mercredi 15 janvier 2025

Celebremos a Festa da Candelária

Nos países da Europa, na França inclusive, há o costume de celebrar uma festa cristã que se chama Candelária. Ela é celebrada no segundo dia do mês de fevereiro, ou seja, cerca de quarenta dias depois de Natal. A expressão candelária vem do latim e significa festa das velas, e lembra que aquele menino judeu judeu, Jesus/Yeshua, é a luz do mundo. Bem, de certa forma, este livro nasceu sob as luzes da Candelária.

A festa da Candelária comemora a apresentação daquele menino da periferia palestina no templo de Jerusalém, pois a partir da antiga tradição judaica todo primogênito deveria ser levado ao templo, quarenta dias após seu nascimento, para ser consagrado a haShem. Este período de quarenta dias correspondeu também ao período de resguardo das mães, que pela lei da religião judaica foram proibidos de frequentar o templo. Assim, uma vez que tinha passado o tempo do resguardo, deveria ir ao templo para dedicar um sacrifício a haShem e ser declarada pura pelo sacerdote. Por isso, a festa da purificação de Miriam/Maria, mãe de Yeshua.

No dia em que Miriam e seu marido Yosef/ José levaram Yeshua ao templo, lembra Lucas, um biógrafo dos atos de Yeshua, que um homem chamado Simeão foi até lá, levado por Ruach de haShem/ Espírito d'O Nome, sob a promessa de que não morreria antes de ver o mashiah. Ele colocou Yeshua no colo e disse que naquele momento HaShem poderia deixá-lo morrer em paz, porque tinha visto a salvação, aquele que ele, HaShem, estava preparado para ser a luz das nações e a glória de Israel.

Esta é a festa da Candelária, que se comemora com doces e panquecas, e que mesmo que na contramão de dogmas e tradições religiosas, nos renovados, não nas luzes de vela do menino da Candelária, mas na luz do menino que se tornou aquele rabino da periferia palestina, e que nós consideramos nosso mestre, Yeshua haMashiah/ Jesus, o Messias.

Vemos a vida ser vívida como se não tivesse tido valor. Vemos, em nome de políticas e religiões, pessoas sendo transformadas em assassinos seriais, legais ou não, e espalhandoem a dor, o sofrimento e a morte. Mas tal realidade atravessou a modernidade ocidental, no mínimo desde iniciada do século dezenove. E os filósofos da existência perceberam isso e procuraram refletir sobre essa situação-limite. Então, vamos triangular esta conversa, combinando filosofia, teologia, poesia e uma leitura existencial dos primeiros textos das escrituras hebraico-judaicas.

A partir de meados do século dezenove, conforme constata Tillich, o mundo passou a sofrer com o pensamento lógico-matemático e naturalista que foi minando a liberdade individual e a comunidade orgânica. E, assim, o racionalismo analítico transformou tudo em objetos de design e controle, incluindo as pessoas. Da mesma forma, o humanismo secularizado separou as gentes e o mundo do mistério supremo da existência. Ou seja, o pensamento lógico e naturalista, assim como o humanismo secularizado possibilitou a construção de um novo mundo, biotecnológico, desumano e sem alma.

Mas, desejo fazer três leituras daquela modernidade nascente. Em 1970, Manuel Ballestero publicava em Madri, pela Siglo XXI, La Revolución del Espíritu (Tres pensamentosientos de libertad), analisando o caráter radical da liberdade no pensamento de três gênios da modernidade: Nicolas de Cusa, Lutero e Marx. Ballestero diz que sua preocupação residiu em analisar o projeto de liberdade desses três pensadores, sabendo que a autonomia e o ato livre são concebidos de maneiras diferentes e mesmo antagônicas, embora existam, no contexto da obra dos três, analogias de fundo. Isso se refere ao fato de que a liberdade significa a abolição da lei, o colapso da determinação exterior, e não o comportamento que se adequou aos limites da ordem. Assim, segundo Ballestero, Cusa, Lutero e Marx olham a liberdade como a destruição da ordenação exterior e anterior ao próprio ao livre.

Os ensaios mostram que a revolução teórica empreendida por Cusa e Lutero não é gratuita, nem produto de um simples ato ideal, mas se enraíza no tecido histórico do movimento de mudança global da formação social pré-capitalista. Cusa e Lutero clamam por essa destruição. Sem entrar nos detalhes das alterações vívidas no século dezesseis, com a ruptura do equilíbrio cidade/campo, o surgimento das produções e as associações do sistema de trabalho assalariado, vemos que a dimensão negativa da condição humana na incipiente sociedade capitalista será percebida por Cusa e Lutero : a autonomia do sujeito se dá como dor.

Mas ambos compartilham essa subjetividade liberada pelo início da arrancada capitalista como desequilíbrio. Assim, tanto Cusa quanto Lutero partem da negação dessa subjetividade alienada do capitalismo nascente, considerando que deve ser superada para que o Espírito floresça. Aí, então, teríamos o fim da inessencialidade do sujeito alienado e a inserção desta na totalidade objetiva. Mas isso não pode acontecer sem a transformação dessa realidade objetiva em realidade espiritual, que sustenta o ser humano. Dessa maneira, para os dois pensadores, o Espírito construiu num nível superior o universo anteriormente negado.

O jovem Marx, seguindo os passos de Hegel, partirá dessa discussão. Para ele, a religião é uma realização imaginária da essência do ser humano, mas essa essência não tem realidade alguma. De todas as maneiras, há um ponto de interligação nessa perspectiva, quando vê, assim como Cusa e Lutero, a liberdade como abolição da legalidade, como coincidência do momento subjetivo com o momento objetivo, e como responsabilidade suprema do ser humano. Para entender esse ponto de partida de Marx é bom ler seus manuscritos econômicos e filosóficos, mas também sua Introdução à Crítica da Economia Política (Marx, São Paulo, Abril Cultural, 1982), texto que só foi descoberto em 1902 e publicado por Kautsky em 1903.

“O cristão é senhor de todas as coisas e não está convidado a ninguém. O cristão é servo em tudo e está submetido a todo o mundo” (Lutero, Les grands écrits reformateurs, Paris, Aubier, 1955, p. 225).

Para Lutero, o ser humano existe como estrutura ontológica dual. Sua conceituação traduz a ansiedade teórica do século dezesseis, mas traduz-se em superação da subjetividade alienada. O cristão é senhor de todas as coisas, não é convidado a ninguém e esse senhor radical é produto da graça. Sua liberdade é fruto da fé que transforma a subjetividade alienada em realidade objetiva. Nesse sentido, o caráter espiritual da autonomia do cristão se dá como processo. Morre o imediato, o alienado, e tem início a construção de uma segunda natureza.

A liberdade surge como deslocamento do ser humano natural, como distanciamento crítico daquilo que foi naturalmente dado. O primeiro momento da liberdade parte de uma concepção trágica, porque o senhorio num primeiro momento implica em servidão, criando tensão e luta... “É necessário desesperar-se por você mesmo, fazer com que você saia de dentro de você e escape de sua prisão” (Lutero, Les grands écrits, p. 259). Mas superada a tensão, temos a liberdade enquanto espiritualidade, uma dimensão de combate.

O ser humano, que no Mashiah/Cristo vive essa metamorfose, tem a liberdade que vai além, a liberdade que é fonte de ação e realidade. Assim, o caminhante se transforma em receptáculo de fé, em intencionalidade aberta ao Absoluto.

Diante do desafio da liberdade, filósofos e teólogos, apoiados nas artes, enfrentam a alienação da vida. Enfrentaram, às vezes de forma desesperada tal desafio, o que levou muitas delas a emoções apaixonadas, proféticas e revolucionárias. Mas isso não os impede de denunciar a estrutura psicológica e sociológica da modernidade e defender a espontaneidade da vida, o caráter paradoxal da religião e as raízes do conhecimento existencial. E assim, filósofos e teólogos enriqueceram a compreensão da vida, e desenvolveram instrumentos para a revolução deste século 21.

A filosofia existencial, conforme diz Tillich nessa conversa, e eu continuo a acrescentar a teologia, olhou o mundo e, assim como artistas, escritores, poetas, não gostou do que viu. O que me leva a um poeta espanhol, Machado, que vai cantar para nós nessa viagem com Tillich.

“Tudo passa e tudo cai, mas o nosso é passar, passa fazendo caminhos, caminhos sobre o mar. Nunca persiga a glória, nem deixe a memória dos homens da minha canção; Eu amo os mundos sutiles, ingênuos e gentios, como pompas de jabón. Eu gosto de ver eles pintarse de sol e grana, voar baixo o céu azul, temblar súbitamente e quebrarse… Nunca persegue a glória.”

E a alienação já presente na modernidade desaguou na alta-modernidade, em lugares e tempos onde se vive como se a vida não tivesse valor. E como estamos conversando, eu, Tillich, Machado e você, digo que as escrituras hebraico-judaicas também falam existencialmente do humano. Diz, lá na Torá, que o humano não é bom nem mal, mas que envelhece a partir dessa polaridade. Tal situação aparece no diálogo que haShem/ o Nome tem com Qayin/ O-lança. Diz que ele estava inclinado a fazer mal feito, que este mal-fazer estava diante dele como um animal feroz, mas que ele, O-lança, desviou dominando o desejo de mal-fazer.

Essa conversa, de certa forma, apresenta o padrão humano, um jeitão para fazer. E nos relatos da saga humana tais histórias se multiplicaram. São contadores que falam do tesão pela vida. E aqui vai uma que gosto muito. Conta-se que quando os escravos fugiram do Egito com os soldados egípcios correndo atrás deles e já estavam atravessando o Mar Vermelho, anjos resolveram cantar um hino de gratidão a haShem, mas este não permitiu e disse: Eu construí o humano, cada um deles é minha criação, como posso cantar se muitos se afogarem neste mar? Eis a universalidade da existência: somos aparência de HaShem, quer escravos hebreus ou soldados egípcios. A teologia mais antiga entende isso:a vida é fazer universal. Mas nela se faz presente o “yetzer”.

A palavra “yetzer” vem da raiz “yzr”. Quando as escrituras hebraicas falam de especificidade capenga, significa moldar, propor-se. A ideia é que o humano seja dirigido por suas inclinações, suas imaginações, sejam elas boas ou mais. Nesse sentido, o humano é diferente dos animais. E é exatamente “yetzer” que, combinado à liberdade humana, possibilita uma mudança de rumo.

Sören Kierkegaard foi, sem dúvida, quem nos ofereceu um pensamento que leva à teologia existencial, de maneira consistente, ao considerar que cada pessoa deve fazer individualmente as escolhas que realizam sua própria existência. Ou seja, nenhuma estrutura imposta deve alterar a responsabilidade humana de procurar agradar a Deus de forma pessoal e paradoxal. Cada pessoa sofre a angústia da dúvida até realizar um ato de fé ou dar um salto de fé e se engajar em uma escolha particular. Cada pessoa é confrontada com o desafio do seu arbitragem livre e com o fato de que uma escolha, mesmo que não seja boa, ou claramente defeituosa e mais, deve ser feita para que se possa realmente viver.

Para ele, a existência é a experiência pessoal imediata diante da eternidade, é fé, interpretada dialeticamente. E, na verdade, uma teologia existencial relacionada fortemente sobre três considerações de Kierkegaard. A primeira é que o universo é fundamentalmente paradoxal e que o maior paradoxo de todos é uma união transcendente de Deus e do humano na pessoa de Cristo. A segunda é que ter um relacionamento pessoal com Deus vai além de todas as condicionantes morais, estruturas sociais e normas comuns. E a terceira é que seguir as convenções sociais é essencialmente uma escolha estética pessoal que os indivíduos fazem.

E isso pode ser visto num texto clássico de Kierkegaard ...

”Quando chegou ao local que Deus havia indicado, Abraão fez um altar e arrumou a lenha em cima. dele. Depois amarrou Isaque e o colocou no altar, em cima da lenha. Em seguida pegou o punhal para matá-lo". Gênesis 22.9-10.

Este é um dos trechos mais desnorteadores do Antigo Testamento: Abraão, em obediência a haShem, se prepara para sacrificar seu filho. Este relato foi baseado por Kierkegaard, em 1843 , num ensaio teológico, "Temor e tremor".

Kierkegaard decidiu o ideal de um saber intelectual e universal, defendido por Hegel, e mostrou o caráter voluntário e singular da vida cristã, que se consubstancia no ato de fé. Conhecedor dos clássicos, amou a música e a literatura, a filosofia clássica e a moderna. Fruto dessa paixão construiu uma teologia da existência que teve o objetivo de confrontar idéias e experiências à luz do cristianismo. se em conhecimento e experiências sentimentais. A partir de problemas pessoais encontrados para a existência. Não se contentou em analisar o conteúdo da consciência e daí construir uma teologia da existência.

Consideremos que todos nós atuamos em três planos de existência, a estética, a ética e a religião. Mas que a maioria das pessoas vive uma vida estética no desejo imediato, onde nada importa, exceto as aparências, a felicidade e os prazeres. E de acordo com cada um desses planos, as pessoas seguem as convenções sociais. Disse ainda que a quebra das convenções sociais por razões pessoais, quer a busca de fama, confiança ou rebeldia, são escolhas estéticas. menor é o número de pessoas que vivem na esfera ética, que decidem se afirmar como responsáveis, fazer o melhor e ir além da amizade superficial. Assim, relacionou conhecimentos e experiências e distribuição entre elas uma dialética, já que seria através da dialética – Tillich chamou o método de demonstração e eu de analética, afirmando Dussel -- que se percebe as experiências da existência: estética, ética e experiência da fé .

Mas se o plano ético é importante e norteia um ideal de sociedade, o plano fundamental para a vida de uma pessoa é o de fé. E para se viver a fé é preciso entregar-se ao Criador, um caminhar, um viver, e esse deve ser o esforço do cristianismo radical.

Mas vamos citar, de passagem, três gigantes que se debruçaram sobre o desafio da existência:

Marx, para quem a existência é uma experiência humana determinada socialmente, no contexto das classes sociais, interpretada em termos de sua teoria econômica e social. Consideramos o jovem Marx como um pensador existencial, pois na época seus escritos traduziriam a luta contra a alienação no capitalismo; contra as teorias que interpretavam o mundo sem procurar transformá-lo; e contra a afirmação de que o conhecimento é independente da situação social. Este jovem Marx anunciou o fim de todas as filosofias e sua transformação em sociologia revolucionária. Mas sua interpretação da história, sua compreensão da ideologia, e sua análise sociológica da economia, fizeram dele, de fato, um filósofo que dominou as discussões teóricas do final do século 19 e correr do século 20, tornando-se uma referência política na história dos movimentos de libertação do último século.

Nietzsche, para quem é a experiência de ser humano biologicamente determinada, que concretiza a vontade de poder, que se expressa como metafísica da vida. Como o jovem Marx crítico e revolucionário, o ataque de Nietzsche contra o niilismo europeu, a construção de categorias biológicas para o processo do conhecimento, seu estilo fragmentado e profético e sua paixão escatológica, levou-o, assim como Marx, de fato, à procura do método científico e à ontologia da vida.

E Heidegger, para quem a existência é a experiência do ser diante do Ser, na vida vivida com cuidado e determinação, que ele descreve como a estrutura do ser-em-si. Heidegger retornou a um jeito kierkegaardiano de fazer filosofia existencial, ou seja, à psicologia dialética. Utilizou a expressão existencial para designar a filosofia externa para a experiência pessoal imediata, e fez a releitura da teologia expressa por Kierkegaard, especialmente seus ataques às igrejas burguesas e secularizadas. Mas a partir de Aristóteles transformou a psicologia dialética em nova ontologia: rejeitou as implicações religiosas da atitude existencial, modificando-a pela decisão em aberto do ser heróico e trágico.

Por tal compreensão Tillich acrescenta que, para os socialistas religiosos, a existência é uma experiência humana pessoal, imediata, da história que se vive, do momento criativo que se expressa como uma interpretação geral da história. Estamos então diante da teologia existencial.

Dessa maneira, podemos dizer que para os socialistas religiosos cada caminho se entrelaça com outros caminhos, formam teias, e aí está a ideia de História quando vê a vida humana e a realidade presente e os kairós como estruturas abertas, que nascem nesses caminhos. É o desafio existencial, ser natureza e transcender a ela, que leva o humano à possibilidade da revolução, ou seja, à construção da História.

E, de novo, Machado poetisa para nós:

“Caminante, son tus huellas el camino y nada más; caminante, no hay camino, se hace camino al andar. Al andar se faz caminho e ao voltar a vista atrás se ve a senda que nunca se ha de voltar a pisar. Caminante no hay camino sino estelas en la mar... Hace algún tiempo en ese lugar onde hoy los bosques se visten de espinos se oyó a voz de um poeta gritar "Caminante no hay camino, se hace camino al andar..." Golpe a golpe, verso a verso...

Para o socialismo religioso, o respeito pelos caminhos e a negação do ódio e da violência direcionadam a tesão pela vida. Criar pessoas é, em primeiro lugar, ensinar, pois quem derrota uma vida derrota todas. E quem cuida de uma vida salva o mundo. Cuidar de pessoas é, então, semear a paz para que ela reine entre os humanos. Para que ninguém possa dizer: o meu pai é maior do que o teu pai.

E nessa leitura existencial, vemos que o primeiro livro das escrituras hebraicas se descreve como o livro da história humana. É interessante o que esse livro fala da construção e da história do primeiro par humano: Da-terra e A-vida. Este é o sentido dos nomes hadam e hawah. A construção dessas duas pessoas, Da-terra e A-vida, ao se dar no final do processo de surgimento do universo, mostra o valor que têm para haShem: são menores, aparentemente pequenos, mas têm valor, pesam. A história humana é a história de uma pessoa, de duas pessoas, de todas as pessoas.

O que nos remete mais uma vez à exposição de Tillich sobre a filosofia existencial, quando diz que os filósofos existencialistas procuraram descobrir o significado da vida, indo além das teologias reavivadas, assim como o positivismo. E foi assim que rejeitaram o mundo alienado e os religiosos fundamentalistas. Voltaram-se para a experiência e para a subjetividade, como experiência fundamental para a objetividade. Ou seja, a realidade é experimentada na vida real, na experiência interior, e dessa maneira procuraram descobrir a criatividade do ser, anterior e que vai além da separação entre subjetividade e objetividade, em ambos os sentidos.

Nas escrituras hebraico-judaicas, a construção da história humana é sempre uma explicação entre o sofrimento e a coragem de optar pela liberdade. E este foi o desafio apresentado aos hebreus escravizados. Construir a História e optar pelo caminho da liberdade acarretará riscos, já que muitas vezes há segurança na escravidão. Mas, objetividade humana é ser humano, ver possibilidades nas escolhas humanas.

Por isso, Tillich diz que se chamarmos de místico tal leitura da vida, a filosofia existencial poderá ser considerada a reconquista do sentido da vida em termos místicos, pois rejeita compreensões eclesiásticas e positivistas, mas não o espírito. Donde, damos uma nova definição para místico, para aplicá-lo à filosofia existencial. A expressão não significa a união mística com o absoluto transcendente; é sim uma empreitada de fé, que caminha em direção à união com a profundidade da vida. Esta espiritualidade é mais protestante do que católica; mas não deixa de ser mística ao transcender a objetividade alienada e a subjetividade vazia da pós-modernidade. Historicamente, a filosofia existencial retornou à leitura pré-cartesiana do mundo, quando não havia a separação entre subjetividade e objetividade, e a essência da objetividade encontrou-se no interior da subjetividade... quando Deus foi encontrado na alma humana.

O respeito e o cuidado por tudo aquilo que é humano, por sua terra e vida, é uma decisão humana radical. Uma das linhas-força das teias de relações humanas presente nas escrituras hebraicas-judaicas é a de caminho. Mais do que proporciona uma inspiração a haShem, as escrituras falam de andar com ele. Daí a ideia de caminho. O ser humano é colocado a cada momento e a cada dia diante da exigência de exercer sua liberdade e escolher entre o fazer bem feito e o fazer mal feito.

Assim, para Tillich, na luta contra a falta de sentido da civilização tecnológica, os filósofos da existência empregaram métodos diferentes, todos com ênfase existencial. É necessário destacar que Kierkegaard representou o protestantismo luterano da filosofia existencial. E como teólogo, construiu uma psicologia dialética que contribuiu para confrontar as interpretações racionalistas e mecanicistas da natureza humana.

A teologia existencial oferece um quadro dramático: polaridade e imbricamento entre a atitude existencial e as expressões teológicas que dominam o movimento. Pode prevalecer o existencial, mas também pode prevalecer o teológico no mesmo caminhante. Mas sempre está presente uma ação crítica. Todos reagimos, na prática e na teoria, ao destino histórico, ao desafio da liberdade de construção do ser, ao prokeimai, ao estar colocado, ao ser proposto. Polaridade e imbricamento expressam esta revolução do espírito contra a sociedade excludente, que se expressa de forma imperial nesta pós-modernidade.

A vida é o bem maior, o modelo de escolha. A escolha do bem-fazer então é esta: a vida, caminho que fica entre o crescimento e a decadência. A linha-força do caminho da vida é o caminhar...

“Murió el poeta lejos del hogar. Le cubre o polvo de um país vizinho. Al alejarse le vieron llorar. "Caminante no hay camino, se hace camino al andar..." Golpe a golpe, verso a verso... Cuando el jilguero no puede cantar. Quando o poeta é um peregrino, quando de nada nos sirve rezar. "Caminante no hay camino, se hace camino al andar... Golpe a golpe, verso a verso." 

Jorge Pinheiro
Ciências da Religião, Prof. Dr.














Teologia da Responsabilidade Global

Teologia da Responsabilidade Global

Se eu levar em conta (1) o impressionante desenvolvimento da tecnologia, inclusive a presença da inteligência artificial em todos os níveis da vida, (2) o crescimento das políticas de ultra direita e (3) o perigo de uma guerra atômica, devo pensar nesta Teologia ...

A proposta teológica diante desses três pontos  será profundamente integradora, esperançosa e ética, com foco em reconectar a espiritualidade ao cuidado com a vida, o outro e o futuro. Aqui estão algumas ideias centrais que guiam essa reflexão:

1. Teologia do cuidado integral e tecnológico

A teologia pode resgatar a noção de que a tecnologia, inclusive a inteligência artificial, deve estar a serviço da dignidade humana e da criação.

Proposta: Desenvolver uma ética teológica para a tecnologia que priorize o bem comum e os mais vulneráveis. Ressaltar o papel humano como "co-criador", responsável pelo uso da ciência em favor do amor e da justiça, não do domínio e da destruição.

Fundamento bíblico: Gênesis 2:15, onde o ser humano é colocado no Éden para cuidar e cultivar a criação.

2. Teologia profética contra o autoritarismo

As políticas de extrema direita tendem a polarizar, dividir e desumanizar. A teologia pode se posicionar como um contrapeso, anunciando a justiça e denunciando estruturas opressoras.

Proposta: Resgatar o papel profético das tradições religiosas, colocando ênfase em valores como inclusão, justiça social e dignidade humana. Encorajar comunidades de fé a resistirem ao medo e ao ódio promovidos por ideologias autoritárias.

Exemplo histórico: A Teologia da Libertação, que une espiritualidade e ação social em contextos de opressão.

3. Teologia da paz e da reconciliação global

Diante do risco de uma guerra atômica, a teologia precisa reafirmar a sacralidade da vida e promover uma espiritualidade de desarmamento e reconciliação.

Proposta: Lançar um movimento global de oração, ação e educação para a paz, inspirado em princípios de não-violência e na reconciliação entre povos. Construir pontes inter-religiosas para um esforço comum contra a destruição da humanidade.

Exemplo teológico: A doutrina da paz de figuras como Jesus Cristo no Sermão da Montanha e líderes como Gandhi e Martin Luther King Jr.

4. Uma espiritualidade para tempos de crise

A teologia pode oferecer uma visão de esperança e propósito mesmo em meio às ameaças. Ressaltar que o sofrimento humano e os desafios históricos não estão separados do plano divino de renovação e salvação.

Proposta: Criar narrativas teológicas que incentivem a resiliência, a cooperação e a fé no Deus que transforma o caos em vida nova.

Fundamento escatológico: Apocalipse 21: "Eis que faço novas todas as coisas."

Esta proposta pode ser chamada de Teologia da Responsabilidade Global, unindo fé, ética e ação para enfrentar os desafios do século 21 com coragem espiritual e prática amorosa.

Bibliografia

1. Teologia do cuidado integral e tecnológico

Latour, Bruno. Jamais fomos modernos. Editora 34, 2017.

Reflete sobre a relação entre ciência, tecnologia e sociedade, útil para pensar uma ética teológica frente às inovações tecnológicas.

Heim, Michael. The Metaphysics of Virtual Reality. Oxford University Press, 1993.

Examina a relação entre tecnologia, virtualidade e o humano em perspectiva filosófica.

Boff, Leonardo. Ecologia: Grito da terra, grito dos pobres. Editora Ática, 1995.

Apresenta uma teologia ecológica que inclui cuidado com o meio ambiente e responsabilidade social.

2. Teologia profética contra o autoritarismo

Gutierrez, Gustavo. Teologia da Libertação: Perspectivas. Vozes, 1971.

Um clássico da teologia profética, com reflexões sobre justiça e libertação em contextos de opressão.

Brueggemann, Walter. The Prophetic Imagination. Fortress Press, 1978.

Explora o papel da imaginação profética em tempos de crise social e política.

Mbiti, John S. African Religions and Philosophy. Heinemann, 1990.

Investiga como cosmovisões religiosas não ocidentais podem enriquecer práticas teológicas em contextos de opressão.

3. Teologia da paz e reconciliação global

Hauerwas, Stanley. The Peaceable Kingdom: A Primer in Christian Ethics. University of Notre Dame Press, 1983.

Discute a ética da paz a partir de uma perspectiva cristã comunitária.

King, Martin Luther Jr. Strength to Love. Harper & Row, 1963.

Uma coletânea de sermões de King que aborda a não-violência e o amor em tempos de ódio.

Tutu, Desmond. No Future Without Forgiveness. Doubleday, 1999.

Reflete sobre reconciliação e justiça após o apartheid na África do Sul.

4. Espiritualidade para tempos de crise

Moltmann, Jürgen. Teologia da Esperança. Vozes, 1972.

Apresenta uma escatologia que inspira ação e renovação em meio ao sofrimento humano.

Teilhard de Chardin, Pierre. O Fenômeno Humano. Cultrix, 1987.

Relaciona espiritualidade e evolução, incentivando uma visão otimista e integradora da história humana.

Benedict XVI (Joseph Ratzinger). Introdução ao Cristianismo. Loyola, 2005.

Uma reflexão sobre fé e razão em tempos de mudança cultural e tecnológica.

Complementares (Interdisciplinar)

Arendt, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. Perspectiva, 2008.

Essencial para compreender o impacto do autoritarismo e das crises políticas na humanidade.

Ellul, Jacques. The Technological Society. Knopf, 1964.

Crítica ao papel da tecnologia e sua influência desumanizadora.

Pinker, Steven. Os Anjos Bons da Nossa Natureza: Por que a violência diminuiu. Companhia das Letras, 2017.

Um olhar sobre o progresso humano e os desafios para evitar a destruição.


vendredi 20 décembre 2024

A vida, uma leitura radical

A vida, uma leitura radical

Um dos temas centrais da mídia, hoje, é a violência. Tal fato nos leva a pensar e a viver como se a vida não tivesse a menor importância ou valor. E em nome de doutrinas, políticas e religiões, gentes são transformadas em bombas humanas, assassinos seriais, legais ou não, que espalham a dor, o sofrimento e a morte. Nesse clima de ódio e violência, é importante dizer que a primeira teologia das Escrituras hebraicas, e posteriormente cristãs, construída para o ser humano no bojo da teologia da criação, é a teologia da vida.

O Eterno fez o humano como semelhante, cheio de parecença, para ser como Ele e com Ele, para curtir o mundão criado, fazer sexo, ter filhos, produzir criativamente. E O Eterno contou isso aos humanos e um dia isso foi registrado lá em Bereshit, o livro primeiro das Escrituras. E é interessante que quem registrou a história que ouviu dos antepassados disse que O Eterno curtiu a beça tudo aquilo. Achou genial o que tinha feito, tanto que deu por terminado o seu trabalho e foi descansar.

As histórias se multiplicam. Há histórias que falam da importância da vida nas Escrituras hebraicas, e há histórias sobre a vida e sua singularidade nas tradições de gentes e povos. Na tradição judaica, conta-se que quando os escravos fugiram do Egito com os soldados egípcios correndo atrás deles e já estavam atravessando o Mar Vermelho, anjos resolveram cantar um hino de gratidão a O Eterno, mas o Eterno não permitiu e disse: Eu criei o ser humano, cada um deles é minha criação, como poderei cantar se muitos vão se afogar neste mar? Eis a universalidade da vida: fomos criados por O Eterno, todos somos parecença, quer escravos hebreus ou soldados egípcios. A teologia entende isso: a vida é direito universal porque O Eterno ama a pessoa, todas as pessoas -- foram feitas por Ele e têm o jeitão dele.

Nesse sentido, a partir da teologia da vida podemos dizer que não há diferença entre judeu e grego, cada pessoa ocupa um lugar especial no coração de O Eterno, para Ele é como se todos fôssemos únicos.

O respeito pela vida de cada um e de todos e a negação do ódio e da violência: direcionam a teologia da vida. Criar e educar pessoas traduz-se em ensinar, em primeiro lugar, que quem destrói uma única vida destrói todas e a própria criação. E quem cuida e salva uma única vida salva o mundo. Cuidar e salvar pessoas é semear a paz para que ela reine entre os seres humanos. Para que ninguém possa dizer: o meu pai é maior do que o teu pai.

Voltando ao primeiro livro das Escrituras hebraicas, vemos que ele se descreve como o livro da história humana. E é interessante o que esse livro fala da criação e da história do primeiro casal: Da-terra e A-vida. Este é sentido dos nomes Hadam e Hawah. A construção dessas duas pessoas, Da-terra e A-vida, ao se dar no final do processo de surgimento do universo, mostra o valor que têm para O Eterno: são menores, aparentemente pequenos, mas valem muito, pesam tanto quanto todo o universo. A história humana é a história de uma pessoa, de duas pessoas, de todas as pessoas.
E será que eu posso fazer da minha mulher, escrava. Ou, em outras palavras, posso explorá-la? Não, não posso. Será que posso fazer dos meus pais, escravos. Ou, em outras palavras, posso explorá-los? Não, não posso. Será que posso fazer de meus filhos escravos. Ou, em outras palavras, posso explorá-los? Não, não posso. E por quê? Porque devo amar o humano como semelhante, como igual. Esteja ele ao lado ou distante, é sempre próximo. Este princípio é fundamental na teologia da vida. As relações humanas implicam em reciprocidade, deve levar ao companheirismo, ao fundamento de origem: Da-terra e A-vida estão por trás de toda a humanidade.

As Escrituras hebraicas nos falam da obrigação de amar o estrangeiro, ou seja, aquele que nos parece totalmente diferente. Esse é o princípio da paz entre os povos. Por isso, a teologia da vida propõe que a paz prevaleça, seja formulada como lei a obrigação de cuidar e proteger os diferentes e as minorias. Este é o sentido maior da justiça.

Assim, se perguntarem: um homem pode explorar pai, mãe, mulher, filhos? Sabemos que a resposta é não. E de novo a pergunta: um homem pode explorar aquele que é diferente dele por credo, raça, sexo ou sob qualquer outro aspecto? Muitos acharão que sim. Mas quando tenho em minha frente uma pessoa, tenho um igual e, por mais diferente que seja, é meu irmão. Ser justo é reconhecer a liberdade dele, seus direitos e cuidar para que tenha uma vida digna, como humano que é.

O respeito e o cuidado por tudo aquilo que é humano, pelo ser, por sua terra e vida, é teologia radical, que nasce da compreensão de que somos semelhantes, cheios de parecença com O Eterno. A imagem está em um, em dois, em todas as pessoas.




O tempo das cerejas


Ontem, já em São Paulo, eu cometi um crime. Não, não foi um crime, foi uma dilaceração. Peguei todas as notas de compras da viagem, cada papelito e rasguei e joguei no lixo. E por que foi um ato tresloucado? Porque a minha memória é construída de emoções, sensações, racionalizações e muitos, mas muitos pequenos papéis de viagens. E talvez porque uma tragédia nunca se faça sozinha, peguei todos os meus cartazes e notas e papéis de minha viagem a Cuba e também joguei fora. Foram-se passando as horas e uma angústia foi me dominando. Um sentimento de ausência, de perda, uma tristeza louca por estar jogando fora um pedaço de mim. Na verdade um pedaço de minhas memórias. Sou um escritor de pedaços: cada notinha, ainda que seja de compra num free shop tem um valor enorme, maior do que o preço do produto, que certamente já foi consumido. Para minha alegria, a lata de lixo, que não é de lata, mas de plástico, fica da área de serviço da casa. E agora, hoje, eu tenho uma preciosidade, um montão de papel picado e cartazes rasgados, não sujos, mas empoeirados, meio amassados, que vou guardar e pesquisar como um cientista louco por palavras sem sentido.

É isso mesmo, gosto de palavras, mas não gosto da palavra dada, entregue, pronunciada. Gosto da palavra destruída de sentido, desmantelada, que apresenta novos significados, que se torna signo desconhecido, apontando realidades que só existem depois, ao final. É por isso que sofro com aquele revisor, que indevidamente conserta palavras que desejo desconsertadas.
Escrevi: “em Santiago fixo irado”. E disse para a Naira, minha mulher, algum maledetto vai reescrever “em Santiago fico irado”. E fazer isso será um absurdo porque “fico” é do verbo ficar e “fixo” é do verbo fixar. Escrevo “em Santiago fixo irado” porque na minha época houve um guerrilheiro que se chamava Tiro-fijo, em espanhol, e que traduzido quer dizer “tiro certeiro”, mas que eu sempre li e entendi como “tiro-fixo”, porque debruçado na mira, como amante sobre sua amada, era mortal. Só quem sofreu com os papéis lançados na lata de plástico do lixo pode dizer se eu em Santiago fico irado. Não fico irado não, fixo irado.
Desmontei a palavra, depois, remontei-a conforme a minha estética precária exige. É isso mesmo, a estética exige, tem jeitos que ela mesma define, é uma senhora brava, uma matrona cheia de manias. Mas a minha é precária, pois no diálogo com essa matrona, ela entra com sua autoridade e eu com minha fragilidade de escritor. E, então, se dirá: mas, e o leitor?

Bem, o leitor é o grande construtor da realidade estética do texto. E repare por quê! O autor é o momento da luta com o caos, ele criou seu texto a partir de emoções, sensações, racionalizações e muitos, mas muitos pequenos papéis de viagens. E da dilaceração permanente, contínua, de cada palavra, de cada sentença, tirou delas o sentido esperado. Fez do esperado, desespero. Criou sentidos que só pertencem a ele, como o exemplo do fixo irado. Mas, o leitor é o ato de liberdade que possibilita a todos os sentidos e a qualquer sentido ter de fato sentido. Por isso quando eu digo em Santiago fixo irado, você vai convidar a matrona para a cama, vai dormir com ela, nem que seja só para se aquecer. De todas as maneiras, ela vai se adocicar diante da sua ternura e abrir possibilidades novas que o autor nunca, jamais, tinha pensado. E o leitor tem esse direito, porque ao possuir o texto vai fazê-lo dele, é quem de fato lhe dá vida. 

Mas vamos falar agora, um pouco de minha viagem a Santiago, que posso traduzir como uma volta ao local do crime. Crime meu e crime cometido contra milhares e eu aí incluído. Crime contra a democracia, a liberdade e o pensamento. 

Naira comprou cerejas numa banca de frutas em frente à Universidade do Chile. É tempo de cerejas no Chile e elas são tão doces que doem na garganta. Tinha ido visitar a minha antiga universidade e cultivar lembranças. Geralmente se cultiva lembranças como frutas, é preciso terra. Donde a necessidade de voltar ao local do crime, de sentir os pés sobre a terra, respirar o cheiro do lugar, ouvir sons que estão adormecidos na memória. Por isso, caminhamos degustando cada cereja, porque as frutas já não eram frutas apenas, mas o açúcar do tempo das cerejas.

Veja como é estranho. “O tempo das cerejas” é uma canção de dois franceses, Jean Baptist Clément e Antoine Renard. Foi escrita e musicada em 1866, antes de explodir a Comuna de Paris, uma pequena, mas grande revolução que durou apenas três meses, de 26 de março a 28 de maio de 1871. Mudou a maneira de se pensar o socialismo. Marx, por exemplo, ficou extasiado diante daquela experiência do proletariado. O tempo das cerejas não é uma canção revolucionária, mas de amor. A última estrofe foi agregada posteriormente e dedicada a uma enfermeira morta em defesa da Comuna. Essa estrofe foi escrita debaixo do fogo da semana sangrenta, quando milhares de combatentes da Comuna foram massacrados. “Le temps des cerises”, que você pode ouvir e baixar na internet, me lembra o Hotel Residencial Londres, que fica na calle Londres, em Santiago. O prédio foi construído entre 1923 e 1929, e em 1964 transformado em hotel por Ilic e Adela Dumand. E deu um charme especial ao bairro Paris-Londres no centro da cidade. Na calle Londres, no Hotel Residencial Londres fui preso em setembro de 1973, no terceiro dia do golpe militar. 

O tempo das cerejas entregou a cabeça da mulher
serviu o sangue da virgem num cálice
cada gole tem o sabor da vida derramada
mochileiros franceses, macho, fêmea e filhote, dizem à demain para as cerejeiras
a rua está perfumada
a alameda é atravessada.

Para quem gosta de palavras é muito difícil deixar Gabriela Mistral e Pablo Neruda de lado. São monstros sagrados da literatura universal. Neruda tinha uma mania que eu também tenho, gostava de casas. Casa para ele não era abrigo ou lugar de morar. Era navio, lugar de memórias e casulo para amar. Por isso, mandou construir La Chascona, a desgrenhada, que foi a casa dele com a terceira companheira, Matilde Urrutia. É bom lembrar que Matilde tinha cabelos vermelhos. E eu, numa homenagem transversal ao poeta, também cheguei lá de cabelos vermelhos. E me senti muito bem, ruivo, a papear com Paloma no jardim. Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto foi um homem de muitas faces, mas a que mais admiro, além daquela de poeta, foi a de militante comunista. Estudou pedagogia, foi diplomata, senador, prêmio Nobel de literatura, mas nós nos lembramos dele como Neruda, o poeta comunista. 

De 1953 até 1973, viveu em La Chascona. Morreu aí, junto com a democracia, a liberdade e o pensamento. La Chascona, que agora é história, está ao lado do Cerro San Cristóbal e foi construída em níveis. Um jardim serpenteia a casa e cria hoje paisagens propícias ao cultivo de memórias. Nesse jardim, eu e Paloma descansamos, olhando para a sombra das pequenas árvores, quietos, silentes, vendo turistas passantes e Naira desaparecida a fotografar.

O tempo das cerejas fugirá para outras bandas
Miró mia nas minhas lembranças
rabisco no La Chascona ao poeta
bardo brado
por onde anda a ode?
flagelo e sal
sangue e semente
formigas desfilam sobre o açúcar derramado
você e eu descarrilados
por poemar instantes
beleza é água na garganta seca.

Você já prestou atenção no caminhar? É diferente caminhar em terra batida, em terra molhada, na grama. São apenas duas ruas de paralelepípedos e mansões dos anos 1920, uma se chama Paris, como aquela da Comuna, e a outra Londres, como aquela de Cromwell e seus republicanos. De manhã, caminhar em ruas de paralelepípedos nos dá a sensação de segurança e desequilíbrio. Você sai do asfalto, do cimento e vai devagar a pisar paralelepípedos. Sinta com atenção. Veja a diferença. Sentiu, Naira? Veja como é gostoso, Paloma? Aqui as ruas não são apenas belas, estão paradas no tempo, frescas, sombreadas. Aqui não há lojas. Há pequenos hotéis, escolas e esse café maneiro ao lado do hotel. Com uma praça e tudo, à moda antiga, um pedaço da Europa no meio de Santiago.

Mas como sonho e pesadelo são estados do adormecido, em frente ao meu Hotel Residencial Londres há um prédio pichado “aqui torturaram e assassinaram”. E quando meio dormindo, meio acordado, tentava descobrir o que estava lendo, um cicerone não convidado se aproximou e disse: “Esta era uma das muitas casas onde a ditadura torturava e assassinava pessoas”. Conversamos poucas frases sobre violência e crimes políticos, e tráfico de drogas no Brasil, mas rapidamente meu interlocutor escafedeu-se.

Essas ruas de Santiago, manchadas de sangue, me remetem a um militante, homem de fé, Martin Luther King Jr, herói dos trezentos milhões de negros espalhados pelo mundo e do novo presidente estadunidense. Mas tudo começou com Rosa Parks. Ou como contou o jornal Versus:

1955. Uma costureira negra, dirigindo-se do trabalho para casa em Montgomery, Alabama, recebeu ordens de um motorista branco para que se transferisse para a parte de trás do ônibus. Rosa Parks estava sentada, em um dos bancos da frente, e simplesmente recusou-se a mudar de lugar. Foi presa por violação às leis de segregação do Alabama. A comunidade negra enfureceu-se. Os negros disseram que já vinham sendo insultados há demasiado tempo por motoristas de ônibus brancos, e declararam que não tomariam mais qualquer ônibus até que a segregação fosse eliminada e certo número de motoristas negros fosse admitido.

Liderados pelo jovem ministro batista Martin Luther King, os negros de Montgomery simplesmente boicotaram os ônibus até que a empresa, quase à bancarrota, submeteu-se às exigências. Em breve, os negros de muitas cidades do Sul recorreram à técnica do boicote para conseguir melhor tratamento nas lojas e outras casas comerciais, e para assegurar melhor emprego para sua gente. Se os autores do boicote usavam a não-violência, eram ao mesmo tempo militantes e obstinados. Certamente, tiveram importância na obtenção de certas mudanças que o Sul dos Estados Unidos, com sua veemente resistência a toda e qualquer transformação, consideraria revolucionária.

Também foi em 1955 que King finalizou sua tese A Comparison of the Conceptions of God in the Thinking of Paul Tillich and Henry Nelson Wieman. King conhecia o pensamento do teólogo teuto-estadunidense e, por isso, sua ação militante repousou em parte sobre o pensamento socialista de Tillich.

Tanto para King como para Tillich, o poder autêntico era a verdade. Entretanto, esta verdade não seria norma abstrata que se impõe à realidade. Seria, sobretudo, a expressão concreta da tendência última do real. A verdade só teria poder se fosse uma tendência de vida, de uma sociedade, a verdade de um grupo que detém, interiormente, na sociedade, o poder.

Teoria e prática se fizeram carne e sangue na vida de King e, no dia 4 de abril de 1968, quando preparava uma marcha dos negros na cidade de Memphis, Tennessee, foi atingido por tiros. Anos depois, o jornal Versus orou pelo companheiro abatido:

Desde a época em que chefiou o boicote dos ônibus em Montgomery, inúmeras foram as ameaças à sua vida. Foi publicamente denunciado e alvo de abjetos epítetos. O próprio clima tornou-se tão carregado que, considerando-se agora as coisas, percebe-se que um fim violento para o grande líder negro era inevitável. Todavia, a América branca não podia antecipar a reação da América negra ao assassinato a sangue frio de um de seus líderes mais poderosos. Vários dias de desordens, incêndios e pilhagens em muitas cidades foram a louca manifestação de um amargo desespero e frustração. Mesmo os que prantearam a morte de Martin Luther King sem qualquer mostra exterior de emoção revelaram-se tão sensíveis no apreço de seu significado quanto aqueles cuja reação foi violenta. Descanse em paz, Dr. Martin Luther King!
Tanto para Tillich como para King, a conquista violenta dos instrumentos de poder social não decidia a vitória de uma revolução. Isso só aconteceria quando se estabelecesse uma nova estrutura de poder, amplamente reconhecida. Seria um erro pensar, afirmava Tillich, que amparar a revolução no aparelho do poder garantiria a vitória. O aparelho do poder deveria ser renovado constantemente a partir das forças da sociedade, forças pessoais, materiais e ideais. Caso contrário, a revolução ruiria, mesmo quando os meios técnicos permitissem que se impusesse por tempo maior àquele de épocas não desenvolvidas.

Mas do que palavras, a militância política de King traduziu a compreensão de que há uma dialética de ferro entre verdade e poder. E que o poder verdadeiro nasce da verdade última, aquela que transcende o momento presente e permanece no coração e mente dos excluídos. Essa compreensão, mesmo quando não é corretamente traduzida pelo grupo que chega ao poder, continua a marcar o horizonte último da ética socialista. 

Londres-fixo
aranhas sopradas pelo vento norte
lugar de sonhos desperdiçados
picadas na carne nova
matinais de 11 de setembro
o azul cede ao cinza
morcegos desconstroem flores
palavras duras decretam o fim da esperança
olhos mareados
a porta esmurrada
a fronte torturada
o corpo desfilado
olho perdido na esquina.

Deixo para trás Paris-Londres, olho a igreja de San Francisco, a construção mais antiga da cidade. Caminho algumas quadras na sequidão sob um sol de trinta e poucos graus pela principal avenida da cidade, que a corta de leste a oeste, e se chama Libertador Bernardo O’Higgins, mas é conhecida como Alameda apenas. Ali perto, a poucas quadras, há um palácio, o La Moneda. 

E me lembro de um político, Salvador Allende, que depois de três derrotas, veio a vencer as eleições presidenciais em 1970. Governou com uma frente popular capitaneada por socialistas e comunistas. Acreditava que poderia levar o Chile ao socialismo através do processo democrático, sem enfrentamentos violentos. Mas isso não aconteceu. E como a direita e os Estados Unidos viam Allende como o príncipe das trevas, todos os setores de oposição, inclusive os democratas cristãos, se organizaram e com apoio dos militares, se lançaram ao golpe. Allende foi derrubado. O Palácio La Moneda e fábricas, onde trabalhadores organizavam a resistência, foram bombardeados. Foi um tempo de chacina.

Londres-fixo
nem Caetano
nem Gil
é ilha no nada
lagartos da inexistência
tristeza, espanto, perplexidade
Tiago não tem salvador
coturnos abundam!

Os demônios estão mortos. Trinta e cinco anos depois do golpe militar curto a cidade limpa, com metrô e prédios modernos. Metrópole neoliberal, segundo o modelo dos Chicago Boys, liderados pelo economista Milton Friedman. Mas, permanece a sensação de que caminhamos sobre cadáveres que não foram sepultados com dignidade. 

Quando a dor é grande
Quando a dor é grande,
Às vezes, eu duvido.
Quando a dor é grande,
Às vezes, eu pergunto:
Estou mal de coração,
Ou estou mal de ouvido?
Se há resposta é o Nome,
Se há caminho é a Paixão.
São tantas as coincidências,
Que coincidências não são:
É a Tua presença na minha vida.
Quando a dor é grande,
Eu creio. Sei que é o meio
Da Tua presença na minha vida.

mercredi 18 décembre 2024

Meu pai e a exploração da monazita

Amynthas Jorge dos Santos, meu pai, teve um papel importante na história da exploração da monazita no Brasil, especialmente em Barra de Tabapoana, localizada no norte do estado do Rio de Janeiro. A região é conhecida por possuir depósitos de areias monazíticas, ricas em elementos de terras raras e tório.

Barra de Tabapoana e as jazidas de monazita

Importância geológica: A área de Barra de Tabapoana possui uma das faixas litorâneas com depósitos de minerais pesados, incluindo a monazita, que foi historicamente explorada para a extração de elementos estratégicos.

Exploração local: Ter jazidas de monazita na região significava acesso a um recurso natural valioso, especialmente durante períodos em que a demanda por terras raras e tório era elevada.

A contribuição de meu pai 

1. Gestão das jazidas:

Como proprietário de jazidas, ele desempenhou um papel fundamental na extração e comercialização do mineral, contribuindo para o desenvolvimento econômico da região.

A operação de jazidas exigia conhecimento técnico e uma visão empreendedora para lidar com os desafios da mineração e as regulamentações da época.

2. Legado regional:

A presença de jazidas em Barra de Tabapoana influenciou a economia e a infraestrutura local, criando oportunidades de trabalho e movimentando o comércio regional.

Ele foi participante importante na cadeia produtiva da monazita no Brasil, especialmente no período de maior relevância desse mineral.

3. Relação com o contexto nacional:

Entre as décadas de 1940 e 1950, ele enfrentou um cenário de regulamentação estatal intensa, especialmente com a criação da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), que passou a controlar minerais radioativos como a monazita.

Memória e valorização

A história de meu pai teve parte importante no legado econômico e geológico de Barra de Tabapoana e do Brasil.

A exploração da Monazita no Brasil

A exploração de monazita no Brasil tem uma história significativa, ligada principalmente à produção de elementos de terras raras e de tório, um elemento radioativo usado como combustível nuclear potencial.

O que é a monazita?

A monazita é um mineral fosfato que contém elementos de terras raras como lantânio, cério, e neodímio, além de pequenas quantidades de tório e urânio. No Brasil, ela é encontrada principalmente em areias monazíticas ao longo do litoral.

História da exploração no Brasil

1. Início da exploração:

A exploração começou no início do século XX, com a descoberta de depósitos significativos no litoral do Espírito Santo, Bahia e Rio de Janeiro.

Durante décadas, o Brasil foi um dos maiores exportadores de monazita.



2. Produção e exportação:

O país exportava grandes quantidades de monazita para a Europa e os Estados Unidos, onde os elementos de terras raras eram usados na fabricação de ligas metálicas, vidros especiais e catalisadores.

O tório extraído foi investigado como uma alternativa ao urânio na energia nuclear.



3. Controle estatal:

Durante a década de 1950, com o aumento das preocupações globais sobre materiais radioativos, o governo brasileiro restringiu a exploração e exportação de minerais como a monazita, priorizando o controle estatal.




Situação atual

1. Declínio da exploração:

A exploração da monazita no Brasil diminuiu devido à concorrência de outros países (como a China, que domina o mercado de terras raras), além das preocupações ambientais e regulatórias.



2. Reservas potenciais:

O Brasil ainda possui vastas reservas de monazita, especialmente no litoral do Espírito Santo e em depósitos aluviais na Amazônia.



3. Interesse renovado:

Recentemente, tem havido um interesse crescente na exploração de terras raras, dadas suas aplicações em tecnologias avançadas, como baterias, imãs permanentes e eletrônicos. A monazita brasileira pode se tornar estratégica para essa indústria.




Desafios e perspectivas

Desafios:

Impacto ambiental da mineração.

Necessidade de desenvolver tecnologias limpas para processamento.

Concorrência internacional.


Perspectivas:

Potencial para reposicionar o Brasil como fornecedor global de terras raras.

Interesse no uso do tório como combustível nuclear alternativo.



O futuro da monazita no Brasil depende de políticas públicas, investimentos tecnológicos e regulamentações que equilibrem desenvolvimento econômico e sustentabilidade.

Parecer Monazita

 PARECER

Ref.: exploração de monazita, decorrente do Decreto nº 10.919, de 25 de novembro 1942, nos termos da consulta formulada por Jorge Pinheiro.
Os recursos minerais, incluindo os do subsolo, são de titularidade da União, nos termos do art. 20, IX, da Constituição Federal de 1988:
Art. 20. São bens da União:
IX – os recursos minerais, inclusive os do subsolo;
Por tal motivo, a exploração de recursos minerais por particulares depende de expressa autorização da União, concedida atualmente através da autarquia federal competente – Departamento Nacional de Produção Mineral – DNPM - que após tramitação de processo administrativo específico e mediante o devido preenchimento dos requisitos legais pelo interessado, outorgará o título autorizativo, que condicionado ao licenciamento ambiental, permitirá a realização de pesquisa ou lavra na área indicada pelo minerador.
No caso específico da concessão de lavra a Amynthas Jorge dos Santos, o Presidente da República à época, Getúlio Vargas, como Chefe do Poder Executivo da União, através do de Decreto nº 10.919, de 25 de novembro 1942, autorizou “o cidadão brasileiro Amynthas Jorge dos Santos a lavrar jazidas de areias monazíticas e ilmenita no município de São João da Barra, do Estado do Rio de Janeiro”, Decreto transcrito abaixo:
DECRETO N. 10.919, DE 25 DE NOVEMBRO DE 1942
Autoriza o cidadão brasileiro Amynthas Jorge dos Santos a lavrar jazidas de areias monazíticas e ilmenita no município de São João da Barra, do Estado do Rio de Janeiro.
O Presidente da República, usando da atribuição que lhe confere o artigo 74, letra a, da Constituição e nos termos do Decreto-lei n. 1. 985, de 29 de janeiro de 1940 (Código de Minas),
decreta:
Art. 1º Fica autorizado o cidadão brasileiro Amynthas Jorge dos Santos a lavrar a jazida de areias monazíticas e ilmenita, em terrenos de marinha compreendendo as praias Bueno, Atalhos, Retiro, Salgado e Termão, situadas no distrito de Barra do Itabapoana, município de São João da Barra do Estado do Rio de Janeiro, ocupando uma área de cinquenta e nove hectares e dezoito ares (59,18 Ha), compreendida na faixa litorânea do oceano Atlântico, tendo trinta e três metros (33m) de largura por dezessete mil novecentos e trinta e quatro metros (17 934 m) de comprimento a partir da foz do rio Itabapoana para o sul (S), confinando com o referido Oceano. Esta autorização é outorgada mediante as condições do parágrafo único do art. 28 do Código de Minas e dos arts. 32, 33, 34, e suas alíneas, alem das seguintes e de outras constantes do mesmo Código, não expressamente mencionadas neste Decreto.
Art. 2º O concessionário da autorização fica obrigado a recolher aos cofres federais, na forma da lei e em duas prestações semestrais, vencíveis em 30 de junho e 31 de dezembro de cada ano, um e meio por cento (1,5%) do valor da produção efetiva da mina, em cumprimento do disposto no § 3º do art. 31 do Código de Minas.
Art. 3º Se o concessionário da autorização não cumprir qualquer das obrigações que lhe incumbem, a autorização de lavra será declarada caduca ou nula, na forma dos artigos 37 e 38 do citado Código.
Art. 4º As propriedades vizinhas estão sujeitas às servidões de solo e sub-solo para os fins da lavra, na forma dos artigos 39 e 40 do Código de Minas.
Art. 5º O concessionário da autorização será fiscalizado pelo Departamento Nacional da Produção Mineral e gozará dos favores discriminados no art. 71 do mesmo Código.
Art. 6º A autorização da lavra terá por título este Decreto, que será transcrito no livro próprio da Divisão de Fomento da Produção Mineral do Ministério da Agricultura, após o agamento da taxa de mil e duzentos cruzeiros (Cr$ 1 200,00) .
Art. 7º Revogam-se as disposições em contrário.
Rio de Janeiro, 26 de novembro de 1942, 121º da Independência e 54º da República
Getulio Vargas.
Apolonio Selles
De se ressaltar que o próprio Decreto, publicado nos idos de 1942, já fazia referência ao Departamento Nacional de Produção Mineral – DNPM, autarquia federal ainda hoje responsável pela concessão da exploração dos recursos minerais pertencentes à União.
Ocorre que sobreveio o Decreto nº 64.262, de 21 de Março de 1969, que declarou caduco o Decreto nº 10.919, de 25-11-1942, o qual havia autorizado a concessão de lavra de monazita a Amynthas Jorge dos Santos, conforme segue abaixo:
Decreto nº 64.262, de 21 de Março de 1969
Declara caduco o Decreto nº 10.919, de 25-11-1942.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, usando da atribuição que lhe confere o artigo 83, item II, da Constituição e nos termos do Decreto-lei nº 227, de 28 de fevereiro de 1967 (Código de Mineração), alterado pelo Decreto-lei número 318, de 14 de março de 1967, e tendo em vista o que consta dos autos do processo DNPM 8500-41 do Departamento Nacional da Produção Mineral do Ministério das Minas e Energia,
DECRETA:
Artigo único. Fica declarado caduco o Decreto número dez mil novecentos e dezenove (10.919), de vinte e cinco (25) de novembro de mil novecentos e quarenta e dois (1942), que autorizou o cidadão brasileiro Amynthas Jorge dos Santos a lavrar jazidas de areias monazíticas e ilmenita no município de São João da Barra, Estado do Rio de Janeiro.
Brasília 21 de março de 1969; 148º da Independência e 81º da República.
A. COSTA E SILVA
Antônio Dias Leite Júnior
Este texto não substitui o original publicado no Diário Oficial da União - Seção 1 de 27/03/1969
Publicação:
Diário Oficial da União - Seção 1 - 27/3/1969, Página 2660 (Publicação Original)
Coleção de Leis do Brasil - 1969, Página 240 Vol. 2 (Publicação Original)
Importante frisar que o Decreto nº 64.262, que declarou caduco o Decreto que concedeu a exploração da lavra, faz menção “ao que consta dos autos do processo DNPM 8500-41 do Departamento Nacional da Produção Mineral do Ministério das Minas e Energia”.
Portanto, a primeira providência que devemos adotar é tentar obter cópia do referido processo administrativo DNPM 8500-41, para se conhecer as razões que levaram a autarquia federal a opinar no sentido de que fosse declarado caduco o Decreto que anteriormente concedeu a autorização para a lavra. O próprio art. 3º do Decreto que concedeu o direito à lavra declara que “Se o concessionário da autorização não cumprir qualquer das obrigações que lhe incumbem, a autorização de lavra será declarada caduca ou nula, na forma dos artigos 37 e 38 do citado Código.”
Contudo, em razão da data do último Decreto (1969), talvez seja difícil localizar o referido processo administrativo.
Por outro lado, a caducidade é um modo de extinção do contrato administrativo, nos termos da Lei 8987/95, cujo artigo 35 assim dispõe:
Art. 35. Extingue-se a concessão por:
I - advento do termo contratual;
II - encampação;
III - caducidade;
Ainda com relação ao mesmo diploma legal, outro artigo evidencia que a caducidade decorre da inexecução total ou parcial do contrato administrativo (art. 38), indicando a possibilidade de ocorrência de alguma espécie de descumprimento das condições estabelecidas na concessão da lavra. Porém, somente a consulta ao processo administrativo de nº DNPM 8500-41, que tramitou perante o Departamento Nacional da Produção Mineral, poderá esclarecer a questão.
Art. 38. A inexecução total ou parcial do contrato acarretará, a critério do poder concedente, a declaração de caducidade da concessão ou a aplicação das sanções contratuais, respeitadas as disposições deste artigo, do art. 27, e as normas convencionadas entre as partes.
§ 1o A caducidade da concessão poderá ser declarada pelo poder concedente quando:
I - o serviço estiver sendo prestado de forma inadequada ou deficiente, tendo por base as normas, critérios, indicadores e parâmetros definidores da qualidade do serviço;
II - a concessionária descumprir cláusulas contratuais ou disposições legais ou regulamentares concernentes à concessão;
III - a concessionária paralisar o serviço ou concorrer para tanto, ressalvadas as hipóteses decorrentes de caso fortuito ou força maior;
IV - a concessionária perder as condições econômicas, técnicas ou operacionais para manter a adequada prestação do serviço concedido;
V - a concessionária não cumprir as penalidades impostas por infrações, nos devidos prazos;
VI - a concessionária não atender a intimação do poder concedente no sentido de regularizar a prestação do serviço; e
VII - a concessionária for condenada em sentença transitada em julgado por sonegação de tributos, inclusive contribuições sociais.
§ 2o A declaração da caducidade da concessão deverá ser precedida da verificação da inadimplência da concessionária em processo administrativo, assegurado o direito de ampla defesa.
Ante o exposto, em conclusão, o início de qualquer procedimento tendente à reivindicação de direitos, referentes à concessão de lavra autorizada pelo Decreto nº 10.919, passa necessariamente pela ciência dos termos e conclusões constantes do processo administrativo de nº DNPM 8500-41 do Departamento Nacional da Produção Mineral.
É o parecer, salvo melhor juízo.
Dagoberto Cardoso Calandrelli
OAB/SP nº 162.575

Decreto 10.919 de 25 Nov. 1942

 PARECER

 

 

Ref.: exploração de monazita, decorrente do Decreto nº 10.919, de 25 de novembro 1942, nos termos da consulta formulada por Jorge Pinheiro.

 

 

Os recursos minerais, incluindo os do subsolo, são de titularidade da União, nos termos do art. 20, IX, da Constituição Federal de 1988:

Art. 20. São bens da União:

IX – os recursos minerais, inclusive os do subsolo;

 

Por tal motivo, a exploração de recursos minerais por particulares depende de expressa autorização da União, concedida atualmente através da autarquia federal competente – Departamento Nacional de Produção Mineral – DNPM - que após tramitação de processo administrativo específico e mediante o devido preenchimento dos requisitos legais pelo interessado, outorgará o título autorizativo, que condicionado ao licenciamento ambiental, permitirá a realização de pesquisa ou lavra na área indicada pelo minerador.

 

No caso específico da concessão de lavra a Amynthas Jorge dos Santos, o Presidente da República à época, Getúlio Vargas, como Chefe do Poder Executivo da União, através do de Decreto nº 10.919, de 25 de novembro 1942, autorizou o cidadão brasileiro Amynthas Jorge dos Santos a lavrar jazidas de areias monazíticas e ilmenita no município de São João da Barra, do Estado do Rio de Janeiro”, Decreto transcrito abaixo:

 

DECRETO N. 10.919,  DE 25 DE NOVEMBRO DE 1942

Autoriza o cidadão brasileiro Amynthas Jorge dos Santos a lavrar jazidas de areias monazíticas e ilmenita no município de São João da Barra, do Estado do Rio de Janeiro.

O Presidente da República, usando da atribuição que lhe confere o artigo 74, letra a, da Constituição e nos termos do Decreto-lei n. 1. 985, de 29 de janeiro de 1940 (Código de Minas),

 DECRETA:

Art. 1º Fica autorizado o cidadão brasileiro Amynthas Jorge dos Santos a lavrar a jazida de areias monazíticas e ilmenita, em terrenos de marinha compreendendo as praias Bueno, Atalhos, Retiro, Salgado e Termão, situadas no distrito de Barra do Itabapoana, município de São João da Barra do Estado do Rio de Janeiro, ocupando uma área de cinquenta e nove hectares e dezoito ares (59,18 Ha), compreendida na faixa litorânea do oceano Atlântico, tendo trinta e três metros (33m) de largura por dezessete mil novecentos e trinta e quatro metros (17 934 m) de comprimento a partir da foz do rio Itabapoana para o sul (S), confinando com o referido Oceano. Esta autorização é outorgada mediante as condições do parágrafo único do art. 28 do Código de Minas e dos arts. 32, 33, 34, e suas alíneas, alem das seguintes e de outras constantes do mesmo Código, não expressamente mencionadas neste Decreto.

Art. 2º O concessionário da autorização fica obrigado a recolher aos cofres federais, na forma da lei e em duas prestações semestrais, vencíveis em 30 de junho e 31 de dezembro de cada ano, um e meio por cento (1,5%) do valor da produção efetiva da mina, em cumprimento do disposto no § 3º do art. 31 do Código de Minas.

Art. 3º Se o concessionário da autorização não cumprir qualquer das obrigações que lhe incumbem, a autorização de lavra será declarada caduca ou nula, na forma dos artigos 37 e 38 do citado Código.

Art. 4º As propriedades vizinhas estão sujeitas às servidões de solo e sub-solo para os fins da lavra, na forma dos artigos 39 e 40 do Código de Minas.

Art. 5º O concessionário da autorização será fiscalizado pelo Departamento Nacional da Produção Mineral e gozará dos favores discriminados no art. 71 do mesmo Código.

Art. 6º A autorização da lavra terá por título este Decreto, que será transcrito no livro próprio da Divisão de Fomento da Produção Mineral do Ministério da Agricultura, após o agamento da taxa de mil e duzentos cruzeiros (Cr$ 1 200,00) .

Art. 7º Revogam-se as disposições em contrário.

Rio de Janeiro, 26 de novembro de 1942, 121º da Independência e 54º da República

GETULIO VARGAS. 

Apolonio Selles

 

 

De se ressaltar que o próprio Decreto, publicado nos idos de 1942, já fazia referência ao Departamento Nacional de Produção Mineral – DNPM, autarquia federal ainda hoje responsável pela concessão da exploração dos recursos minerais pertencentes à União.

 

 

 

Ocorre que sobreveio o Decreto nº 64.262, de 21 de Março de 1969, que declarou caduco o Decreto nº 10.919, de 25-11-1942, o qual havia autorizado a concessão de lavra de monazita a Amynthas Jorge dos Santos, conforme segue abaixo:

 

Decreto nº 64.262, de 21 de Março de 1969

Declara caduco o Decreto nº 10.919, de 25-11-1942. 

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, usando da atribuição que lhe confere o artigo 83, item II, da Constituição e nos termos do Decreto-lei nº 227, de 28 de fevereiro de 1967 (Código de Mineração), alterado pelo Decreto-lei número 318, de 14 de março de 1967, e tendo em vista o que consta dos autos do processo DNPM 8500-41 do Departamento Nacional da Produção Mineral do Ministério das Minas e Energia, 

DECRETA: 

Artigo único. Fica declarado caduco o Decreto número dez mil novecentos e dezenove (10.919), de vinte e cinco (25) de novembro de mil novecentos e quarenta e dois (1942), que autorizou o cidadão brasileiro Amynthas Jorge dos Santos a lavrar jazidas de areias monazíticas e ilmenita no município de São João da Barra, Estado do Rio de Janeiro. 

Brasília 21 de março de 1969; 148º da Independência e 81º da República. 

A. COSTA E SILVA

 Antônio Dias Leite Júnior

 

Este texto não substitui o original publicado no Diário Oficial da União - Seção 1 de 27/03/1969 

 

Publicação: 

· Diário Oficial da União - Seção 1 - 27/3/1969, Página 2660 (Publicação Original) 

· Coleção de Leis do Brasil - 1969, Página 240 Vol. 2 (Publicação Original) 

 

Importante frisar que o Decreto nº 64.262, que declarou caduco o Decreto que concedeu a exploração da lavra, faz menção “ao que consta dos autos do processo DNPM 8500-41 do Departamento Nacional da Produção Mineral do Ministério das Minas e Energia”

 

Portanto, a primeira providência que devemos adotar é tentar obter cópia do referido processo administrativo DNPM 8500-41, para se conhecer as razões que levaram a autarquia federal a opinar no sentido de que fosse declarado caduco o Decreto que anteriormente concedeu a autorização para a lavra. O próprio art. 3º do Decreto que concedeu o direito à lavra declara que “Se o concessionário da autorização não cumprir qualquer das obrigações que lhe incumbem, a autorização de lavra será declarada caduca ou nula, na forma dos artigos 37 e 38 do citado Código.”

 

Contudo, em razão da data do último Decreto (1969), talvez seja difícil localizar o referido processo administrativo.

 

Por outro lado, a caducidade é um modo de extinção do contrato administrativo, nos termos da Lei 8987/95, cujo artigo 35 assim dispõe:

Art. 35. Extingue-se a concessão por:

I - advento do termo contratual;

II - encampação;

III - caducidade;

 

Ainda com relação ao mesmo diploma legal, outro artigo evidencia que a caducidade decorre da inexecução total ou parcial do contrato administrativo (art. 38), indicando a possibilidade de ocorrência de alguma espécie de descumprimento das condições estabelecidas na concessão da lavra. Porém, somente a consulta ao processo administrativo de nº DNPM 8500-41, que tramitou perante o Departamento Nacional da Produção Mineral, poderá esclarecer a questão.

 

Art. 38. A inexecução total ou parcial do contrato acarretará, a critério do poder concedente, a declaração de caducidade da concessão ou a aplicação das sanções contratuais, respeitadas as disposições deste artigo, do art. 27, e as normas convencionadas entre as partes.

§ 1o A caducidade da concessão poderá ser declarada pelo poder concedente quando:

I - o serviço estiver sendo prestado de forma inadequada ou deficiente, tendo por base as normas, critérios, indicadores e parâmetros definidores da qualidade do serviço;

 II - a concessionária descumprir cláusulas contratuais ou disposições legais ou regulamentares concernentes à concessão;

III - a concessionária paralisar o serviço ou concorrer para tanto, ressalvadas as hipóteses decorrentes de caso fortuito ou força maior;

IV - a concessionária perder as condições econômicas, técnicas ou operacionais para manter a adequada prestação do serviço concedido;

V - a concessionária não cumprir as penalidades impostas por infrações, nos devidos prazos;

VI - a concessionária não atender a intimação do poder concedente no sentido de regularizar a prestação do serviço; e

VII - a concessionária for condenada em sentença transitada em julgado por sonegação de tributos, inclusive contribuições sociais.

§ 2o A declaração da caducidade da concessão deverá ser precedida da verificação da inadimplência da concessionária em processo administrativo, assegurado o direito de ampla defesa.

 

 

Ante o exposto, em conclusão, o início de qualquer procedimento tendente à reivindicação de direitos, referentes à concessão de lavra autorizada pelo Decreto nº 10.919, passa necessariamente pela ciência dos termos e conclusões constantes do processo administrativo de nº DNPM 8500-41 do Departamento Nacional da Produção Mineral.

 

 

É o parecer, salvo melhor juízo.

 

 

 

Dagoberto Cardoso Calandrelli

OAB/SP nº 162.575