Um pacto histórico
Jorge Pinheiro
Os livros de Gênesis e Êxodo apresentam a fé
israelita, enquanto construção, fundamentada em dois acontecimentos históricos.
O primeiro é a escolha de um homem chamado Abrão, [1] que foi tirado da cidade
de Ur e levado para Canaã, uma terra prometida a ele e sua descendência (Gn. 12.1-3;
13.14-17). Essa promessa foi selada com um acordo entre Deus
e Abraão, conforme Gênesis 15.5-10. E o segundo fato histórico é a libertação
dos descendentes de Abraão da escravidão do Egito, através de Moisés, e sua entrada
na terra prometida (Ex.3.6-10).
Esses dois acontecimentos expressam a materialidade da
aliança, que se traduz como escolha de Deus a favor de um homem,
gerador de um povo, para uma missão definida. Realidade esta que foi
reafirmada, centenas de anos depois, pelo príncipe dos profetas israelitas:
“Ouvi-me, vós, que estais à procura da justiça, vós que buscais a Deus.
Olhai para a rocha da qual fostes talhados, para a cova de que fostes
extraídos. Olhai para Abraão, vosso pai, e para Sara, aquela que vos deu à luz.
Ele estava só quando o chamei, mas eu o abençoei e o multipliquei”. Isaías
51:1-2.
O pacto com Abraão foi selado com sangue, conforme os
versículos 9 e 10 do capítulo 15 de Gênesis. Segundo os costumes semitas, o
berit (pacto ou aliança) era feito através da degola de animais, geralmente um
bezerro, que era dividido em duas partes, colocadas uma em frente à outra, e os
contratantes passavam entre os pedaços (Jr.34:18-20) e diziam: “que a divindade
corte em pedaços, como a estes animais, os violadores deste pacto”.[2] Daí as expressões, “karot
berit”, imolar uma vítima para concluir um pacto; “bo ba berit”, entrar na aliança
(Jr.34:10); “abor ba berit”, passar pela aliança (Dt. 39:2); “amod ba berit”,
parar na aliança (2 Rs.23: 3). Tecnicamente, chamamos o acordo assim selado de
pacto de suserania, que geralmente era assinado entre um rei e o chefe de um
clã, onde o rei oferecia proteção ao clã e, em caso de guerra, o clã fornecia
jovens para lutarem no exército do rei.
Assim, Deus deu a Abraão uma formalização do
pacto. Ou seja, o próprio Deus selou o acordo com um costume humano,
a fim de que a aliança pudesse ser visualizada por Abraão. E o Eterno, em seu
amor pelo contratante mais fraco, passa no meio dos animais partidos (Gn. 15.17).
O versículo seguinte agrega: “Naquele dia, o Eterno estabeleceu uma aliança com
Abrão nestes termos: à tua posteridade darei esta terra”.
Aqui voltamos ao início de nossa análise: a idéia de teia
de linhas-força fornece elementos para a compreensão do livro de Gênesis, do
Pentateuco e de todas as Escrituras hebraico-judaicas. Em primeiro lugar porque
o diálogo de Deus com Adão e Eva em Gênesis 3.15 aponta para um libertador. E
em Gênesis 15 temos a primeira realização dessa promessa através da aliança com
Abraão, que produzirá descendência com duas missões: ser testemunha entre as
nações e ser a nação da qual nasceria o messias prometido. É importante
entender que tal promessa iniciou uma relação entre Deus e Israel, uma relação
selada por Deus, não exclusiva, mas íntima em seu ideal. Embora, na
tradição judaica, o livro de Êxodo seja o livro da aliança, o conceito está
presente e é desenvolvido no primeiro livro do Pentateuco.
Na aliança está embutida a idéia de salvação e de
relacionamento pessoal com Deus. Esta realidade nova dentro do plano
de redenção do homem está implícita na declaração de Deus a Abraão:
“Estabelecerei uma aliança entre eu e você, e a sua raça depois de você, de
geração em geração, uma aliança perpétua, para ser o seu Deus e o da tua raça
depois de você”. Gn. 17:7. E como todo pacto, além do “berit milah” (pacto da
circuncisão), Abraão e seus descendentes são chamados à responsabilidade moral
(v.1) e à uma adoração permanente (vs.7 e 19). Elementos estes, que a partir de
Moisés serão desenvolvidos, dando origem à religião de Israel, que tem por
base, num primeiro momento histórico a primazia do culto e suas ordenanças e,
num segundo momento, com o surgimento da profecia literária, da justiça social.
Assim, é impossível fazer uma completa separação entre as promessas de Deus e o
desejo de um reino. Este último será uma construção que tem como primeiro
tijolo a relação pretendida por Deus com a universalidade dos seres humanos.
E porque a promessa remetia ao reino, a questão da terra a partir de
Abraão permanecerá como promessa para os patriarcas, tornando-se objetivo
mítico de seus descendentes. Por isso, a importância de Moisés, que antes de
ser visto como legislador, deve ser compreendido como libertador. E é nesse
misto do papel libertador/legislador que formatará as condições para a invasão
da Palestina.
Assim, enquanto caminhavam pelo
deserto, os hebreus contavam a seus filhos uma velha história. Há quatrocentos
anos - diziam eles - um homem chamado Abrão desceu lá do norte, da cidade de
Ur, na Caldéia, e com toda a sua família dirigiu-se para o sul da Palestina.
Era uma ordem de Deus.
Ele receberia por herança uma terra, teria uma descendência
tão grande como as estrelas do céu, e através dele todas as famílias da terra
seriam abençoadas. Era uma estranha promessa, afinal Abrão não tinha filhos e
seu clã[3] era nômade. Mas ele
acreditou na promessa de Deus. Anos mais tarde, Deus trocou seu nome para
Abraão, que quer dizer pai de uma multidão de nações, fez um pacto especial com
ele e lhe deu um filho, que foi chamado Isaque.
Como líder, Moisés tinha certeza
que o acordo feito com Abraão estava sendo cumprido. Deus dissera que a terra
prometida era Canaã, e que seus limites iriam do Egito até o rio Eufrates.
Explicou também que Canaã estava ocupada por dez povos guerreiros: queneus,
queneseus, cadmoneus, heteus, periseus, refains, amorreus, cananeus, girgaseus
e jebuseus. Mas eles seriam arados da terra, como mato bravo arrancado para
permitir a semeadura.
Durante os anos de caminhada pelo
deserto, Moisés foi formando uma liderança que julgou capaz de dirigir a
invasão da Palestina. Entre seus homens de confiança havia um jovem chamado
Josué. Tinha sido seu assistente pessoal e quando grupos de assaltantes
amalequitas começaram a ameaçar a segurança dos hebreus, Josué liderou um grupo
de combatentes. Era disciplinado, ousado e muito corajoso.
Em hebraico Josué quer dizer Deus
é a salvação. Era do clã de Efraim, filho de Num, e esteve com Moisés durante
toda a peregrinação no deserto. Quando Moisés subiu ao monte Sinai, para
receber de Deus os Dez Mandamentos, Josué subiu com ele. Foi quem avisou a
Moisés que lá embaixo estava uma barulheira incrível, como um alarido de
guerra. Mas o que ele ouvia era o povo dançando e cantando em adoração ao deus
Ápis, o deus touro dos egípcios.
Como dirigente militar recebeu de
Moisés uma missão especial: fazer parte de um grupo de espiões que deveriam se
infiltrar em Canaã. As ordens eram precisas: observar a terra, o que produzia,
se os campos eram férteis, como era o povo, se era organizado, numeroso, e se
haviam fortalezas. Deviam também trazer frutos da terra.
Os espiões chegaram até as
proximidades de Hebrom, que fica ao sul de Jerusalém, e depois de dias
trouxeram a Moisés um relatório terrível:
--
É, na verdade, uma terra que produz leite e mel em abundância. Vimos cachos de
uvas que tinham que ser transportados numa vara por dois homens, de tão
grandes. Mas o povo que habita na terra é muito poderoso, as cidades são
grandes, fortificadas. Vimos gigantes e nos sentimos como se fôssemos
gafanhotos, de tão pequenos diante deles.
Excluindo Josué e Calebe, os
outros espiões estavam em pânico. E o medo que tinham foram transmitindo ao
povo, que então se rebelou contra Moisés.
--
Foi para isso que você nos tirou do Egito, para a gente morrer aqui, no
deserto, para sermos massacrados a espada, nós, nossas mulheres e nossos
filhos?
Josué e Calebe ainda tentaram
reverter a situação. Explicaram que a terra era excelente e que se era da
vontade de Deus a terra prometida seria entregue na mão deles, não importava a
força dos povos ocupantes, pois “a sombra protetora de Deus lhes foi tirada”. Mas
a mentalidade escrava do povo prevaleceu. Não estavam preparados para lutar. E
diante da rebelião, Deus afirmou que nenhum deles entraria na terra, mas seus
filhos. Assim, durante quarenta anos caminharam pelo deserto. E os filhos dos
escravos foram transformados em guerreiros. Forjados sob o sol escaldante,
confiantes na promessa de que a terra lhes seria entregue. Os espiões que se
acovardaram e sublevaram o povo contra Deus e Moisés foram presos e condenados
à morte. Josué por sua coragem e fidelidade a Deus despontou como sucessor de
Moisés.
Os hebreus não eram um grupo
homogêneo, mas um conglomerado de povos escravizados pelos egípcios que fugiram
sob a liderança de Moisés. Além disso, mesmo tendo seu núcleo nos descendentes
de Abraão, no correr dos séculos miscigenaram-se com outros povos e inclusive
com os próprios egípcios. Tinham, no entanto, um confuso sonho de liberdade,
uma fé não consolidada no Deus único, e aceitavam realizar alguns rituais
semitas, dos quais o principal deles, nessa época, era a circuncisão.
Esse conglomerado de gentes foi
dividido em agrupamentos menores que recebeu o nome de patriarcas, formatando
clãs[4]: Rubem, Simeão, Judá,
Issacar, Zebulom, Efraim, Manassés (esses dois, netos de Abraão, filhos de
José, que juntos formavam um clã), Benjamim, Dã, Aser, Gade e Naftali. Havia
ainda outro clã, o de Levi, que era o dos sacerdotes. Dessa maneira, a nação de
Israel surgiu como uma confederação de clãs, sem governo centralizado. Seria
governada por juizes, pessoas experientes que deveriam julgar seus clãs a
partir das leis deixadas por Moisés.
Assim, após a morte de Moisés, os
hebreus invadiram a Palestina liderados por Josué, considerado pelos
historiadores um dos maiores generais da história. Formou regimentos com
guerreiros jovens que, ao contrário de seus pais, estavam desejosos de combater
por Deus, o Deus de Israel. Os regimentos foram organizados a partir dos doze
clãs que formaram a confederação hebréia.
A estratégia inicial de Josué
consistiu em montar seu quartel general em Gálgala, ao oriente da cidade de
Jericó, e a partir daí atacar as cidades de Ai e Gabaom. Em Gálgala já estavam
estabelecidas os clãs de Rubem, Simeão e Manassés. Ali havia água em
abundância, provisão para os combatentes e lugar seguro para armazenar os
despojos.
Antes de iniciar o período da
conquista, Josué deu combate aos grupos inimigos, nômades, que poderiam ameaçar
a produção agrícola dos clãs já instalados em Gálgala. Só depois disso, tomou
Jericó, fortaleza avançada do território de Canaã e conhecida na época como “a
princesa do vale do Jordão”.
A cidade de Jericó data, segundo
pesquisas arqueológicas, do ano oito mil antes de Cristo. Por ter uma fonte e
um oásis e estar estrategicamente situada, foi ocupada por povos diferentes,
como os amorreus e cananeus, e muitas vezes destruída. Antes da conquista por
parte dos hebreus, foi atacada por faraós da 18a dinastia e
totalmente destruída. De novo reconstruída, tinha nessa época muros altos, de
pedras macho e fêmea, duas torres, e casas retangulares e espaçosas.
Essa linda cidade, que também
recebia o nome de Cidade das Palmeiras, dominava o vale do Jordão e as
passagens para as montanhas do oeste. Antes de atacá-la, Josué enviou dois
jovens oficiais do recém formado exército para espionar a região. Eles entraram
na cidade, foram protegidos e escondidos por uma prostituta cultual chamada
Raabe. Aliás, sobre essa moça há algumas coisas que devem ser analisadas.
Zaná, praticar prostituição, cujo sentido literal quer
dizer manter relações sexuais ilícitas, é a palavra que designa a atividade de
Raabe, jovem que escondeu os espiões enviados por Josué. Alguns exegetas, no
entanto, consideram que ela era somente uma hospedeira, algo como dona de uma
pousada, partindo da raiz zun –
alimentar – e não da raiz zaná como
origem da palavra zonã, mas são
poucos que consideram esta a melhor tradução.
A maioria dos
exegetas considera que a palavra tem somente uma raiz. Este verbo é usado tanto
literal como figuradamente. Neste último caso, a idéia que comunica pode ser de
relações internacionais proibidas, de uma nação, especificadamente Israel,
fazer acordos com outras nações. Pode-se referir também a relacionamentos
religiosos, nos quais Israel adorava falsos deuses. A palavra normalmente se
refere às mulheres e apenas duas vezes diz respeito a homens (Êx 34.16; Nm
25.1). A forma feminina do particípio é usada regularmente para indicar a
prostituta (Gn 34.31). Tais pessoas recebiam pagamento (Dt 23.19), tinham
marcas características que as indicavam (Gn 38.15; Pv 7.10; Jr 3.3), tinham
suas próprias casas (Jr 5.7) e deviam ser evitadas (Pv 23.27). Poucas vezes a
mulher com quem o ato é cometido é identificada como mulher casada (Lv 20.10;
Jr 29.23), mas também nunca se afirma que é solteira.
Há estudiosos
que arriscam dizer que Raabe talvez fosse sacerdotisa cananéia e, dessa
maneira, prostituta cultual. Mas também essa afirmação é praticamente
impossível de ser comprovada. Raabe foi mulher de Salmon (Mt 1.5),
possivelmente filho de Calebe (cf. 1Cr 2.51) e mãe de Boaz. É bom lembrar que
as prostitutas na Antigüidade, cultuais ou não, começavam seu ofício ainda na
puberdade.
Na vida escura
e duvidosa dessa jovem, prostituta e mentirosa, deve ter brilhado a centelha de
que com os hebreus havia um Deus superior a todos os deuses que ela conhecera.
A cidade estava em pânico, temendo um ataque dos hebreus, e entre o povo se
comentava o que o Deus dos hebreus fizera na saída do Egito e durante a
caminhada no deserto: ...“porque temos
ouvido que o Senhor secou as águas do mar Vermelho diante de vós, quando saíeis
do Egito, e o que fizestes aos dois reis dos amorreus, a Siom e Ogue, que
estavam dalém do Jordão, os quais destruístes” (Js 2.10).
Assim, pela fé
(veja a confissão que faz no vs. 11, “o
Senhor vosso Deus é Deus em cima nos céus e embaixo na terra”, lembrando
que o politeísmo e a idolatria predominavam entre os cananeus) ela confiou na
misericórdia e no poder desse Deus, arriscou a vida para salvar os
representantes do povo de Deus, e obteve salvação para si e sua família.
Dessa maneira, ao ver o espírito
de terror que pairava sobre a cidade, os jovens espiões voltaram ao quartel
general de Josué com uma grande notícia:
--
Realmente Deus nos deu toda esta terra. Os seus habitantes estão apavorados com
nossa presença.
Josué então chamou os sacerdotes,
que leram para os oficiais e soldados uma ordem que Deus tinha dado a Moisés.
“Quando saírem para guerrear
contra teus inimigos, se virem cavalos, carros de combate e um povo mais
numeroso do que vocês, não fiquem com medo, pois com vocês está o Senhor Deus,
que tirou vocês do Egito. Quando estiverem para começar o combate, o sacerdote
se aproximará para falar aos soldados e lhes dirá: ‘Ouve, ó Israel! Estais hoje
prestes a guerrear contra teus inimigos. Não se acovardem, não fiquem com medo,
não tremam, nem se atemorizem diante deles, porque o Senhor Deus marcha com
vocês, lutando com vocês’.”
Depois, os sacerdotes disseram:
--
Quem tem uma tenda nova e ainda não a usou? Volte para a sua tenda, para que
não morra na batalha e não possa curtir sua tenda nova. Quem plantou uma vinha
e ainda não colheu os primeiros cachos de uva? Volte para sua tenda, para que
não morra na batalha e não coma de seus primeiros frutos. Quem acaba de
casar-se e ainda não completou sua lua de mel? Volte para sua tenda, para que
não morra na batalha e não usufrua sua noite de núpcias.
E
por fim os sacerdotes, perguntaram:
--
Quem está com medo e se considera um covarde? Volte para sua tenda para que não
contagie seus irmãos.
Então, Josué destacou os oficiais
e definiu o ataque. Rodearam a cidade uma vez por dia, durante sete dias.
Tocavam trombetas, gritavam e saltavam. Ao sétimo dia, todo o povo, com os
soldados e os sacerdotes rodearam sete vezes a cidade, tocando trombetas e
gritando. De repente, ao som mais agudo da trombeta, alguns muros desabaram
permitindo a entrada do povo. A cidade foi amaldiçoada, seus habitantes
executados, com exceção da moça Raabe e da família do pai dela. Os despojos de
ouro e prata foram levados para o tabernáculo, que era a tenda onde estava a
arca da aliança, com os Dez Mandamentos.
Foi uma guerra implacável. E
diante disso, é o caso de perguntar: o extermínio realizado pelos hebreus foi
um ato justificável?
Na época, a Palestina era
permanentemente disputada por conquistadores. Confederações de reinos,
agrupados em torno de cidades, lançavam-se contra outros pequenos reinos. Os
filisteus, por exemplo, não eram originários da região, vinham da ilha de
Caftor, mais conhecida como Capadócia. Instalaram-se na região de Gaza,
exterminando os Avins que viviam nesse território.
Assim, os hebreus se consideravam
no direito à terra tanto quanto os que foram despojados. Eram conquistadores
lutando contra conquistadores.
E quanto ao seu modo de atuar nas
operações de guerra? Caso tomemos os padrões guerreiros da época, os hebreus
não eram nem mais sanguinários, nem mais cruéis. Os assírios, por exemplo,
decapitavam os povos vencidos, fazendo pirâmides com seus crânios. Crucificavam
ou empalavam os prisioneiros, arrancavam seus olhos e os esfolavam vivos. Não
há casos de tortura na tradição guerreira dos israelitas.
Um povo que foi duramente
golpeado, mas não exterminado foram os cananeus. Apesar de serem bons
agricultores, seus costumes religiosos estavam entre os mais violentos de todo
o mundo antigo. Eram henoteístas e ofereciam sacrifícios humanos e infantis aos
seus baalim. É interessante notar que antes dos hebreus se lançarem à conquista
da Palestina, Deus lhes falou:
“Ó Israel, hoje vocês estão atravessando
o rio Jordão para conquistar nações mais numerosas e poderosas, cidades grandes
e fortificadas. (...) Portanto, vocês devem saber que o Senhor Deus vai
atravessar na frente, como um fogo devorador. É ele quem exterminará. Vocês,
então, desalojarão rapidamente esses povos, os farão perecer, conforme falou o
Senhor Deus. Quando Deus os tiver removido de sua presença, vocês não devem
dizer nos seus corações: ‘É por causa da nossa justiça que O Senhor nos fez
entrar na posse dessa terra’. É por causa da perversidade dessas nações que Deus
irá expulsá-las da tua frente.” (Deuteronômio 9:1, 3 e 4).
Dessa maneira, os cananeus estavam
sob a punição de Deus por causa de seus crimes e idolatria. E como, segundo a
maneira de pensar dos antigos israelitas, Deus responsabilizava tanto as nações
como os indivíduos, consideravam totalmente justo uma guerra de extermínio.
Depois da conquista de Jericó,
Josué tomou a cidade de Ai, que fazia fronteira com Gálgala. Recebeu, então, a
visita de embaixadores do reino de Gabaom com os quais Josué celebrou um
tratado de paz, sem consultar Deus.
Os reis de Jerusalém, Hebrom,
Jerimote, Laquis e Eglom formaram uma aliança e atacaram Gabaom. Como Josué
havia feito um acordo bilateral com Gabaom, teve que sair em sua defesa e
lançar um ataque contra os cinco reis. Conseguiu derrotá-los e conquistou as
cidades de Maceda, Libna e Laquis.
Estabeleceu um acampamento
provisório perto de Eglom e daí lançou-se à conquista de mais três cidades,
Eglom, Hebrom e Debir. A essa altura, já havia ocupado toda a região central e
sul da Palestina. Josué voltou então para Gálgala. Descansou meses e começou a
organizou os futuros ataques ao norte de Canaã, região onde estavam localizadas
cidades populosas e fortificadas.
O rei de Asor chefiava uma
confederação de reinos e ficou sabendo dos planos de Josué. Reuniu, então,
todas as cidades vizinhas e organizou uma confederação para enfrentar
militarmente o exército hebreu. A mais violenta das batalhas aconteceu às
margens do rio Merom. Josué derrotou os exércitos confederados, queimou a
cidade de Asor e tomou todas as cidades dos reinos aliados. Estrategicamente,
foi sua maior vitória, pois com ela quebrou o poder dos cananeus. Mas nem todos
os habitantes da Palestina tinham sido exterminados. Cidades importantes
ficaram intocadas, principalmente as da região norte da Filístia. A guerra da
conquista foi longa e durou quarenta e cinco anos.
Apesar de ser o maior general da
história de Israel, Josué cometeu três erros: fez aliança com os gabaonitas,
permitiu aos jebuseus permanecerem em Jerusalém e não destruiu as bases dos
filisteus no litoral.
Esses erros isolaram os clãs de
Judá e Simeão do resto do país. A entrada principal para o território de Judá
ficou sob controle dos jebuseus, que ocupavam Jerusalém. E toda a região
permaneceu cercada pelas cidades dos gabaonitas. Esta situação criou um
separatismo entre os clãs do norte e os do sul e acabou fracionando a
confederação hebréia.
A repartição da terra foi feita
parcialmente em Gálgala e depois em Siló, cidade para onde havia sido
transportada a tenda da congregação. Essa primeira distribuição de terras foi
realizada por uma comissão formada pelo sacerdote Eleazar, pelo general Josué e
por dez chefes dos clãs. Havia uma lei básica, que já havia sido promulgada e
que orientava a divisão. Os clãs mais populosos receberiam as porções maiores.
Os sacerdotes destinaram duas urnas, uma para receber o nome dos clãs e outra
para as regiões da Palestina que seriam sorteadas. Assim, o método de distribuição
combinava a sorte - podia ser no sul, no centro ou no norte da Palestina -, com
um elemento objetivo, a população de cada clã. As questões de limites ou
permanência dos clãs nos lugares onde já se encontravam, como era o caso dos
clãs de Rubem, Simeão e Manassés, foram decididas pela comissão.
Depois de uma semana de trabalhos,
a confederação dos clãs de Israel estava assim distribuída:
·
A parte montanhosa ao
sul foi entregue ao clã de Judá.
·
A parte montanhosa ao
centro, ao clã de José. Este território foi dividido entre os clãs de Efraim e
Manassés, filhos de José.
·
A parte montanhosa
central coube ao clã de Benjamim.
·
A parte excedente do
território entregue a Judá, por ser grande demais, ficou com o clã de Simeão.
·
O território que
limitava a parte montanhosa central com a região norte foi entregue aos clãs de
Zebulom e de Issacar.
·
A região costeira
coube aos clãs de Aser e Naftali.
·
Dois territórios foram
entregues ao clã de Dã, um no litoral central e outro no extremo norte.
·
Os territórios ao
oriente do Jordão foram entregues aos clãs de Rubem e Gade. A parte que coube a
Manassés também estava do lado oriental do rio Jordão.
Era tradição no antigo Oriente
Médio que o crime de sangue fosse vingado por um parente da pessoa assassinada.
Através de Moisés, Deus deu ao povo uma legislação que punia severamente os
crimes contra a pessoa, fossem eles assassinatos, seqüestros ou violências
sexuais. Com isso, Deus tirava a justiça das mãos do vingador individual e a
colocava sob responsabilidade social. Mas Josué sabia que muitos crimes podiam
acontecer sem premeditação, por acidente ou imprevisto. Por isso, criou também
as cidades de refúgio, onde pessoas que ainda não tinham sido julgadas e
condenadas pela justiça recebiam o direito de asilo. Era uma forma de oferecer
misericórdia àqueles que involuntariamente tinham cometido um erro. Nas cidades
de refúgio nenhum vingador de sangue tinha permissão para entrar, e dentro dela
os perseguidos tinham o direito de viver sem serem molestados.
Terminada a guerra, Josué pediu aos dirigentes da
confederação de tribos, como recompensa pelos serviços prestados, a cidade de
Timnate-Sera, que ficava no alto do monte Efraim. Viveu aí seus últimos dias e
morreu com 110 anos.
Mapa: Terras
destinadas às tribos de Israel. Atlas Vida Nova da Bíblia e da História do
Cristianismo, São Paulo, Ed. Vida Nova, 1998, p. 22.
Questões para reflexão e debate
Leia o capítulo 15 de Gênesis, mas dê
atenção aos versículos 8-18.
8 —Ó SENHOR, meu Deus! —disse Abrão. —Como posso
ter certeza de que esta terra será minha?
9 O SENHOR respondeu: —Traga para mim uma vaca,
uma cabra e uma ovelha, todas de três anos, e também uma rolinha e um pombo.
10 Abrão levou esses animais para o SENHOR,
cortou-os pelo meio e colocou as metades uma em frente à outra, em duas
fileiras; porém as aves ele não cortou.
11 Então os urubus começaram a descer sobre os
animais mortos, mas Abrão os enxotava.
12 ¶ Quando
começou a anoitecer, Abrão caiu num sono profundo. De repente, ficou com medo,
e o pavor tomou conta dele.
13 Então o SENHOR disse: —Fique sabendo, com
certeza, que os seus descendentes viverão num país estrangeiro; ali serão
escravos e serão maltratados durante quatrocentos anos.
14 Mas eu castigarei a nação que os escravizar. E
os seus descendentes, Abrão, sairão livres, levando muitas riquezas.
15 Você terá uma velhice abençoada, morrerá em
paz, será sepultado e irá se reunir com os seus antepassados no mundo dos
mortos.
16 Depois de quatro gerações, os seus
descendentes voltarão para cá; pois eu não expulsarei os amorreus até que eles
se tornem tão maus, que mereçam ser castigados.
17 ¶ A noite
caiu, e veio a escuridão. De repente, apareceu um braseiro, que soltava fumaça,
e uma tocha de fogo. E o braseiro e a tocha passaram pelo meio dos animais partidos.
18 Nessa mesma ocasião o SENHOR Deus fez uma
aliança com Abrão.
A partir do texto acima explique o
costume do pacto de suserania existente entre os semitas da Palestina e qual a
importância dele na conversa que Deus teve com Abrão.
Que questões humanas, sociais e
políticas estão presentes na materialidade da aliança? E por que a questão da
terra é nomeada por Deus em sua conversa com Abrão?
Em que sentido a invasão e a guerra
liderada por Josué faziam parte da aliança abraâmica?
Leituras complementares
Briend J., Lebrun, R., Puech, E., Tratados e juramentos no Antigo Oriente Médio, São Paulo, Paulinas,
1996.
Epsztein, León, A
Justiça Social no Antigo Oriente Médio e o Povo da Bíblia, Ed. Paulinas,
1990.
Hill, A. E., Walton J. H., AT, Panorama do Antigo Testamento, São Paulo, Editora Vida, 2006.
Melamed, Meir Matzliah, A Lei de Moisés e as Haftarót, Flórida,
1962.
[1] Em Gênesis
17:5 Deus muda o nome de Abrão para Abraão. Essa mudança de nome traduz o seu
chamado. Abrão significa “pai alto”, o que teologicamente costumamos ler “Deus
é grande”. Depois, Deus o chama “ab hamôn”, pai de multidão.
[2] Melamed, Meir Matzliah,
A Lei de Moisés e as Haftarót, Flórida, 1962, p. 33.
[3] Aqui utilizamos o termo clã no sentido antropológico, enquanto unidade social formada
por indivíduos ligados a um ancestral comum por laços de descendência
demonstáveis ou putativas, ou seja, de família expandida.
[4] Embora o termo
tribo seja o mais comum quando
nos referimos às divisões do povo hebreu, consideramos que o termo só tem razão
quando diz respeito a agrupamentos com território geográfico já definido.
Assim, vemos uma transição do clã em direção à tribo, sendo que esta deverá
sempre apresentar duas característas, território e liderança.
Fonte
Jorge Pinheiro, História e religião de Israel, origens e crise do pensamento judaico, São Paulo, Editora Vida, 2007, pp. 42-58.