Para os meus alunos de Teologia Sistemática II. Favor ler o texto abaixo e depois analisar o vídeo do Cordel do Fogo Encantado, "Chover". Obrigado, JP.
A antropologia
da imagem de Deus
O shemá era a oração que duas vezes por dia os judeus elevavam ao Eterno.
Essa prece reconhece Deus como único e diz que deviam amá-lo com todo leb, com
toda nefesh e com toda meod, conforme Deuteronômio 6.5.
Leb e lebab,
que os gregos traduziram por cardia e nós por coração, nos falam dos movimentos
do corpo humano. Leb e
sua variante lebab ocorrem 858
vezes nas Escrituras hebraicas, das quais 814 se referem ao coração humano.
Expressam a noção antropológica de que somos movidos por sentimentos e emoções
que movimentam e dirigem nossos membros e corpo. Têm a realidade anatômica e as
funções fisiológicas do coração enquanto expressões das atividades do ser
humano, que levam às disposições de ânimo como alegria e aflição, coragem e
temor, desejo e aspiração, e também às funções intelectuais como inteligência e
decisão da vontade, que na cultura ocidental atribuímos ao cérebro. Nas
passagens do livro de Gênesis que nos falam do leb constatamos que a
antropologia se apresenta como uma psicologia teológica. Assim, leb tem um
significado antropológico que fala daqueles aspectos que nos levam aos
movimentos do sentir, do querer e do agir, que compõem a personalidade humana.
Meod,
que os gregos traduziram por dynamis e nós
por força, aparece trezentas vezes nas Escrituras hebraicas, e traduz a idéia
de intensidade e abundância. Em alguns textos, como no caso do crescimento do
povo hebreu no Egito, meod aparece ligado à idéia de reprodução, de muitos
filhos, o que nos leva a uma compreensão diferente do termo dynamis em grego,
que nos fala de uma força física externa ao ser humano. Em hebraico podemos
entender meod como potência, aquela força, aquela energia que faz de nós seres
criadores, tanto no sentido biológico como intelectual. Seria potência que
identifica o ser humano, capacidade de gerar que faz o humano crescer e
multiplicar-se.
Mas,
nefesh, que os gregos
traduziram por psyché, mas que significa garganta, respiração, fôlego, pessoa,
vida e alma, [1]
sem dúvida, nos fala da plenitude daquilo que é humano, conforme encontramos em
Gênesis 2.7. Dessa maneira, nefesh possibilita um rico diálogo com o texto de
Gênesis e nos permite uma reconstrução dos significados da natureza humana.
A expressão nefesh leva a uma concepção de
exterior versus interior, [2]
que tem por base Deuteronômio 32.9, quando afirma que “uma parte de Iaveh faz
seu povo”. Mobiliza assim em diferentes níveis essa força criacional, que
constitui uma parte de Deus. A matéria-prima utilizada por Deus na modelagem
humana é ordinária, enquanto material pertencente a ordem comum de “ló nefesh”:
inanimados e animais. É o sopro de Deus que faz especial essa matéria
ordinária. Mas será que estamos somente diante de um símbolo ou, de fato, a
força criacional de Deus transmite à matéria ordinária não somente vida, mas
transfere intensidade e profundidade? De certa maneira, não é absurdo dizer que
os seres celestiais são criaturas integralmente espirituais. Sua existência
procede do exterior da força criacional de Deus. A exteriorização traduz-se no
fato de que a força criacional se dá através da palavra, da palavra criadora de
Deus. Nesse sentido, nefesh
procede da interioridade de Deus e por isso é conhecida como “ein sof”, que vem
de seu interior. “Ele soprou” deve ser entendido como continuidade da afirmação
anterior “façamos o ser humano” (Gênesis 1.26), de maneira que nefesh liga céu e terra, o que está
acima e o que está abaixo. Por isso, dizemos que a natureza humana é superior à
natureza angélica, porque procede da interioridade de Iaveh. Traduz ação
mediadora e conjuntiva da força criacional. Donde, a natureza humana procede de
atributos divinos não ostensivos, discretos, que se traduzem em integridade
holística, pluralidade social, sabedoria, compreensão e abertura à
transcendência. Nefesh entende-se e revela-se enquanto natureza que se torna
compreensível e inteligível. É transbordamento e transparência do Espírito de
Deus, que indica transbordamento e transparência no humano, daquilo que
relaciona o que está em cima com o que está em baixo. Da leitura de Gênesis 2.7
podemos constatar que o texto fala de respiração e daquilo que o humano passa a
ser: ele não tem uma nefesh, ele passa a ser uma nefesh.
O texto e o pensamento literário
dos hebreus são sintéticos. Daí que a chave para chegarmos a uma compreensão
analítica dele exige identificar com que parte do corpo o ser humano pode ser
comparado e onde o agir humano faz interface com nefesh, utilizando para isso
textos que apresentam diferentes sentidos de nefesh. Embora a expressão nefesh
apareça 755 vezes nas Escrituras hebraicas e seja traduzida 600 vezes na
Septuaginta por “psyché”, garganta e estômago podem ser tomados por paradigma e
transmitem a idéia de necessidade, de algo difícil de ser saciado. Nesse
sentido, a palavra alma nos dá uma tradução incompleta, pois a idéia é que
“Iaveh Deus formou o ser humano do pó da terra e insuflou em suas narinas o seu
hálito e o ser humano se tornou um ser vivente que necessita Dele para ser
saciado”.
Nefesh não traduz algo bom ou
mal, mas a realidade das necessidades fundamentais e imprescindíveis da alma
humana, que ao não serem ou não estarem preenchidas por Deus produzem
alienação, individualismo, descrença, ignorância e idolatria. Mas como o sopro
de Deus pode ter gerado um ser humano com tal índole de insaciabilidade? Se
entendermos a nefesh como o órgão das necessidades vitais, dos movimentos
emocionais da alma, somos levados a entender o pensamento sintético hebreu ao
ver a nefesh como síntese da própria vida. Assim, as necessidades humanas
criadas pelo próprio Deus só podem ser saciadas por Ele.
“Quem me encontra, encontrou a
vida e alcançou benevolência de Iaveh. Quem não me acha, faz violência à sua
nefesh. Todos os que me odeiam, amam a morte”. Provérbios 8.39 e seguintes.
No
relato de Gênesis 2.7 o ser humano é definido como nefesh hayah, um ser
vivente, que necessita ser saciado. Quando integrado ao seu Criador, nefesh é
transbordamento e transparência do Espírito de Deus, que indica transbordamento
e transparência no humano, daquilo que relaciona o que está em cima com o que
está em baixo. Mas essa natureza também se vai constituir enquanto expansão dos
significados da imagem de Deus, em graça e amor. “Ele soprou” traduz o fato de
que as coisas do intelecto e do coração expressam-se através dos órgãos da
fala, em especial, garganta e boca, que possibilitam o sopro. Nefesh como
substantivo ganhou vários sentidos, sendo garganta um deles, e assim é usado em
Provérbios 23.2, quando diz “põe uma faca à tua garganta, se fores uma pessoa
de grande apetite”. A garganta ou goela é por onde entra e sai a respiração, o
ar. O ser vivente, então, ganhou a designação nefesh, ser respirador. No caso
do humano refere-se basicamente à forma que o espírito e a inteligência, sem
forma em si, assumiu ao animar o corpo.[3] Esse padrão simboliza a
interioridade da natureza humana. Portanto, para que o humano possa dar
intensidade e profundidade a sua inteligência precisa de amor e graça, que
nascem da interioridade de Iaveh. Em Gênesis 2.7, “ele soprou” significa que
Aquele que soprou o fez numa determinada direção e com objetivo definido. Aqui,
direção e objetivo traduzem destinação.
Esse é o
destino do humano: ter sua nefesh integralmente saciada por seu Criador e a
partir daí relacionar-se com Ele, com o universo, com seus semelhantes e
consigo mesmo. Nesse caso, temos uma nefesh em equilíbrio, plena do Espírito de
Deus, o que se traduz em integridade holística, pluralidade social, sabedoria,
conhecimento e abertura à transcendência. A ruptura dessa integridade produz
alienação, individualismo, descrença, ignorância e idolatria. A antropologia da
nefesh em Gênesis nos fala sobre a imagem de Deus e nos dirige a uma pesquisa
teológica do humano, da humanidade, da pessoa e da comunidade, da pessoa e da
ordem social, da pessoa enquanto excluído, da pessoa enquanto eleito, da
humanidade e seu destino, ou seja, da vida para o mundo, do amor para o próximo
e da criação para todos.
Diante
disso, devemos nos perguntar que princípios podem nortear tal pesquisa
teológica? Sem dúvida, o princípio arquitetônico, enquanto revelação, fé
objetiva, base e eixo da teologia. E logicamente o princípio hermenêutico, ou
seja, a interpretação dos aspectos históricos e lingüísticos dessa revelação.
Devemos partir, logicamente, da razão filosófica, que produz ordenação, mas não
devemos esquecer a razão científica, enquanto leitura fenomenológica da
natureza da antropologia e nem da razão ordinária, enquanto universalidade do
senso comum. É bom lembrar, que toda análise metodológica, consciente ou
inconscientemente, no correr da história da teologia, tem levado inexoravelmente
a diferentes compreensões do fato teológico. Isto porque o princípio
arquitetônico depende do que colocamos como base da estruturação geral da
revelação e porque o princípio hermenêutico parte sempre de uma ou de múltiplas
visões filosóficas que podem ser utilizadas como instrumentos de interpretação
da história da revelação. Ou seja, quer queiramos ou não, a ideologia define a hermenêutica, pois o
saber sempre está sob o risco de ser arrebatado pela ideologia, já que a
ideologia permanece à espreita enquanto código de interpretação. Enquanto
intelectuais temos amarras, pontos de apoio, somos transportados pela
substância ética.[4]
Aqui
reside a dificuldade, toda teologia é transitória. Reflete um momento de
compreensão da revelação e de sua história. Mas, em nosso trabalho,
utilizaremos a antropologia que as Escrituras nos oferecem como um instrumental
hermenêutico para compreender o homo brasiliensis. Isto porque embora não seja
antropologia, a teologia nos oferece um roteiro antropológico legítimo. No centro
da fé cristã se encontra Jesus Cristo, Deus e ser humano, revelador do divino e
do humano. E se a teologia fala da divindade, ela fala a homens e mulheres,
fala sobre um Deus que encarnou e que ama os homens e mulheres. Está a serviço
do humano.[5] Não podemos fugir a essa
realidade, por isso, teologicamente, nosso objetivo é fazer a partir da própria
compreensão do humano uma leitura da imagem de Deus que responda aos
questionamentos e necessidades teológicas das brasilidades.
No
livro das origens lemos: “agora vamos fazer os seres humanos, que serão como
nós, que se parecerão conosco. Eles terão poder sobre os peixes, sobre as aves,
sobre os animais domésticos e selvagens e sobre os animais que se arrastam pelo
chão”. (Gênesis 1.26). Ora, se todo o universo é o mundo do ser humano,
conforme afirmam os dois relatos da criação e o salmo oito, em que sentido o
ser humano é a imagem de Deus? Como Deus conferiu ao humano essa
correspondência?
A partir da antropologia bíblica
podemos ver que em primeiro lugar o homo
sapiens é fruto de uma intervenção de Deus. Há uma concessão de encargo
que diferencia o ser humano do resto da criação. Ele é apresentado como um
momento sublime, especial, como um ser que coroa toda a ação criadora de Deus.
Ele recebe responsabilidade e poder de decisão. Em relação a esta discussão,
considero elucidativa a exposição que apresenta a imagem de Deus através de três concepções: substantiva, ou seja,
física e psicológica; relacional, ou seja, com um tropismo à transcendência e
possibilidade de relacionamento com Deus; e funcional, que se dá através da
ação cultural do ser humano. Acredito, porém, que privilegiar uma dessas
concepções em detrimento das outras duas é perder a riqueza do ser humano
enquanto imagem de Deus. Por isso, aqui correlacionamos as três concepções, já
que formam uma totalidade. Em segundo lugar, Deus deixa claro a finalidade da
decisão de criar um ser pessoal, segundo sua imagem. Tal ser deverá ter uma
relação especial com o restante da criação. Deus cria e entrega ao ser humano
sua criação. Este ser pessoal deverá estar sobre ela, numa relação de trabalho,
produção e administração. O ser humano relaciona-se com a criação e através do
uso e de suas descobertas em relação a ela, mantém uma permanente relação com
Deus. Em terceiro lugar, a imagem de Deus é traduzida na relação que mantém com
as criaturas, já que é uma relação de domínio. Ele reina sobre o universo
produzido pelo poder criador de Deus. Mas aqui há um detalhe sutil: este
direito de domínio não lhe é próprio, ele reina enquanto imagem de Deus. Ele
não é proprietário, nem tem autonomia irrestrita sobre a criação. Imagem de
Deus traduz também abertura à transcendência. Aqui estão dados os elementos que
nos permitem entender porque faz parte da humanidade o abrir-se à
transcendência e viver com ela. Há um deslumbramento permanente diante do
absoluto, do sobrenatural e do mistério. Estamos diante de um ser que pode
pensar o que não está aqui e agora, e que pode refletir sobre o que vai além da
realidade factual. E é por poder pensar tais realidades que não podem ser
vistas, que o ser humano enquanto imagem de Deus pode refletir sobre a
eternidade e relacionar-se com o transcendente. Assim, ao ser feito imagem de
Deus, o próprio Deus transfere à humanidade a capacidade de relacionar-se com
Ele.
Adão é um ser plural. Esse ser
humano de que fala Gênesis 1.26, que deve ser uma imagem de Deus, não é uma
pessoa em particular, pois a continuação do texto fala que eles dominem. Assim,
estamos diante da criação da humanidade e o domínio do universo não é dado a
uma pessoa, mas a comunidade dos homens. Ninguém pode ser excluído da
autoridade de domínio dada por Deus à humanidade. Da mesma maneira, em Gênesis
1.27 temos uma outra característica fundamental dessa mesma humanidade: ela é
formada por homens e mulheres. Para alguns teólogos, como Karl Barth,[6] tal explicação de Gênesis
1.27b, de uma humanidade formada por dois sexos, é apresentada por Deus “quase
à maneira de definição”. Logicamente, há uma intenção para que o texto se aprofunde em tais minúcias. É a de apresentar como o universo criado deveria
ser administrado: através da convivência de seres que se completam e se amam.
Ou seja, esse ser plural só poderia exercer o domínio através da comunidade,
completando-se como homem e mulher.
E para
onde aponta o domínio? Todo o universo é o mundo do ser humano, por isso há a
total desmitização da natureza. Não há astros divinos, terra divina, nem
animais divinos. Todo o universo pode tornar-se o ambiente do ser humano, seu
espaço, que ele pode adaptar às suas necessidades e administrar. E como ele
consegue isso? Através da cultura, enquanto processo social e objetivo de
sujeição da natureza, e através da necessidade de expansão e domínio, pessoal e
subjetivo, que é peculiar a todo homem e mulher livres. Mas, o afastamento de
Deus fez com que a humanidade perdesse sua capacidade de ser imagem de Deus
viva e eficaz. Seu caráter inicial está distorcido e o mal perpassa todas suas
ações. Assim, o ser humano lançou-se ao domínio de seus iguais, inclusive
através do derramamento de sangue; suprimiu o equilíbrio e a mútua ajuda entre
homem e mulher; mitificou a ciência e técnica; e lançou-se à destruição da
própria natureza. Cristo é “a
verdadeira imagem do Deus invisível” (Colossenses 1.15, cf. 2Coríntios
4.4) e a Ele cabe fazer, a nível escatológico, aquilo que à humanidade
tornou-se impossível. “Foi-me dado todo o poder no céu e na terra, por isso,
indo, fazei discípulos em todas as nações...” (Mt 28.18).
(Texto extraído do livro de Jorge Pinheiro, Teologia Bíblica e Sistemática, São Paulo, Fonte Editorial, 2012. Adquira o seu numa boa livraria on-line).
[1] Nelson Kirst,
Nelson Kilpp, Milton Schwantes, Acir Raymann, Rudi Zimmer, Dicionário Hebraico Português & Aramaico Português, São
Leopoldo/Petrópolis, Sinodal/Vozes, 1988. Verbete: vpn, p. 159.
[2] Raphaël Draï, La Pensée Juive et L’Interrogation Divine, Exégèse et Épistémologie,
Paris, Presses Universitaires de France, 1996, p. 414.
[3] L. Byron Harbin, Teologia do Antigo Testamento (apostila), São Paulo, Faculdade
Teológica Batista de São Paulo, 1997, p. 32.
[4] Paul Ricoeur, Interpretação e Ideologias,
RJ, Francisco Alves, 1990, pp.94-95.
[5] Antonio Manzatto in Teologia e Literatura, São Paulo, Edições Loyola, 1994, p. 41.
[6] Citado por Hans
Walter Wolff, in Antropologia do Antigo
Testamento, São Paulo, Edições Loyola, 1975, p. 215.