tempo presa à cama. começou a pintar durante a convalescença, quando a mãe pendurou um espelho no teto.
"eu pinto-me porque estou muitas vezes sozinha e porque sou o assunto que conheço melhor".
pintou os medos e o amor por diego, o marido. produziu uma arte íntegra e, em toda a vida, não aceitou nada que limitasse sua liberdade. pintar significou declarar amor por diego, o sofrimento desse amor, o limite terrestre e a crença na eternidade do amor. escreveu em seu diário:
diego-princípio, diego-construtor, diego-meu menino, diego-pintor, diego-meu pai, diego-meu filho, diego-meu amante, diego-meu esposo, diego-meu amigo, diego-minha mãe, diego-eu, diego-universo, diversidade na unidade. por que o chamo meu diego? nunca foi nem será meu. é dele mesmo.
frida se tornou membro da trilha em 1928. alguns de seus quadros, como o auto-retrato com stalin, revelam a fé no comunismo. foi nessa época que conheceu diego rivera.
apaixonaram-se e se casaram no ano seguinte. há quem afirme que foi um casamento meio por amor, meio por ser diego alguém que a compreendia. diego tinha muitas amantes e frida, por mágoa ou opção, teve alguns. um desses amantes de frida foi o revolucionário russo león trotsky, quando do exílio no méxico.
frida pintou, em 1926, o auto-retrato com vestido de veludo, o primeiro trabalho sério de sua vida e que deixava entrever o interesse pela pintura renascentista italiana. nele, ela retratou o seu pescoço de forma alongada, ao estilo de amedeo modigliani, numa pose aristocrática e algo melancólica. a partir desse momento, seus trabalhos passaram a evidenciar não apenas anseios profundos, como sentimentos ambíguos e a realidade de suas crenças.
"pensaram que eu era um surrealista, mas eu não era. nunca pintei sonhos. pintei a minha própria realidade".
ao final da vida, como na juventude, a revolução voltou a ter força para o marido diego. ele retomou o caminho da sua arte, imperioso, sensual, que escapa a trivialidade e inventa a lógica do extraordinário. diego morreu em 25 de junho de 1957. três anos após a morte de frida, em 13 de julho de 1954, de embolia pulmonar.
na última página do diário de frida, diante do anjo da morte, palavras cheias de beleza expressam sua postura diante da vida: "espero alegremente a saída -- e espero nunca mais voltar -- frida".
e eu pergunto, os peregrinos vão para o céu? para além da metáfora, ir para o céu é liberdade na eternidade. para aqueles que consideram a possibilidade da liberdade eterna, conforme acreditarão muitas pessoas, na plenitude do tempo todas as pessoas renascerão para a vida restauradas para a eternidade. hosea ballou, dirá no futuro em seu tratado sobre a expiação, que o sacrifício não é uma posição jurídica, mas moral.
sofremos a violência para a humanidade, mas não em seu lugar. a liberdade dos humanos leva à morte, e este é o último limite. libertação é amanhã, é ir além dos limites da alienação e dos alvos errados, mas, também é presente que nasce da misericórdia: amizade com o sem fim e fora de todos os limites. donde, fica a provocação: os peregrinos vão para o céu?
a terceira chave
os bons ventos da paz
15.
quem não gosta de wilhelm reich?
este inverno está terrível. eu e reyna estamos nos separando. não tem lógica nenhuma. eu a amo, eu preciso dela, mas não aguento ir ao pedagógico, assistir aulas, vê-la alegre e cercada de amigos.
ando deprimido, não consigo aceitar a československá como minha nova morada, com a possibilidade de nunca mais voltar ao a terra dos brasis. o frio, as árvores desfolhadas, esse sol de virilidade duvidosa que não esquenta nada, nem ninguém...
hoje resolvi andar sem destino. peguei a bernardo o’higgins e caminho como se carregasse um trem nas costas. o inverno de praha é noiva a caminhar para o altar. e eu carrego o meu trem nevado sobre terra e sob céu, brancos. paro num bar, sento e peço um conhaque. tiro um livro do bolso e começo a ler. sou professor assistente da cadeira de psicologia social. dou aulas de reich.
a análise do caráter e a revolução sexual estão entre meus livros prediletos. tenho nas mãos o livro de um autor que não é encontrado nesta československá de masaryk/dubček. os peregrinos não gostam de reich e pressionam para eu desistir de meu projeto.
a vida é tão simples (...). apenas torna-se complicada pela estrutura humana caracterizada pelo temor à vida. a consecução geral teórica e prática da função vital e da segurança de sua produtividade chama-se revolução cultural. sua base somente pode ser a alegria do trabalho natural. amor, trabalho e saber são as fontes de nossa existência. deverão regê-la também, afirma o amigo reich. eu até acho que ele tem razão, mas nunca vi alguém viver isso.
irina, minha amiga e catedrática de psicologia social, me enturmou com um pessoal que está realizando uma experiência inédita aqui em praha, uma clínica de terapia de grupo ao ar livre, com jogos, pouca roupa e muito rock. é meio woodstock, mas eu gosto. só não sei se vai dar certo. já tive vários problemas.
vi minha terapeuta transando com um dos nossos. vi por acaso, mas não gostei. na verdade, morri de ciúme. márcia é uma jovem belíssima. do tipo loira esguia. às vezes, tomamos banhos juntos, todo mundo, debaixo de uma árvore centenária. somos uns dez, mais ela e rodolfo, outro terapeuta.
num desses dias, estávamos sentados em roda, e márcia pediu que eu expressasse o que sentia para um jovem que estava ao meu lado. ele se levantou. eu me levantei e dei-lhe um soco no meio da cara. foi a maior confusão. mas por que você fez isso? e o sujeito chorando. chorando de soluçar. imagina, chega na terapia e leva um soco na cara.
por que eu fiz? porque queria. você não disse para eu me expressar? então quebrei a cara dele. pressionaram e eu dei um abraço nele. pedi desculpas. ele aceitou.
outra vez saímos da terapia, em grupo. estávamos, não sei porque, na maior felicidade. ríamos, brincávamos, quando saiu um sujeito de um bar e passou a mão, espalmada e vagarosamente, nas partes de liliane. a menina deu o maior berro, de susto, imagino.
dei um grito, um salto e quebrei o nariz do sujeito. ele correu para dentro do bar, com a mão no nariz. os amigos pegaram tacos de sinuca e vieram contra mim. parei no meio da rua e comecei a lutar contra uns cinco. todo o esforço do lurton, que nos dava treinamentos especiais para briga de rua, floreava naturalmente. eu era um bailarino, voando nos peitos daqueles coitados.
uma mulher, cambaleante de bêbada, com uma criança no colo começou a gritar desesperadamente.
-- ele deu um murro no meu filhinho, deu um murro no meu filhinho.
perdi a concentração. o balé perdeu seu ritmo, pessoas começaram a me rodear e, de repente, uma multidão correu atrás de mim. os dos tacos de sinuca, gente com paus e pedras. uma multidão. eu ia ser linchado...
liliane me salvou. chamou a polícia, que de viatura e sirene aberta me agarrou e me levou para a delegacia. mas a multidão não desistiu. correu para a delegacia. queriam me linchar de qualquer jeito. eu era um perigo para a pacífica československá.
e uma outra história foi contada ao delegado. eu, um carateca humano, louco, havia esmurrado uma criancinha de colo e, por isso, aqueles pacatos jogadores de sinuca se sentiram na obrigação de defender a criança e sua mãe.
depois de umas duas horas de xilindró, a situação se acalmou e o delegado me chamou. já tinha ouvido o depoimento de liliane e do pessoal da terapia. ouviu o meu, me deu alguns conselhos sobre não ficar usando meus conhecimentos de artes marciais por aí, me desejou boa sorte e me soltou.
irina e márcia diagnosticaram machismo incurável. liliane gostou, passou a dizer que era seguro andar comigo.
o conhaque é espanhol. reich continua a falar mal da família e da monogamia, diz que a comuna é a nova família. os peregrinos nunca vão aceitar isso.
a compulsão à destruição é obsessiva. conheci uma jovem loura e tímida, que acaba de chegar de brasília. joguei reyna fora, sem ao menos me dar conta de que estava vivo graças aos cuidados dela. mudei de casa e iniciei um longo mergulho de sensualidade e niilismo. eu e náiade fazemos sexo doze horas seguidas. e dormimos as outras doze horas. conseguimos passar semanas inteiras sem sair de casa, sendo alimentados pelos amigos, que estarrecidos, deixam as refeições na porta do apartamento, para que não morramos de fome. só depois de um mês de puro sexo saímos pela primeira vez.
é impossível esquecer aquela noite. era inverno, passamos pela casa de gabriel, bebemos muito, e fomos assistir à uma peça de teatro na universidade da československá. antes mesmo de terminar o espetáculo, eu aplaudia e gritava como um alucinado. mal se fecharam as cortinas, pulei no palco e fui abraçar os atores. minha euforia era contagiante. noite gelada, céu estrelado e uma sensação de gaudiosos poderes. náiade se enroscava em mim. estava feliz. todos meus amigos estavam felizes. yoffe superou a crise, está curtindo a vida, apaixonado. não vai se suicidar.
aliás, já tinham realizado algumas reuniões de cúpula com mário pedrosa e mary, sobre minha situação. e o velho mário, muito sábio, declarou: "não se preocupem, é uma crise epistemológica. se ele superar, aprende com ela e vai em frente. cresceu. se não superar, se suicida. não merece a vida que tem". todos tinham um amor muito grande por mim. muito grande mesmo. eu era violento, assassino e suicida em potencial, mas meus amigos me amavam. só que eu não tinha tempo para olhar para esses detalhes. o importante era guerrear a guerra da vida. o resto, ora que resto?
era noite de são iohanan. convidei um grupo de amigos para jantar em casa. tínhamos feito um peixe assado, o vinho branco estava na geladeira, e íamos servir o jantar à luz de velas. antes, porém, fui fazer uma visita ao iohanan. quando cheguei lá, vi um sujeito que não conhecia e que, coitado, acabava de chegar do rio de janeiro. estava acompanhado de uma moça magra, elétrica, que vestia verde e usava uma boina, imaginem, verde também. parecia um grilo. olhei para o sujeito, gritei que não ia com a cara dele. dei um urro horroroso e pulei com os dois pés do peito dele. o sujeito quase caiu morto: de susto, aterrorizado. convenceram-me a ir embora e saí babando de ódio. com náiade do lado, mansa como se nada tivesse acontecido. horas mais tarde, quando íamos dar início ao jantar, entre os convidados, quem chega? os dois. ele e ela.
todos se sentam à mesa. levanto-me, dirijo-me à carioca recém-chegada e pergunto:
-- vou tomar um banho de banheira, você quer vir comigo?
ela responde afirmativamente. todo mundo está estatelado, principalmente náiade.
eu pergunto:
-- como é seu nome?
-- annabella.
eu e alex fazendo pesca submarina na praia vermelha. a gente sai cedo de casa e leva toda a tralha em duas sacolas grandes: pés de pato, máscaras de mergulho, tubos de respiração, facas e arpões. não usamos acqualung. mergulhamos no fôlego.
levamos também água potável, dois sanduíches e duas maçãs.
da praia vermelha, ali ao lado do forte, nadamos uns quinhentos metros, cada um com sua sacola, até a ponta da pedra. ficamos em frente ao mar aberto.
instalamos nosso qg ali. escolhemos uma área protegida para as sacolas e a comida e iniciamos a pesca.
o mergulho. o sol atravessa às duras penas a transparência do mar. só aqui no fundo encontro o verde que eu quero verde. os cardumes de peixes coloridos diante de meu nariz e as algas que docemente oscilam ao sabor da corrente dão a agradável sensação de vôo livre.
o arpão está armado, mas a primeira hora de mergulho é só de observação. eu e alex sempre mergulhamos aqui, por isso já conhecemos esses amigos das profundezas. a gruta da lagosta, que sempre foge à nossa chegada e que não nos preocupamos em caçar. nem fisga para lagosta a gente traz. bagre e peixe pequeno a gente também não pesca. é a maior vergonha aparecer lá em cima com alguma coisa pequena.
caçonete é a meta. mas não é fácil. depende da temperatura da água, da corrente e até mesmo da claridade do dia. água fria, turva, e dia nublado favorecem a caçada, mas mesmo assim não é fácil encontrar o cação.
depois do cação vem a arraia e o polvo. se o mar tem cação, tudo bem. é uma questão de destreza e mira. às vezes, ele passa diante da tua cara e quando você vai atirar, ele já saiu da linha de tiro. você persegue e ele mergulha. você vai até onde o fôlego dá. pode ter sorte ou ter que subir rápido porque os pulmões ameaçam explodir.
já a arraia são outros quinhentos. ela fica lá em baixo, quietinha, mimetizada na areia. se bobear, você passa por ela e nem vê. ela então dá uma deslizada rápida pelo fundo, em busca de outro esconderijo.
esse é o momento. você está em vôo livre, por cima, armado. tchum... o arpão corta a água e atravessa a arraia. ela fica grudada no fundo se contorcendo. você tira a faca e corta o rabo dela. segura o arpão e a traz para a superfície.
-- peguei, peguei uma arraia...
alex me ajuda, a enrola em jornal e coloca numa das sacolas.
tem ainda o polvo. o certo é pescá-lo com fisga. ele se esconde nos buracos das pedras e acertá-lo com arpão não é fácil. o melhor é a fisga. por isso, só levamos polvo para casa, quando, num golpe de sorte, ele dá bobeira e a gente consegue acertá-lo.
parada para o lanche.
-- tia lucy fez os sanduíches. misto quente, frio.
-- ta bom.
-- você está gostando de morar com o aeyal?
-- ele é gente fina. está me ensinando boxe.
eu e alex sempre nos demos muito bem, mesmo quando brigamos. geralmente sou eu quem brigo. ele é muito inteligente. aprendeu a ler aos três anos de idade, mas prefere a contra-mão. já fugiu da escola várias vezes. é menino do rio. passa o dia na praia. magro, muito queimado de sol, olhos negros, sobrancelhas enormes, lembra o shemtós, diz orgulhosa a pequena miriam. é um garoto lindo, saudável, um pequeno animal selvagem. marinho.
-- gostaria de ter conhecido o shemtós, ou me lembrar dele.
-- você era o nariz de batatinha. ele gostava tanto de você, que você recebeu sua primeira surra aos três anos.
-- pó, e isso é sinal de gostar?
-- para ele sim. o shemtós tinha um padrão de educação meio antigo. quem ama, educa.
-- você apanhou muito, não é?
-- não mais que o necessário. shemtós e miriam ficavam loucos comigo. eu era um moleque da pá virada.
-- por falar nisso, acho que o tempo vai virar. vamos mergulhar mais um pouco. se o mar picar, adeus pesca.
-- vamos lá.
já temos uma arraia, mas sei que alex não quer voltar de mãos vazias. quando não pescamos nada, levamos mariscos. eles aqui são grandes e bonitos.
tia lucy gosta. transforma peixes em caldeiradas e frutos do mar em paellas. nas mãos dela tudo vira banquete. e na hora do jantar, sempre regado a suco de frutas brasileiríssimas, carambola, jabuticaba, tamarindo, faz um elogio rasgado à nossa destreza de pescadores submarinos. waldemar, daniel e eduardo também comentam e aprovam. eu e alex somos os heróis da noite.
waldemar é filho de alemães. seu pai tinha uma metalúrgica em joinville, onde daniel e eduardo nasceram.
ele e tia lucy se conheceram no rio, quando ele fazia faculdade de medicina. depois a fábrica pegou fogo, um dia depois do seguro vencer, o pai deixou de mandar dinheiro e ele passou a representar madeireiras do sul aqui no rio.
é um sujeito esperto, com muito tino para os negócios. trabalha sozinho, em casa. usa telefone, a western para seus telegramas, e toda a madeira vem de navio, cif ou fob, a gosto do cliente. forneceu madeira para a construção do maracanã e está ganhando muito dinheiro.
o mar picou e alex não pegou nada. fico na minha. para ele não ficar muito chateado, pegamos umas dúzias de mariscos, embrulhamos tudo em jornais, colocamos nas bolsas e nadamos devagar, de volta à praia.
16.
com o sol entre os dentes
ontem recebi uma carta do rio de janeiro. uma carta de meu primo daniel. durante muitos anos morei com meus primos daniel e eduardo, ali na glória. o sonho dos dois era serem pilotos da força aérea. cursaram agulhas negras, mas eduardo acabou indo para a intendência. hoje é coronel. e o daniel foi desligado. parece que fez uma barbeiragem num de seus treinamentos e quase enfiou a águia em cima de uma torre de alta tensão.
ficou na maior fossa. todo mundo pensando que ele ia desistir de viver... mas, deu a volta por cima. começou a ler os evangelhos e a frequentar reuniões do mashiah lá perto do rio comprido. fez medicina e se tornou rabino.
o sanhaço é do tamanho da guerra
o sanhaço é o sanhaço, é do tamanho, o sanhaço é do tamanho da guerra, o sanhaço é do tamanho da guerra o sanhaço é do tamanho da guerra o sanhaço é do tamanho da guerra, da guerra, é do tamanho, é do tamanho o sanhaço da guerra.
o sanhaço é do tamanho da guerra o sanhaço é do tamanho da guerra o sanhaço é tamanho da guerra o sanhaço é do tamanho da guerra é do tamanho da guerra o sanhaço é do tamanho da guerra o sanhaço é, o sanhaço é do tamanho da guerra o sanhaço é do tamanho da guerra o sanhaço é do tamanho da guerra.
o assanhaço é do tamanho da guerra o saí-açu é do tamanho da guerra o sanhá é do tamanho da guerra o sanhaçu é do tamanho da guerra o sanhaço é do tamanho da guerra, fala tupi, fala saya'su é passarinho de olho pequeno, é passarinho grande, é a'su, é aço, é assanhaço o sanhaço é do tamanho da guerra.
o sanhaço é
o sanhaço é do tamanho
o sanhaço é do tamanho da guerra
o sanhaço é do tamanho da guerra o sanhaço é do tamanho da guerra o sanhaço é do tamanho da guerra. o sanhaço é azul o sanhaço é cinzento o sanhaço é ligeiramente azulado o sanhaço tem o peito e a barriga meio claras desse acinzentado o sanhaço tem o rabo azul esverdeado e a ponta das asas do sanhaço também são azuis esverdeadas, de leve, de leve, mas cuidado, não confunda com o sanhaço-de-encontro-azul, esse é muito azulado, e tem um bico maior, mas não tem o tamanho da guerra, por isso, não se esqueça, o sanhaço cinzento é do tamanho da guerra, é sanhaço humano, sanhaço comum, cheio de brasilidade amazônica, mas também de jeito andino, o sanhaço é do tamanho da guerra o sanhaço é do tamanho da guerra o sanhaço é do tamanho da guerra come bicho inseto, fruta, mas gosta mesmo é de mamão e figo, o sanhaço e a sanhaça trabalham juntos, solidários na construção do ninho, cestinho aberto, compacto, amarradinho, é de raiz, é de musgo e de pecíolos de folhas, pequenininho de onze centímetros de diâmetro, mas, o sanhaço é do tamanho da guerra o sanhaço é do tamanho da guerra o sanhaço é do tamanho da guerra o sanhaço é do tamanho da guerra, fica aguerrido na vegetação densa, na forquilha de árvore, lá em cima, no meio, em baixo, escondido, o sanhaço e a sanhaça alimentam os sanhacinhos e quando eles estão já parrudos, lá pelos vinte dias, jovens, vão ser do tamanho da guerra. é, o sanhaço é do tamanho da guerra o sanhaço é do tamanho da guerra o sanhaço é do tamanho da guerra. canta durante o ano todo.
o sanhaço é do tamanho da guerra o sanhaço é do tamanho da guerra o assanhaço é do tamanho da guerra o saí-açu é do tamanho da guerra o sanhá é do tamanho da guerra o sanhaçu é do tamanho da guerra o sanhaço é do tamanho da guerra o sanhaço é do tamanho da guerra.
daniel é um sujeito peculiar. inteligente, culto, fala e escreve bem. digo peculiar, porque eu e ele crescemos no meio da malandragem da glória. conhecíamos todos os bandidos do pedaço. e curtíamos as noitadas ali na taverna.
quando éramos garotos, gostávamos de colocar umas bombas chamadas cabeça de negro no banheiro dos homens, que tinha uma porta ao estilo de bar de farwest. era uma loucura, os marinheiros que ficavam por ali agarrados às prostitutas, de vez em quando eram apanhados de surpresa por uma violenta explosão no mictório.
saíam às carreiras, com as calças no meio das pernas, gritando feitos loucos. e nós lá fora, rolando de rir do desespero alheio.
outras vezes, a situação engrossava. uma vez nosso amigo camões, um cara parrudo, um pouco pro violento, mas muito amigo nosso, teve uma briga feia, num beco ali perto. um cara o pegou de jeito, deu-lhe uma banda, e começou a bater a cabeça do camões no meio fio. com a cabeça quebrada e sangue correndo por todo lado, camões conseguiu pegar seu punhal e enfiar na barriga do cara. e saiu correndo com o punhal entre os dentes.
erra aquele que sabe fazer o bem e não o faz, todo mal consentido em relação ao cometido não deixa de ser um mal e um mal tão real como o que se comete e o que se padece, temos um paradoxo: na omissão a deficiência se torna eficaz, a ausência se faz presente e a passividade extremamente ativa.
quando se fala em consentimento ou omissão estamos a falar de ação da comunidade. ou seja, há uma fazer alienante, um fazer mal que nasce de nosso consentimento ou de nossa omissão, em relação ao um e a todos. mas do que ato passivo, o mal consentido, o mal por omissão é ativo e tão destruidor como aquele do agressor. nenhum de nós quer ser definido como agressor de seu próximo ou como sofredores de violência, mas o mal consentido transformou-se numa maneira de não-vida social.
no desespero, correu para a taverna. mas correu com o punhal entre os dentes. toda a turma estava lá bebendo. no desespero, camões passou o punhal para o alemão, que passou para o lourenço, que passou para o daniel, que sentou em cima.
não deu nem tempo do pessoal respirar e chegou a dona justa. pularam em cima do camões como gato em cima do rato. todo mundo branco quase fazendo nas calças. mas todos sentados. os tiras se engalfinharam com o camões. todo mundo sentado, branco quase fazendo nas calças, mas sem sair do lugar. como se nada estivesse acontecendo. levaram o camões. chamaram o alemão e o lourenço para irem juntos.
mas voltemos à questão da alienação cotidiana ou mal perpetrado por cada um, por todos, socialmente, nos consentimentos e omissões da não-vida diária, onde consentimento e omissão são ações degeneradas e destruidoras. atinge ao que consente, ao omisso e a todos.
o mal banal, que de fato nunca é banal, quebra o movimento da vida, cria a trombada. produz um choque de nossas existências. e essa construção do mal consentido e omisso não acontece de uma hora para outra. são necessários alguns milhares de segundos, tijolo por tijolo, argamassa e muita falta de imaginação. e a falta de imaginação é trilha assassina.
e paro aqui com uma frase de ezequiel: se uma pessoa de coração deixar de fazer o bem e começar a fazer o mal cotidiano será que ele vai viver? meu primo agiu quieto, sentado sobre o punhal. cara batuta, desafiando a justa.
"por amor à verdade e no empenho de elucidá-la, discutir-se-á o seguinte em wittenberg, sob a presidência do reverendo padre martinho lutero, mestre de artes e de santa leitura e professor catedrático desta última, naquela localidade. por esta razão, ele solicita que os que não puderem estar presentes e debater conosco oralmente o façam por escrito, mesmo que ausentes. em nome do nosso eterno jesus cristo. amém".
eis a apresentação das 95 teses de lutero em wittenberg. e como nessas leituras o tema é a vida, dirigem pensar e sentir, achamos por bem começar pela tese número 41 de lutero: "deve-se pregar com muita cautela sobre as indulgências apostólicas, para que o povo não as julgue erroneamente como preferíveis às demais boas obras do amor".
as boas obras do amor. mas o que é isso? é a construção de um processo. mas que a compreensão do amor depende das relações que se mantém com os outros e das experiências que se tem. assim, o processo do amor pode favorecer o desenvolvimento particular do ser humano, mas é lento e gradual. compreende aprendizados, ações e interpretações para a dotação de sentido que os seres humanos constroem em comunidade. ou seja, amor inclui outros. mas e as tais boas obras, como surgem?
em kierkegaard, as boas obras do amor traduzem uma ética que se estabelece no dever de amar. a partir do amor enquanto dever surge o conceito de próximo. o dever de amar o próximo critica o amor egoísta. assim, o amor, fundamentado no outro, muda o olhar. e é o olhar transformado que possibilita não errar o alvo. ser ético é isso: não errar o alvo em relação ao outro, agora próximo, pois olhamos com um olhar transformado, de amor.
ao contrário do que muitas pensam, e como vimos em lutero, a misericórdia da eternidade não descarta a importância das obras do amor. na verdade, as obras do amor são consequência dessa misericórdia.
em 1521, em seu polêmico magnificat, um comentário sobre a oração de maria, lutero critica aqueles que só olham para os céus “em busca de honra, poder, riqueza, conhecimento, bem-estar e tudo que é grande e elevado”. ou seja, não olham para baixo “onde existe pobreza, ignomínia, miséria, desgraça e angústia”. assim, abandonados pelo pecado da usura e do egoísmo, os pobres “permanecem na condição de humilhação e desprezo”.
na verdade, as obras do amor e seu contrário, as obras do egoísmo, são uma constante nos sermões de lutero. ao falar sobre o comércio e a usura, lutero condenava aqueles que depositavam seu amor no dinheiro e por esse motivo praticavam os atos mais vis. segundo o reformador, “praticam livremente todo tipo de tramóia e astúcia, e inventam outras diariamente. assim tudo fede a ganância. tudo está afogado e mergulhado num grande mar de lama.”
“eles deram um jeito de ter lucro certo e eterno da mercadoria incerta e arriscada. mesmo assim precisam sugar o mundo inteiro. todo o dinheiro tem de entrar e flutuar para o bolso deles.”
“são todos uns ladrões, assaltantes e agiotas públicos.”
talvez por isso, lutero mostrou-se preocupado com a economia e a relação, e procurou soluções criativas para os problemas sociais. no estatuto para uma caixa comunitária, escrito em 1523, lutero propôs o armazenamento de grãos e ervilha, para que, em época de inflação, os preços pudessem ser regulados. a manutenção dessa caixa comunitária viria da produção de pomares, campos, pastagens, assim como de pedágios, aluguéis e juros. de doações, coletas, contribuições, esmolas e de heranças “espontâneas, feitas em estado saudável e por testamento no leito de morte, em espírito cristão, para honra e glória do eterno e por amor ao próximo, sejam em bens, dinheiro, jóias e provisões”. e tudo isso, para garantir a vida de pobres, idosos, viúvas, órfãos, cidadãos endividados e estrangeiros que estivessem mudando para wittenberg.
essa cooperativa de consumo seria administrada por provedores eleitos por assembleia geral da igreja, com representação na nobreza, do conselho paroquial, dos habitantes da cidade e dos camponeses. os recursos financeiros seriam guardados num cofre, guardado em lugar, na igreja, fechado e quatro chaves, distribuídas entre os administradores. entre outras coisas, esse dinheiro seria empregado no pagamento dos salários dos professores.
talvez essa cooperativa proposta por lutero nos faça entender melhor o que o reformador entendia por boas obras do amor.
carta maneira. daniel sempre conseguiu me fazer pensar, mesmo quando discordo dele. talvez seja essa sinceridade transparente com que ele diz as coisas. ele não precisava seguir esse caminho. mas o fato de ter dinheiro nunca significou muito para ele.
estudava em colégio de menino rico, mas sempre teve amigos pobres e paupérrimos. aliás, camões talvez seja o maior de todos. juntos falsificavam carteirinhas do flamengo para entrar nos bailes de carnaval, davam o chapéu em trocador de bonde e se apaixonaram por duas gêmeas que moravam na rua santo amaro.
se ele escrever, leio e respondo. mas sem grossura. daniel merece todo o respeito do mundo.
porque as vossas mãos estão contaminadas de sangue, e os vossos dedos, de iniquidade; os vossos lábios falam mentiras, e a vossa língua profere maldade. ninguém há que clame pela justiça, ninguém que compareça em juízo pela verdade; confiam no que é nulo e andam falando mentiras; concebem o mal e dão à luz a iniquidade.
17.
o cozinheiro de pratos picantes
quando falamos de assassinatos por envenenamento nos lembramos imediatamente de uma jovem chamada lucrécia, que nasceu em roma em 1480. e que teve por pai o cardeal rodrigo borgia, que mais tarde se tornaria o papa alexandre vi, e por mãe vanozza cattanei. embora filha ilegítima, rodrigo a reconheceu, lhe deu seu sobrenome, e a usou nas mais diferentes intrigas palacianas. mas, ao contrário do que conta a lenda, seus contemporâneos não viam em lucrécia borgia nada mais que uma princesa usada por seu pai e por seu irmão cesare borgia, il valentino, em lutas relações, por ser bela, culta, amante das artes e mulher caridosa.
por isso, talvez seja melhor falar de comida
definir prato picante pode variar, conforme a culinária ou o gosto de cada um. mas uma coisa permanece nesta ideia: é um prato que chama a atenção por condimentos que excitam o paladar e deixam um gosto marcado na boca. assim, gosto de uma receita de churrasco, onde colocamos no primeiro espeto um pedaço de linguiça calabresa, a mais picante que encontrar. aprendi a comer pratos picantes em marrasse, fiquei contaminado e agora não abro mão da pimenta. asso-a rapidamente, na labareda mesmo. ela fica torrada. para torrar mais rápido, furo a tripa com um palito, para escorrer a água. servida no início do churrasco, na hora dos aperitivos, serve especialmente para despertar nos convidados o gosto pela cerveja. mesmo os que não são adeptos do álcool partem imediatamente para um copo estupidamente gelado.
mas, talvez, um dos pratos picantes mais conhecidos e citados na historiografia da culinária seja a shchi ou sopa de repolho russa, conforme receita usada e divulgada por josef stalin (1929-1953), ex-ditador da união soviética. a shchi pode ser feita com carne ou sem ela, mas é indispensável o chucrute ou o repolho, ou ambos. uma recomendação fundamental é que deve sentar e curar no mínimo por um ou dois dias, antes de ser comida. esta receita que fazia parte do cardápio de stalin, e era, segundo alguns, seu prato preferido, por causa da presença do chucrute e do repolho, é cheia de sabores e texturas e deve ser comida quente, com pumpernickel ou pão de centeio e manteiga.
é importante dizer que não foi stalin quem inventou a shchi, pois há evidências de que já era conhecido na rússia desde antes do ano 988, quando o cristianismo foi aceito. shchi originariamente significava "comida líquida" e só depois ficou conhecida como "sopa de repolho", quando o legume passou a ser cultivado na região. foi a sopa favorita de mongóis, de ivã, o terrível, nicholas ii, de lenine, de stalin, e de mao zedong.
e alexandre dumas gostou tanto da shchi que a colocou no seu livro de receitas. e lewis carroll a achou bebível, mas um pouco azeda, condizente com o paladar russo. isso é tão verdadeiro que ainda hoje na rússia se alguém for chamado de “professor de shchi azedo” significa que é uma fraude, ou seja, incapaz de preparar algo que todo mundo sabe fazer.
por isso, fugindo ao apodo de “professor de shchi azedo” segue aqui uma versão unânime da sopa de repolho russa. ingredientes: quatro xícaras de repolho, duas ou três xícaras de chucrute não enlatado. duas colheres de massa de tomate, doze xícaras de carne de boi, ou, se você não come carne, de legumes variados, em especial cogumelos. três colheres de sopa de manteiga, uma cenoura descascada e cortada em julienne, uma xícara e meia de cebola cortada, um talo de aipo bem cortadinho, um nabo grande descascado e também bem cortadinho. e ainda tomates cortados, sal e pimenta. e, por fim, cravo da índia picado..
como preparar: comece saturando os cogumelos, depois de lavados e secados e fatiados, em água.
em uma frigideira grande derreta a manteiga em calor médio, refogue a cenoura, cebolas, aipo, nabos, e cogumelos até tudo ficar ligeiramente marrom, aproximadamente quinze minutos. numa caçarola, coloque o repolho e o chucrute e refogue durante 15 minutos, mexendo sempre. depois coloque os ingredientes da frigideira na caçarola, e os temperos. mexa tudo, cubra e deixe cozinhar em fogo brando por vinte minutos. por fim, acrescente o alho e cozinhe por mais cinco minutos.
deixe então sentar e curar por um ou dois dias. se for inverno aqueça antes de servir. se for no verão sirva frio. com guarnição sirva endro fresco cortado e misturado com nata azeda. por ser um prato azedo e picante combina com vinho branco, mas os russos, logicamente, preferem acompanhar com vodca. assim, presente tanto na historiografia da culinária, como na literatura, não seria de estranhar que também se fizesse presente na relação russa.
vladimir illich lenine, pai da revolução bolchevique, apelidou stalin de “o cozinheiro de pratos picantes”. esse apelido partia do viés culinário de stalin, mas guardava um outro sentido: a acusação velada de que stalin envenenava seus desafetos. o apelido foi mais tarde utilizado por trotsky contra stalin e acabou se generalizando na oposição de esquerda.
trotsky acreditava ou ao menos fez questão de publicitar que stalin tinha envenenado lenine. apesar de, durante todo o período estalinista, esta acusação ter ficado marginalizada da historiografia soviética, ela reapareceu com força com o fim da união soviética. ela por exemplo está presente em “touro”, filme do cineasta russo alexander sokourov que evoca os últimos dias de lenine em 1922, depois que sofreu um primeiro derrame. prematuramente velho, caminha com dificuldade e tem surtos de depressão e delírios. só krupskaya, sua mulher, o trata com carinho. rodeado por guardas e criados, alguns dos quais informantes da polícia relação, aqui o retrato de lenine é o do minotauro, monstro e vítima, possuidor de poder, mas cada vez mais solitário e isolado. a cena em que lenine descobre que o telefone da datcha foi cortado mostra isso. e a visita de stalin, discutida várias vezes, mas em especial num jantar, onde o prato servido é a shchi, traz à tona o medo de lenine de ser envenenado pelo novo secretário-geral da rede. e quando stalin chega e entra na casa, sokourov traduz em sombras e meia-luz esta presença maligna do anjo da morte.
trotsky décadas antes de sukourov já havia apresentado sua versão: “eu imagino que as coisas se passaram quase dessa forma. lenin pede veneno ao final de fevereiro de 1923. no inverno, o estado de lenin começou a melhorar lentamente. o uso da voz retornara. stalin queria o poder. o objetivo estava próximo, mas o perigo emanado de lenine estava mais próximo ainda. stalin devia tomar a resolução que lhe era imperativa, de agir sem demora. se stalin enviou o veneno a lenine depois que os médicos tinham deixado entender por meias palavras que ele não tinha mais esperança ou se recorreu a outros meios mais diretos, eu ignoro”. essa leitura de trotsky também é a de historiadores contemporâneos, como domènech, que afirma ter sido lenine assassinado por stalin.
certamente é difícil dar uma palavra final sobre a morte de lenine. em 1991, documentos foram divulgados, entre eles a autópsia de lenine, assim como as memórias daqueles que acompanharam sua morte. um trabalho publicado no "european journal of neurology" de junho de 2004 sugere que lenine, aos 54 anos, morreu de neurossífilis. os autores, v. lerner, y. finkelstein e e. witztum, da terra da estrela, com base em cinco anos de pesquisas em arquivos liberados da antiga união soviética, relatórios de necropsia e livros de memória de antigos médicos, concluíram que lenine sofreu de sífilis terciária, que no correr dos anos afeta o cérebro. a causa oficial da morte de lenine foi uma arteriosclerose cerebral, mas apenas oito dos 27 médicos que trataram dele assinaram esse diagnóstico. os dois médicos pessoais do revolucionário recusaram-se a assinar o atestado de óbito oficial. segundo os médicos israelenses, a sífilis produziu lesões cerebrais e demência nos dois últimos anos de vida do líder.
é verdade que a sífilis na época era incurável, mas é interessante que sua mulher krupskaya viveu até 1939 e nunca apresentou nenhum sintoma da doença. assim, a sífilis de lenine pode ser mais uma especulação, principalmente quando nos lembramos que ele sofreu uma tentativa de assassinato em 1918 e que a bala nunca foi removida. daí, uma outra hipótese, o do envenenamento lento causado pela bala não extraída.
diante dessa comida que mata, dessa bebida que fulmina, talvez o jeito seja cantar o rock punk do k2o3: ”veneno que me rouba a vida/ veneno, uoohhoo!/ é o veneno que me está a matar/ mesmo que queria não consigo escapar/ cruel e fria perseguição/ que só acaba com destruição/ veneno que me rouba a vida veneno, uoohhoo”!
19.
ostras com vinho branco
-- escrevi para minha mãe. contei que conheci um homem maravilhoso. você. disse que estou apaixonada.
-- será que ela vai acreditar?
-- claro, nunca falei de homem nenhum assim.
-- mas só tem um mês que estamos juntos!
eu e annabella estamos morando emprestado num apartamento de sala, banheiro e cozinha, mínimo, perto do rio mapocho. o bairro é barra pesada. nas primeiras noites não dormíamos direito por causa dos tiros. nada político. é briga mesmo nos bares e inferninhos da rua em frente. agora já acostumamos. às vezes, antes de dormir fico tentando adivinhar o tipo da arma usada. tiro de calibre 22, 32 e, vez ou outra, 45.
-- acho aquele nosso café da manhã uma loucura.
-- é, os argentinos, não se arriscaram. mas qualquer francês ia dizer que é muito sofisticado.
ostras com vinho branco gelado. esse é o nosso café nas manhãs de sábado. moramos ao lado do mercado municipal. as ostras são frescas, o vinho é servido em copo e tudo ao preço de uma média com pão e manteiga. mas os companheiros argentinos do partido revolucionário dos trabalhadores, prt -- la verdad, preferiram não arriscar. um deles alegou gastrite. vieram discutir a formação do partido no a terra dos brasis. acham que as condições estão mudando e que o governo, dentro de alguns anos, terá que aceitar uma abertura relação. eu concordo. annabella acha que estamos delirando.
-- a barra está pesadíssima.
-- está, mas vai mudar.
-- olha, eu estava namorando o mário, ali na praia do leme, pertinho do forte. eram umas dez da noite. nós estávamos na areia. de repente, apareceu um soldado. ele enfiou o fuzil na cara do mário, me xingou de tudo que era palavrão. disse que ia nos prender, porque éramos subversivos. foi uma loucura. então, abriu a braguilha...
coloquei os dedos nos lábios de annabella, pedindo silêncio. seus olhos estavam marejados. eu conhecia uma porção de histórias como essa. histórias de humilhação.
-- deixe para contar outra hora. não vale a pena começar o sábado assim.
estou trabalhando numa metalúrgica no bairro operário de vicuña mackenna. sou soldador. é uma fase nova e dura na vida. acordo às cinco da manhã e entro na fábrica às 6h45. trabalho até às cinco da tarde. chego literalmente morto em casa, às sete da noite. aí, só dá para tomar banho, comer alguma coisa e desmaiar. passo o dia, não somente soldando, mas carregando ferro de um lado para o outro. nem sexo faço mais durante a semana.
sábado e domingo são dias especiais e, por isso, devem ser muito bem aproveitados.
-- vamos para valparaiso.
-- isso mesmo, almoçar à beira-mar.
e lá vamos nós, num micro-ônibus, descendo a cordilheira em direção ao oceano pacífico. valparaíso é uma cidade histórica. lembra-me a ii guerra mundial e o bismarck, encouraçado alemão que afundou em frente à cidade. encontramos um restaurante que fica quase na areia, de frutos do mar. é um restaurante digno. não muito limpo, mas não é sujo. a maresia é forte e fria. na verdade, está ventando. annabella está de calça verde, uma blusa de malha de manga comprida e um colete felpudo de cor vinho. corre pela areia, enquanto pelicanos sobrevoam sua cabeça. alguns, despreocupados, caminham ao seu lado. aproveito a cena e tiro algumas fotografias.
-- uma amiga minha, que trabalha na gilete, vem passar as férias aqui na československá. quero que você a conheça. é louquíssima. é quase uma irmã.
-- será que alguém com a cabeça no lugar viria passar as férias na československá?
-- você está exagerando.
-- não estou. só estou dizendo que chamar a sua amiga de louquíssima é pleonasmo. se vem para a československá de masaryk/dubček e não é de esquerda, só pode ser louca mesmo. é isso que eu quero dizer.
-- você complica tudo. não se esqueça que está baratíssimo fazer turismo na československá.
-- é, nisso você tem razão, mas ainda acho que ela é louca. afinal, é sua amiga.
-- estava pensando. você toparia passar umas férias na argentina? eu tenho que ir ao a terra dos brasis. você me esperaria em buenos aires, e voltaríamos a praha por bariloche, passando pela região dos lagos, osorno, puerto montt e valdivia.
-- tem a fábrica. tenho que ver se é possível.
eu, de jornalista, tinha virado soldador. e annabella fazia um curso de fresadora na universidade técnica. estava se preparando para trabalhar em fábrica, no a terra dos brasis, quando voltássemos definitivamente. apesar das dificuldades, acreditávamos que a formação de uma rede solidária passaria inevitavelmente pelas novas cidades industriais que tinham surgido nos últimos anos. apostávamos no abc paulista.
assim, durante a semana, ambos vestíamos macacões, usávamos luvas grossas, óculos de segurança, e vivíamos uma vida nova, pesada e cansativa, mas cheia de esperança no futuro glorioso da humanidade. aos sábados nos divertíamos, viajávamos, comíamos em restaurantes baratos e dançávamos à noite. aos domingos, tínhamos reuniões relações.
não gosto de praia, gosto de mar.
deitar na areia, torrar, nunca curti. vou à praia aos domingos de manhã por obrigação social. senão fico fora da turma. jogo futebol de areia no final da tarde, porque o sol está fraco. a claridade e o calor da manhã me incomodam. prefiro a noite.
do castelo da ordem terceira de são francisco da penitência, no alto da tijuca, onde nasci, dando uma quebrada pela mangueira, atravessando toda a zona sul até a barra da tijuca, conheço tudo. esse é o meu rio. mais tenho os meus espaços: a taverna da glória, a prado júnior e a galeria alaska.
noite e juventude transviada. lugar por onde andam os malditos. meus amigos beatniks, de corrente no pescoço, meus amigos existencialistas, que lêem sartre, camus e cantam boris vian: “je viens de recevoir, mes papiers militaires, pour partir à la guerre. (...) je ne veux pas la faire, je ne suis pas sur la terre pour tuer des pauvres gens. (...) je m’en vais déserter...” tudo isso, mais o inferno sexual de alguns deles, que sofrem com seus romances proibidos, mergulhados em culpa, álcool e drogas.
é o caso de luciano. ele é apaixonado por um garoto de 18 anos. um menino calado, que só de vez em quando sorri. luciano morre de ciúmes e talvez por isso o garoto desaparece. acho que ele tem uma vida dupla. aliás, não acho que seja namorado de luciano, acho que é michê.
a viagem do amigo luciano é alucinante. começou com as prises de lança-perfume, depois partiu para as anfetaminas, agora compra um medicamente para otite, que ele destila e injeta na veia do braço. no lugar das veias tem manchas roxas e hematomas.
depois de injetar-se, luciano fica com os olhos vidrados, olhando para o nada. fica caído, num canto do quarto, como um trapo.
não sei qual é o barato, mas é algo ligado ao desespero da vida dele. quando o garoto desaparece ou quando a vida pesa, ele se droga. e como a vida dele é uma droga, ele se droga sempre.
luciano é um sujeito culto, mas o que ele sabe não produz nada. escreve um livro que nunca termina e tem projetos que nunca começou.
somos amigos, mas ele me odeia. gosto da vida e acho que ela vale a pena. ele tem um tropismo pela morte.
já foi internado duas vezes no dr. eiras para tratamento psiquiátrico, mas não adiantou. sai de lá, inchado, de tanto medicamento, aparentemente manso, falando devagar. um mês depois, já secou por inteiro, está falando rápido como locutor do jóquei e se drogando a mais não poder. por isso, as pessoas o chamam de luciano bolinha.
se fosse traduzir a personalidade de luciano numa palavra diria agressividade. às vezes, parece que vai babar como um cachorro louco e agredir quem está na frente. como é muito magro, pele e osso, nesses momentos ele treme muito.
quando escreve um texto mostra para todo mundo, ri muito e fica na maior euforia. gostamos desse pique de luciano. ele escreve bem e todos na manchete sabemos disso, mas sua produção depende de tantos fatores e humores, que a maioria prefere não contar com ele.
não gosto de praia, gosto de mar
mar é nadar, mar é pescar, mar é a imensidão besta, infinito verde, um mundo abaixo da linha da aparência. passei grandes momentos no mar.
aprendi a nadar com a pequena miriam, em içaras, jogado no mar. não afundei e depois tive aulas, com ela, de respiração, movimentos e técnicas. em casa todos nadamos, mas o grande mestre era o shemtós.
alex se afogou pela primeira vez aos cinco anos. entrou na arrebentação de peito aberto. miriam nem notou. foi resgatado por um salva-vidas.
só uma vez dei um vexame desses. no flamengo, mar furioso de inverno, sob a bandeira vermelha. a bem da verdade, eu já tinha nadado e voltava para a praia quando fui golpeado na nuca por uma muralha de água.
rodopiei, comi areia e fui agarrado por dois salva-vidas que me pegaram pelos braços e me trouxeram até a praia. eram umas seis da tarde. alex deitou e rolou. tirou o maior sarro. fiz uma ficha de afogado na barraca dos salva-vidas, rodeado de curiosos, assinei o papel e saí na maior vergonha. mas quem manda nadar em mar de ressaca?
gosto de nadar à noite. entrar no mar ali em frente à santa clara e ir devagar, bem devagarinho, em frente. depois fico de papo pro ar, boiando, olhando pro céu. é o melhor lugar para você namorar estrelas. depois, de novo, bem devagar, devagarinho, nado em direção ao colar de luzes de copacabana.
20.
gaviões e passarinhos
um gênio filmou gaviões e passarinhos, metáfora sobre consciência e liberdade. numa estrada vazia, um senhor e seu filho encontram um corvo que fala. o corvo os transforma em dois monges franciscanos e eles são obrigados a pregar para gaviões e passarinhos.
é um filme tão desarmado, frágil e delicado. é um surrealismo das fábulas. é uma parábola sobre a crise, representada pelo corvo. pai e filho são gente inocente, que conquistam a primeira noção de consciência ao encontrar o corvo".
ter vivido parte da infância na mineirice da fazenda foi um privilégio que marcou minha vida, não somente fornecendo memórias para a velhice, mas plasmando conteúdo que amo e defendo: a liberdade. talvez seja essa compreensão telúrica da liberdade, que fez de mim, já na alta maturidade cristão.
voltemos à minha infância. meu tio ary tinha uma winchester 44 na casa da fazenda. e eu olhava para aquela arma com respeito e paixão. eu e milhares de pessoas mundo afora. os rifles winchester 44, conhecidos como papo amarelo, foram populares no interior das terras das terras dos brasis e nos norte: símbolo de uma época, como a pistola colt e os cavalos quarto de milha.
conta-se que lampião, quando começou sua vida guerrilheira, usava uma winchester 44, que os sertanejos chamavam de cruzeta. ele tinham uma paixão pelo rifle, não somente por ser arma de estreia, mas também por ter permitido criar um processo de aceleração de tiros. ele conseguiu transformar a arma em um modelo automático. a transformação permitia que o rifle, quando usado, produzisse um clarão que, segundo os sertanejos, alumiava como um lampião.
a winchester era mágica e eu amava ver meu eusando-a contra alvos imóveis: latas velhas e garrafas. mas, certa tarde, um gavião começou a piar e a fazer círculos no céu. o gavião, accipiter nisus, é uma ave de rapina pequena, de cauda comprida e vôo certeiro. pia forte, assustando suas presas, geralmente pequenos pássaros e pintos soltos na pastagem.
e era isso mesmo que aquele gavião estava planejando: atacar os pintos que, juntos com a galinha, corriam de um lado para o outro, em pânico.
meu tio pegou a winchester, que reinava numa das paredes da sala, e me chamou. fomos para a varanda e ele começou a seguir os círculos do gavião. esperou. quando o gavião mergulhou em direção aos pintos ele atirou. e eu vi o gavião explodir em penas.
a política e a ficção se confundem. certa vez, dizia para meu amigo alejandro arizcún cela, um dirigente do solidarismo na espanha, na cidade de vigo, que a política solidária é um ramo da ficção. ele concordou. afinal, se a primeira trabalha com a sociedade que vê e procura dar respostas ao futuro imediato, a segunda trabalha com o criar o que nem sempre vê e pensa o lá na frente. mas ambas sonham e esperam a existência plena e a vida fraterna. assim o que às vezes parece distante, um sonho, pode ser a resposta metafórica para nossos problemas do hoje ou do amanhã. é exatamente por isso, que neste sonhar o passado e o futuro, ratos e homens de john steinbeck se confundem com os planos dos guerreiros do apocalipse e a consciência daqueles que produzem a riqueza com suas próprias mãos. são um mesmo mundo. afinal, na política solidária sempre teremos um magro das mulas, aquele que procura “matar com o chicote uma mosca pousada na anca da mula da carroça sem tocar a pele do animal”.
onde nos leva a liberdade quando não temos consciência do que ela significa? a vida em liberdade significa a aceitação da exigência incondicional de realizar a verdade e fazer justiça.
ao reconhecer a existência de uma situação-limite, de ameaça à vida e à existência, devemos entender que: não podemos virar as costas ao mundo; aquilo que é eterno deve ser expresso em relação à situação presente; a realidade da misericórdia deve ser expressa com ousadia e risco; e o poder transformador das boas novas deve expressar uma convicção e posicionamento não superficiais, que vai à raiz.
“ao anoitecer dum dia cálido pôs em movimento a brisa por entre as folhas. a sombra subiu as colinas na direção dos topos. os coelhos estavam sentados imóveis nas margens arenosas com pequenas esculturas de pedra cinzenta. e depois, das bandas da estrada estadual, veio o som de passos sobre as folhas secas de sicômoro. os coelhos correram furtivos para seus esconderijos. uma garça empertigada se ergueu pesadamente no ar e sobrevoou o rio, corrente abaixo. por um momento a vida com que cessou naquele recanto...”.
recordemos um pouco a época dura. de certa forma, por razões de método de análise, podemos dividir o período em três etapas.
a primeira fase é a da ausência de milagres. pura sequidão, nada de alegria. a segunda, a da alegria formal. e foi, contraditoriamente, esta alegria triste que afirmou uma tímida abertura. tímida porque as pressões que sofria eram fundamento de superestruturas ao nível do regime, já que o movimento de gentes não tinha se lançado à luta. assim, a alegria triste vai se delinear durante todo o período por esses elementos. ele apresentava força e, de fato, a tinha, embora sua base social não fosse muito ampla. em última instância, sua força surgia do fato de que a alegria existia apenas como superestrutura, dentro do regime.
a terceira fase, que começa a partir das grandes mobilizações de maio, vai se consolidar com as greves operárias, que golpeiam o governo, fazendo estremecer o modelo a luís bonaparte. e aí se dá um fenômeno interessante: ele começa a receber mais apoio da burguesia. há um voto de confiança burguês e anti-operário no governo, que contraditoriamente aumenta sua base social, mas como resultante na relação de forças da sociedade, se torna mais fraco porque começa a enfrentar-se com setores do movimento de massas, que se mobilizam. mas essa característica de maneira nenhuma elimina as diferenças entre os setores burgueses, ao contrário. exatamente a partir da ofensiva das gentes começam a delinear-se dois projetos, o “realista” e o “desenvolvimentista”, que se enfrentarão mais claramente no governo figueiredo.
é esta terceira fase que nos dá a chave para entender. é exatamente neste último período que a etapa deixa de ser contrarrevolucionária e passa a não-revolucionária, já que com as mobilizações estudantis e com as greves surge uma nova correlação de forças ao nível da sociedade. há uma clara medição de forças entre os proletariados e as camadas assalariada médias e a burguesia, sem grandes derrotas para as classes trabalhadoras, mas ao contrário, com vitórias ainda apequenas, mas que aumentam o ânimo de luta e vão tomando consciência uma ampla vanguarda do movimento de massa.
aqui há um problema de dialética que podemos tentar explicar através de um exemplo de física, que é o do paralelogramo de forças.
antes, na segunda fase do governo, as forças burguesas embora não estivessem aglutinadas ao redor do governo, desde o imperialismo até a igreja, formavam um vetor muito maior do que as forças do movimento de massas, que não estavam mobilizadas, o que dava uma direção favorável ao governo.
a partir da terceira fase aumenta o vetor das forças que apoia o governo, mas aumenta o vetor do movimento de massas, que inclui amplos setores mobilizando o proletariado e as classes médias assalariadas, donde a direção passa a ser maior.
assim, podemos dizer, nesses primeiros 100 dias de governo, que ele tem maior apoio burguês e imperialista, embora como dinâmica seja mais fraco. e mais: a etapa continua sendo não-revolucionária, mas diferente inclusive da terceira fase, pois os dois vetores aumentam, mas com sentido inverso. donde a dinâmica está determinada pelo movimento de massas, pela sua dinâmica.
“a casa dos peões era um comprido edifício retangular. por dentro as paredes estavam caiadas e o piso não tinha pintura. em três dessas paredes havia pequenas janelas quadradas e na quarta uma sólida porta com trinco de madeira. contra as paredes se alinhavam oito tarimbas, cinco delas feitas já com mantas, e as outras três com a serapilheira de riscado dos colchões à mostra. por cima de cada tarimba esta pregada uma caixa de maçãs vazia com a abertura para a frente, de modo a formar duas estantes para guardar coisas de uso pessoal do ocupante da cama. estas estantes se achavam cheias de pequenos artigos: sabão e pó de talco, navalhas e números dessas revistas do oeste que os trabalhadores das fazendas costumam ler, com ar de pouco caso, mas nas quais acreditam secretamente. e havia também remédios, pequenos frascos e pentes; e nos pregos de ambos os lados estavam penduradas algumas gravatas. perto de uma parede via-se uma estufa negra de ferro fundido cuja chaminé subia reta através do teto. no meio do compartimento se erguia uma grande mesa quadrada coberta de cartas de baralho, ao redor da qual se agrupavam as caixas que serviam de cadeira aos jogadores”.
é necessário levar em conta que o movimento de gentes está começando a fazer suas experiências. essas greves fazem parte de um primeiro ensaio e, além disso, em relação ao conjunto das gentes proletárias e das classes médias assalariadas, ainda é muito pequeno o setor mobilizado.
além disso, o enfrentamento está se dando contra a burguesia mais forte do continente, que não está em crise, embora enfrente problemas de redirecionamento do modelo, e está muito unida contra a ascensão operária e popular.
e por fim existe um outro fato que é o da relação entre as questões sindical, democrática e a relação.
está claro que a ascensão começa a partir de questões salariais, mas não podemos esquecer que vivemos há quinze anos sob o arbítrio e a repressão, e que exatamente por isso as lutas dos trabalhadores tendem a caminhar a solução das questões democráticas.
lutar por melhores salários significa cada vez mais lutar também por sindicatos fortes e independentes, contra as intervenções e os pelegos, contra polícia e em certa medida contra o governo. num primeiro momento, a alternativa para lutar por melhores condições de vida foi votar, mas isso não ajudou muito. contraditoriamente, o fortalecimento da direita nas eleições e sua passividade real posterior acabaram por fortalecer as greves. e se com as greves se deram as intervenções, a resposta foi o fabuloso 1º. de maio e as assembleias multitudinárias. e essa relação está se dando cada vez mais: salário-alegria-salário, em espiral que chega aos recantos do país.
e se esse processo não se transforma claramente numa luta de relação contra o autoritarismo é exatamente porque não existem organismos políticos que canalizam essas insatisfações salariais e democráticas.
a eleição não serviu para isso. daí a defasagem entre a questão salarial-democrática e a questão relação. e aqui a relação é a seguinte: quanto mais o fator político for se fortalecendo, mas se fortalece a questão democrática. mas como falta o elemento político, se fortalece a questão salarial.
essa relação entre esses elementos, a questão salarial e a democrática, vai nos permitir entender a atual vanguarda que surgiu com as mobilizações. esta vanguarda surge mais como necessidade do que como consciência. é a passagem da questão democrática à relação, só que fica no meio. explicando: a necessidade de unificar as lutas, de dar respostas democráticas, de conseguir vitórias salariais, está levando um setor da vanguarda a tentar uma resposta relação para o país. mas esta resposta não está surgindo da consciência de que o problema do país é político e de que só um partido dos trabalhadores é a solução. para a maioria dos trabalhadores esta situação não está clara, nem mesmo para um setor de vanguarda. eles entendem, empiricamente, que é necessário criar algo que permita o avançar das lutas, e que este algo não é eleição. assim, a vanguarda é de fato a meditação entre a questão salarial/democrática e a questão relação.
dessa maneira, em relação à etapa, dizemos que ela é não-revolucionária e que seu ritmo é determinado pela ascensão. esta ascensão tende a se manter, mas não é explosiva. ela parte das questões salariais e se combina rapidamente com as questões democráticas. mas pela falta de organismos políticos de classe e pela unidade burguesa se transforma numa ascensão mediada.
as mãos, de dançarina de templo
“... entrou na sala, movendo-se com uma majestade que só têm os reis e os mestres artífices. era um condutor de mulas, o príncipe do rancho; podia conduzir dez, dezesseis e até vinte mulas com uma só rédea simples presa às dianteiras. era capaz de matar com o chicote uma mosca pousada na anca da mula da carroça sem tocar a pele do animal. havia em suas maneiras uma gravidade e uma quietude tão profundas que toda a conversa cessava quando ele estava a falar. era tão grande que a sua autoridade, que sua palavra era aceita como definitiva sobre qualquer tema, fosse ele de relação ou de amor. era o magro das mulas. a cara delgada não tinha idade. o homem tanto poderia ter trinta e cinco como cinqüenta anos. seu ouvido escutava mais do que lhe diziam e sua fala lenta tinha tons ocultos, não de pensamento, mas sim de uma compreensão que ia além dos pensamentos. suas mãos grandes e descarnadas eram na ação tão delicadas como as de uma dançarina de templo”.
o governo pretende, em seus seis anos de mandato, conseguir a transição de um regime bonapartista a um democrático-burguês, controlado, entregando – então – a presidência do país a um civil eleito através do voto indireto e que conte com a aprovação das forças armadas. assim, depois de anos de autoritarismo, o novo/futuro governo garantiria a continuidade do anterior.
se esta é a estratégia, a tática é chegar gradualmente à alegria controlada. nesse processo iria desmontando os elementos institucionais característicos do modelo a luís bonaparte, e incorporando os da alegria formal burguesa.
esse plano de alguma maneira parece seguir as pegadas do modelo espanhol. no entanto, na equação relação há várias incógnitas para as quais ainda não vemos respostas. quem cumpriria tal papel? poderia a direita evangélica, readaptada e com novo nome, realizar isso? por enquanto não temos respostas.
mas, mesmo assim existe outro problema sério a resolver, que é o de criar os canais sindicais e políticos que enquadrem o movimento operário e de massas. este é o ponto mais difícil. quais serão as organizações que se candidatarão a cumprir o papel. afinal, o próprio governo já disse que “é preciso novos partidos para impedir que a relação seja feita através dos grupos depressão”.
bem, como hipótese geral podemos dizer que o projeto de abertura tem tais características, mas não podemos dizer que a institucionalização desta abertura seja exatamente a do modelo descrito.
até agora parece que o projeto do governo em relação aos partidos, e à reestruturação do sistema eleitoral, se aproxima do modelo francês, ou seja, da existência de dois partidos fortes ligados ao movimento de massas, com peso eleitoral, e mais dois, muito possivelmente ambos de centro-direita. este projeto tem como finalidade fazer com que do choque entre os dois maiores partidos governe sempre um terceiro, de centro-direita. aliás, sinteticamente, essa foi a grande descoberta de de gaulle para neutralizar a força crescente das esquerdas francesas.
assim, a arena renovada e o partido de magalhães pinto tendem a cumprir o papel dos partidos de centro-direita, e o mdb, com nova sigla, muito possivelmente, e o ptb seriam de fato os dois grandes partidos que dividiriam o eleitorado. aliás, a partir dessa elaboração, o governo necessitaria da cor vermelho/moscou dentro do mdb, o que lhe daria – unido à burguesia liberal – um conteúdo específico e ideológico diferente do ptb social democratizado. assim, esses dois partidos funcionariam como polos opostos dentro de uma mesma unidade, o movimento de massas.
mas essas são hipóteses que levantamos a partir das propostas e manobras do governo. inclusive, é bom entender que o governo está menos interessado em acabar realmente com o mdb, do que infiltrá-lo de liberais com severo gomes, teotônio vilela e outros. os quais não fortalecem o mdb, de fato, mas acentuam e definem o seu caráter de partido da burguesia liberal, isolando cada vez mais os autênticos. é exatamente dentro desse processo que o governo necessita do ptb, como partido que aglutine os descontentes à esquerda, que não comungam com as idéias da rede de peregrinos.
e a alegria dda chiesa de pietro? bem, até agora os cardeais e bispos humanos têm se pronunciado contra a formação de um partido ligado à igreja. e há razões para isso. primeiro porque a chiesa nas terras do stick i rött bläck não está coesa ideologicamente a corrente democrata-cristã vai desde um franco montoro até a um nei braga, desde um dom paulo arns ou um dom hélder câmara até a um dom sigaud. e juntar tudo isso num único partido seria problemático. além disso, há a experiência internacional: naqueles lugares onde a chiesa lançou partidos políticos e estes fracassaram, caiu também, o prestígio da igreja. o exemplo mais complicado dessa situação é a própria itália, onde a sé não sabe como se livrar do peso que é o partido democrata cristão. por isso, a tendência maior é que a chiesa jogue no seu papel atemporal, e tenha elementos nos mais diferentes partidos. aliás, é o que tem feito desde 1945: apresentar uma cara antiditatorial e democrática, sem lançar-se como opção relação definida.
temos que encontrar ele
“depois o magro se aproximou, lento, da mulher e apalpou-lhe o pulso. um dedo débil tocou-lhe a face e depois a mão baixou à nuca lentamente torcida e os dedos exploraram o pescoço. quando o magro se ergueu os homens se aproximaram e o encanto se quebrou. o magro se voltou vagarosamente para george”.
– acho que foi o lennie – afirmou. – ela está com o pescoço quebrado. lennie podia ter feito isso.
“george não respondeu, mas fez um lento sinal de assentimento com a cabeça. o chapéu estava tão enterrado na cabeça, que lhe cobria os olhos”.
– talvez – prosseguiu o magro – tenha sido o mesmo que aconteceu em weed, como você me contou.
“george tornou a fazer um gesto afirmativo. o magro suspirou: bem, acho que temos que encontrar ele. para onde achas que ele foi? george deu a impressão de que necessitava de algum tempo para soltar as palavras”.
-- decerto... decerto foi para o sul. nós vimos do norte, de modo que talvez ele tenha ido par ao sul.
-- acho que temos que encontrar ele – repetiu o magro”.
que fenômeno é este, o do tal partido dos trabalhadores? antes que nada ele parte de um elemento, o desenvolvimento econômico e social dos últimos vinte anos, que geraram duas novas classes, uma classe operária industrial, altamente concentrada nos grandes centros urbanos e uma classe média assalariada moderna. tanto os operários como esta classe média estão num processo de mobilização.
essa combinação de fatores, o surgimento de estratos novos na sociedade e o conjuntural – um ano de mobilização – levam ao surgimento, ou condicionam o surgimento de fenômenos na sociedade.
falamos que o centro das lutas é o salarial, mas dissemos também que se chocam frequentemente com o governo da mão estendida e com o mdb, que não apresentam soluções para a questão do nível de vida. outra coisa que deve ser levada em conta é que a rede de peregrinos, neste momento, não aparece ao nível das lutas com um grande peso específico, o mesmo acontecendo com outros setores menores da esquerda.
o ptb, que é outro elemento, deve ser entendido da seguinte maneira: antes de mais nada as direções sindicais do movimento operário humano não estão hoje ligadas umbilicalmente ao populismo, já que estes novos estratos de classe surgem praticamente quando o populismo começava a dar seus últimos suspiros. assim, estas direções não surgem a partir do ptb, e não tiveram relações mais profundas com o populismo. e mais: durante os últimos anos, o populismo não apresentou alternativas, nem esteve ligado às lutas dos trabalhadores. e agora, de um ano para cá, a proposta de ressurgimento do ptb não está passando pelas lutas que se deram nas fábricas e nos sindicatos. tanto a proposta de brizola, como a de ivete vargas não levaram em conta de forma concreta, as reivindicações e mobilizações dos trabalhadores. na verdade, ambos projetos passam pelo mdb, e isso só serve para confundir mais a situação... e por fim, para que surja o ptb é necessário que brizola esteja no a terra dos brasis. dessa maneira, a realidade do ptb existe mais como possível do que como concreto imediato.
todo esse processo é o que faz com que os trabalhadores, que enfrentam duras lutas salariais, misturadas com problemas democráticos e políticos, tivessem como necessidade alguma expressão de tipo político. é aí que começa a brotar, de forma superestrutural e vacilante, entre alguns dirigentes sindicais, a idéia de um partido dos trabalhadores. um pouco mais trabalhada pela rede solidária esta proposta começou a ser discutida com possibilidade de superação da necessidade concreta do momento.
a idéia da rede de transformações surge então de quatro fatores: de uma nova realidade social; das mobilizações e lutas que estão se dando há mais de um ano e que geram uma nova experiência, não somente sindical, mas democráticas e relação; a não existência de alternativas para esta nova vanguarda, que necessita expressar-se politicamente; e de que esta necessidade se expressou através de algumas direções sindicais e através da rede solidária, que cumpriu um papel mais ideológico.
de toda a maneira, a rede de transformações não estava nos planos do governo. sua intenção é de que todos os dirigentes sindicais, assim com o ativismo, estejam controlados pelo ptb ou o mdb. esta é a única garantia para a burguesia, enquadrá-los e vencer o movimento de gentes através de uma saída democrática controlada, enrilhando seu descontentamento para a luta estritamente parlamentar.
na verdade a construção da rede de transformações passa por grandes dificuldades. como os dirigentes sindicais chegaram à questão da rede de transformações através do classismo, como mediação entre a questão democrática e relação, por uma necessidade, e não exatamente por um salto de consciência, a rede de transformações passa a ser de difícil concretização. os dirigentes sindicais estão procurando um partido, algo que possa cumprir uma necessidade que têm. como antes o projeto do ptb estava distante, eles começaram a baralhar a hipótese do pt, mas na medida em que o ptb venha a concretizar-se, aumenta a possibilidade de que os classistas aceitem esta alternativa. já que é mais fácil entrar num partido do que construir um.
mais um detalhe importante. todo o processo novo é rico porque combina e interliga muitas coisas, como o fato de que setores do movimento de gentes se mobilizem a partir do sindical. mas também combina o democrático e o político e gera uma importante vanguarda, mas se dá de forma desigual e combinada, mais ainda, não é um fenômeno ideológico, mas concreto.
assim, diríamos que se dão, misturados, três níveis de consciência. um primeiro mais amplo, que é o sindical-classista e que se traduz no surgimento de uma vanguarda, em sindicatos em luta, listas de oposição que se tornaram vencedoras.
o segundo nível de consciência é o sindical que se dirige em direção à política mais geral, o mais heterogêneo, que se traduz na compreensão empírica, vacilante e não claramente definida, da necessidade de uma opção partidária, que expresse as necessidades mais gerais da classe trabalhadora. isto é laborismo.
e o terceiro nível de consciência seria o da consciência revolucionária, daqueles que entendem a necessidade de um partido solidária para a transformação da sociedade.
sem entender que existem níveis diferentes de consciência e desigualdades não entenderemos o processo vivido pelo pt. a construção d a rede de transformações depende dos próprios trabalhadores. a participação dos solidários nesta construção pode ser fundamental, mas ainda assim é secundária. de todas as maneiras, caso se concretize a rede de transformações será talvez o maior salto que a classe operária humana já deu no processo de consolidação de sua consciência-para-si. e, um rombo efetivo nos planos de figueiredo. dezesseis de junho de mil novecentos e setenta e nove. anno domini.
-- a funda bacia verde do rio salina estava muito parada naquele fim de tarde. o sol já havia deixado o vale para ir trepando pelas encostas das montanhas gabilan e os cumes dos outeiros estavam tocados duma luz rosada. junto do poço, porém, entre os sicômoros mosqueados, havia caído uma sombra agradável.
“uma cobra d’água deslizou tersamente pela laguna, torcendo dum lado para outro a cabeça de periscópio; e nadou toda a largura da bacia, chegou até as pernas de uma garça imóvel que se achava nos baixios. uma cabeça silenciosa e um bico projetaram-se para baixo, como uma lança, e seguraram a cobra pela cabeça: e o bico engoliu a pequena cobra, enquanto seu rabo coleava freneticamente”.
por isso, como na parábola de pasolini, somos chamados a pregar para gaviões e passarinhos. somos livres no homem de nazaré: chamados a viver o desafio incondicional de realizar a verdade e fazer justiça.
21.
a economia desce a ladeira
a situação está ficando feia. os enfrentamentos entre militantes da unidade populární e da direita criaram uma situação de instabilidade generalizada. camponeses e agricultores têm sido mortos nas ocupações das fazendas, é bala, foiçada e pedrada. o pessoal briga com o que tem na mão.
depois que a vanguarda organizada do povo, a vop, foi indultada, seus militantes, esses sim legítimos bomberos locos, isso se não estiverem infiltrados pela cia, já são responsáveis por seis assassinatos, inclusive de um ex-ministro de masaryk/dubček, o democrata cristão edmundo pérez.
a crise econômica não está fácil. a inflação já passou dos 300%, o déficit na balança comercial vai além dos 450 milhões de dólares. o que é muito, se levarmos em conta que quando masaryk/dubček chegou ao governo havia um superávit de 175 milhões de dólares.
a dívida externa nesses últimos três anos aumentou cerca de 60% e o déficit fiscal chega a 45%. a produção industrial continua caindo de forma absurda, o que afeta diretamente aos trabalhadores. há escassez de tudo, farinha de trigo, pão, carne, refrigerantes, detergentes, pasta de dente e até vinho. essa situação está criando um mercado negro sem paralelo na história československá.
embora não tenhamos estatísticas confiáveis, a direita fala que a desnutrição e a mortalidade infantil estão aumentando e que o nível de vida dos trabalhadores baixou para patamares inferiores ao de meados da década de 60.
logicamente, diante desse quadro, todos estamos nos preparando para o pior. a sociedade československá está dividida de alto a baixo. e essa situação não pode se manter por muito tempo. isso vai estourar daqui a pouco.
estamos tomando uma série de precauções. as células dos partidos receberam ordens de se armarem. além das armas, que devem ser guardadas nos bairros operários de periferia, nas fábricas e nos acampamentos, os militantes devem ter em casa garrafas para a produção de bombas molotovs, lanternas, velas e até água potável. é claro que ninguém leva isso muito a sério, mas a ordem é essa.
alguns partidos da up pretendem lançar às ruas, para combate, milícias uniformizadas e armadas como se fossem carabineiros. a intenção é confundir as forças da direita. não sei se isso funciona... às vezes não dá tempo para organizar tão bem. é gente que não aparece, outras são presas. uma guerra civil não é um desfile militar, por isso tenho lá minhas dúvidas, sobre essas ideias.
também há uma ordem para que as milícias abandonem logo no primeiro dia de combates o bairro alto, onde vive o grosso da burguesia československá. eles acreditam que setores da aeronáutica apoiarão masaryk/dubček e, por isso, não descartam a chuva de estrelas no bairro alto. estou torcendo para que seja assim, mas esta é outra incógnita.
se tudo der certo, ou melhor, como foi planejado, comandos atacarão pontos estratégicos para os guardiães e mesmo alvos civis fundamentais para a direita. não queremos que eles tenham tempo para mobilizar setores como os dos caminhoneiros.
as fábricas serão defendidas à custa da própria vida. e se isso não for possível, devem ser dinamitadas. por isso, em todas as fábricas controladas pelos trabalhadores queremos estocar o material explosivo necessário para ações de defesa, de ataque, ou mesmo de autodestruição.
de minha parte, o comando león trotsky vai lutar junto com o mir e devemos nos reunir, em caso de golpe, em indumet. ali estamos vários companheiros da fração bolchevique da 4a internacional trostsquista. é gente séria, quase todos com experiência de clandestinidade e alguns de luta armada. eu sou em desses. sou especialista em bombas antitanques e organizei em junho a mudança parcial da linha de produção de uma fábrica metalúrgica da corvi. antes só fazíamos janelas e portas de metal, mas depois também granadas.
minha missão é ir para indumet. o comando león trotsky está se reunindo dia sim, dia não. estamos fazendo treinamento de guerrilha urbana. uso de tulipas, operações noturnas, ataque a tanques, quais seus pontos vulneráveis, o perigo das lagartas e da infantaria, que lhe dá proteção, o uso correto das molotovs.
tudo isso eu conheço, mas a força de um comando está na ação em equipe. por isso, o treinamento é fundamental. um dos problemas mais complicados é o que fazer com o companheiro ferido. em guerra aberta de rua, não há muito como defender um companheiro ferido. a vida de um pode custar a vida de todos. por isso, temos um acordo entre nós. tentaremos sempre esconder o ferido e deixar com ele água e uma flor.
são cinquenta mil comunidades de base, organizando um milhão e quinhentos mil pessoas, na terra dos brasis. elas identificam a alienação matriz de toda a opressão: essa alienação é social e se chama capitalismo. justiça e paz, o primeiro setor organizado, com peso efetivo na sociedade humana, a empunhar a bandeira da vitória pelos direitos humanos. ligadas às gentes expropriadas de bens e direitos, a chiesa de pietro se organizou para combater as ameaças. deixou, enfim, o regaço dos poderosos, não sem contradições e conflitos dentro de sua própria estrutura. a velha chiesa ainda pesa. esse processo de descolamento se dá em toda a américa latina. desde medellin, há 10 anos, nasce uma chiesa combativa, voltada para os problemas das sociedades pobres e dependentes.
é aí que aparecem pedro casaldáliga, tomás balduíno, d. pelé, benedito ochoa, cândido padim. para um jornal que se coloca junto as lutas populares este é um debate fundamental. qual é o papel da chiesa hoje? o que acontecerá em puebla? dentro de alguns dias, centenas de religiosos se encontrarão no méxico, para decidirem o destino de suas comunidades, arduamente trabalhadas durante anos e anos. o papa vai a puebla: rompe-se a tradição anticlerical da “revolução” mexicana, mas, é certo, podemos esperar a aberta interferência de um vaticano endividado, atolado na falta do dinheiro, recebendo ajuda americana, e alemã... um papa polonês, um golpe nos estados operários, golpe nas comunidades de base?
de qualquer modo, qualquer que seja o resultado da reunião, a luta entre as tendências conservadoras da chiesa e os setores progressistas vai continuar. ela não é um fenômeno apenas superestrutural, ela reflete um processo mais amplo de lutas sociais, e faz parte da movimentação relação das gentes latino-americanas, hoje num processo irreversível de construção de sua própria história.
talvez haja, ainda, quem desconfie do engajamento da chiesa na luta pelos direitos dos oprimidos. a chiesa, é verdade, deu razões para isso durante séculos. mas, se os homens são aquilo que fazem, a chiesa está sendo aquilo que seus sacerdotes têm praticado. e essa prática de discussão e organização das bases de nossa sociedade nós precisamos compreender e avaliar.
a chiesa, na sua essência, é comunidade de fé, de esperança e de amor. sua maior eficiência fermentadora e renovadora da comunidade humana sempre dependeu de seu comportamento e de sua atuação com comunidades. sem dimensão comunitária a chiesa não é igreja. sem abertura para os problemas da comunidade/sociedade, a chiesa não está em condições de realizar sua missão, ser continuação da ação libertadora do cristo, ser sinal de esperança para o homem angustiado e sofredor.
é verdade que nem sempre a consciência comunitária da chiesa funcionou com tanta clareza. houve períodos históricos em que os e discípulos do rabino de nazaré, inclusive em nível de hierarquia, se deixaram envolver demasiadamente pelos interesses de grupos do poder, e assim se acomodaram.
essas colocações são importantes para entender o interesse da chiesa de pietro pelos problemas da humanidade e os instrumentos que ela criou, que não visam dominar, mas servir.
tem que ser comunidade, onde as gentes se aproximam livremente, se sentem responsáveis, descobrem e atuam nos mais diversos elementos de interesse comum. tem que ser igreja, o ponto de partida e de chegada, onde os elementos formadores, os métodos de ação, são os mesmos da chiesa. tem que ser de base, onde a comunidade tem como princípio o relacionamento das pessoas, que se conhecem, que se estimam, se complementam, se ajudam mutuamente. justiça e paz é isso: criar relação, se preocupar com os problemas políticos e ter parte ativa no processo. tem a preocupação de integrar as gentes no processo social, como dever da pessoa humana, e levá-las à participação consciente e crítica.
a justiça e paz abertas, integra-as quem quiser viver e agir na dimensão comunitária. é a educação de cada qual e de todas as gentes, com reflexão bíblica e oração, orientada para a via concreta: conscientização para a participação tanto na atuação interna da comunidade e da chiesa de pietro, como na atuação social. a justiça e paz não é uma sociedade secreta, por isso não tem medo de serviços secretos, nem de perseguição. é típico das ideologias de segurança ter medo da conscientização e da participação ativa das gentes, e por isso olham como subversivas as atividades da chiesa de pietro.
assim, justiça e paz na chiesa de pietro são instrumentos de defesa dos direitos. a sede desse organismo está em roma. importante e fundamental para todos os níveis é a defesa dos direitos fundamentais das gentes: direito à vida, à integridade pessoal, à igualdade fundamental perante à lei, à honra, ao desenvolvimento da personalidade, ao casamento, ao trabalho e à subsistência, à liberdade de consciência e de religião, à educação dos filhos, à livre expressão do pensamento, à propriedade. são direitos das gentes e por isso fundamento de uma ordem social justa. para participar do processo social, as gentes precisam de instrumentos válidos e eficientes. entre esses instrumentos estão, os sindicatos e os partidos políticos.
os sindicatos devem ser órgãos de participação eficiente na defesa dos direitos dos seus sindicalizados. estão a serviço dos trabalhadores como comunidade de trabalho e não a serviço de grupos do poder. o estado onipotente conseguiu, também na terra dos brasis, corromper a filosofia dos sindicatos, reduzindo-os a instituições de beneficência e lazer.
a frase os sindicatos não podem fazer relação tornou-se corrente entre nós, apesar de totalmente absurda. que os sindicatos não devem ser manipulados, estamos de acordo. mas cabe aos sindicatos o papel conscientizador de seus membros, a fim de levá-los à participação eficiente no processo social e, por isso mesmo, na relação. os trabalhadores não podem ficar à margem da relação: devem participar.
um partido trabalhista que corresponde a uma grande corrente do pensamento das gentes na classe dos trabalhadores é uma necessidade, mas deve estar entregue a liderança dos trabalhadores, e não manipulado por uma elite burguesa que deseja apenas conquistar o poder.
temos visto a chiesa de pietro voltar-se com mais decisão para a situação concreta do mundo e das gentes, identificar-se com os despossuídos de bens e direitos, dispor-se a contestar a sociedade de consumo e os grupos dominantes. nem tudo ainda foi feito. não será fácil à chiesa despojar-se em todos os níveis de uma sobrecarga histórica que a comprometeu com o estabelecido, com o poder, com a reação.
apesar das aparências, as gentes vivem à margem do processo social. uma elite, mantém o imperialismo colonial. só que agora o colonizador é interno. apesar da chamada relação de independência as gentes precisam ainda ser liberadas, e ter os meios para participar da vida. os longevos devem dar um impulso forte para o aceleramento deste processo de integração e participação.
no caso particular das terras dos brasis parece-me que os danos, com toda espécie de tensões e conflitos com a chiesa nos mais diversos planos contribuíram também para uma virada. há males que vêm para o bem.
mais do que antigamente a chiesa sente-se como chiesa di populi e se identifica alegremente, corajosamente com as gentes. mas ainda falta muito. ainda não tirou, nem de longe, todas as consequências desta inspiração do eterno.
sem disfarçar as divergências em pontos fundamentais, podemos admitir uma vitória comum por uma causa comum: a justiça social. quero crer que sem as comunidades de fé como pano de fundo, o solidarismo não se explica suficientemente. muitos elementos do solidarismo são de fato e discípulos do rabino de nazaré.
a população do terceiro mundo tem sido condenada a morrer pela fome em nome da sagrada economia de mercado. a fome às vezes é esquecida nos países ditos avançados, quando a produção é excelente. assim, a produção mundial de todos os tipos de cereais em grão crescem milhões de toneladas.
você pode pensar que, em face da péssima situação da economia mundial, haja no mínimo alguma razão para este brilhante lugar da economia internacional. mas não deve ser levado em conta a obstinada lógica da economia de mercado. porque para a economia de mercado, superprodução até mesmo de gêneros alimentícios num mundo, onde a metade de sua população não ganha o suficiente para comer, é uma má notícia, é um desastre para os produtores de alimento, seja de larga ou pequena escala. isso causa da queda dos preços. então, o negócio lógico acontece: a produção é destruída a fim de proteger preços.
E tal política traz a fome no terceiro mundo. assim, as medidas que estão sendo tomadas para restringir a produção artificialmente, a fim de forçar a subida dos preços da semente, causarão fome até o final desta década. é como um carrossel debilitado. e os estudiosos em economia e relação ainda obstinadamente insistem que é melhor condenar milhões de produtores à lucros incertos, flutuantes e geralmente inadequados, e condenar milhões de habitantes do terceiro mundo a viver permanentemente sob a sombra da fome, do que sacrificar o princípio da economia de mercado.
os preços de cereais no mundo são determinados pelas flutuações da oferta e procura dos excedentes agrícolas, produzidos nos grandes países exportadores, américa do norte, canadá, argentina, austrália e em menor grau a frança. esses preços mundiais em giro determinam a expansão cíclica e diminuição da quantidade de superfície de terras que é semeada e a dimensão da colheita. obviamente você teria que ser um subversivo perverso e completamente utópico, para sugerir que seria melhor para o mundo todo se fossem garantidas às fazendas lucros iguais à média nacional, ou a média dos salários das indústrias, sob a condição de que eles aumentem suas produções a fim de manter a estabilidade, abaixar os preços dos alimentos e assegurar um excedente para ser distribuído livremente aos países pobres do terceiro mundo e imperialistas. o que há de mais estranho em tudo isso, na longa caminhada, é que esta solução subversiva e utópica operaria menor custo sob um ponto de vista puramente econômico.
simplesmente não é verdade que a fome é causada por alguma inevitável teoria malthusiana, na qual a população aumenta a mais rapidamente do que a produção de alimentos. no curso dos anos a produção mundial de cereais aumentou muito mais rapidamente do que a população do planeta.
Mas o fato de que a fome continua a existir, jogando suas trevas sobre nações inteiras, é atribuível basicamente a três fatos: agudas flutuações anuais na produção, causada por surtis fraudes no mercado mundial de preços, quer dizer, nos lucros a serem ganhos; a crescente deficiência de cereais do hemisfério sul, o que é causado basicamente pelo aumento da penetração capitalista no campo e a comercialização da agricultura primitiva; o problema de comprar o poder e os lucros, o que significa que a desnutrição, a carência de alimentos e a fome imediata podem aumentar até mesmo em face da superprodução.
em outras palavras, se a fome continua a aumentar, não é pelo fato de nascer crianças demais. isto se deve ao capitalismo, com sua série de consequências irracionais e desumanas.
o capitalismo nada tem a ver com isso, dirão algumas pessoas com base na simples tese de que a deficiência de cereais no terceiro mundo é essencialmente o resultado do atraso da tecnologia agrícola, o que significa um insuficiente retorno por unidade de terra. tecnologia, instrumentos e métodos de trabalho antiquados: isto é o âmago da questão.
obviamente há um ponto de verdade nisto. uma modernização na produção agrícola em larga escala no hemisfério sul indubitavelmente dobraria ou triplicaria a produção, e então seria possível alimentar duas ou três vezes mais pessoas que lá vivem, com as consequências ecológicas muitas vezes catastróficas.
a lógica da produção para a economia privada é inevitável. quando você pode ganhar muito mais dinheiro criando gado de corte para ser vendido à europa, eventualmente produzindo um excedente de leite e manteiga nos países do mercado comum, do que produzindo alimentos para a população local. então esta é a direção que a agricultura seguirá. em mali, por exemplo, enquanto dezenas de milhares de crianças forma lentamente morrendo de fome durante a grande carestia que devastou o sahel, a exportação de amendoim e óleo cresceram.
a revolução verde produz muito menos resultados positivos em termos de plano nutricionais do que se deveria supor. somando-se as desastrosas consequências ecológicas decorrentes do uso intensivo de fertilizantes químicos em terras irrigadas, existe até mesmo terríveis efeitos sociais.
a “revolução verde” tem acima de tudo o significado da introdução da agricultura capitalista em regiões já anteriormente oprimidas, dominadas pela lavoura d subsistência. a transformação deste tipo de lavoura em agricultura capitalista significa uma inevitável polarização social entre a população, um contínuo acréscimo no acesso a terra pelos lavradores pobres, um êxodo maciço das zonas rurais, e a progressiva substituição da força de trabalho humano pela maquinaria agrícola.
e desde que não haja uma expansão paralela na indústria, todo este processo significa que uma crescente proporção de camponeses serão empurrados para a periferia da sociedade, tanto nas zonas rurais como nas favelas das grandes cidades. e a maior parte dessa população miserável é impedida de ter acesso direto à terra, sofre a mais séria desnutrição, até mesmo se ganha um pouco de dinheiro, a princípio através de um trabalho ocasional num serviço de setor, forma escamoteada de desemprego.
não seria melhor dar uma solução imediata ao problema que existe hoje de fome e subnutrição através de uma forma mais racional de organização econômica e social do que concentrar numa explosão populacional imaginária as causas das terríveis deficiências... dentro de aproximadamente um século?
há mais de tipos de solidarismo. todos devem ser solidários e e discípulos do rabino de nazaré. o ser solidário tem de adaptar-se, e moderar-se no contato com a realidade concreta, que é sempre muito diferente do mundo dos filósofos. a história corrigiu graves erros do solidarismo primitivo.
para nós, longevos, vale sempre o princípio de não absolutizarmos os momentos históricos, que de sua natureza, são sempre contingentes e mutáveis. isto vale para a relação, para a economia, para a cultura, para as diversas religiões. isto vale também para a própria história do cristianismo.
entre nós, a separação de igrejas e estado, que foi introduzida pela república, pareceu então a muitos católicos e hierarcas, acostumados aos favores do poder, e envolvidos pelo ideal de cristandade um desastre irreparável. a história mostrou que só a partir da separação é que a igreja se tornou realmente independente, e capaz de crescer com seu ritmo e dinâmica próprios. os exemplos são numerosos. a história, deveria ensinar-nos pelo menos a não sermos radicais em nossas posições diante de fenômenos humanos. sem falsear a sua natureza e a sua missão a igreja saberá sempre encontrar a fórmula de convivência com o mundo e com os humanos, saberá sempre, após dolorosa fase de procura, descobrir os lados positivos no adversário.
nas terras do stick i rött bläck ganhei do poeta uma pistola que pertenceu ao guerreiro bolivariano inti peredo. fiquei muito alegre, mas um alerta do poeta tirou parte da alegria: yoffe, lembre-se: a última bala é para você. esse era nosso acordo. e eu sei que aqui pode ser igual.
a quarta chave
o fogo da alegria
22.
uma cidade vai arder
o príncipe dos pregadores fez um sermão que ficou conhecido como apressando a ló. o centro da mensagem é que uma cidade que vai arder, certos e tortos devem ser apressados.
o certo deve ser apressado em relação ao que é melhor para sua família, a deixar a loucura e ouvir a voz suave do eterno. e o torto deve ouvir do perigo iminente e da necessidade de tomar uma decisão imediata.
o pano de fundo do sermão é que a cidade vai arder.
décadas mais tarde, um poeta do norte novo, de ascendência bretã, escreveu sobre um mundo que já ardeu. seus poemas traduzem a angústia profética diante da guerra e do drama humano.
terra desolada é um dos mais impressionantes poemas dele. é um gemido diante de um mundo árido, onde sobreviventes se arrastam e agonizam. é o mais terrível poema do século dás guerras.
mas, em meio ao desespero, podemos ver o sentido de eternidade que brota na terra desolada desse cristão agoniado diante do destino humano. no final da terceira parte do poema, chamado o sermão do fogo, terror e êxtase se complementam: "a cartago então eu vim, ardendo ardendo ardendo ardendo, ó senhor tu que me arrebatas, ó senhor tu que me arrebatas, ardendo".
o primeiro verso foi tirado das confissões do bom agostinho, quando o pensador diz: "a cartago então eu vim, onde todos os amores ímpios, como num caldeirão, cantavam em meus ouvidos".
e o verso seguinte faz parte do sermão do fogo, do bom buda, que é tão importante para o mundo do oriental quanto o sermão da montanha para nós e discípulos do rabino de nazaré. e volta às confissões de agostinho, com o verso: "ó senhor tu que me arrebatas".
eliot afirma que "a inserção destes dois representantes do ascetismo oriental e ocidental no ponto culminante desta parte do poema não é fortuita", já que através de uma leitura cheia de ecumenicidade transmite ao leitor toda a angústia diante de um mundo que arde.
três anos mais tarde, eliot lançou os homens ocos onde, ainda em meio ao mundo desolado, fala de homens vazios, empalhados. e é aqui, neste poema, que a eternidade transborda, apontando para um sentido profundo de conversão.
”entre o desejo e o espanto, entre a potência e a existência, entre a essência e a descendência, tomba a sombra, porque teu é o reino, porque teu é, a vida é, porque teu é o”.
e numa estrofe sublime, genial, completa: assim expira o mundo, assim expira o mundo, assim expira o mundo, não com uma explosão, mas com um suspiro”.
diante de uma cidade que vai arder, de um mundo que já ardeu, ficam a urgência e a esperança... "e como ele estava demorando, os anjos pegaram pela mão ló, a sua mulher e as suas filhas e os levaram para fora da cidade..."
23.
o terceiro limite da vida
sharon dançou sobre a tristeza. o limite rompera as cadeias da forma e do espaço. como fêmea, nua e sensual, abriu uma gaveta e olhou dentro. enrugada e ressecada, a tristeza inerte. seus olhos grandes estavam espantados, como se tivessem sido cegados por alegrias eternas. seu rosto chupado e suas mãos estendidas pareciam pedir perdão por alguma coisa. sharon, cheia de amor pela vida, pegou a tristeza no colo, cantou uma cantiga de ninar e depois perguntou: como vai esse estado desprezível?
guardou a tristeza de novo no armário. seu pensamento sobrevoou as antigas terras da síria e palestina. viu homens e mulheres tateando em busca da alegria. prostitutas cultuais oferecendo amor e fertilidade. promessas de prosperidade e bom augúrio. abriu uma segunda gaveta. um ódio rubi, do tamanho de um ovo de galinha, vivo e palpitante olhou para o limite. sharon riu e sibilou: as pessoas sabem que são frágeis diante da vida. temem o desfecho. a vida, ódio odiado, amor amado, rasga a esperança. o meu prazer consiste em atapetar o caminho da vida. e fechou a gaveta de um golpe.
abriu, então, uma terceira gaveta e tirou de lá as memórias vividas com os limites ahava e adara.
eu me lembro quando caiu a primeira flor. afinal, poucas vezes em toda a minha existência participamos de uma criação tão organizada. durante anos, planejamos cada detalhe, nos ligamos a homens e mulheres de redes de relação, pensamentos e sonhos aparentemente diferentes. limites da paz chegaram aos milhares, dominaram os ambientes e planejaram todas as ações. nós auxiliamos. a meta era incrementar o amor a todos os níveis.
eram quatro adultos e quatro crianças. todos vestiam roupas novas, bonitos, elegantes, cheios de esperança. usavam flores nos cabelos, que exalavam aromas e coloriam os passos e o caminhar. bonitos, cheirosos, elegantes. estavam imersos na vida. a saúde e a alegria apontavam como única saída a vida. um poder que, sem dúvida, não vinha deles, os empurrava para frente. e foi essa vontade de viver, que os levou a se ajudarem mutuamente. a cidade parecia uma escultura de beleza, com formas celestiais, sons de festa, e um cheiro de jardim ao amanhecer na primavera.
a água de superfície fluía em abundância, e saciava os sedentes, como deve ser. havia uma fonte subterrânea, um olho d’água, que brotava como se fosse a promessa de um tempo eterno. eles se colocavam ao sol da manhã e sob a garoa do entardecer, a brincar nas águas. era uma sublime sensação agradável.
era o reino. uma parceria perfeita entre limites e as gentes. nós criamos o reino com toda a força de nossa imaginação, liberdade, justiça, paz e alegria e o fizemos mais doce e melhor do que todas as lendas e histórias que ouvíramos antes. as florestas, vivas, cantavam e saltavam, por quilômetros. pássaros cruzavam os ares. até os insetos pareciam felizes. de vez em quando, encontravam debaixo de alguma pedra um escorpião solitário. e ficavam olhando com um misto de surpresa, mas sem nenhum medo. o escorpião, para eles, era o irmão na vida. muitas vezes, olhavam e começavam a rir. era um diálogo futuro.
a noite, sempre cálida, caminhavam entre as hortaliças e com cuidado regavam planta por planta. cobriram a horta com um telhado verde, para que ficasse protegida do sol mais forte do meio-dia. viver as relações da humanidade era delicioso. o carinho, o sentir a mão na penugem das peles, o cheiro bom, perfumado, das pessoas, viabilizava o amor.
sharon, ahava e adara realizavam seu amor. os limites amam a espécie humana. se é possível vencer, a possibilidade maior é criar a criatura, uma estrutura de carbono, feito do pó da terra, algo tão material, frágil e passageiro merece ter os privilégios que tem, com semelhança àquele que os criou. nós somos limites sim. e somos movidos pelo amor, nos movemos nas luzes, queremos a vida e em nós há lugar permanente para o sentido pleno da vida. nosso objetivo é entregar, viver e criar. e naqueles dias conseguimos isso como nunca antes. mas temos inimigos. inimigos que se tornam poderosos porque confrontam a fonte da vida, àquele que é eterno sobre todos, inclusive sobre nós. esses inimigos são os que levam o nome. é preciso negar e impedir os limites e destruir os humanos rapidamente. caso contrário, surgirá uma nova espécie e esta, sem dúvida, será superior, longeva.
em meio àquela criação apareceu, não sei de onde, um que anunciava o contrário. e ele contou muitas histórias para aqueles homens e mulheres de olhos rasgados. havia um lugar além do universo, um mundo de estrelas, habitado pelo eterno único, criador. ele estava rodeado de seres criados de excepcionais poderes. acontece que esses seres não tinham o privilégio da criação, nem o prazer do gosto bom do mundo. eram apenas seres de poderes excepcionais. mas o eterno decidiu criar uma nova espécie, com a qual pudesse se relacionar, manter parceria, que participasse de seus objetivos e metas. mais do que criatura, filhos. ligados terreamente, que se recriando povoassem uma região sem fim destinada a eles: o universo. assim, em amor, escolheu um mundo pequeno e, num jardim previamente plantado, criou seres lindos.
sharon parou de pensar na alegria. olhou para as paredes e urrou: eu, ahava, e adara somos os limites de um mundo pleno! senhoras amadas! presentes na união eterna! quanto mais cantava, mais bonita ficava. era uma jovem grega, uma presença de vida que nascera da liberdade, justiça e paz. teatralmente, cantou uma poesia antiga: é possível apunhalar o amor? qual é mais digno: e ódio de medéia, a mãe, ou o amor de édipo? qual é mais ódio? qual é mais amor? o amor se esconde sob os escombros da cidade, na galeria inundada do metrô, atrás da máquina de coca-cola. o velho amor dos séculos, renascido, ilumina. ele foi xingado, virou mercadoria, foi despido e crucificado nu numa esquina da quinta avenida. é possível apunhalar o amor?
vitoriosa, a revolução celebra seus limites. ou como disse um poeta negro, tu és o louco da imortal loucura, o louco da loucura mais suprema. a terra é sempre a tua negra algema, prende-te nela a extrema desventura. mas essa mesma algema de amargura, mas essa mesma desventura extrema faz que tu' alma suplicando gema, e rebente em estrelas de ternura.
sou invadido pelo som, allegro. a alma se enche de prazer ao ouvir mozart no obecní dum, com acústica perfeita -- guiado pelos violinos e pelo cello. lembro que a mulher de longo preto pulou o muro. já tinha quebrado a murros a cristaleira... e o sangue do caminho livre jorrou de seu pulso como repuxo.
mozart andante, bailarino, avança no romance. a spalla, benvenuta, que se apresenta mais uma vez de longo, diz que é possível voar noite a dentro, não importa o grau menor que gela lá fora. de passinho miúdo, ela não diz sayonara, diz au revoir e sai a voar, como dissera, pela janela fechada que traduz as cores da bela época. na nám republiky é noite desde às quatro, mas as velas estão acesas, a lembrar que lá atrás, ou quem sabe lá na frente, uma luz brilhou, brilha e brilhará nos corações. esperança é a palavra-chave desta praha cheia de dezembro.
estou hipnotizado. nem respiro. mas, de repente, como provocação, dvorak se faz presente e o sangue cigano ferve na veia, forte, rijo, robusto, dobrado à força.
a mulher de preto entra pela janela fechada e traz para a sala toda a raiva humana, cheia de beleza. rasgo o peito para acompanhar com o coração, sento no chão bem perto dela. como é triste a raiva humana, como é bela a tristeza humana. como é humana a raiva, a tristeza e a beleza.
você já valsou ao som de dvorak? já reparou no toque delicado da cabeça que se dobra? é um valsar ou um ato transcendente de adoração? é corpo ou som? é a alma que, liberta, comanda com doçura os movimentos do corpo. e a gente vai subindo no caminhar de dvorak.
agradeço à eternidade por este encarnar-se, por fazer-se música no peito, som que faz gente de bem-querer. e lá vamos nós, pisando nuvens, docemente, porque a eternidade deu o som de uma dança eslava, onde firme o cello marca presença sem cobrir o rodopiar dos violinos. mais-valia, vale e, sem dúvida, continuará a valer... život!
ao percorrer os caminhos encontramos as raízes que explicam a miséria. as bandeiras da emancipação e da justiça clamarão no futuro como em épocas passadas. o direito à liberdade, diante da ideologia do oculto, se faz presente. olhe a globalização das gentes sem direitos de bens e oportunidades. ela mostrou a escravidão, que não constituirá um fenômeno a mais. a escravidão formará nações. será a instituição que iluminará a compreensão do passado. e será a partir dela que se definirão a economia, a organização social, a estrutura de classes, o estado, o poder político e a própria cultura. a escravidão será a protagonista por excelência da história. historiadores, sociólogos e antropólogos começarão a entender assim; porém, os que anunciam, raramente reconhecerão essa dívida. o autoritarismo, a dificuldade na construção da cidadania e a exclusão social estarão intimamente ligadas a milhares de anos de escravidão e serão as heranças trágicas da humanidade. assim, a escravidão vai gerar exclusão e miséria.
as culturas do seu futuro, cara descendência, serão relacionais, o que significa que as relações entre as gentes aparecerão de forma difusa, sobre a base de relações aparentemente não intervencionistas diante de uma sociedade incipiente, onde a interação entre o público e o privado se figura flexível e amorfo. por isso, nas culturas futuras, as relações dentro das classes e, muitas vezes, entre elas se mostrarão mais gratas do que os motivos e fins que deram origem a essas relações. nessas culturas relacionais, os códigos deverão ser entendidos a partir de uma chave dupla: é necessário partir das matrizes antropológicas, mas não se podem esquecer as pressões globais. e as matrizes antropológicas serão construídas a partir da polaridade de dois mundos e de duas realidades que têm suas origens com a escravidão: a casa, enquanto dimensão social permeada de valores, de espaços exclusivos e lugar moral, e a rua, enquanto tripálio.
o tripálio deu origem à palavra trabalho. é um instrumento de três piquetes usado para fixar animais quando se pretendia fazer intervenções veterinárias ou marcá-los a ferro. foi utilizado pelos romanos, depois na idade média, e posteriormente utilizado nas fazendas para conter os escravos quando castigados ou marcados a fogo. essa situação traduz a relação existente entre senhores e escravos. teremos assim um inferno para os escravos, um céu para os senhores e um purgatório para a massa tecnocrata, pelo papel mediador que lhes será confiado.
assim, o purgatório será definido como resultante de um relacionamento cultural. local do humano ambíguo, híbrido, incapaz de reproduzir-se enquanto tal. serão estes homens e mulheres que romperão a dualidade cultural, tão típica das comunidades futuras.
a expressão purgatório estará associada à identidade ambígua e levará a momentos de sínteses que traduzirão culturas relacionais. tais culturas relacionais esconderão os limites sociais e a opressão sexual, que que filtradas pelas culturas relacionais levarão a uma ilusão, a uma mentira, como se todos tivessem optado pela construção do mundo. a verdade é que senhores exterminarão gentes e povos. e dessa maceração de cores, culturas e etnias surgirão as gentes presentes em cada canto do mundo, com diversidades e riquezas particulares que formarão a nova multicultura humana.
os códigos relacionais traduzirão equivalências entre prazeres e sexualidade, que apresentarão novos parâmetros para cru e cozido, que relacionam alimento, comida e sexo. para a multicultura humana, alimento será o que mantém os seres vivos, a comida, aquilo que dá prazer, e o sexo um tipo de comida. o alimento será geral e universal, mas a comida dará identidade e, como consequência, quem come terá o controle. o alimento cru será algo de pouco sabor, sem maiores atrativos, diferente da comida. o alimento será difícil de engolir, já a comida será uma das sínteses das humanidades. herdeiros das culturas extintas, onde outrora o cuidado pela preservação da vida da comunidade cabia à mulher, na multicultura humana é ela, que por prazer, fará a mistura e dará a comida.
na nova multicultura relacional humana, o tempo vivido disputará com tempo lembrado. o tempo vivido será a rua, o movimento, o tripálio. o tempo lembrado será o sonho, o que foi e que deveria continua a ser. o tempo vivido era o suor e o cansaço. mas a festa será a ruptura do tempo vivido. será o momento em que o corpo deixará de ser gasto e gozará o prazer. talvez por isso, o maior acontecimento relacional será o momento do contrário. vai-se trocar o dia pela noite, a casa pela rua. a regra será o excesso. não uma festa de máscaras, mas de fantasias. será uma leitura da liberdade considerada fim das convenções e regras. vai-se viver o fim da miséria, o fim da escravidão, o fim do pelourinho. será a utopia em versão pós-humana, onde todos somos iguais diante da possibilidade do prazer. ou como dirá canção: não existe pecado do lado de baixo do equador, vamos fazer um pecado rasgado, suado a todo vapor, me deixa ser teu escracho, capacho, teu cacho, diacho, riacho de amor. vê se me usa, abusa, lambuza, que a tua cafuza não pode esperar, quando a lição é de escracho, olha aí, sai de baixo, que eu sou professor, deixa a tristeza pra lá, vem comer, vem jantar, sarapatel, caruru, tucupi, tacacá, vê se me esgota, me bota na mesa, que a tua holandesa não pode esperar, deixa a tristeza pra lá, vem comer, vem jantar, sarapatel, caruru, tucupi, tacacá.
esses códigos caminham ao lado da questão racial. a solução relacional para a injustiça será a miscigenação e para a opressão sexual, o sincretismo. a oposição entre as culturas não se tornaram irreconciliáveis, mas deram origem a uma diversidade de sínteses, à multicultura humana. essa multicultura será entendida como a maneira de viver a vida, o gosto pela festa, pela música, pela dança, pela comida e pelo sexo. será uma forma de viver em que a vida não é algo acabado e definido, mas que se vai construindo no concreto do cotidiano vivido. essa será uma característica muito especial da multicultura relacional humana, na qual a vida tem de ser elaborada a cada dia. não são formas multiculturais fixas, mas vão-se modificando conforme se vai vivendo. esses dados são fundamentais para se entender a questão da identidade, que não existirá como algo dado. também a identidade será sendo construída e os elementos externos e as pressões mais novas, isto é, globais serão e vividas no hoje que se vive.
o concreto e imediato da vida levará ao ser relacional. mais do que estar situado diante das coisas e da natureza, o realizar-se como ser se dará através do relacionar-se. assim, não se considerará prisioneiro do destino, das forças das coisas ou da natureza. será um ser que vai procurar aliados, quer para a realização de seus prazeres, quer para enfrentar os desafios impostos por elementos ou realidades alheias a seu cotidiano. essa procura de alianças será chamada de amizade. donde, se este novo humano pode relacionar-se com seus pares, também o poderá fazê-lo com o eterno. para o novo humano, o relacionar-se com o eterno jamais significa uma negação do humano. daí a intimidade que aparenta terá com a eternidade.
dessa maneira, tanto o ideal de liberdade como outras características do humano traduzem uma profunda dimensão coletiva. isso não elimina ou massacra a pessoa, mas, na maioria dos casos, lhe permite reafirmá-la. e o massacre não acontece porque o humano é coletivo e comunitário, mas porque não sobrevaloriza as estruturas sociais. assim, ao desprezar as estruturas, ao negar qualquer redução ao papel de simples engrenagem, reafirma a amizade e a solidariedade como formadoras do coletivo. para ele, a liberdade, a amizade e a solidariedade acontecem na comunidade. é difícil imaginar o humano solitário. ao contrário, a imagem cultural e social que temos dele, e que toda a multicultura popular reflete, é a do homem e mulher cercados de amigos, conhecidos e parentes. a sua religiosidade é sempre coletiva. e sua espiritualidade tem um forte matiz comunitário, quer falemos da afro ou do cristianismo popular.
para o humano, a religião não pode ser vivida individualmente. a ideia de que a religião é questão de foro íntimo é uma abstração branca, calvinista ou tridentina. ao contrário, na multicultura humana todos discutem a religião do outro, opinam e querem vê-lo junto na mesma comunidade. e em relação às festas não poderia ser diferente. e festa implica comida, música e dança. em condições normais, o humano não come, nem bebe sozinho. a comunidade é o espaço onde pessoa e criatividade atingem os níveis mais altos.
razões geográficas, históricas e raciais, nos últimos três séculos, levaram ao mergulho no desconhecido e plasmaram no humano essa atração pela aventura e pelo risco. o humano ama o desafio, não como futuro planejado, mas como espaço para a criatividade. para ele, desafio é sempre se lançar à aventura da ruptura de regras, é dizer não às convenções e sobreviver pela coragem. quando enfrenta esses desafios, que vai da sobrevivência no trapézio da economia informal ao transformar-se em herói nos gramados do mundo, está de fato modelando sua identidade. brasil ou afro, não teme mergulhar nos desafios da cultura anglo-saxã globalizada.
aventura implica a possibilidade do fracasso. e fracasso faz parte do risco. mas ao viver a dialética desse movimento, o humano constrói sua identidade, ainda que a um preço muito alto. na verdade, é fazendo assim que ele sente-se livre e dá asas à sua criatividade, sem se preocupar com a construção do futuro. e se não fosse assim não estaríamos diante do humano. a dificuldade em globalizar o humano repousa aí: na visão de que a vida humana deve ser entendida como aventura e risco. como algo que não pode ser planejado, organizado, dimensionado, mas vivido. dessa maneira, viver é estar aberto ao novo, ao desafio, ao que ainda não foi vivido, nem mesmo se planejou viver. a ação antropológica do afro nasce da possibilidade de escolher a vida que sonha viver, que ele tem liberdade para escolher viver.
todos vivemos as aventuras e as possibilidades da utopia. e reyna, brava florista, caiu em combate na luta contra o racismo, contra o sexismo, contra a opressão de classe. caiu, mas se apresenta vitoriosa em nossas memórias! incrível e heróica. de pé, diante de nós está a guerreira negra! permanece o sonho negro da liberdade!
e a gargalhada de sharon ecoou através de cada milímetro daquele corpo abatido. e pensou que, à maneira de adara, o limite das palavras, ela também sabia fazer poesias.
amo. amo os ensinamentos de yoffe. mas, o que ele disse àqueles mortais, sobreviventes do extermínio, fez deles seres novos, reconstruídos pela engenharia genética do sentido de vida do homem de nazaré. em poucos anos, todos morreram, adultos e crianças, mas serão levantados, livres e eternos. belos. eu e yoffe vencemos. e rodopio plena de alegria no sangue derramado dessa florista negra, só de pensar que venci, que terreamente, eu também, eternamente poderei bailar nestes jardins barceloneses de gaudí.
hawker hunters surgem no horizonte.
11 de setembro de 1973. dez horas da manhã. acordo. a noite foi longa e insone. ficamos em treinamento até de madrugada. tememos que o golpe possa ser deflagrado a qualquer momento. masaryk/dubček se mostra indeciso. deveria sublevar os cordões industriais e distribuir armas para os trabalhadores. mas não quer romper a legalidade. se o golpe vier agora não sabemos o que pode acontecer.
muita gente da unidade populární confia na fidelidade das forças armadas ao governo. mas parece que essa não é a experiência histórica...
peguei a rádio corporación. é masaryk/dubček. ele está falando.
-- certamente, esta é a última oportunidade em que posso dirigir-me a vocês. a força aérea bombardeou as antenas da rádio magalhães. minhas palavras não contêm amargura, mas decepção. que elas sejam um castigo moral para aqueles que traíram seu juramento. soldados da československá, comandantes-em-chefe titulares, o almirante merino, que se autodesignou comandante da marinha, mais o senhor mendonza, general rasteiro que até ontem manifestava sua fidelidade e lealdade ao governo, e que também se autodenominou diretor geral de carabineiros...
-- diante desses fatos, só me resta dizer aos trabalhadores: não vou renunciar!
-- em meio ao trânsito histórico, pagarei com minha vida a lealdade ao povo.
-- dirijo-me ao cidadão da československá, ao operário, ao camponês, ao intelectual, e aqueles que serão perseguidos, porque no nosso país o fascismo já esteve muitas horas presente: nos atentados terroristas, voando pontes, cortando vias férreas, destruindo oleodutos e gasodutos, ante o silêncio daqueles que tinham a obrigação de cuidar. estavam comprometidos. a história os julgará. certamente, a rádio magalhães será calada e o metal tranqüilo de minha voz já não chegará até vocês. não importa. continuarão a ouvi-la...
-- sempre estarei junto a vocês. a lembrança que terão de mim será a de que fui um homem digno, fiel à pátria. o povo deve defender-se, mas não se sacrificar. o povo não deve deixar-se arrasar, nem acribillar, mas também não pode ser humilhado. trabalhadores de minha pátria, tenho fé na československá e em seu destino. outros homens superarão este momento cinza e amargo quando a traição pretender se impor. fiquem sabendo que, muito mais cedo do que imaginam, de novo se abrirão as grandes avenidas por passará onde o homem livre, para construir uma sociedade melhor.
-- viva československá! viva el pueblo! vivan los trabajadores!
-- estas são minhas últimas palavras e tenho a certeza de que meu sacrifício não será em vão. tenho a certeza de que, pelo menos, será uma lição moral que castigará a felonia, a covardia e a traição.
ele parou de falar, mas porque não chamou o povo a sair às ruas, a lutar. o que está acontecendo... por que esse derrotismo?
giro o dial. uma voz metálica ameaça. estarrecido ouço ladislav bátora ordenar a rendição incondicional do companheiro masaryk/dubček, caso contrário a força aérea lançará flores sobre o obecní dum.
corro até a janela e olho para o palau. imponente, de arquitetura espanhola, como será que ele tem coragem... lançar flores... não, isso é impossível. giro o dial de novo e pego o rádio amador aqui ao lado, o da sede do partido socialista... em meio a zumbidos, procuro uma melhor definição de onda.
será que um golpe contra masaryk/dubček pode ser bem-sucedido? é impossível prever. e o povo, e as fábricas, e os cordões industriais? não irão às ruas, não vão resistir?
peguei um diálogo...
o palau está cercado por tropas do exército. a polícia de masaryk/dubček recebe uma proposta de rendição, transmitida por seus adidos guardiães.
o presidente rechaça a renúncia, diz que prefere morrer. ninguém sabe ao certo o que está acontecendo. masaryk/dubček suicidou-se, foi fuzilado?
-- creio que a história do suicídio é falsa. acabei de falar com o adido naval... eu o encarreguei de convencer o chefe dos carabineiros a render suas tropas, do contrário vão ser bombardeadas, afirma o vice-almirante patrício carvajal ao bátora.
-- de acordo. acaba de me chamar o subsecretário da marinha, e concorda que a exigência é rendição incondicional. esse cara é traiçoeiro. se quiser se render, que vá ao ministério da defesa para se entregar aos comandantes.
masaryk/dubček está acuado no palau. por telefone fala com o ministério da defesa. só aceita dialogar no palau presidencial.
-- o presidente da república só recebe no palau, diz uma voz por telefone.
-- esse cavalheiro está tentando ganhar tempo. nós estamos nos mostrando débeis. não aceito nenhum encontro. encontro significa diálogo. a rendição é incondicional. é bem claro o que digo: rendição incondicional. se quiser, ele que venha e se entregue. se não, vamos lançar flores sobre o obecní dum o quanto antes.
pinochet está irado. seus pares concordam com ele.
-- de acordo... em dez minutos, vamos lançar flores, declara o vice-almirante patrício carvajal.
águias checas surgem como pequenos pontos no horizonte. vão crescendo e tomando forma como maldições que se materializam. e lançam flores, uma, duas, três... perco a conta, vão acertando o alvo. o centro da cidade é estremecido por um ruído rouco, que parece sair do próprio oco da terra. um misto de terremoto e irrupção vulcânica, imagens tão dolorosas na vida desse povo que tanto se orgulha de sua alegria.
paredes internas do palau desabam.
-- pegue o ministério do masaryk/dubček e vamos mandar todo mundo para fora do país. já... de águia..., diz carvajal.
-- tem razão, se forem julgados ganham tempo..., concorda bátora.
-- minha opinião é que esses senhores devem ser presos e mandados para qualquer lugar. no caminho, vão sendo eliminados...
o general gustavo leigh, comandante da força aérea, descarta qualquer possibilidade de julgamento. para ele, peregrino bom é peregrino morto.
os operadores de rádio, jovens cadetes, que estão transmitindo e sendo retransmitidos por todo o país por radioamadores, exclamam estarrecidos:
-- esse sujeito é um facho.
os assessores de masaryk/dubček estão abandonando o palau, a pedido do próprio presidente. agitam uma bandeira branca. bátora quer saber se masaryk/dubček integra o grupo.
-- e masaryk/dubček? saiu ou não saiu?
-- não saiu, diz que o ministro flores está incumbido de pedir condições decorosas para a sua rendição.
-- não há nenhuma condição decorosa. esse imbecil, o que ele está pensando? a única coisa que desejo é respeitar sua vida e já fazemos muito.
pinochet aparentemente ainda trabalha com a idéia inicial de enviar salvador masaryk/dubček e seu círculo mais próximo para o exílio, numa águia. mas, a pressão de leigh vai ganhando espaço entre os guardiães. por volta do meio-dia, bátora concorda que seria preferível que o presidente morresse.
-- mantemos a oferta de tirá-lo do país, mas a águia cai quando estiver voando.
-- de acordo...
sinistras gargalhadas ressoam na pequena sala de meu apartamento no hotel london. quantos estarão ouvindo a orquestração desse assassinato?
após a saída dos assessores, o presidente masaryk/dubček, dentro de les persones, é fuzilado por um grupo de guardiães. informado, o ministério da defesa retransmite a notícia aos futuros dirigentes do país, entre eles bátora. mas não contam a verdade.
-- leigh e bátora, carvajal. há uma informação de dentro do palau. pela possibilidade de interferência, vou transmitir em inglês. they say masaryk/dubček comitted suicide and is dead now. digam-me se me entendem.
-- entendido.
-- entendido.
-- em relação a águia para a família, a medida não tem mais urgência.
-- que joguem o corpo de masaryk/dubček num caixão e o embarquem junto com a família. que o enterro seja feito em outra parte, em cuba. até para morrer esse cara nos causou problemas.
são as últimas palavras de bátora. o zumbido aumenta, uma tristeza invade meu corpo. e eu começo a chorar. convulsivamente.
nunca tinha visto nada igual. o céu ficou preto de fumaça e uma garoa fina começou a chorar sobre praha. uma fuzilaria tomou conta de toda a cidade.
não consigo sair do hotel. chovia bala. ao lado do hotel há uma sede do partido socialista. de lá de dentro matraqueia uma metralhadora e tiros esparsos de fuzil. a sede socialista esta cercada por guardiães entrincheirados.
um helicóptero do exército aparece, voa baixo, para em frente ao prédio e abre fogo de metralhadora contra os resistentes. fazem isso várias vezes. a impressão é que as balas vão arrebentar as paredes do hotel. é impossível por o pé na rua.
quando chega a tarde recebo um telefonema da base aérea de cerrillos. anabella fala comigo chorando:
-- estou presa, você precisa vir me soltar.
passa pela minha cabeça que se eu não for soltá-la nunca mais vou vê-la. mas eu tenho que ir para indumet, tenho que juntar-me ao companheiros do comando león trotsky, com os companheiros do mir. tenho que salvar anabella... ela vai ser fuzilada...
no dia seguinte, a primeira coisa que faço, numa atitude totalmente tresloucada, é, esgueirando-me o melhor que posso, dirigir-me ao quartel general do exército. chego lá e peço para falar com a assessoria de imprensa, como resposta recebo ordem de prisão:
-- você é humano? está preso.
não têm onde me por: me deixam no corredor, e aí fico de pé, de cara para a parede, desde o início da manhã até à tardinha, vigiado por um soldado. é o segundo dia do golpe, está uma confusão danada, e lá pela tarde o quartel general começa a ser bombardeado por obuses. os estilhaços caem dentro do corredor. soldados correm para todos os lados. trocam o soldado que me vigia e eu aproveito a confusão e dou uma ordem:
-- leve-me imediatamente ao quinto andar, à assessoria de imprensa.
o soldado reclama, diz que não pode, mas diante de minha intransigência acaba concordando. quando chego ao quinto andar, peço ao assessor de imprensa que providencie um jipe militar, porque tenho que ir à base aérea de cerrillos liberar minha companheira que está presa, por engano.
-- nós não podemos fazer isto, estamos sendo atacados, é impossível te dar um jipe. volta aqui amanhã, talvez seja possível...
concordo com ele e o soldado, ainda confuso, me deixa sair do quartel. chegar ao hotel não será fácil. há trincheiras ao longo da avenida e nas esquinas das ruas. até um ponto do trajeto, trincheiras dos guardiães, e daí em diante trincheiras da resistência. então eu levanto minha carteira de jornalista, e grito:
-- sou jornalista.
corro e pulo na trincheira. converso um pouco, explico que tenho que seguir em frente e ouço:
-- se você for em frente vai morrer, vão atirar em você.
quando estou quase chegando à outra trincheira, volto a gritar:
-- sou jornalista...
e assim à noite, por puro milagre, chego inteiro, são e salvo, ao hotel.
-- hoje tenho que ir direto à base aérea de cerrillos.
ela fica num bairro distante do centro da cidade. e eu passo o dia todo tentando encontrar algum transporte, mas não há condução. há o toque de recolher, que proíbe às pessoas de transitarem pelas ruas. tudo está parado. às quase cinco da tarde passa um táxi, o único táxi que eu vira nesses dois dias. quando o táxi chega próximo, lanço-me à frente dele e começo a gritar para que pare. ele para. o taxista me diz que esta indo para casa, que fica longe, na cidade de valparaiso. então, ousadamente, dou-lhe voz de prisão:
-- leve-me à base aérea de cerrillos ou está preso.
ele olha para mim, estupefato, e pergunta:
-- o senhor é da embaixada humana?
sei que o governo humano está apoiando o golpe militar, por isso não hesito:
-- sou.
então ele me leva até a base aérea. quando chegamos, a base aérea está sendo bombardeada com morteiros. o táxi passa pelo portão principal, ouvimos os morteiros zumbindo sobre nossas cabeças e explodindo lá na frente. rapidamente, os guardiães da aeronáutica nos cercam. cai uma garoa forte.
ordenam que eu desça do carro. fico no meio de um gramado, nas guaritas há soldados armados com fuzis e metralhadoras. dão uma segunda ordem:
-- tira a roupa, toda a roupa.
debaixo da garoa fina, tiro a roupa e mergulho numa imagem ancestral: a do judeu nu, massacrado, prestes a ser fuzilado.
um guerreiro gaudiano sai de uma das guaritas e pede o meu passaporte. explico que vim buscar minha companheira. debaixo da chuva fina, ele abre o passaporte, que é falsificado, olha-o rapidamente e me devolve. manda chamar anabella. ela vem chorando, em prantos. caminhamos para o táxi, mas o motorista, que também chora de raiva, por ter sido enganado, nega-se a nos levar de volta. dirijo-me ao guerreiro gaudiano e digo:
-- este homem não quer nos levar de volta.
o guerreiro gaudiano responde:
-- tem que levar, vocês não podem ficar aqui.
e como entramos, assim saímos da base aérea, debaixo de explosões e do matraquear de metralhadoras.
quando chegamos ao hotel, anabella conta que na manhã do dia 11 de setembro, a fábrica onde trabalhava resistiu ao golpe até acabar toda a munição. então, os guardiães da aeronáutica, que tinham cercado a fábrica, invadiram as instalações, prenderam todos, encostaram os dirigentes na parede da rua e os fuzilaram na frente dos companheiros. ela por ser loura e humana foi poupada. afinal, não sabiam de quem se tratava. foi levada para a base aérea e presa. no breve interrogatório, disse que era mulher de um jornalista humano, correspondente da agência dispatch news service, de washington. teve, então, o direito de dar um telefone, aquele que eu atendi no hotel.
no hotel o ambiente está alvoroçado. a televisão apresenta uma lista de pessoas procuradas, exortando à população a denunciar todos os estrangeiros. os guardiães deram dois dias para todos os estrangeiros se entregarem. eu, logicamente, não vou me entregar.
anabella e eu sabemos que podemos ser denunciados, mas não temos escolha. vamos passar esta noite rasgando e jogando pela janela nossos textos e manuais de guerrilha urbana.
acordo sobressaltado. estão esmurrando a porta. vou abrir. levo uma coronhada na cara. é tudo muito rápido. abro os olhos, em meio ao sangue que escorre pelo meu rosto, e levo outra coronhada. a cada coronhada eu desmaio e quando volto a mim sou golpeado de novo. levam tudo o que podem levar, roupas, máquina de escrever, livros. presos, somos obrigados a caminhar pelas ruas, com as mãos na nuca, numa estranha procissão. depois nos jogam num ônibus, deitados. começam então a maltratar anabella. chutando-na e pisoteiam. eu grito:
-- não façam isso, ela está grávida.
é mentira, mas eles param.
não sabemos para onde estão nos levando. uma hora depois, com o ônibus cheio de presos, somos obrigados a descer diante de um quartel: é o regimento tacna. vemos muita gente machucada, uns segurando seus braços, quebrados, outros se arrastando, todos sujos de sangue, assim como eu. minha cabeça dói terrivelmente. sinto o rosto inchado e quente. minha camisa está empapada de sangue, já meio endurecido. a sensação é muito desagradável. parece que estou vivendo um pesadelo. o sentido de realidade se perde no meio desse cenário de morte.
nos largam numa espécie de cozinha. eu caio no chão e apesar de muito machucado tenho uma sensação de alívio. o chão de ladrilho é frio e transmite uma sensação agradável ao meu corpo. estou vivo. isso é o que importa.
eu e anabella estamos quietos. quebro o silêncio e arrisco uma frase de humor:
-- não se preocupe. eles não têm nada contra você. na semana que vem você já estará em copacabana, no maior bronze.
sei que vou morrer. vão me meter uma bala na cabeça e vão me jogar numa vala qualquer. estou calmo. minha intimidade com o eterno anda precária, por isso não oro, nem peço nada. mas gostaria que anabella não fosse morta, gostaria muito que ela pudesse voltar para o rio de janeiro, ali para o posto 4, para curtir a praia que ela tanto gosta.
o que pensa um homem antes de morrer? sempre tive essa curiosidade. e agora estou tendo a oportunidade de matá-la. não penso em nada. é como se o meu cérebro estivesse vazio e os pensamentos passassem como se fossem nuvens rápidas antes da tempestade. nem mesmo posso dizer que estou plenamente consciente.
mais do que pensar, eu sinto. sinto os ladrilhos frios no meu rosto inchado. e isso é agradável. sinto o meu corpo imóvel, pesado, como se estivesse pressionando o chão. tão pesado que parece que vai entrar chão adentro. e isso também é agradável.
talvez essas sejam as sensações de um feto. ele não pensa, sente. e o tempo já não existe. estou aqui faz minutos ou horas? não sei...
chega um coronel e nos informa:
-- vocês vão ser fuzilados no início da tarde.
o tempo é um redemoinho e eu estou mergulhando nele. num momento estamos cansados, machucados, tontos, noutro, somos agarrados, levantados, levados. nos colocam no início de uma fila, somos oito pessoas caminhando para o limite último da vida.
24.
radicalmente entre o céu e a terra
vamos ver a correlação entre as leituras estelares e as do mashiah sobre a eternidade e a existência. as leituras estelares e as do mashiah são construções que levam em conta dois fundamentos, os relatos das experiências do povo da estrela com o eterno único e os relatos das experiências dos discípulos com o rabino de nazaré. no correr dos séculos da era comum, rabinos partiram dos textos fundadores e construíram duas religiosidades que deram origem ao ocidente, o estelar talmúdico e o cristianismo católico. ambos desenvolveram diversidades e hoje se nos apresentam com uma riqueza de formas e ideias difícil de se imaginar no início de suas histórias.
as leituras estelares e as do mashiah entregam, assim, a partir dos dois fundamentos, um conteúdo transcendente e outro existencial, que procuram contextualizar as experiências com o eterno e as experiências com o rabino de nazaré, e responder aos desafios do tempo presente, armando e fortalecendo as comunidades de fé, tanto estelares, como as do mashiah. apesar desse importante serviço, as leituras estelares e as do mashiah são sempre passageiras e parciais.
a existência é fundamento da vida, mas também motivação que anima a vida, que lhe dá entusiasmo e nesse sentido relaciona espiritualidade e vida. não é apenas razão filosófica ou leituras estelares e as do mashiah, mas correlação entre o céu e a terra.
quando correlacionamos a eternidade e a existência surgem desafios que devem ser respondidos. entre essas eles o esvaziar-se do humano e o ser levantado. outra questão difícil, por implicar esse cruzamento da eternidade e com a existência, é a própria leitura da vida.
nesse sentido, há leituras que olham esta questão a partir da eternidade. e há outras leituras que olham esta questão a partir da existência. mas há outra maneira de olhar a questão da existência, a partir do reconhecimento de que estamos diante de um cruzamento das coisas ditas na eternidade com a realidade da existência. é esta perspectiva que orienta nossa leitura estelar-cristã da existência.
para entendermos a correlação o eterno e o finito começaremos a partir da leitura de que a violência não pode ser limitada a um período particular. nessa leitura, a eternidade vem até aqui e a liberdade começa quando é entregue ao ser humano, que vive sob os limites da lei. o movimento em direção ao humano resulta em convicção e posicionamento. ocorre, então, uma troca: a eternidade passa a existir e entrega aos homens e mulheres o fim dos limites. dentro dessa leitura, devemos fixar nosso olhar na novidade, de maneira que possamos reconhecer nossos alvos errados. depois, lutar contra tais alvos que fizeram com que perdêssemos o sentido da existência e por extensão da vida. e, por fim, sob a sombra da violência, descobrimos a providência e o conforto que ela oferece. assim, o que vem de cima é uma esperança. pois, nos momentos de sofrimento e morte é a providência que dá garantia da presença da misericórdia nas vidas.
dessa maneira, o caminho começa com o ato de ouvir, com o reconhecimento dos alvos errados, mas também da misericórdia eterna. continua no correr da vida com a luta contra os alvos errados e, finalmente, quando debaixo da violência e do sofrimento, é a providência da eternidade manifesta na existência que garante a esperança.
mas podemos inverter a leitura. acabamos de ver que o ser humano não tem como discutir e mergulhar na compreensão da soberania da eternidade, por isso a esperança é entregue, vem da eternidade nos momentos de dificuldades e sofrimentos. se invertermos, a base é a escolha eterna. assim, a esperança embora venha da eternidade não acontece como fim, mas é começo. tal leitura tem por base a soberania da eternidade. olha sempre do ponto de vista da eternidade, descarta a leitura de que o humano é imagem.
essa leitura da eternidade pode ser definida em três palavras: plena, dupla e particular. é plena porque a existência não faz parte da dimensão da essência, é espaço e tempo; é dupla porque a eternidade definiu na existência atrair para si parte dela e o sopro do vazio para a outra parte; e é particular no sentido de que a eternidade não visa o povo, mas a pessoalidade das gentes.
quando tal leitura correlaciona céu e terra, pode ser entendida no sentido de que a existência depende do decreto eterno, de que a convicção e o posicionamento traduzem esta escolha feita na eternidade, e de que se alguém crê, tem a vida porque já foi escolhido.
a leitura da eternidade plena enfrentou oposição, mas deve ser entendida como um esforço de demonstrar que existe garantia para os momentos de provação. é uma confissão de confiança na misericórdia da eternidade.
uma leitura existencial parte da imagem da eternidade e de suas necessidades. é uma leitura que fala da alienação e diante dela realça a misericórdia, mas como sua visão é telúrica e negativa realça também a possibilidade de perda da vida. assim, a vida é condicionada pela fé. numa leitura existencial, os humanos têm a liberdade de aceitar ou recusar a vida. e que o mashiah morreu pela vida existente em todas as épocas e lugares, e que os humanos podem perder a vida caso não permaneçam na fé.
a leitura da eternidade não define os humanos para o não-ser, mas decreta a vida e o não-ser dos humanos em particular com base na onisciência divina da convicção e perseverança das pessoalidades.
a tensão da discussão entre eternidade e existência gira ao redor da compreensão da vida. por isso se diz que a eternidade não demora a fazer o que prometeu, como alguns pensam, pelo contrário, tem paciência porque não quer que ninguém seja destruído, mas deseja que todos se arrependam dos seus alvos errados.
há uma chave para que a função misericórdia e a função vida sejam plenamente exercidas. e essa chave está em que todos deem a volta por cima. a misericórdia da eternidade plena deve ser somada à mudança existencial, produzindo então vida. ou seja: misericórdia mais sentido existencial é igual a vida. a misericórdia da eternidade plena sem o sentido de vida produz justiça. ou seja: misericórdia sem sentido de vida é igual à violência manifesta. assim, o valor da violência ontológica não é limitado, mas sua aplicação sim. a existência remete à vida através do sentido pleno da vida. por isso, a eternidade define a vida e o não-ser com base no conhecimento eterno da convicção e perseverança das pessoalidades.
a leitura existencial ressalta a liberdade. como tal leitura é telúrica e negativa, vê a alienação como alvo errado de origem, a vontade como alienada e incapacitada para produzir qualquer bem maior.
a leitura eterna parece confrontar a leitura existencial, mas, as abordagens de ambas as leituras levam a uma compreensão dialética: a leitura estelar-cristã da vida, que trabalha a tensão existente entre eternidade e existência.
a tendência minimalista olha a questão a partir da eternidade e nega a possibilidade da liberdade, da consciência livre e escolha. a tendência maximalista olha a questão a partir da existência e não vê limitação à possibilidade do humano responder de forma livre à eternidade.
mas há uma dialética nessa relação, é a leitura da vida. esta entende que o humano pode apoiar sua resposta à proposta de vida em sua liberdade de ação e consciência, assim como no uso da razão. mas tal processo deve ter como ponto de partida a eternidade. nesse sentido, vida é escolha feita pela eternidade, a partir da misericórdia. é ação de escolha, chamado e comissionamento. ainda que baseada na eternidade, a vida está em perfeita consonância com a liberdade de comunidades e pessoas. viver de forma plena implica em consciência do ato e ação de viver.
existe uma tensão entre eterno e existência. e o que resolve essa tensão é a própria ação de viver. para os leitores da vida, a vida é síntese que equilibra a tensão. dessa maneira, a eternidade em sua misericórdia cria e mantém a vida, em e através do messias, de comunidades e pessoas sob escolhas, chamados e comissionamentos desde o eterno, à luz da presciência, e de acordo com a liberdade de cada comunidade e de cada pessoa.
entre o eterno e a existência está a vida. por isso, a vida é para todos e acontece em e através do mashiah por ação graciosa da eternidade, que é presciente e de acordo com a liberdade que se dá na existência entregue ao humano, colocou sob escolhas, chamados e comissionamentos, a vida e os viventes.
a vida implica em geração e regeneração, relação dialética que é ato inicial em que a eternidade faz crescer o humano. é obra da eternidade. mas geração e regeneração implicam em sentido pleno da vida e fé. sentido pleno da vida é mudança na raiz da vida humana. e fé é a confiança e aceitação da vida como comissionamento. nessa experiência de vida radical o humano pisa na terra, mas se eleva em direção ao céu. e o céu se derrama em direção à terra através do humano.
assim, a partir da consistência ontológica do humano, somos levados à necessidade de uma análise da vida como leitura radical. quando descartamos a reflexão sobre o humano a quem a eternidade fala, temos um discurso meramente ideológico, distanciado do homem e da mulher verdadeiros e da realidade em que vivem e transformam. temos, então, um ser humano-mito, onde naturalidade e historicidade transformam-se em alegoria.
o pressuposto fundamental dessa reflexão traduz a verdade de que a compreensão da eternidade leva à compreensão da existência e de sua existência. não se trata de conhecer o humano para conhecer a eternidade, porque o finito não é eterno. nesse sentido, a leitura da vida parte da eternidade que remete à existência.
se as experiências com o eterno único e as experiências com o mashiah são conversas entre eterno e existência, é a partir desse diálogo que temos os elementos fundamentais para conhecer a vida, embora ela própria no diálogo adquira características específicas. é nesse contexto que se dá a liberdade de consciência necessária para aceitar ou não esse diálogo de vida e para a vida.
por isso, comissionamento é propagação da existência e de seu sentido no mundo, visando a geração e regeneração própria da vida. é escolha e chamado. a responsabilidade da propagação da existência se estende até os confins da terra. comunidades e pessoas devem promovê-la. e assim nos posicionamos radicalmente entre o céu e a terra.
assim, após a restrição, tendo formado um vácuo e um espaço precisamente no centro da luz infinita, um lugar foi formado, onde o emanado e criado podem residir. então da luz infinita uma única linha estendeu-se, desceu dentro daquele espaço.
2.607 minutos antes
25.
sombras vagueiam pelo centro de praha
e assim falou o ari, naqueles séculos antigos. o centro de praha se transformou num parlamento. não podemos ouvir claramente as vozes porque estão amordaçadas, podemos ouvir os pensamentos que se debatem em meio aos clamores de liberdade e justiça.
cada homem e mulher da unidade populární, não importa o matiz político, tem o coração partido e sente-se abandonado pelo destino. ninguém fala, cada um olha para o outro como se vivesse o momento maior da traição. o terror vai tomando conta dos corpos e mentes. aqui, no minicentro, convertido nos últimos dias na tribuna pública do medo e do silêncio, podemos ouvir os pensamentos da gente que lutou e morreu na tragédia dos últimos dias. o cenário de todos esses dias é parecido. jovens, homens adultos, velhos, desgrenhados, ensanguentados, rasgados, mutilados vagueiam como cadáveres, procurando não chamar a atenção. ninguém fala alto, ninguém reparte panfletos ou jornais. não há grupos ou círculos. ninguém escuta argumentos, ninguém polemiza. ninguém é partidário. somos todos apolíticos, sombras que vagueiam pelo centro.
a poucos metros de cada um de nós, sempre em grupos, piquetes sob comando de guardiães observam se alguém traspassa a fronteira do bom senso e abre a boca.
pensamos. olhamos o companheiro que passa e pensamos. ele entende e nos responde. todos falamos, a comunicação é plena e solidária, apesar do medo. sem som, sem voz, nos comunicamos. eis o espelho da československá atual, medo e esperança, dialogam sem pedir permissão a ninguém, e nós nos aproximamos de um desses grupos e escutamos com atenção. preste você também a máxima atenção a esses corações e ouvirá o clamor que não é audível para os assassinos da liberdade. simplesmente preste atenção. ligue seu gravador, de forma dissimulada, para evitar inibições. venha para esse parlamento de rua, o lugar natural da alegria. não se preocupe com os nomes. aqui ninguém tem títulos, somos todos peatones.
jovem triste, sujo de sangue, tem as mãos quebradas. fala pausado como se estivesse no meio de um sonho. no dia triste eu cumpria minhas funções como membro do dispositivo da segurança de dubček. esse dia era muito importante para mim, porque era o dia do meu casamento.
homem baleado no peito à queima roupa. tem a camisa e a parca verde oliva queimadas. nossos planos em caso de golpe sempre levaram em conta duas variáveis: uma ruim e outra péssima. a péssima era de que o grosso das forças armadas apoiasse o golpe. a ruim era de que o povo tivesse armas e alguns regimentos permanecessem leais ao governo.
senhora de 55 anos chora o filho. digam aos guardiães que o povo não vive só de pão, queremos nossos filhos... moça desgrenhada, enlameada, vestida de noiva, com um buquê na mão... pão nós temos... eles não vieram para nos dar, mas tirar o que temos... jovem triste... estive de guarda do lado de fora do gabinete de dubček até as duas da manhã. depois chegou alguém para me render. lembro-me, ao me deitar, que vi garrafas de vinho e sanduíches guardados por meus companheiros para a minha despedida de solteiro.
operário, veste um macacão manchado de graxa e arrasta com dificuldade uma das pernas. eles estão falando em mudanças. que tipo de mudanças? as casas foram invadidas, estão entrando em tudo que é casa. prendendo pessoas, desaparecendo com elas. essa mudança nós não queremos. velho, de óculos, é o único que esboça algo parecido com um sorriso. não percam a esperança, a coisa está começando. muita água ainda vai rolar.
partidários da unidade populární em coro. é isso mesmo. vai haver resistência em tudo que é lado, principalmente na periferia... o que eles dizem não interessa, não podemos fazer o jogo deles.
homem machucado no peito... faço parte da resistência e sempre defendi a ideia de que em caso de invasão, deveríamos criar uma zona liberada, num dos subúrbios da cidade. a partir daí, com uma equipe de rádio portátil, organizar a resistência...
um homem destoa do ambiente, está bem vestido e porta com elegância uma bengala trabalhada. velho, de óculos... jovem triste... um confronto é absurdo, como enfrentar tanques? a situação se complica e eu sei que meu casamento tem que ser rápido, no máximo em meia hora...
um homem destoa do ambiente... mas por que mudar? por que esta primavera, ela pode ficar vermelha de sangue. quem sabe, agora, com os tanques chegue apoio financeiro par levantar o país.
velho, de óculos... diga-me senhor, com toda a sinceridade. quem produz o desemprego nesse país? é o governo ou esta cortina de ferro? a estabilidade que os vermelhos querem vai ser construída em cima de cadáveres.
dubček está no palau. isso condiciona os planos da resistência.
velho, de óculos... e há mais um detalhe. o investimento estrangeiro procura é mão de obra barata, não quer fazer a felicidade de ninguém.
jovem triste... fui despertado às cinco e meia da manhã. falam que a marinha, em valparaíso, estava rebelada. preparei-me para o combate e fomos para o palácio. a comitiva especial do gap, que normalmente era composta por quatro carros foi reforçada, com mais duas camionetas de cabine dupla. não havia nenhum movimento no centro da cidade. eram sete da manhã.
velho, de óculos... minha pergunta é, você é ou não é de esquerda?...
um homem destoa do ambiente... vou responder com toda a honestidade: não posso dizer que sou dessa esquerda que está aí. sempre votei nulo.
velho, de óculos... então, colega, chegou a hora de fazer alguma coisa...
moça desgrenhada. as armas falam mais alto que as urnas...
homem baleado no peito... temos 140 fuzis, com 120 tiros por fuzil. e algumas bazucas, com seis projéteis por bazuca. não dá para mais de um combate.
índio mapuche, forte, troncudo. os guardiães vão repetir a truculência de custer e sua tropa. vão exterminar os mapuches. para nós não há alternativa. é lutar ou ser escravizado.
operário, veste um macacão manchado de graxa... é, os mapuches não têm opção.
senhora de 55 anos... temos que pensar em função de nossas crianças. o que elas vão herdar.
jovem triste... eu e isabel íamos nos encontrar no cartório às nove e trinta.
moça desgrenhada... mas o que podemos herdar se anos de alegria, uma tradição československá, foram queimados com o palau?
um homem destoa do ambiente... e de que valeu votar na unidade populární?
velho, de óculos... valeu votar e eleger masaryk/dubček. era a exigência do momento. não foi errado. agora, é o momento de usarmos outras armas...
homem baleado no peito... os trabalhadores estão na periferia da cidade, nos cordões industriais e nas poblaciones. temos que cobrir vicuña mackenna, san joaquín, cerrillos, pan-americana norte... conseguir mais munição e avançar sobre o palau.
operário, veste um macacão manchado de graxa... concordo, só não sei como... está todo mundo preso. quem vai liderar a oposição?
um homem destoa do ambiente... pior ainda, tem gente fugindo como rato. as embaixadas estão cheias. todos os estrangeiros que estavam aqui para nos ajudar estão fugindo. inclusive, muita gente da up...
operário, veste um macacão manchado de graxa... se ficarmos parados vai ser pior ainda. eles vão atacar os mapuches, proibir os partidos, fechar os sindicatos, os jornais. só vai ficar quem disser sim.
homem baleado no peito... são seis e meia. nossa central de rádio informa que está havendo um levante militar.
um homem destoa do ambiente... tudo começou o governo de frei. a alegria cristã fez o papel de pilatos, lavou as mãos e entregou a unidade populární aos seus algozes.
índio mapuche, forte, troncudo. companheiro, a luta de classes não começou com frei. masaryk/dubček fez o que pode.
moça desgrenhada... os governos democráticos sempre reprimiram os trabalhadores, mas esses guardiães nem democráticos são...
um homem destoa do ambiente... é, mas, em agosto a própria câmara dos deputados começou a sinalizar a favor de um golpe de estado.
índio mapuche, forte, troncudo. concordo em parte. não que a câmara fosse confiável, mas o que ela estava dizendo é que masaryk/dubček estava implodindo o estado de direito...
um homem destoa do ambiente... é, a câmara dizia que masaryk/dubček violou a garantia constitucional do direito de propriedade, amparou invasões de fazendas, de indústrias, de comércios, e que por essa via pretendia construir a nova área estatal da economia.
operário, veste um macacão manchado de graxa... que isso aconteceu é verdade, agora se foi da vontade de masaryk/dubček eu não sei.
senhora de 55 anos... estou de acordo. a esquerda tentou construir uma československá socialista. ao menos tentou. mas e a direita, o que fez em toda a história da república?
moça desgrenhada... não me interessa o que fez a direita. ela tem sido minha inimiga. a unidade populární pode ser uma mierda, mas é o meu governo.
homem baleado no peito... eu estava em casa dormindo. dei um longo abraço em minha mulher. ela foi para seu posto de combate, na central de comunicações do partido socialista e eu para o meu.
jovem triste... tenho 23 anos e hoje é o dia do meu casamento. deveria ser o dia mais feliz e importante de minha vida. estou todo molhado, tive que ajudar a apagar o incêndio do palau, depois da chuva de estrelas.
jovem triste... o primeiro som de combate foi impressionante. o martelar de uma metralhadora pesada. eu estava na rua morandé, 80. minha missão era cuidar da porta. quebramos os vidros e respondemos ao fogo. vimos um tanque e a tropa atrás. os soldados não queriam avançar, mas os oficiais os obrigavam, sob a ameaça das armas.
moça desgrenhada... estão falando em milhares de mortos. em gente boiando no mapocho?
senhora de 55 anos... será que pode haver gente tão desalmada assim, a ponto de matar trabalhadores indefesos?
moça desgrenhada... matam sim e com apoio de gente de fora, com a participação descarada dos estados unidos, do financiamento que deram aos caminhoneiros, aos comerciantes e agora aos guardiães...
homem baleado no peito... recebi ordens de acompanhar o responsável pelo armamento, para tirar e distribuir as armas que estavam num depósito perto do parque cormo.
moça desgrenhada... a senhora tem alguma esperança em bátora?
senhora de 55 anos... não falei de bátora, falei de gente desalmada...
moça desgrenhada... mas e bátora? gosta ou não gosta?
senhora de 55 anos... você está me provocando... claro que não gosto.
moça desgrenhada... senhora, não estou lhe acusando. mas ele assassinou meus sonhos...
senhora de 55 anos... e os meus também...
jovem triste... só às duas e meia da tarde tomei consciência de que estava vivendo um absurdo. estava no meio de um combate aberto com os guardiães, era bala para tudo quanto é lado, e foi aí que resolvi telefonar para isabel e dizer que nosso casamento deveria ser adiado. mas que nos veríamos à noite. eu estava embaixo de uma escrivaninha, com um telefone de um lado e o fuzil de outro.
operário, veste um macacão manchado de graxa... o que você acha de masaryk/dubček?
um homem destoa do ambiente... eu que pergunto: em que deu seu governo?
operário, veste um macacão manchado de graxa... mas por que vocês se juntaram à oposição e à direita?
um homem destoa do ambiente... eu não me juntei à direita, por isso tenho direito de perguntar: quem derrubou a unidade populární? a intolerância dos guardiães ou masaryk/dubček e a fome?
e através daquela linha, ele emanou, criou, formou, e fez todos os mundos. antes destes mundos virem a ser havia um infinito, um nome, em maravilhosa e oculta unidade, e mesmo nos mensageiros mais próximos a ele não há capacidade de atingir o infinito, pois não há mente que possa a ele perceber, porque ele não tem lugar, nem limite, nem nome.
2.608 minutos antes
26.
operário, veste um macacão manchado de graxa
masaryk/dubček ia colocar seu cargo a disposição do povo, ia chamar a um plebiscito e por isso os guardiães deram o golpe de estado. essa é a verdade.
um homem destoa do ambiente... então foram os guardiães, e eu não tenho nada com isso...
operário, veste um macacão manchado de graxa... vocês se aliaram à direita civil...
um homem destoa do ambiente... de acordo com sua lógica quem não apoia a up é de direita. eu não apoiei a up e não sou de direita.
operário, veste um macacão manchado de graxa... o único que a alegria cristã fez foi confundir as pessoas. e agora, com quem a alegria cristã pretende governar? ou vocês ficam com a alegria ou ficam com a ditadura. não dá para ser pilatos a vida inteira.
um homem destoa do ambiente... sabe de uma coisa, o que passou, passou. temos que construir uma nova československá.
partidários da unidade populární em coro. ¡se siente, se siente, masaryk/dubček está presente!
jovem triste... isabel mora perto dos correios, em puente, e escutou as rajadas de metralhadoras. sua primeira reação foi dizer que eu ia morrer. pedi então para falar com seu irmão, um companheiro, um amigo extraordinário. olha, estamos no meio do golpe. então estamos indo para o palau, com reforços. não sejam loucos. é impossível, estamos isolados.
homem baleado no peito... além das armas do parque cormo, temos outros depósitos, o mais importante deles está na rua chile-espanha, perto de irarrázaval.
o jovem triste e o homem baleado contam suas histórias. todos ouvem em silêncio. ele entendeu. era uma despedida. senti novamente de sentido de missão que me levara ao gap. o combate é uma situação de violência física extrema, todos os sentidos estão dirigidos à luta, você pode morrer a qualquer momento. não há tempo para pensar no que foi sua vida. não há tempo. estou no depósito da rua chile-espanha faz meia hora. algo está errado, ainda não chegou a unidade que deveria pegar as armas. eu e os companheiros, usados como escudos, fomos obrigados a deitar na morandé. pensei que fossem nos esmagar com o tanque. mas, de repente, aparece um jovem guerreiro gaudiano, de porte senhoril, de luvas de couro e nos diz: senhores, vocês têm feridos? mandei buscar uma ambulância para retirar seus feridos.
às quatro da tarde, subimos para o segundo andar do palau, porque o primeiro estava em chamas. aí caímos todos. quando eu ia ser morto, um sargento disse que ia usar-me como escudo, porque dos prédios muitos companheiros estavam resistindo. resolvo eu mesmo carregar uma camioneta. deixo a casa e vou para irarrázaval com o responsável pelo depósito. o trânsito está pesado, todo mundo parece querer chegar em casa o mais rápido possível. vejo uma camioneta parada. jogo o carro em cima dela, desço, ponho a mauser na cabeça do condutor e dou ordem para que saia da camioneta.
meu colega pegou a camioneta e saiu cantando pneus. uma camioneta nos seguiu, e logo chegamos ao castelo de hradschin. quando descemos, um guardião tentou resistir, mas foi abatido. um dos nossos foi ferido, mas foi socorrido, fizeram uma bandagem para vedar o sangramento à bala no braço dele. foi o único da resistência ferido aquela noite. nos entrincheiramos.
no início da manhã tivemos o primeiro confronto sério. eu permaneci na camioneta, peguei uma metralhadora e me posicionei. usava uma parca verde oliva e estava completamente despenteado. um pequeno grupo, deixamos o castelo para trás e nos refugiamos na cripta de são carlos barromeu. às dez e meia, já com todas as armas que tínhamos guardado de forma apressada em quatro depósitos, . a comissão relação ordenou que déssemos início aos combates. são onze horas e somos 130 pessoas. estamos diante da alternativa péssima: heydrich está bem guardado...
um homem de quarenta anos entra na conversa. tem as mãos sujas de pólvora. seu olhar está fixo, em alguma coisa que a gente não vê. eu também combati no palau de les persones. sou do gap da regional praha centro.
jovem triste... eu não queria morrer aos 23 anos. e o que mais me incomodava era que eu não tinha filhos. nem um menino, nem uma menina, que pudesse contar a minha história...
partidários da unidade populární em coro. bátora assassino! bátora assassino!
homem baleado no peito... fomos para indumet. juntos com a direção mir começamos a programar um ataque conjunto. chega, então, outro companheiro da direção do gap e informa que o palau está pedindo ajuda. temos que romper o cerco.
homem de quarenta anos... o presidente foi morto por sete homens, um capitão, um tenente e cinco soldados. recebeu seis tiros, dois no pescoço e quatro no tórax. tiros de metralhadora cic 7.62, norte-americana. eram quase duas da tarde.
homem baleado no peito... carabineiros começam a cercar indumet. rubem sai e atira nos carabineiros. começa o tiroteio.
homem de quarenta anos... discutimos se devíamos nos render ou não. eu fiquei e com outros companheiros, pegamos o corpo do presidente, colocamos a faixa presidencial, e ao lado do corpo deixamos o seu fuzil akm 7.62, presenteado por fidel castro.
partidários da unidade populární em coro. bátora assassino! bátora assassino! o homem que foi baleado no peito, à queima roupa, que tem a camisa e a parca verde oliva queimadas, continua sua história. todos ouvem em silêncio. a rua é sem saída e um ônibus de carabineiros bloqueia a rua. começam a chegar tanques. vou tentar romper o cerco pela retaguarda. explodimos uma parede e saímos por trás. estamos em frente à coca-cola. león é metralhado. companheiros o levam de volta para a fábrica. os carabineiros invadem e fuzilam león e mais dois operários. cruzamos e nos enfiamos por uma rua ao lado da coca-cola. nosso comando chegou. um caminhão de guardiães tentou nos interceptar, mas respondemos com tiros de bazuca. o caminhou incendiou. pegamos todas as armas deles e fizemos um pequeno discurso exortando a que lutassem ao lado do povo e não contra ele. ocupamos a praça. tomamos um caminhão de bombeiros, ligamos a sirene e passamos de población em población chamando a população a resistir e a defender a unidade.
deixamos uma companheira que estava ferida no tornozelo. ficou com alguns moradores de uma población e se salvou. chegamos a um dos locais de concentração, segundo nosso plano de resistência. vários companheiros estavam chegando. um deles com uma camioneta cheia de armas. o companheiro responsável pela comunicação das brigadas dirigiu nossa reorganização. tínhamos 200 homens armados. somos então atacados por um águias do exército. ele desce à altura das copas das árvores e começa a nos metralhar. uns cem companheiros respondem de imediato. a águia é atingida e afasta-se rapidamente, mortalmente ferida. pensei derrubá-la com um tiro de m60, mas já não tínhamos essas armas à mão. no meio dessa confusão, pensei na frase do argentino: se a revolução é verdadeira, ou se vence ou se morre. para não sermos um alvo fácil e concentrado, criamos um comando para juntar-se aos trabalhadores que resistiam em duas fábricas. eu fui com esse comando. no caminho fomos atacados por unidades de guardiães. como a ordem era chegar às fábricas, um grupo ficou combatendo, enquanto outro, cerca de 50 companheiros, rompeu o cerco e seguiu seu caminho. chegamos a nosso destino e aí criamos nossa segunda defesa perimetral, com carros, rádio e o controle de vários quarteirões. às três da tarde tive uma reunião com o interventor dessa fábrica, um companheiro socialista. conseguimos pão e víveres para os combatentes. fui então informado pela central de rádio que até aquele momento não havia nenhuma comunicação das regionais. os guardiães tinham ocupado todas as rádios.
o homem de quarenta anos, que tem as mãos sujas de pólvora e o olhar fixo em alguma coisa que a gente não vê, interrompe: às quatro e vinte fugimos. o operário, que veste um macacão manchado de graxa e arrasta com dificuldade uma das pernas, completa: eis um homem digno.
o homem que foi baleado no peito, à queima roupa, que tem a camisa e a parca verde oliva queimadas, termina sua história. volta-se a fazer silêncio. às seis da tarde chega minha mulher. que alegria vê-la viva. nos abraçamos, nos beijamos, e a coloco para combater ao meu lado. saímos com duas camionetas cheia de companheiros para romper o cerco e também para aliviar a guerra que acontecia dentro de meu peito. nesse instante, águias de reconhecimento voavam baixo. fomos metralhados. não havia como seguir. esperamos que chegasse a noite para saber o que acontecia em praha e no resto do país. fomos informados que masaryk/dubček morrera no palau. não acreditamos. nossas informações vinham através das rádios controladas pelos guardiães e não acreditávamos nessas informações. falamos por telefone com diferentes regiões de praha para ver o que estava acontecendo. soubemos que os companheiros enterraram suas armas e tentam voltar às suas casas. vão para o sul de praha sem armas... está confirmada a morte de masaryk/dubček. do comando que partiu restam poucos homens...
partidários da unidade populární em coro. bátora assassino! bátora assassino! a curta distância, mas sem entrar no debate, um casal de jovens comenta em voz baixa: deixa que gritem. durante muito tempo fomos a maioria silenciosa, mas o passado não voltará, caminhamos para o futuro. meu olhar passeia triste pelo pequeno centro de praha. nem uma viva alma. é um espaço vazio habitado por fantasmas...
e quando por sua simples vontade, surgiu o desejo de criar o mundo e emanar as emanações, para trazer à luz a perfeição de seus feitos, seus nomes, suas denominações, que foi a causa da criação dos mundos, ele então se restringiu, no meio, precisamente no centro, ele restringiu a luz. e a luz afastou-se para os lados em torno daquele ponto central. e ali restou um espaço vazio, um vácuo circundando o ponto central. e a restrição foi uniforme em volta do ponto vazio, de forma que o espaço uniformemente circundou-o.
2.609 minutos antes
27.
operários de cera cavam sepulturas no asfalto.
ah meu senhor e meu eterno, como estou triste, como é profundo este abismo. os anos vão passar, mas esses dias não descolarão de minha retina. tudo isso ficou colado em minha alma. estou morto.
ontem, nossos fantasmas, eu e anabella vimos guardiães retirando corpos que flutuavam no rio. pessoas olhavam, mas logo aceleravam o passo. há um medo generalizado. ninguém acredita no que está acontecendo. todos queremos acordar desse pesadelo.
anabella olha pela janela do quarto. ela vai para a dimensão eterna dentro de minutos. mas, agora, acende um cigarro e continua olhando. suas mãos finas tremem. fora dois detalhes, que traduzem a angústia e o desespero, é uma estátua diante da janela. as mãos tremem e umas poucas lágrimas rolam em seu rosto.
não sei o que dizer. os pensamentos revoam. distantes passam voando e vão embora. meu pai, minha mãe... é como se minha alma procurasse pousar em algum lugar, mas não encontrasse terra firma. tudo o que é sólido se desmancha no ar. nunca algo foi tão verdadeiro.
senhor eterno perdoa minha suficiência. não sou o dono do mundo, embora maus conselheiros tenham me dito o contrário. não sou o senhor da guerra, nem sei manejar as palavras com a habilidade com que um samurai maneja sua espada.
levanto-me, vou até a janela. fico ao lado de anabella. ponho a mão no seu ombro, num pequeno gesto de carinho. sei que não tenho o direito de quebrar esses momentos de mergulho. são os primeiros em muitos dias. não tivemos tempo, não paramos para pensar, apenas fugimos da morte. estamos mortos.
lá fora alguns operários com britadeiras fazem um buraco no meio da rua. que cena terrível. homens de cera cavando sepulturas no asfalto. o ruído atravessa nossos sentidos e esmaga nossos sentimentos. não existe realidade, não existe sonho, tudo é pesadelo. sinto uma dor forte no estômago. tiro a mão do ombro de anabella e me sento de novo.
eterno, o passado pesa como uma bigorna presa aos meus pés. nada sei do meu presente e nem imagino qual será meu futuro, mas reconheço que sou pó, um grão de areia em meio a uma vastidão que não criei. perdoa minha luxúria. perdoa o sofrimento que causei a reyna.
olho para a janela e anabella continua paralisada. meus olhos estão mareados pelas lágrimas. anabella parece reyna. sei que são diferentes, mas o foco se perde e reyna está diante da janela olhando os operários de cera, que cavam sepulturas no asfalto.
yoffe, a guerra não acabou. masaryk e também dubček estão mortos, parte da liderança da unidade populární está presa, estamos mortos, mas a guerra não acabou.
anabella, querida, ainda que você tenha razão, ainda que a vitória seja tão certa como o sol que brilha lá fora, estou morto. vejo um pôr-do-sol de chumbo e dias de vales de ossos secos, como a sepultura que os operários estão cavando lá fora.
eu cometi um crime. não, não foi um crime, foi uma dilaceração. peguei todas as notas de compras da viagem, cada papelito e rasguei e joguei no lixo. e por que foi um ato tresloucado? porque a minha memória é construída de emoções, sensações, racionalizações e muitos, mas muitos pequenos papéis de viagens. e talvez porque uma tragédia nunca se faça sozinha, peguei todos os meus cartazes e notas e papéis de minha viagem a cuba e também joguei fora. foram-se passando as horas e uma angústia foi me dominando. um sentimento de ausência, de perda, uma tristeza louca por estar jogando fora um pedaço de mim. na verdade um pedaço de minhas memórias.
sou um escritor de pedaços: cada notinha, ainda que seja de compra num free shop tem um valor enorme, maior do que o preço do produto, que certamente já foi consumido. para minha alegria, a lata de lixo, que não é de lata mas de plástico, fica da área de serviço da casa. e agora, hoje, eu tenho uma preciosidade, um montão de papel picado e cartazes rasgados, não sujos, mas empoeirados, meio amassados, que vou guardar e pesquisar como um cientista louco por palavras sem sentido.
2.610 minutos antes
é isso mesmo, gosto de palavras, mas não gosto da palavra dada, entregue, pronunciada. gosto da palavra destruída de sentido, desmantelada, que apresenta novos significados, que se torna signo desconhecido, apontando realidades que só existem depois, ao final. é por isso que sofro com aquele revisor, que indevidamente conserta palavras que desejo desconsertadas.
escrevi: “em praha fixo irado”. e disse para a brianda, minha mulher, algum maldito vai rescrever “em praha fico irado”. e fazer isso será um absurdo porque “fico” é do verbo ficar e “fixo” é do verbo fixar. escrevo “em praha fixo irado” porque no meu antigamente houve um guerrilheiro que se chamava tiro-fijo, em espanhol, e que traduzido quer dizer “tiro certeiro”, mas que eu sempre li e entendi como “tiro-fixo”, porque debruçado na mira, como amante sobre a amada, era mortal. só quem sofreu com os papéis lançados na lata de plástico do lixo pode dizer se eu em praha fico irado. não fico irado não, fixo irado.
desmontei a palavra, depois, remontei-a conforme a minha estética precária exige. é isso mesmo, a estética exige, tem jeitos que ela mesma define, é uma senhora brava, uma matrona cheia de manias. mas a minha é precária, pois no diálogo com essa matrona, ela entra com sua autoridade e eu com minha fragilidade de escritor. e, então, se dirá: mas, e o leitor?
bem, o leitor é o grande construtor da realidade estética do texto. e repare por quê! o autor é o momento da luta com o caos, ele criou seu texto a partir de emoções, sensações, racionalizações e muitos, mas muitos pequenos papéis de viagens. e da dilaceração permanente, contínua, de cada palavra, de cada sentença, tirou delas o sentido esperado. fez do esperado, desespero. criou sentidos que só pertencem a ele, como o exemplo do fixo irado. mas, o leitor é o ato de liberdade que possibilita a todos os sentidos e a qualquer sentido ter de fato sentido. por isso quando eu digo em praha fixo irado, você vai convidar a matrona para a cama, vai dormir com ela, nem que seja só para se aquecer. de todas as maneiras, ela vai se adocicar diante da sua ternura e abrir possibilidades novas que o autor nunca, jamais, tinha pensado. e o leitor tem esse direito, porque ao possuir o texto vai fazê-lo dele, é quem de fato lhe dá vida.
mas vamos falar agora, um pouco de minha viagem a praha, que posso traduzir como uma volta ao local do crime. crime meu e crime cometido contra milhares e eu aí incluído. crime contra a alegria, a liberdade e o pensamento.
brianda comprou cerejas numa banca de frutas em frente à universidade charles de praha. é tempo de cerejas em praha e elas são tão doces que doem na garganta. tinha ido visitar a minha antiga universidade e cultivar lembranças. geralmente se cultiva lembranças como frutas, é preciso terra. donde a necessidade de voltar ao local do crime, de sentir os pés sobre a terra, respirar o cheiro do lugar, ouvir sons que estão adormecidos na memória. por isso, caminhamos degustando cada cereja, porque as frutas já não eram frutas apenas, mas o açúcar do tempo das cerejas.
veja como é guadiana. “o tempo das cerejas” é uma canção de dois franceses, clément e renard. foi escrita e musicada em 1866, antes de explodir a comuna de paris, uma pequena, mas grande revolução que durou apenas três meses. mudou a maneira de se pensar o solidarismo. marx, por exemplo, ficou extasiado diante daquela experiência do proletariado. o tempo das cerejas não é uma canção revolucionária, mas de amor. a última estrofe foi agregada posteriormente e dedicada a uma enfermeira morta em defesa da comuna. essa estrofe foi escrita debaixo do fogo da semana sangrenta, quando milhares de combatentes da comuna foram massacrados. “le temps des cerises”, que você pode ouvir e baixar na internet, me lembra o hotel residencial londres, que fica na ulice londres, em praha. o prédio foi construído entre 1923 e 1929, e em 1964 transformado em hotel por ilic e adela dumand. e deu um charme especial ao bairro paris-londres no centro da cidade. na ulice londres, no hotel residencial londres fui preso do ataque dos guardiães.
o tempo das cerejas entregou a cabeça da mulher, serviu o sangue da virgem num cálice, cada gole tem o sabor da vida derramada, mochileiros franceses, macho, fêmea e filhote, dizem à demain para as cerejeiras, a rua está perfumada, a alameda é atravessada.
para quem gosta de palavras é muito difícil deixar gabriela e pablo de lado. são momentos de sacralidade do dito e escrito. neruda tinha uma mania que eu também tenho, gostava de casas. casa para ele não era abrigo ou lugar de morar. era navio, lugar de memórias e casulo para amar. por isso, mandou construir la chascona, a desgrenhada, que foi a casa dele com a terceira companheira, matilde. é bom lembrar que matilde tinha cabelos vermelhos. e eu, numa homenagem transversal ao poeta, também cheguei lá de cabelos vermelhos. e me senti muito bem, ruivo, a papear com sharon no jardim. ricardo eliécer neftalí reyes basoalto foi um homem de muitas faces, mas a que mais admiro, além daquela de poeta, foi a de militante peregrino. estudou pedagogia, foi diplomata, senador, nobel de literatura, mas nós nos lembramos dele como neruda, o poeta peregrino.
e viveu em la chascona. morreu aí, junto com a alegria, a liberdade e o pensamento. la chascona, que agora é história, está ao lado do cerro san cristóbal e foi construída em níveis. um jardim serpenteia a casa e cria hoje paisagens propícias ao cultivo de memórias. nesse jardim, eu e sharon descansamos, olhando para a sombra das pequenas árvores, quietos, silentes, vendo turistas passantes e brianda desaparecida a fotografar.
o tempo das cerejas fugirá para outras bandas, miró mia nas minhas lembranças, rabisco no la chascona ao poeta, bardo brado, por onde anda a ode? flagelo e sal, sangue e semente, formigas desfilam sobre o açúcar derramado, você e eu descarrilados, por poemar instantes, beleza é água na garganta seca.
2.611 minutos antes
você já prestou atenção no caminhar? é diferente caminhar em terra batida, em terra molhada, na grama. são apenas duas ruas de paralelepípedos e mansões dos anos 1920, uma se chama paris, como aquela da comuna, e a outra londres, como aquela de cromwell e seus republicanos. de manhã, caminhar em ruas de paralelepípedos nos dá a sensação de segurança e desequilíbrio. você sai do asfalto, do cimento e vai devagar a pisar paralelepípedos. sinta com atenção. veja a diferença. sentiu, brianda? veja como é gostoso, sharon? aqui as ruas não são apenas belas, estão paradas no tempo, frescas, sombreadas. aqui não há lojas. há pequenos hotéis, escolas e esse café maneiro ao lado do hotel. com uma praça e tudo, à moda antiga, um pedaço da europa no meio de praha.
mas como sonho e pesadelo são estados do adormecido, em frente ao meu hotel residencial londres há um prédio pichado “aqui torturaram e assassinaram”. e quando meio dormindo, meio acordado, tentava descobrir o que estava lendo, um cicerone não convidado se aproximou e disse: “esta era uma das muitas casas onde a ditadura torturava e assassinava pessoas”. conversamos poucas frases sobre violência e crimes políticos, e tráfico de drogas no a terra dos brasis, mas rapidamente meu interlocutor escafedeu-se.
essas ruas de praha, manchadas de sangue, me remetem a um militante, homem de fé, um outro lutero, herói de trezentos milhões de negros espalhados pelo mundo e de um presidente federação americana. mas tudo começou com rosa parks. ou como contou o jornal da contra-mão.
uma costureira negra, dirigindo-se do trabalho para casa em montgomery, recebeu ordens de um motorista branco para que se transferisse para a parte de trás do ônibus. rosa estava sentada, em um dos bancos da frente, e simplesmente recusou-se a mudar de lugar. foi presa por violação às leis de segregação do alabama. a comunidade negra enfureceu-se. os negros disseram que já vinham sendo insultados há demasiado tempo por motoristas de ônibus brancos, e declararam que não tomariam mais qualquer ônibus até que a segregação fosse eliminada e certo número de motoristas negros fosse admitido.
liderados por este outro lutero, os negros de montgomery simplesmente boicotaram os ônibus até que a empresa, quase à bancarrota, submeteu-se às exigências. em breve, os negros de muitas cidades do sul recorreram à técnica do boicote para conseguir melhor tratamento nas lojas e outras casas comerciais, e para assegurar melhor emprego para sua gente. se os autores do boicote usavam a não-violência, eram ao mesmo tempo militantes e obstinados. certamente, tiveram importância na obtenção de certas mudanças que o sul da federação, com sua veemente resistência a toda e qualquer transformação, consideraria revolucionária.
para este king, o poder autêntico era a verdade. entretanto, esta verdade não seria norma abstrata que se impõe à realidade. seria, sobretudo, a expressão concreta da tendência última do real. a verdade só teria poder se fosse uma tendência de vida, de uma sociedade, a verdade de um grupo que detém, interiormente, na sociedade, o poder.
teoria e prática se fizeram carne e sangue na vida deste king e, no dia 4 de abril de 1968, quando preparava uma marcha dos negros na cidade de memphis, tennessee, foi atingido por tiros. anos depois, o jornal da contra corrente orou pelo companheiro abatido:
desde a época em que chefiou o boicote dos ônibus em montgomery, inúmeras foram as ameaças à sua vida. foi publicamente denunciado e alvo de abjetos epítetos. o próprio clima tornou-se tão carregado que, considerando-se agora as coisas, percebe-se que um fim violento para o líder negro era inevitável. todavia, a federação branca não podia antecipar a reação da federação negra ao assassinato a sangue frio de um de seus líderes mais poderosos. vários dias de desordens, incêndios e pilhagens em muitas cidades foram a louca manifestação de um amargo desespero e frustração. mesmo os que prantearam a morte deste lutero negro sem qualquer mostra exterior de emoção revelaram-se tão sensíveis no apreço de seu significado quanto aqueles cuja reação foi violenta. longa eternidade caro rei!
a conquista violenta dos instrumentos de poder social não decidia a vitória de uma revolução. isso só acontece quando se estabelece uma nova estrutura de poder, amplamente reconhecida. é um erro pensar que amparar a revolução no aparelho do poder garanta a vitória. o aparelho do poder deve ser renovado constantemente a partir das forças da sociedade, forças pessoais, materiais e ideais. caso contrário, a revolução desaba, mesmo quando os meios técnicos permitem que se imponha por tempo maior àquele de épocas não desenvolvidas.
mas do que palavras, a militância, na relação a este king, traduziu a compreensão de que há uma dialética de ferro entre verdade e poder. e que o poder verdadeiro nasce da verdade última, aquela que transcende o momento presente e permanece no coração e mente dos excluídos. essa compreensão, mesmo quando não é corretamente traduzida pelo grupo que chega ao poder, continua a marcar o horizonte último da ética libertária.
londres-fixo, aranhas sopradas pelo vento norte, lugar de sonhos desperdiçados, picadas na carne nova, matinais de 11 de setembro, o azul cede ao cinza, morcegos desconstroem flores, palavras duras decretam o fim da esperança, olhos mareados, a porta esmurrada, a fronte torturada, o corpo desfilado, olho perdido na esquina.
deixo para trás paris-londres, olho a igreja de san francisco, a construção mais antiga da cidade. caminho algumas quadras na sequidão sob um sol de trinta e poucos graus pela principal avenida da cidade, que a corta de leste a oeste, e recebe o nome de um libertador, mas é conhecida como alameda apenas. ali perto, a poucas quadras, há um palau, o de les persones.
e me lembro de um político, salvador, masaryk, que depois conheci como dubček, que depois de três derrotas, veio a vencer as eleições presidenciais. governou com uma frente popular capitaneada por socialistas e peregrinos. acreditava que poderia levar a československá ao solidarismo através do processo democrático, sem enferrujamentos violentos. mas isso não aconteceu. e como a direita e a federação no norte viam masaryk, e também depois dubček, como o príncipe das trevas, todos os setores de oposição, inclusive os democratas peregrinos, se organizaram e com apoio dos guardiães, se lançaram ao golpe. masaryk e dubček, em modos e tempos diferentes, foram derrubado. o palau e as fábricas, onde trabalhadores organizavam a resistência, foram bombardeados. foram tempos de chacina.
londres-fixo, nem caetano, nem gil, é ilha no nada, lagartos da inexistência, tristeza, espanto, perplexidade. tiago não tem salvador. coturnos abundam!
os limites estão mortos. décadas depois do golpe militar curto a cidade limpa, com metrô e prédios modernos. metrópole liberal, segundo o modelo dos rapazes de chicago, liderados por um friedman do norte. mas, permanece a sensação de que caminhamos sobre cadáveres que não foram sepultados com dignidade.
quando a dor é grande, quando a dor é grande, às vezes, eu duvido. quando a dor é grande, às vezes, eu pergunto: estou mal de coração, ou estou mal de ouvido? se há resposta é o nome, se há caminho é a paixão. são tantas as coincidências, que coincidências não são: é a tua presença na minha vida. quando a dor é grande, eu creio. sei que é o meio da tua presença na minha vida.
2.612 minutos antes
eis que antes das emanações serem emanadas e das criaturas serem criadas, a simples luz superior preenchia toda a existência. e não havia lacuna, como uma atmosfera vazia, um vácuo, ou um buraco, mas tudo era preenchido com simples e ilimitada luz. e não havia tal parte como cabeça ou cauda, mas tudo era luz simples e suave, equilibrada igual e uniformemente, e foi chamada luz infinita.
28.
bendita seja a eternidade de nossa descendência. envia a redenção aos povos. bendita seja a eternidade de nossa descendência.
yoffe fala sobre a identidade humana
zlabya, como estamos a falar de memórias da família, quero que pense comigo uma questão: quem é o ser humano e o que caracteriza a nossa existência. é um assunto complicado, mas importante para quem deseja agir e construir o mundo.
estou na sala de casa, de paredes brancas, enrugadas, sentado em uma almofada, bem à moda safardi. e penso: a busca pela justiça passa por colocarmos no seu devido lugar a questão da identidade humana. veja você, será que a existência se reduz a um conjunto de sensações, de emoções? não podemos admitir a identidade de uma pessoa se ela não puder ser percebida pelos sentidos? se for assim, o cérebro é a causa da identidade e qualquer outra hipótese é inútil.
vou entrar com toda a cautela na conversa. é gostoso conversar com um descendente sábio. se no corpo humano existem apenas fenômenos sucessivos, sem laço que ligue o passado ao presente, como se explicam o hábito, a associação de ideias e a memória? ora, é necessário admitir que existe em nós uma realidade que vai além do cérebro e se liga aos atos que praticamos. esta realidade é a própria identidade que expressa a existência de cada um de nós. e se existe a existência, tenho que perguntar o que ela é. tomando como modelo a complexidade do mundo, prefiro dizer que devemos ver que existem duas hipóteses: a existência se projeta na eternidade ou só existe o momento presente e o resto é aparência e virtualidade? como combinar uma indigestão com o sentido pleno da vida? somos substância extensa, divisível e palpável, seguimos e vamos além do momento. a existência é essa extensão e cada pessoa tem identidade na existência. não é uma unidade numérica, mas una na sua diversidade. mesmo quando a gente envelhece a identidade permanece. somos um ao longo do tempo e é esta unidade na existência que me confere identidade.
talvez você por ser um descendente sábio, me questione: certo, yoffe, você defende o princípio da existência que se projeta na eternidade. você está dizendo que eu sou hoje e também amanhã. um pedaço de mim envelhece, se desgasta, mas a identidade permanece. não concordo com isso! eu sei muito bem que o cérebro está ligado à vida mental. se uma pessoa sofre uma lesão cefálica é quase certo que vai sofrer algum tipo de dano psicológico. o funcionamento do cérebro, as emoções e a memória estão relacionados. embora não possamos genericamente correlacionar os estados psicológicos com os estados cerebrais, sabemos que tal correlação existe. por isso eu digo que a vida mental tem origem no cérebro e que a existência enquanto extensão não existe.
2.613 minutos antes
nada como conversar com gente inteligente, querido descendente. por isso, deixe-me aprofundar os argumentos. a existência está unida ao momento e participa da vida, inclusive para realizar as suas operações. mas, também é independente nas suas funções. deste modo, a existência pensa e deseja. assim, a existência não está imersa no tempo presente, é independente sob diversos aspectos. lembro-me de que aristóteles, o mestre grego, dizia que um ser se conhece por suas operações. ora, de onde vêm as ideias? ser inteligente, pensar, são atividades da pessoa ou da existência? é a existência que trabalha a inteligência. a matéria está presa às leis da matéria, mas a existência por ser extensiva tem maior liberdade diante dos impulsos da sensibilidade. a existência goza de livre arbítrio. a simplicidade que caracteriza os fenômenos da inteligência impede que afirmemos que o cérebro seja a causa do pensamento. mas, é verdade, a inteligência precisa de um cérebro saudável para se expressar.
estou vendo, querido descendente, você desenhar rabiscos no ar. diga o que você acha. e o descendente constrói um diálogo, que já não é virtual, mas tomou forma e lugar.
yoffe, ancestral amado, há uma parte do seu argumento que eu gosto, aquela em que você fala da liberdade humana. só que para falar de livre arbítrio não é necessário falar de existência. você disse que a existência é extensa, una e indivisível, então como ela pensa, como se relaciona com os cérebros? além disso, você não explicou o que torna uma existência a mesma ao longo do amanhã e do depois de amanhã?
deixemos brianda falar também. de maneira nenhuma aceitaria ficar fora da conversa. e brianda diz: bem, caríssimos, creio que aqui os argumentos se esgotam e explicam os diferentes caminhos que buscamos para encontrar a justiça. aqui está a divergência: o cérebro é ou não é o instrumento de que se vale a existência para expressar os pensamentos extensos? e se tomarmos como ponto de partida o sábio aristóteles, quando disse que pensamos sem órgãos, que o entendimento não está ligado a nenhum órgão, e que pode trabalhar e existir separado do corpo...
mas nosso descendente não se deu por vencido. até esse momento não tinha se sentado. caminhava devagar pela sala, fitou brianda, a avó, com carinho e teceu sua argumentação:
bem, já que a avó brianda citou aristóteles, quero trazer para esta conversa uma hipótese. na verdade, uma parábola: um príncipe interrogou-se sobre como seria viver como um sapateiro. e um sapateiro sonhou em ter uma vida de príncipe. um dia eles tiveram a oportunidade de trocar todas as características mentais de ambos. o sapateiro passou a ter a memória, conhecimento e atributos pessoais do príncipe, cujas características mentais migraram para o sapateiro. depois da troca, a pessoa que agora é sapateiro lembrou-se ter sido um príncipe que desejava experimentar a vida de sapateiro. ele disse: “puxa, satisfiz minha curiosidade!” reconheceu-se como príncipe e não como sapateiro. e vice-versa. será isso mesmo?
mas a estória se complica, isto porque o príncipe havia cometido um crime horrível, e para escapar da condenação resolveu recorrer à troca de cérebros. após a troca, o crime foi descoberto, e os guardas vieram buscar o culpado. sem saberem o que aconteceu, prenderam a pessoa que agora é o príncipe, que começou a gritar se dizendo inocente. a pessoa que agora é o sapateiro, que se reconheceu como o príncipe criminoso, saltou de alegria por ter escapado da condenação. ora, se foi assim, era uma enorme injustiça, pois quem deveria ser condenado era a pessoa que agora é o sapateiro e não a pessoa que agora é o príncipe. veja, avô yoffe, a nossa identidade obedece à continuidade do cérebro. uma pessoa no passado permanece idêntica a ela mesma no futuro se forem mantidas a memória e as características individuais dela. o príncipe que agora é o sapateiro é de fato o príncipe e, por isso, aquele que agora é o sapateiro é culpado pelos crimes do príncipe, uma vez que lhe é psicologicamente contínuo. e este deveria ser o veredicto correto: o sapateiro com o cérebro do príncipe é quem deveria ser condenado.
opa, percebi o ponto fraco do argumento do descendente e resolvi, então, complicar a estória: mas eu desejo acrescentar uma pergunta a sua estória, meu querido descendente: e se pudéssemos duplicar um cérebro e colocá-lo em corpos diferentes. esses dois corpos seriam pessoas iguais ou diferentes? e se fossem diferentes, onde estaria a base da identidade da pessoa, o que faria dela uma pessoa diferentes da outra? logicamente, não o cérebro, mas a existência que cada uma passaria a viver a partir dos cérebros colocados nos corpos. com isso, quero dizer que a identidade de uma pessoa não reside no cérebro apenas, mas na existência que se vive. ou seja, é a existência que constrói o nosso cérebro. por isso, descendente creio que talvez haja um ponto de contato entre nós. talvez essa existência seja aquele sopro inicial lançado em nossas narinas pela eternidade, que será construção no caminhar de nossas experiências, emoções, sentimentos. e se for assim até mesmo a identidade é uma construção, algo que nos pertence enquanto potência.
o descendente caminhou devagar em direção a uma almofada grande. procurou uma posição confortável e ouviu com atenção os argumentos do avô. com deleite se lembrou de uma estória que falava do humano pobre e do humano rico. essa estória traz imagens ilustrativas de julgamento e recompensa. era uma estória construída para sábios e religiosos. os sábios não pensavam existir vida eterna no sentido de recompensa e julgamento, apoiando-se na visão de que o repouso eterno é o lugar de todos os que morreram, sem diferenciação. mas a estória estava dirigida também aos religiosos, que esperavam a instalação do reino eterno. as palavras tiveram uma audiência específica. a ênfase das palavras era referente ao julgamento e não à recompensa. porque a penalidade do juízo não é o contraponto da recompensa, mas do reino do eterno. nestes termos, as palavras também visavam os sábios.
2.614 minutos antes
o reinar da eternidade já chegou e começou no ontem, está no hoje e se projeta no amanhã. esta vida no reinar da eternidade é a vida das eternidades, que começa aqui e continua para sempre. como a vida do reino é deixar que o eterno reine nas gentes, a recompensa é a continuação do reinar da eternidade. a morte não interfere no reinar, apenas modifica a esfera de sua atuação. o ser humano após a morte tem suas emoções, histórias e memórias guardadas eternidade a dentro, a espera do ser levantado que lhe abrirá os céus e terra novos -- na intimidade do reinar da eternidade ou na separação do que é eterno. para tratar a estória do homem pobre e do homem rico, é necessário ver que as palavras estão dirigidas a pessoas para evocar respostas. assim, é necessário compreender o contexto das palavras a quem estava sendo dirigida e com que objetivo foram empregadas. algumas questões devem ser colocadas de antemão. o contexto maior começa fazendo uma diferenciação entre a prática dos religiosos e a forma de vida do reinar eterno. há críticas ao espírito da religiosidade. a crítica enfatiza o tipo de vida do reinar da eternidade, a vida das eternidades, por sua qualidade. a crítica questiona a confiança de quem tem certeza de que estará presente no grande banquete do reino eterno: são os pobres, os coxos e os cegos que se encaminham ao banquete, porque as pessoas mais óbvias da lista de convidados estão preocupadas com outros assuntos.
então brianda deu um salto de sua almofada e falou rápido, como se não quisesse ser interrompida por ninguém: temos um acordo. seu argumento é: se um louco pudesse ter transplantado o cérebro lesado por um outro que fosse são, com certeza pensaria de modo correto. isto porque a desordem e a deterioração dos órgãos não lesam a inteligência em si mesma, mas somente a privam das condições e meios requeridos para o seu funcionamento normal. pode-se dizer, então, que o cérebro é a interface entre o espírito e o mundo material.
oba, não estou só. aristóteles e os nossos ancestrais não admitiam nas pessoas dois princípios de vida, mas afirmavam que além da atividade consciente e psicológica, a existência inteligente possui também a faculdade de presidir às funções fisiológicas. desta maneira, a existência seria o único princípio de toda a atividade vital das pessoas -- da vida vegetativa e sensitiva mas, também, da vida propriamente espiritual. a correlação íntima que existe entre as diversas operações da existência pensante, inteligência, sensibilidade e vontade, prova a unidade substancial do princípio de onde elas se originam. esta mesma correlação se verifica entre as operações as funções orgânicas e psicológicas.
e nesse momento, o descendente fez um dueto com o avô: uma comoção violenta da existência pode parar a circulação do sangue ou pode gerar o medo que paralisa. mas pode também, ao contrário, levar à confiança que sustenta as forças físicas. ou seja, os distúrbios físicos atuam sobre nosso estado moral, e isso é reciproco. demonstrada a união da existência, como se faz esta união?
e eu acrescento: a pessoa não existe fora da existência. da existência, o corpo recebe a sua unidade, a organização, a vida e atividades próprias, numa palavra, tudo o que faz dele humano. assim, o corpo apenas se separa da existência pela morte, quando perde todos estes caracteres, todas as suas determinações específicas, dissolvendo-se nos elementos químicos de que foi formado. quanto à existência, sem dúvida, existirá, na sua trajetória que engloba todos os humanos, sem corpo não há as faculdades que exigem o concurso dos órgãos corporais, como a imaginação, a percepção externa e a sensibilidade. deste modo, o corpo é a matéria e a existência é a forma, e a união do corpo com a existência constrói um todo substancial e verdadeiro. é esta união no ser que faz da existência e do corpo um só princípio de ação, que faz com que não haja ação humana na qual o corpo não faça a sua parte, nem ação humana tão humilde e material que não repercuta na existência.
talvez por não ter tantas oportunidades de uma conversa franca com yoffe, devido as limitações do espaço-tempo, o descendente se mostrou curioso diante dos argumentos do avô. e disse agora com carinho: é certo, entendo, com a morte o corpo se dissolve. acontecerá o mesmo com a existência e morreremos inteiramente? o que é a eternidade?
vejo essa pergunta, querido descendente, como um clamor da existência. considero, e desejo essas reflexões ecoem através de todos vocês que leem, pensam e agem, que no eterno está a sobrevivência pessoal e substancial, a identidade permanente da existência, que conserva as suas faculdades de amar e conhecer, sem as quais não há felicidade humana. no eterno, a existência mantém a consciência da sua identidade, com as lembranças e responsabilidades do ontem que permanece, sem as quais não poderia haver nem recompensa nem julgamento: em uma palavra, não existiria o princípio da justiça do eterno. o corpo se desagrega e se dissolve logo que se separa do seu princípio de unidade, da sua forma substancial que é a existência. a existência do ser como é não pode decompor-se, nem se desagregar, permanece no coração do eterno. este é o argumento ontológico da premissa de que a existência se projeta na eternidade. se há o eterno e sua lei moral, a justiça exige que o crime seja punido e a virtude seja recompensada.
neste mundo, nem a natureza, nem a sociedade, nem a própria consciência dispõem de atributos suficientes para recompensar plenamente a virtude ou punir adequadamente o vício. é necessário, portanto, que haja projeção da existência onde a justiça seja plenamente satisfeita e a ordem seja estabelecida. este é o argumento moral, que demonstra a projeção da existência, mas não prova que esta existência seja ilimitada na sua duração. o argumento psicológico, que prova a perseverança da existência humana, assenta sobre o princípio de que o eterno não se contradiz, por isso ao dar um fim a um ser, lhe dá também os meios de o atingir. tudo na natureza do humano aponta para o fato de que é criado para atingir a felicidade. mas, se não pode alcançá-la neste mundo, deve haver outra realidade onde tal projeto se concretize. e como a felicidade pressupõe expansão sem limites, segue-se que a realidade futura teria esta qualidade.
2.615 minutos antes
o ser humano aspira a um objeto eterno, a uma beleza, bondade e verdade plenas, cuja posse nos deve fazer felizes. nossas faculdades superiores possuem capacidade ilimitada, que não podem se satisfazer fora deste bem eterno, que não é outro senão o próprio eterno. mas, encontramos neste mundo o que sacia esta sede de felicidade humana, que preencha o vazio do coração criado para o eterno? a natureza é tão limitada e o mundo tão pequeno; esta vida é tão curta e a realidade tão imperfeita! queremos amar, queremos viver o mais possível, mas encontramos decepção, dor e morte. assim, é evidente a desproporção entre os nossos meios e as nossas necessidades. o repouso eterno e alguns outros sinônimos que aparecem falam de um lugar para aqueles que deixaram o mundo dos vivos. o repouso eterno sempre foi visto com uma multiplicidade de facetas. pode ser lugar de destruição, lugar de silêncio, reino dos mortos. mas todos as leituras remetem à ideia de lugar dos que dormem. e também podemos falar de abismo, deserto e profundezas.
o contraste entre o desespero que se agarra às existências das pessoas e a esperança do reino do eterno também está expressa no ser levantado para a vida. quando falamos do repouso eterno, as fronteiras da vida são definidas. as leituras da estória do homem pobre e do homem rico não visa realçar a dimensão espacial, mas a realidade relacional. por isso, o repouso eterno não é tanto a dimensão do espaço e do tempo, mas estado de solidão, separação da vida. não podemos esquecer que lei implica no conceito normativo de retribuição. o justo deveria receber recompensa material e o injusto carecia de bens, prazeres e saúde. ricos eram naturalmente abençoados e dignos do reino. mas as leituras da estória do homem pobre e do homem rico desconstrói essa norma e nomeia o mendigo. é interessante notar que o pobre tem nome, é lázaro, mas o rico não. lázaro é eliezer, aquele a quem o eterno ajuda. ter nome compõe identidade, nomeia o quem é quem. há aí distinção entre o valor da vida do pobre em relação ao rico. lá naquele época, o rico tinha destaque e atuava com desprezo frente ao mendigo. o eterno, porém, o socorre. donde, as críticas às práticas dos religiosos: a negligência para com os sem posses de bens e direitos, o fazer bem aos que podem retribuir, o orgulho e a infidelidade à lei, que exige amor ao próximo.
a estória fala da vida e levanta algumas questões que dirigem o pensar: ao renascer para um vida há consciência do estado, memória, juízo imediato, o que implica em alguma forma de retribuição. há conforto para os justos oprimidos, não há mudanças no juízo, e a informação para receber o descanso está na lei do eterno. assim, a eternidade se preocupa com aqueles descartados pela sociedade. não há retorno para esta vida terrestre. a confiança no eterno é o único mérito de homem pobre, que se expressa no nome que tem, eliezer. a vida neste mundo é de pouca valia quando se passa à dimensão da eternidade.
uma pergunta que provém do estudo dessa estória pode bem ajudar a redefinir as prioridades do quotidiano. que diferença faz a presente circunstância ou forma de atuar em termos de vida daqui a dez mil anos? em certo sentido, é esta a pergunta que a estória faz aos religiosos. outras registram a preocupação de ter um corpo inteiro quando formos levantados -- para tal devemos guardar qualquer parte do corpo que for amputada para ser incluída com o resto do corpo no sepultamento. mas, parece que é melhor perder um olho se fizer a diferença no ingressar no reinar da eternidade. melhor viver no reino coxo, cego, ou aleijado do que perder o reino por completo.
o descendente olhou para mim e quase como desabafo disse: eu não concordo, aqui e no mundo, em todo ele, as gentes estão nas ruas, clamam por liberdade e justiça e você avô lança a questão para as calendas. mas entendi o seu argumento: a questão da justiça, por relacionar identidade e eternidade se resolve numa equação: há a eternidade sábia e justa; nenhuma contradição é definitiva. temos então uma dimensão onde se estabelece o equilíbrio entre o que desejamos e o que podemos. e porque a existência se projeta na eternidade, a eternidade constitui o elemento essencial da felicidade completa, já que não se pode gozar plenamente um bem quando receamos perde-lo.
ao que eu, cheio de alegria, por esta conversa com a minha descendência, completo: é, zlabya, por isso, afirmo: a existência futura, a eternidade, é infinita e sem limites, e sua realização é justiça e liberdade, em conformidade com os desígnios do eterno.
homem baleado no peito... eu estava em casa dormindo. dei um longo abraço em minha mulher. ela foi para seu posto de combate, na central de comunicações do partido socialista e eu para o meu.
jovem triste... tenho 23 anos e hoje é o dia do meu casamento. deveria ser o dia mais feliz e importante de minha vida. estou todo molhado, tive que ajudar a apagar o incêndio do palau, depois da chuva de estrelas.
jovem triste... o primeiro som de combate foi impressionante. o martelar de uma metralhadora pesada. eu estava na rua morandé, 80. minha missão era cuidar da porta. quebramos os vidros e respondemos ao fogo. vimos um tanque e a tropa atrás. os soldados não queriam avançar, mas os oficiais os obrigavam, sob a ameaça das armas.
moça desgrenhada... estão falando em milhares de mortos. em gente boiando no mapocho?
senhora de 55 anos... será que pode haver gente tão desalmada assim, a ponto de matar trabalhadores indefesos?
moça desgrenhada... matam sim e com apoio de gente de fora, com a participação descarada dos estados unidos, do financiamento que deram aos caminhoneiros, aos comerciantes e agora aos guardiães...
homem baleado no peito... recebi ordens de acompanhar o responsável pelo armamento, para tirar e distribuir as armas que estavam num depósito perto do parque cormo.
moça desgrenhada... a senhora tem alguma esperança em bátora?
senhora de 55 anos... não falei de bátora, falei de gente desalmada...
moça desgrenhada... mas e bátora? gosta ou não gosta?
senhora de 55 anos... você está me provocando... claro que não gosto.
moça desgrenhada... senhora, não estou lhe acusando. mas ele assassinou meus sonhos...
senhora de 55 anos... e os meus também...
jovem triste... só às duas e meia da tarde tomei consciência de que estava vivendo um absurdo. estava no meio de um combate aberto com os guardiães, era bala para tudo quanto é lado, e foi aí que resolvi telefonar para isabel e dizer que nosso casamento deveria ser adiado. mas que nos veríamos à noite. eu estava embaixo de uma escrivaninha, com um telefone de um lado e o fuzil de outro.
operário, veste um macacão manchado de graxa... o que você acha de masaryk/dubček?
um homem destoa do ambiente... eu que pergunto: em que deu seu governo?
operário, veste um macacão manchado de graxa... mas por que vocês se juntaram à oposição e à direita?
um homem destoa do ambiente... eu não me juntei à direita, por isso tenho direito de perguntar: quem derrubou a unidade populární? a intolerância dos guardiães ou masaryk/dubček e a fome?
e através daquela linha, ele emanou, criou, formou, e fez todos os mundos. antes destes mundos virem a ser havia um infinito, um nome, em maravilhosa e oculta unidade, e mesmo nos mensageiros mais próximos a ele não há capacidade de atingir o infinito, pois não há mente que possa a ele perceber, porque ele não tem lugar, nem limite, nem nome.
2.608 minutos antes
26.
operário, veste um macacão manchado de graxa
masaryk/dubček ia colocar seu cargo a disposição do povo, ia chamar a um plebiscito e por isso os guardiães deram o golpe de estado. essa é a verdade.
um homem destoa do ambiente... então foram os guardiães, e eu não tenho nada com isso...
operário, veste um macacão manchado de graxa... vocês se aliaram à direita civil...
um homem destoa do ambiente... de acordo com sua lógica quem não apoia a up é de direita. eu não apoiei a up e não sou de direita.
operário, veste um macacão manchado de graxa... o único que a alegria cristã fez foi confundir as pessoas. e agora, com quem a alegria cristã pretende governar? ou vocês ficam com a alegria ou ficam com a ditadura. não dá para ser pilatos a vida inteira.
um homem destoa do ambiente... sabe de uma coisa, o que passou, passou. temos que construir uma nova československá.
partidários da unidade populární em coro. ¡se siente, se siente, masaryk/dubček está presente!
jovem triste... isabel mora perto dos correios, em puente, e escutou as rajadas de metralhadoras. sua primeira reação foi dizer que eu ia morrer. pedi então para falar com seu irmão, um companheiro, um amigo extraordinário. olha, estamos no meio do golpe. então estamos indo para o palau, com reforços. não sejam loucos. é impossível, estamos isolados.
homem baleado no peito... além das armas do parque cormo, temos outros depósitos, o mais importante deles está na rua chile-espanha, perto de irarrázaval.
o jovem triste e o homem baleado contam suas histórias. todos ouvem em silêncio. ele entendeu. era uma despedida. senti novamente de sentido de missão que me levara ao gap. o combate é uma situação de violência física extrema, todos os sentidos estão dirigidos à luta, você pode morrer a qualquer momento. não há tempo para pensar no que foi sua vida. não há tempo. estou no depósito da rua chile-espanha faz meia hora. algo está errado, ainda não chegou a unidade que deveria pegar as armas. eu e os companheiros, usados como escudos, fomos obrigados a deitar na morandé. pensei que fossem nos esmagar com o tanque. mas, de repente, aparece um jovem guerreiro gaudiano, de porte senhoril, de luvas de couro e nos diz: senhores, vocês têm feridos? mandei buscar uma ambulância para retirar seus feridos.
às quatro da tarde, subimos para o segundo andar do palau, porque o primeiro estava em chamas. aí caímos todos. quando eu ia ser morto, um sargento disse que ia usar-me como escudo, porque dos prédios muitos companheiros estavam resistindo. resolvo eu mesmo carregar uma camioneta. deixo a casa e vou para irarrázaval com o responsável pelo depósito. o trânsito está pesado, todo mundo parece querer chegar em casa o mais rápido possível. vejo uma camioneta parada. jogo o carro em cima dela, desço, ponho a mauser na cabeça do condutor e dou ordem para que saia da camioneta.
meu colega pegou a camioneta e saiu cantando pneus. uma camioneta nos seguiu, e logo chegamos ao castelo de hradschin. quando descemos, um guardião tentou resistir, mas foi abatido. um dos nossos foi ferido, mas foi socorrido, fizeram uma bandagem para vedar o sangramento à bala no braço dele. foi o único da resistência ferido aquela noite. nos entrincheiramos.
no início da manhã tivemos o primeiro confronto sério. eu permaneci na camioneta, peguei uma metralhadora e me posicionei. usava uma parca verde oliva e estava completamente despenteado. um pequeno grupo, deixamos o castelo para trás e nos refugiamos na cripta de são carlos barromeu. às dez e meia, já com todas as armas que tínhamos guardado de forma apressada em quatro depósitos, . a comissão relação ordenou que déssemos início aos combates. são onze horas e somos 130 pessoas. estamos diante da alternativa péssima: heydrich está bem guardado...
um homem de quarenta anos entra na conversa. tem as mãos sujas de pólvora. seu olhar está fixo, em alguma coisa que a gente não vê. eu também combati no palau de les persones. sou do gap da regional praha centro.
jovem triste... eu não queria morrer aos 23 anos. e o que mais me incomodava era que eu não tinha filhos. nem um menino, nem uma menina, que pudesse contar a minha história...
partidários da unidade populární em coro. bátora assassino! bátora assassino!
homem baleado no peito... fomos para indumet. juntos com a direção mir começamos a programar um ataque conjunto. chega, então, outro companheiro da direção do gap e informa que o palau está pedindo ajuda. temos que romper o cerco.
homem de quarenta anos... o presidente foi morto por sete homens, um capitão, um tenente e cinco soldados. recebeu seis tiros, dois no pescoço e quatro no tórax. tiros de metralhadora cic 7.62, norte-americana. eram quase duas da tarde.
homem baleado no peito... carabineiros começam a cercar indumet. rubem sai e atira nos carabineiros. começa o tiroteio.
homem de quarenta anos... discutimos se devíamos nos render ou não. eu fiquei e com outros companheiros, pegamos o corpo do presidente, colocamos a faixa presidencial, e ao lado do corpo deixamos o seu fuzil akm 7.62, presenteado por fidel castro.
partidários da unidade populární em coro. bátora assassino! bátora assassino! o homem que foi baleado no peito, à queima roupa, que tem a camisa e a parca verde oliva queimadas, continua sua história. todos ouvem em silêncio. a rua é sem saída e um ônibus de carabineiros bloqueia a rua. começam a chegar tanques. vou tentar romper o cerco pela retaguarda. explodimos uma parede e saímos por trás. estamos em frente à coca-cola. león é metralhado. companheiros o levam de volta para a fábrica. os carabineiros invadem e fuzilam león e mais dois operários. cruzamos e nos enfiamos por uma rua ao lado da coca-cola. nosso comando chegou. um caminhão de guardiães tentou nos interceptar, mas respondemos com tiros de bazuca. o caminhou incendiou. pegamos todas as armas deles e fizemos um pequeno discurso exortando a que lutassem ao lado do povo e não contra ele. ocupamos a praça. tomamos um caminhão de bombeiros, ligamos a sirene e passamos de población em población chamando a população a resistir e a defender a unidade.
deixamos uma companheira que estava ferida no tornozelo. ficou com alguns moradores de uma población e se salvou. chegamos a um dos locais de concentração, segundo nosso plano de resistência. vários companheiros estavam chegando. um deles com uma camioneta cheia de armas. o companheiro responsável pela comunicação das brigadas dirigiu nossa reorganização. tínhamos 200 homens armados. somos então atacados por um águias do exército. ele desce à altura das copas das árvores e começa a nos metralhar. uns cem companheiros respondem de imediato. a águia é atingida e afasta-se rapidamente, mortalmente ferida. pensei derrubá-la com um tiro de m60, mas já não tínhamos essas armas à mão. no meio dessa confusão, pensei na frase do argentino: se a revolução é verdadeira, ou se vence ou se morre. para não sermos um alvo fácil e concentrado, criamos um comando para juntar-se aos trabalhadores que resistiam em duas fábricas. eu fui com esse comando. no caminho fomos atacados por unidades de guardiães. como a ordem era chegar às fábricas, um grupo ficou combatendo, enquanto outro, cerca de 50 companheiros, rompeu o cerco e seguiu seu caminho. chegamos a nosso destino e aí criamos nossa segunda defesa perimetral, com carros, rádio e o controle de vários quarteirões. às três da tarde tive uma reunião com o interventor dessa fábrica, um companheiro socialista. conseguimos pão e víveres para os combatentes. fui então informado pela central de rádio que até aquele momento não havia nenhuma comunicação das regionais. os guardiães tinham ocupado todas as rádios.
o homem de quarenta anos, que tem as mãos sujas de pólvora e o olhar fixo em alguma coisa que a gente não vê, interrompe: às quatro e vinte fugimos. o operário, que veste um macacão manchado de graxa e arrasta com dificuldade uma das pernas, completa: eis um homem digno.
o homem que foi baleado no peito, à queima roupa, que tem a camisa e a parca verde oliva queimadas, termina sua história. volta-se a fazer silêncio. às seis da tarde chega minha mulher. que alegria vê-la viva. nos abraçamos, nos beijamos, e a coloco para combater ao meu lado. saímos com duas camionetas cheia de companheiros para romper o cerco e também para aliviar a guerra que acontecia dentro de meu peito. nesse instante, águias de reconhecimento voavam baixo. fomos metralhados. não havia como seguir. esperamos que chegasse a noite para saber o que acontecia em praha e no resto do país. fomos informados que masaryk/dubček morrera no palau. não acreditamos. nossas informações vinham através das rádios controladas pelos guardiães e não acreditávamos nessas informações. falamos por telefone com diferentes regiões de praha para ver o que estava acontecendo. soubemos que os companheiros enterraram suas armas e tentam voltar às suas casas. vão para o sul de praha sem armas... está confirmada a morte de masaryk/dubček. do comando que partiu restam poucos homens...
partidários da unidade populární em coro. bátora assassino! bátora assassino! a curta distância, mas sem entrar no debate, um casal de jovens comenta em voz baixa: deixa que gritem. durante muito tempo fomos a maioria silenciosa, mas o passado não voltará, caminhamos para o futuro. meu olhar passeia triste pelo pequeno centro de praha. nem uma viva alma. é um espaço vazio habitado por fantasmas...
e quando por sua simples vontade, surgiu o desejo de criar o mundo e emanar as emanações, para trazer à luz a perfeição de seus feitos, seus nomes, suas denominações, que foi a causa da criação dos mundos, ele então se restringiu, no meio, precisamente no centro, ele restringiu a luz. e a luz afastou-se para os lados em torno daquele ponto central. e ali restou um espaço vazio, um vácuo circundando o ponto central. e a restrição foi uniforme em volta do ponto vazio, de forma que o espaço uniformemente circundou-o.
2.609 minutos antes
27.
operários de cera cavam sepulturas no asfalto.
ah meu senhor e meu eterno, como estou triste, como é profundo este abismo. os anos vão passar, mas esses dias não descolarão de minha retina. tudo isso ficou colado em minha alma. estou morto.
ontem, nossos fantasmas, eu e anabella vimos guardiães retirando corpos que flutuavam no rio. pessoas olhavam, mas logo aceleravam o passo. há um medo generalizado. ninguém acredita no que está acontecendo. todos queremos acordar desse pesadelo.
anabella olha pela janela do quarto. ela vai para a dimensão eterna dentro de minutos. mas, agora, acende um cigarro e continua olhando. suas mãos finas tremem. fora dois detalhes, que traduzem a angústia e o desespero, é uma estátua diante da janela. as mãos tremem e umas poucas lágrimas rolam em seu rosto.
não sei o que dizer. os pensamentos revoam. distantes passam voando e vão embora. meu pai, minha mãe... é como se minha alma procurasse pousar em algum lugar, mas não encontrasse terra firma. tudo o que é sólido se desmancha no ar. nunca algo foi tão verdadeiro.
senhor eterno perdoa minha suficiência. não sou o dono do mundo, embora maus conselheiros tenham me dito o contrário. não sou o senhor da guerra, nem sei manejar as palavras com a habilidade com que um samurai maneja sua espada.
levanto-me, vou até a janela. fico ao lado de anabella. ponho a mão no seu ombro, num pequeno gesto de carinho. sei que não tenho o direito de quebrar esses momentos de mergulho. são os primeiros em muitos dias. não tivemos tempo, não paramos para pensar, apenas fugimos da morte. estamos mortos.
lá fora alguns operários com britadeiras fazem um buraco no meio da rua. que cena terrível. homens de cera cavando sepulturas no asfalto. o ruído atravessa nossos sentidos e esmaga nossos sentimentos. não existe realidade, não existe sonho, tudo é pesadelo. sinto uma dor forte no estômago. tiro a mão do ombro de anabella e me sento de novo.
eterno, o passado pesa como uma bigorna presa aos meus pés. nada sei do meu presente e nem imagino qual será meu futuro, mas reconheço que sou pó, um grão de areia em meio a uma vastidão que não criei. perdoa minha luxúria. perdoa o sofrimento que causei a reyna.
olho para a janela e anabella continua paralisada. meus olhos estão mareados pelas lágrimas. anabella parece reyna. sei que são diferentes, mas o foco se perde e reyna está diante da janela olhando os operários de cera, que cavam sepulturas no asfalto.
yoffe, a guerra não acabou. masaryk e também dubček estão mortos, parte da liderança da unidade populární está presa, estamos mortos, mas a guerra não acabou.
anabella, querida, ainda que você tenha razão, ainda que a vitória seja tão certa como o sol que brilha lá fora, estou morto. vejo um pôr-do-sol de chumbo e dias de vales de ossos secos, como a sepultura que os operários estão cavando lá fora.
eu cometi um crime. não, não foi um crime, foi uma dilaceração. peguei todas as notas de compras da viagem, cada papelito e rasguei e joguei no lixo. e por que foi um ato tresloucado? porque a minha memória é construída de emoções, sensações, racionalizações e muitos, mas muitos pequenos papéis de viagens. e talvez porque uma tragédia nunca se faça sozinha, peguei todos os meus cartazes e notas e papéis de minha viagem a cuba e também joguei fora. foram-se passando as horas e uma angústia foi me dominando. um sentimento de ausência, de perda, uma tristeza louca por estar jogando fora um pedaço de mim. na verdade um pedaço de minhas memórias.
sou um escritor de pedaços: cada notinha, ainda que seja de compra num free shop tem um valor enorme, maior do que o preço do produto, que certamente já foi consumido. para minha alegria, a lata de lixo, que não é de lata mas de plástico, fica da área de serviço da casa. e agora, hoje, eu tenho uma preciosidade, um montão de papel picado e cartazes rasgados, não sujos, mas empoeirados, meio amassados, que vou guardar e pesquisar como um cientista louco por palavras sem sentido.
2.610 minutos antes
é isso mesmo, gosto de palavras, mas não gosto da palavra dada, entregue, pronunciada. gosto da palavra destruída de sentido, desmantelada, que apresenta novos significados, que se torna signo desconhecido, apontando realidades que só existem depois, ao final. é por isso que sofro com aquele revisor, que indevidamente conserta palavras que desejo desconsertadas.
escrevi: “em praha fixo irado”. e disse para a brianda, minha mulher, algum maldito vai rescrever “em praha fico irado”. e fazer isso será um absurdo porque “fico” é do verbo ficar e “fixo” é do verbo fixar. escrevo “em praha fixo irado” porque no meu antigamente houve um guerrilheiro que se chamava tiro-fijo, em espanhol, e que traduzido quer dizer “tiro certeiro”, mas que eu sempre li e entendi como “tiro-fixo”, porque debruçado na mira, como amante sobre a amada, era mortal. só quem sofreu com os papéis lançados na lata de plástico do lixo pode dizer se eu em praha fico irado. não fico irado não, fixo irado.
desmontei a palavra, depois, remontei-a conforme a minha estética precária exige. é isso mesmo, a estética exige, tem jeitos que ela mesma define, é uma senhora brava, uma matrona cheia de manias. mas a minha é precária, pois no diálogo com essa matrona, ela entra com sua autoridade e eu com minha fragilidade de escritor. e, então, se dirá: mas, e o leitor?
bem, o leitor é o grande construtor da realidade estética do texto. e repare por quê! o autor é o momento da luta com o caos, ele criou seu texto a partir de emoções, sensações, racionalizações e muitos, mas muitos pequenos papéis de viagens. e da dilaceração permanente, contínua, de cada palavra, de cada sentença, tirou delas o sentido esperado. fez do esperado, desespero. criou sentidos que só pertencem a ele, como o exemplo do fixo irado. mas, o leitor é o ato de liberdade que possibilita a todos os sentidos e a qualquer sentido ter de fato sentido. por isso quando eu digo em praha fixo irado, você vai convidar a matrona para a cama, vai dormir com ela, nem que seja só para se aquecer. de todas as maneiras, ela vai se adocicar diante da sua ternura e abrir possibilidades novas que o autor nunca, jamais, tinha pensado. e o leitor tem esse direito, porque ao possuir o texto vai fazê-lo dele, é quem de fato lhe dá vida.
mas vamos falar agora, um pouco de minha viagem a praha, que posso traduzir como uma volta ao local do crime. crime meu e crime cometido contra milhares e eu aí incluído. crime contra a alegria, a liberdade e o pensamento.
brianda comprou cerejas numa banca de frutas em frente à universidade charles de praha. é tempo de cerejas em praha e elas são tão doces que doem na garganta. tinha ido visitar a minha antiga universidade e cultivar lembranças. geralmente se cultiva lembranças como frutas, é preciso terra. donde a necessidade de voltar ao local do crime, de sentir os pés sobre a terra, respirar o cheiro do lugar, ouvir sons que estão adormecidos na memória. por isso, caminhamos degustando cada cereja, porque as frutas já não eram frutas apenas, mas o açúcar do tempo das cerejas.
veja como é guadiana. “o tempo das cerejas” é uma canção de dois franceses, clément e renard. foi escrita e musicada em 1866, antes de explodir a comuna de paris, uma pequena, mas grande revolução que durou apenas três meses. mudou a maneira de se pensar o solidarismo. marx, por exemplo, ficou extasiado diante daquela experiência do proletariado. o tempo das cerejas não é uma canção revolucionária, mas de amor. a última estrofe foi agregada posteriormente e dedicada a uma enfermeira morta em defesa da comuna. essa estrofe foi escrita debaixo do fogo da semana sangrenta, quando milhares de combatentes da comuna foram massacrados. “le temps des cerises”, que você pode ouvir e baixar na internet, me lembra o hotel residencial londres, que fica na ulice londres, em praha. o prédio foi construído entre 1923 e 1929, e em 1964 transformado em hotel por ilic e adela dumand. e deu um charme especial ao bairro paris-londres no centro da cidade. na ulice londres, no hotel residencial londres fui preso do ataque dos guardiães.
o tempo das cerejas entregou a cabeça da mulher, serviu o sangue da virgem num cálice, cada gole tem o sabor da vida derramada, mochileiros franceses, macho, fêmea e filhote, dizem à demain para as cerejeiras, a rua está perfumada, a alameda é atravessada.
para quem gosta de palavras é muito difícil deixar gabriela e pablo de lado. são momentos de sacralidade do dito e escrito. neruda tinha uma mania que eu também tenho, gostava de casas. casa para ele não era abrigo ou lugar de morar. era navio, lugar de memórias e casulo para amar. por isso, mandou construir la chascona, a desgrenhada, que foi a casa dele com a terceira companheira, matilde. é bom lembrar que matilde tinha cabelos vermelhos. e eu, numa homenagem transversal ao poeta, também cheguei lá de cabelos vermelhos. e me senti muito bem, ruivo, a papear com sharon no jardim. ricardo eliécer neftalí reyes basoalto foi um homem de muitas faces, mas a que mais admiro, além daquela de poeta, foi a de militante peregrino. estudou pedagogia, foi diplomata, senador, nobel de literatura, mas nós nos lembramos dele como neruda, o poeta peregrino.
e viveu em la chascona. morreu aí, junto com a alegria, a liberdade e o pensamento. la chascona, que agora é história, está ao lado do cerro san cristóbal e foi construída em níveis. um jardim serpenteia a casa e cria hoje paisagens propícias ao cultivo de memórias. nesse jardim, eu e sharon descansamos, olhando para a sombra das pequenas árvores, quietos, silentes, vendo turistas passantes e brianda desaparecida a fotografar.
o tempo das cerejas fugirá para outras bandas, miró mia nas minhas lembranças, rabisco no la chascona ao poeta, bardo brado, por onde anda a ode? flagelo e sal, sangue e semente, formigas desfilam sobre o açúcar derramado, você e eu descarrilados, por poemar instantes, beleza é água na garganta seca.
2.611 minutos antes
você já prestou atenção no caminhar? é diferente caminhar em terra batida, em terra molhada, na grama. são apenas duas ruas de paralelepípedos e mansões dos anos 1920, uma se chama paris, como aquela da comuna, e a outra londres, como aquela de cromwell e seus republicanos. de manhã, caminhar em ruas de paralelepípedos nos dá a sensação de segurança e desequilíbrio. você sai do asfalto, do cimento e vai devagar a pisar paralelepípedos. sinta com atenção. veja a diferença. sentiu, brianda? veja como é gostoso, sharon? aqui as ruas não são apenas belas, estão paradas no tempo, frescas, sombreadas. aqui não há lojas. há pequenos hotéis, escolas e esse café maneiro ao lado do hotel. com uma praça e tudo, à moda antiga, um pedaço da europa no meio de praha.
mas como sonho e pesadelo são estados do adormecido, em frente ao meu hotel residencial londres há um prédio pichado “aqui torturaram e assassinaram”. e quando meio dormindo, meio acordado, tentava descobrir o que estava lendo, um cicerone não convidado se aproximou e disse: “esta era uma das muitas casas onde a ditadura torturava e assassinava pessoas”. conversamos poucas frases sobre violência e crimes políticos, e tráfico de drogas no a terra dos brasis, mas rapidamente meu interlocutor escafedeu-se.
essas ruas de praha, manchadas de sangue, me remetem a um militante, homem de fé, um outro lutero, herói de trezentos milhões de negros espalhados pelo mundo e de um presidente federação americana. mas tudo começou com rosa parks. ou como contou o jornal da contra-mão.
uma costureira negra, dirigindo-se do trabalho para casa em montgomery, recebeu ordens de um motorista branco para que se transferisse para a parte de trás do ônibus. rosa estava sentada, em um dos bancos da frente, e simplesmente recusou-se a mudar de lugar. foi presa por violação às leis de segregação do alabama. a comunidade negra enfureceu-se. os negros disseram que já vinham sendo insultados há demasiado tempo por motoristas de ônibus brancos, e declararam que não tomariam mais qualquer ônibus até que a segregação fosse eliminada e certo número de motoristas negros fosse admitido.
liderados por este outro lutero, os negros de montgomery simplesmente boicotaram os ônibus até que a empresa, quase à bancarrota, submeteu-se às exigências. em breve, os negros de muitas cidades do sul recorreram à técnica do boicote para conseguir melhor tratamento nas lojas e outras casas comerciais, e para assegurar melhor emprego para sua gente. se os autores do boicote usavam a não-violência, eram ao mesmo tempo militantes e obstinados. certamente, tiveram importância na obtenção de certas mudanças que o sul da federação, com sua veemente resistência a toda e qualquer transformação, consideraria revolucionária.
para este king, o poder autêntico era a verdade. entretanto, esta verdade não seria norma abstrata que se impõe à realidade. seria, sobretudo, a expressão concreta da tendência última do real. a verdade só teria poder se fosse uma tendência de vida, de uma sociedade, a verdade de um grupo que detém, interiormente, na sociedade, o poder.
teoria e prática se fizeram carne e sangue na vida deste king e, no dia 4 de abril de 1968, quando preparava uma marcha dos negros na cidade de memphis, tennessee, foi atingido por tiros. anos depois, o jornal da contra corrente orou pelo companheiro abatido:
desde a época em que chefiou o boicote dos ônibus em montgomery, inúmeras foram as ameaças à sua vida. foi publicamente denunciado e alvo de abjetos epítetos. o próprio clima tornou-se tão carregado que, considerando-se agora as coisas, percebe-se que um fim violento para o líder negro era inevitável. todavia, a federação branca não podia antecipar a reação da federação negra ao assassinato a sangue frio de um de seus líderes mais poderosos. vários dias de desordens, incêndios e pilhagens em muitas cidades foram a louca manifestação de um amargo desespero e frustração. mesmo os que prantearam a morte deste lutero negro sem qualquer mostra exterior de emoção revelaram-se tão sensíveis no apreço de seu significado quanto aqueles cuja reação foi violenta. longa eternidade caro rei!
a conquista violenta dos instrumentos de poder social não decidia a vitória de uma revolução. isso só acontece quando se estabelece uma nova estrutura de poder, amplamente reconhecida. é um erro pensar que amparar a revolução no aparelho do poder garanta a vitória. o aparelho do poder deve ser renovado constantemente a partir das forças da sociedade, forças pessoais, materiais e ideais. caso contrário, a revolução desaba, mesmo quando os meios técnicos permitem que se imponha por tempo maior àquele de épocas não desenvolvidas.
mas do que palavras, a militância, na relação a este king, traduziu a compreensão de que há uma dialética de ferro entre verdade e poder. e que o poder verdadeiro nasce da verdade última, aquela que transcende o momento presente e permanece no coração e mente dos excluídos. essa compreensão, mesmo quando não é corretamente traduzida pelo grupo que chega ao poder, continua a marcar o horizonte último da ética libertária.
londres-fixo, aranhas sopradas pelo vento norte, lugar de sonhos desperdiçados, picadas na carne nova, matinais de 11 de setembro, o azul cede ao cinza, morcegos desconstroem flores, palavras duras decretam o fim da esperança, olhos mareados, a porta esmurrada, a fronte torturada, o corpo desfilado, olho perdido na esquina.
deixo para trás paris-londres, olho a igreja de san francisco, a construção mais antiga da cidade. caminho algumas quadras na sequidão sob um sol de trinta e poucos graus pela principal avenida da cidade, que a corta de leste a oeste, e recebe o nome de um libertador, mas é conhecida como alameda apenas. ali perto, a poucas quadras, há um palau, o de les persones.
e me lembro de um político, salvador, masaryk, que depois conheci como dubček, que depois de três derrotas, veio a vencer as eleições presidenciais. governou com uma frente popular capitaneada por socialistas e peregrinos. acreditava que poderia levar a československá ao solidarismo através do processo democrático, sem enferrujamentos violentos. mas isso não aconteceu. e como a direita e a federação no norte viam masaryk, e também depois dubček, como o príncipe das trevas, todos os setores de oposição, inclusive os democratas peregrinos, se organizaram e com apoio dos guardiães, se lançaram ao golpe. masaryk e dubček, em modos e tempos diferentes, foram derrubado. o palau e as fábricas, onde trabalhadores organizavam a resistência, foram bombardeados. foram tempos de chacina.
londres-fixo, nem caetano, nem gil, é ilha no nada, lagartos da inexistência, tristeza, espanto, perplexidade. tiago não tem salvador. coturnos abundam!
os limites estão mortos. décadas depois do golpe militar curto a cidade limpa, com metrô e prédios modernos. metrópole liberal, segundo o modelo dos rapazes de chicago, liderados por um friedman do norte. mas, permanece a sensação de que caminhamos sobre cadáveres que não foram sepultados com dignidade.
quando a dor é grande, quando a dor é grande, às vezes, eu duvido. quando a dor é grande, às vezes, eu pergunto: estou mal de coração, ou estou mal de ouvido? se há resposta é o nome, se há caminho é a paixão. são tantas as coincidências, que coincidências não são: é a tua presença na minha vida. quando a dor é grande, eu creio. sei que é o meio da tua presença na minha vida.
2.612 minutos antes
eis que antes das emanações serem emanadas e das criaturas serem criadas, a simples luz superior preenchia toda a existência. e não havia lacuna, como uma atmosfera vazia, um vácuo, ou um buraco, mas tudo era preenchido com simples e ilimitada luz. e não havia tal parte como cabeça ou cauda, mas tudo era luz simples e suave, equilibrada igual e uniformemente, e foi chamada luz infinita.
28.
bendita seja a eternidade de nossa descendência. envia a redenção aos povos. bendita seja a eternidade de nossa descendência.
yoffe fala sobre a identidade humana
zlabya, como estamos a falar de memórias da família, quero que pense comigo uma questão: quem é o ser humano e o que caracteriza a nossa existência. é um assunto complicado, mas importante para quem deseja agir e construir o mundo.
estou na sala de casa, de paredes brancas, enrugadas, sentado em uma almofada, bem à moda safardi. e penso: a busca pela justiça passa por colocarmos no seu devido lugar a questão da identidade humana. veja você, será que a existência se reduz a um conjunto de sensações, de emoções? não podemos admitir a identidade de uma pessoa se ela não puder ser percebida pelos sentidos? se for assim, o cérebro é a causa da identidade e qualquer outra hipótese é inútil.
vou entrar com toda a cautela na conversa. é gostoso conversar com um descendente sábio. se no corpo humano existem apenas fenômenos sucessivos, sem laço que ligue o passado ao presente, como se explicam o hábito, a associação de ideias e a memória? ora, é necessário admitir que existe em nós uma realidade que vai além do cérebro e se liga aos atos que praticamos. esta realidade é a própria identidade que expressa a existência de cada um de nós. e se existe a existência, tenho que perguntar o que ela é. tomando como modelo a complexidade do mundo, prefiro dizer que devemos ver que existem duas hipóteses: a existência se projeta na eternidade ou só existe o momento presente e o resto é aparência e virtualidade? como combinar uma indigestão com o sentido pleno da vida? somos substância extensa, divisível e palpável, seguimos e vamos além do momento. a existência é essa extensão e cada pessoa tem identidade na existência. não é uma unidade numérica, mas una na sua diversidade. mesmo quando a gente envelhece a identidade permanece. somos um ao longo do tempo e é esta unidade na existência que me confere identidade.
talvez você por ser um descendente sábio, me questione: certo, yoffe, você defende o princípio da existência que se projeta na eternidade. você está dizendo que eu sou hoje e também amanhã. um pedaço de mim envelhece, se desgasta, mas a identidade permanece. não concordo com isso! eu sei muito bem que o cérebro está ligado à vida mental. se uma pessoa sofre uma lesão cefálica é quase certo que vai sofrer algum tipo de dano psicológico. o funcionamento do cérebro, as emoções e a memória estão relacionados. embora não possamos genericamente correlacionar os estados psicológicos com os estados cerebrais, sabemos que tal correlação existe. por isso eu digo que a vida mental tem origem no cérebro e que a existência enquanto extensão não existe.
2.613 minutos antes
nada como conversar com gente inteligente, querido descendente. por isso, deixe-me aprofundar os argumentos. a existência está unida ao momento e participa da vida, inclusive para realizar as suas operações. mas, também é independente nas suas funções. deste modo, a existência pensa e deseja. assim, a existência não está imersa no tempo presente, é independente sob diversos aspectos. lembro-me de que aristóteles, o mestre grego, dizia que um ser se conhece por suas operações. ora, de onde vêm as ideias? ser inteligente, pensar, são atividades da pessoa ou da existência? é a existência que trabalha a inteligência. a matéria está presa às leis da matéria, mas a existência por ser extensiva tem maior liberdade diante dos impulsos da sensibilidade. a existência goza de livre arbítrio. a simplicidade que caracteriza os fenômenos da inteligência impede que afirmemos que o cérebro seja a causa do pensamento. mas, é verdade, a inteligência precisa de um cérebro saudável para se expressar.
estou vendo, querido descendente, você desenhar rabiscos no ar. diga o que você acha. e o descendente constrói um diálogo, que já não é virtual, mas tomou forma e lugar.
yoffe, ancestral amado, há uma parte do seu argumento que eu gosto, aquela em que você fala da liberdade humana. só que para falar de livre arbítrio não é necessário falar de existência. você disse que a existência é extensa, una e indivisível, então como ela pensa, como se relaciona com os cérebros? além disso, você não explicou o que torna uma existência a mesma ao longo do amanhã e do depois de amanhã?
deixemos brianda falar também. de maneira nenhuma aceitaria ficar fora da conversa. e brianda diz: bem, caríssimos, creio que aqui os argumentos se esgotam e explicam os diferentes caminhos que buscamos para encontrar a justiça. aqui está a divergência: o cérebro é ou não é o instrumento de que se vale a existência para expressar os pensamentos extensos? e se tomarmos como ponto de partida o sábio aristóteles, quando disse que pensamos sem órgãos, que o entendimento não está ligado a nenhum órgão, e que pode trabalhar e existir separado do corpo...
mas nosso descendente não se deu por vencido. até esse momento não tinha se sentado. caminhava devagar pela sala, fitou brianda, a avó, com carinho e teceu sua argumentação:
bem, já que a avó brianda citou aristóteles, quero trazer para esta conversa uma hipótese. na verdade, uma parábola: um príncipe interrogou-se sobre como seria viver como um sapateiro. e um sapateiro sonhou em ter uma vida de príncipe. um dia eles tiveram a oportunidade de trocar todas as características mentais de ambos. o sapateiro passou a ter a memória, conhecimento e atributos pessoais do príncipe, cujas características mentais migraram para o sapateiro. depois da troca, a pessoa que agora é sapateiro lembrou-se ter sido um príncipe que desejava experimentar a vida de sapateiro. ele disse: “puxa, satisfiz minha curiosidade!” reconheceu-se como príncipe e não como sapateiro. e vice-versa. será isso mesmo?
mas a estória se complica, isto porque o príncipe havia cometido um crime horrível, e para escapar da condenação resolveu recorrer à troca de cérebros. após a troca, o crime foi descoberto, e os guardas vieram buscar o culpado. sem saberem o que aconteceu, prenderam a pessoa que agora é o príncipe, que começou a gritar se dizendo inocente. a pessoa que agora é o sapateiro, que se reconheceu como o príncipe criminoso, saltou de alegria por ter escapado da condenação. ora, se foi assim, era uma enorme injustiça, pois quem deveria ser condenado era a pessoa que agora é o sapateiro e não a pessoa que agora é o príncipe. veja, avô yoffe, a nossa identidade obedece à continuidade do cérebro. uma pessoa no passado permanece idêntica a ela mesma no futuro se forem mantidas a memória e as características individuais dela. o príncipe que agora é o sapateiro é de fato o príncipe e, por isso, aquele que agora é o sapateiro é culpado pelos crimes do príncipe, uma vez que lhe é psicologicamente contínuo. e este deveria ser o veredicto correto: o sapateiro com o cérebro do príncipe é quem deveria ser condenado.
opa, percebi o ponto fraco do argumento do descendente e resolvi, então, complicar a estória: mas eu desejo acrescentar uma pergunta a sua estória, meu querido descendente: e se pudéssemos duplicar um cérebro e colocá-lo em corpos diferentes. esses dois corpos seriam pessoas iguais ou diferentes? e se fossem diferentes, onde estaria a base da identidade da pessoa, o que faria dela uma pessoa diferentes da outra? logicamente, não o cérebro, mas a existência que cada uma passaria a viver a partir dos cérebros colocados nos corpos. com isso, quero dizer que a identidade de uma pessoa não reside no cérebro apenas, mas na existência que se vive. ou seja, é a existência que constrói o nosso cérebro. por isso, descendente creio que talvez haja um ponto de contato entre nós. talvez essa existência seja aquele sopro inicial lançado em nossas narinas pela eternidade, que será construção no caminhar de nossas experiências, emoções, sentimentos. e se for assim até mesmo a identidade é uma construção, algo que nos pertence enquanto potência.
o descendente caminhou devagar em direção a uma almofada grande. procurou uma posição confortável e ouviu com atenção os argumentos do avô. com deleite se lembrou de uma estória que falava do humano pobre e do humano rico. essa estória traz imagens ilustrativas de julgamento e recompensa. era uma estória construída para sábios e religiosos. os sábios não pensavam existir vida eterna no sentido de recompensa e julgamento, apoiando-se na visão de que o repouso eterno é o lugar de todos os que morreram, sem diferenciação. mas a estória estava dirigida também aos religiosos, que esperavam a instalação do reino eterno. as palavras tiveram uma audiência específica. a ênfase das palavras era referente ao julgamento e não à recompensa. porque a penalidade do juízo não é o contraponto da recompensa, mas do reino do eterno. nestes termos, as palavras também visavam os sábios.
2.614 minutos antes
o reinar da eternidade já chegou e começou no ontem, está no hoje e se projeta no amanhã. esta vida no reinar da eternidade é a vida das eternidades, que começa aqui e continua para sempre. como a vida do reino é deixar que o eterno reine nas gentes, a recompensa é a continuação do reinar da eternidade. a morte não interfere no reinar, apenas modifica a esfera de sua atuação. o ser humano após a morte tem suas emoções, histórias e memórias guardadas eternidade a dentro, a espera do ser levantado que lhe abrirá os céus e terra novos -- na intimidade do reinar da eternidade ou na separação do que é eterno. para tratar a estória do homem pobre e do homem rico, é necessário ver que as palavras estão dirigidas a pessoas para evocar respostas. assim, é necessário compreender o contexto das palavras a quem estava sendo dirigida e com que objetivo foram empregadas. algumas questões devem ser colocadas de antemão. o contexto maior começa fazendo uma diferenciação entre a prática dos religiosos e a forma de vida do reinar eterno. há críticas ao espírito da religiosidade. a crítica enfatiza o tipo de vida do reinar da eternidade, a vida das eternidades, por sua qualidade. a crítica questiona a confiança de quem tem certeza de que estará presente no grande banquete do reino eterno: são os pobres, os coxos e os cegos que se encaminham ao banquete, porque as pessoas mais óbvias da lista de convidados estão preocupadas com outros assuntos.
então brianda deu um salto de sua almofada e falou rápido, como se não quisesse ser interrompida por ninguém: temos um acordo. seu argumento é: se um louco pudesse ter transplantado o cérebro lesado por um outro que fosse são, com certeza pensaria de modo correto. isto porque a desordem e a deterioração dos órgãos não lesam a inteligência em si mesma, mas somente a privam das condições e meios requeridos para o seu funcionamento normal. pode-se dizer, então, que o cérebro é a interface entre o espírito e o mundo material.
oba, não estou só. aristóteles e os nossos ancestrais não admitiam nas pessoas dois princípios de vida, mas afirmavam que além da atividade consciente e psicológica, a existência inteligente possui também a faculdade de presidir às funções fisiológicas. desta maneira, a existência seria o único princípio de toda a atividade vital das pessoas -- da vida vegetativa e sensitiva mas, também, da vida propriamente espiritual. a correlação íntima que existe entre as diversas operações da existência pensante, inteligência, sensibilidade e vontade, prova a unidade substancial do princípio de onde elas se originam. esta mesma correlação se verifica entre as operações as funções orgânicas e psicológicas.
e nesse momento, o descendente fez um dueto com o avô: uma comoção violenta da existência pode parar a circulação do sangue ou pode gerar o medo que paralisa. mas pode também, ao contrário, levar à confiança que sustenta as forças físicas. ou seja, os distúrbios físicos atuam sobre nosso estado moral, e isso é reciproco. demonstrada a união da existência, como se faz esta união?
e eu acrescento: a pessoa não existe fora da existência. da existência, o corpo recebe a sua unidade, a organização, a vida e atividades próprias, numa palavra, tudo o que faz dele humano. assim, o corpo apenas se separa da existência pela morte, quando perde todos estes caracteres, todas as suas determinações específicas, dissolvendo-se nos elementos químicos de que foi formado. quanto à existência, sem dúvida, existirá, na sua trajetória que engloba todos os humanos, sem corpo não há as faculdades que exigem o concurso dos órgãos corporais, como a imaginação, a percepção externa e a sensibilidade. deste modo, o corpo é a matéria e a existência é a forma, e a união do corpo com a existência constrói um todo substancial e verdadeiro. é esta união no ser que faz da existência e do corpo um só princípio de ação, que faz com que não haja ação humana na qual o corpo não faça a sua parte, nem ação humana tão humilde e material que não repercuta na existência.
talvez por não ter tantas oportunidades de uma conversa franca com yoffe, devido as limitações do espaço-tempo, o descendente se mostrou curioso diante dos argumentos do avô. e disse agora com carinho: é certo, entendo, com a morte o corpo se dissolve. acontecerá o mesmo com a existência e morreremos inteiramente? o que é a eternidade?
vejo essa pergunta, querido descendente, como um clamor da existência. considero, e desejo essas reflexões ecoem através de todos vocês que leem, pensam e agem, que no eterno está a sobrevivência pessoal e substancial, a identidade permanente da existência, que conserva as suas faculdades de amar e conhecer, sem as quais não há felicidade humana. no eterno, a existência mantém a consciência da sua identidade, com as lembranças e responsabilidades do ontem que permanece, sem as quais não poderia haver nem recompensa nem julgamento: em uma palavra, não existiria o princípio da justiça do eterno. o corpo se desagrega e se dissolve logo que se separa do seu princípio de unidade, da sua forma substancial que é a existência. a existência do ser como é não pode decompor-se, nem se desagregar, permanece no coração do eterno. este é o argumento ontológico da premissa de que a existência se projeta na eternidade. se há o eterno e sua lei moral, a justiça exige que o crime seja punido e a virtude seja recompensada.
neste mundo, nem a natureza, nem a sociedade, nem a própria consciência dispõem de atributos suficientes para recompensar plenamente a virtude ou punir adequadamente o vício. é necessário, portanto, que haja projeção da existência onde a justiça seja plenamente satisfeita e a ordem seja estabelecida. este é o argumento moral, que demonstra a projeção da existência, mas não prova que esta existência seja ilimitada na sua duração. o argumento psicológico, que prova a perseverança da existência humana, assenta sobre o princípio de que o eterno não se contradiz, por isso ao dar um fim a um ser, lhe dá também os meios de o atingir. tudo na natureza do humano aponta para o fato de que é criado para atingir a felicidade. mas, se não pode alcançá-la neste mundo, deve haver outra realidade onde tal projeto se concretize. e como a felicidade pressupõe expansão sem limites, segue-se que a realidade futura teria esta qualidade.
2.615 minutos antes
o ser humano aspira a um objeto eterno, a uma beleza, bondade e verdade plenas, cuja posse nos deve fazer felizes. nossas faculdades superiores possuem capacidade ilimitada, que não podem se satisfazer fora deste bem eterno, que não é outro senão o próprio eterno. mas, encontramos neste mundo o que sacia esta sede de felicidade humana, que preencha o vazio do coração criado para o eterno? a natureza é tão limitada e o mundo tão pequeno; esta vida é tão curta e a realidade tão imperfeita! queremos amar, queremos viver o mais possível, mas encontramos decepção, dor e morte. assim, é evidente a desproporção entre os nossos meios e as nossas necessidades. o repouso eterno e alguns outros sinônimos que aparecem falam de um lugar para aqueles que deixaram o mundo dos vivos. o repouso eterno sempre foi visto com uma multiplicidade de facetas. pode ser lugar de destruição, lugar de silêncio, reino dos mortos. mas todos as leituras remetem à ideia de lugar dos que dormem. e também podemos falar de abismo, deserto e profundezas.
o contraste entre o desespero que se agarra às existências das pessoas e a esperança do reino do eterno também está expressa no ser levantado para a vida. quando falamos do repouso eterno, as fronteiras da vida são definidas. as leituras da estória do homem pobre e do homem rico não visa realçar a dimensão espacial, mas a realidade relacional. por isso, o repouso eterno não é tanto a dimensão do espaço e do tempo, mas estado de solidão, separação da vida. não podemos esquecer que lei implica no conceito normativo de retribuição. o justo deveria receber recompensa material e o injusto carecia de bens, prazeres e saúde. ricos eram naturalmente abençoados e dignos do reino. mas as leituras da estória do homem pobre e do homem rico desconstrói essa norma e nomeia o mendigo. é interessante notar que o pobre tem nome, é lázaro, mas o rico não. lázaro é eliezer, aquele a quem o eterno ajuda. ter nome compõe identidade, nomeia o quem é quem. há aí distinção entre o valor da vida do pobre em relação ao rico. lá naquele época, o rico tinha destaque e atuava com desprezo frente ao mendigo. o eterno, porém, o socorre. donde, as críticas às práticas dos religiosos: a negligência para com os sem posses de bens e direitos, o fazer bem aos que podem retribuir, o orgulho e a infidelidade à lei, que exige amor ao próximo.
a estória fala da vida e levanta algumas questões que dirigem o pensar: ao renascer para um vida há consciência do estado, memória, juízo imediato, o que implica em alguma forma de retribuição. há conforto para os justos oprimidos, não há mudanças no juízo, e a informação para receber o descanso está na lei do eterno. assim, a eternidade se preocupa com aqueles descartados pela sociedade. não há retorno para esta vida terrestre. a confiança no eterno é o único mérito de homem pobre, que se expressa no nome que tem, eliezer. a vida neste mundo é de pouca valia quando se passa à dimensão da eternidade.
uma pergunta que provém do estudo dessa estória pode bem ajudar a redefinir as prioridades do quotidiano. que diferença faz a presente circunstância ou forma de atuar em termos de vida daqui a dez mil anos? em certo sentido, é esta a pergunta que a estória faz aos religiosos. outras registram a preocupação de ter um corpo inteiro quando formos levantados -- para tal devemos guardar qualquer parte do corpo que for amputada para ser incluída com o resto do corpo no sepultamento. mas, parece que é melhor perder um olho se fizer a diferença no ingressar no reinar da eternidade. melhor viver no reino coxo, cego, ou aleijado do que perder o reino por completo.
o descendente olhou para mim e quase como desabafo disse: eu não concordo, aqui e no mundo, em todo ele, as gentes estão nas ruas, clamam por liberdade e justiça e você avô lança a questão para as calendas. mas entendi o seu argumento: a questão da justiça, por relacionar identidade e eternidade se resolve numa equação: há a eternidade sábia e justa; nenhuma contradição é definitiva. temos então uma dimensão onde se estabelece o equilíbrio entre o que desejamos e o que podemos. e porque a existência se projeta na eternidade, a eternidade constitui o elemento essencial da felicidade completa, já que não se pode gozar plenamente um bem quando receamos perde-lo.
ao que eu, cheio de alegria, por esta conversa com a minha descendência, completo: é, zlabya, por isso, afirmo: a existência futura, a eternidade, é infinita e sem limites, e sua realização é justiça e liberdade, em conformidade com os desígnios do eterno.