A
Saga Anabatista
A
história anabatista é uma saga ao estilo do cristianismo antigo, anterior à
estabilização imperial pós-Constantino, de sangue, perseguições e martírios. E
os eventos notáveis e feitos heróicos do movimento anabatista até hoje repercutem
no imaginário protestante, levando alguns historiadores e teólogos a
exorcizarem o movimento e seus líderes.
Segundo
o sociólogo alemão Max Weber, o ascetismo laico do movimento anabatista, que
ele chama de “movimento batista”, espraiou-se pela Europa Ocidental e Estados Unidos,
nos séculos 16 e 17, dando origem, quer diretamente, quer por adoção, a novas
formas de pensamento religioso, como aqueles dos batistas, menonitas e quakers.
Um processo semelhante se deu no Brasil, por isso, os evangélicos brasileiros
não podem voltar as costas à história dos anabatistas. Afinal, as influências
eclesiológicas e teológicas do anabatismo, presentes em nossa tradição batista,
foram repassadas para as comunidades, igrejas e pensadores evangélicos brasileiros
que em algum momento de sua história comungaram com o pensamento batista.
Por
isso, fazemos uma abordagem das origens do anabatismo, principalmente daquele
de forte conteúdo social, a partir da leitura histórica e do uso da sociologia
da religião como ferramentas, com a intenção de demonstrar que em sua prática o
anabatismo construiu uma eclesiologia que formatou uma teologia e não o
contrário.
Mas
como o nosso texto trabalha a relação entre a eclesiologia e a revolução
camponesa e plebéia liderada pelos anabatistas, convém entender o que significa
eclesiologia. Nós a consideramos o estudo teológico da realidade de comunidades
de fé em seus aspectos estruturais: sua forma de se relacionar com o mundo, seu
papel social e sua forma de governo. Por isso, vamos analisar o comunitarismo,
que mais tarde foi caracterizado por Karl Marx e Friedrich Engels como
socialismo utópico, enquanto construção político/religiosa marcante e central
do movimento anabatista.
Os
anabatistas eram cristãos reformados que se levantaram contra a hegemonia da
Igreja católica e dos príncipes alemães. A partir da frase do Evangelho de
Marcos (16.16), “quem crer e for batizado será salvo, mas quem
não crer será condenado”, deduziram que quem não crê de nada adiantou o batismo que
recebeu quando pequeno. Então, negaram valor ao batismo de crianças, afirmando
que aquele sacramento católico e reformado, só deveria ser recebido quando a
pessoa tivesse plena consciência do que estava a fazer. Por isso, aqueles que
tinham sido batizados antes de terem consciência do bem e do mal deveriam ser
batizados de novo.
O
fato de levantarem a importância de escolha pessoal na opção pela caminhada
cristã levou grupos e comunidades anabatistas a crescerem rapidamente. Mas, o
crescimento dos anabatistas na Alemanha e na Europa central se tornou um
problema para as autoridades eclesiásticas, afinal propunham às pessoas não
batizar os filhos. Logicamente, os católicos e os reformados se colocaram em
oposição direta a essa idéia. E como o poder eclesiástico estava ligado às
forças do feudalismo ou às forças da burguesia emergente, ambos os lados
optaram pelo extermínio dos anabatistas.
Thomas Münzer
Para
Engels, a descentralização, a autonomia local e regional, a diversidade
comercial e industrial das províncias alemães e a insuficiência das comunicações
foram os fatores que explicam o agrupamento das classes sociais da Alemanha no
início do século 16 em três campos: o feudal nucleado ao redor do catolicismo;
o burguês reformista, ao qual se aliaram os luteranos; e o plebeu/camponês
liderado pelos anabatistas.
É
bom lembrar que na Alemanha medieval a Igreja católica tinha o monopólio da
educação, o que fazia com que todo o ensino tivesse um caráter religioso. Nas
mãos do clero católico estavam a política, a jurisprudência e o conhecimento,
que era visto como extensão da teologia. E os dogmas do catolicismo, assim como
a compreensão católica das Escrituras tinham força de lei em todos os
tribunais. Dessa maneira, críticas ou ataques ao feudalismo traduziam-se em
confronto com o catolicismo.
A
oposição ao feudalismo, começou bem antes do século 16, com os valdenses,
albigenses, com as insurreições nos cantões suíços e foi tomando conta da
Alemanha com as reivindicações religiosas, sociais e políticas que tomaram
corpo como pensamento divergente. Os plebeus e camponeses alemães queriam o
estabelecimento da igualdade cristã, que devia se traduzir em igualdade civil e
social. Ou seja, a nobreza devia colocar-se ao nível dos camponeses, e os
patrícios e burgueses no mesmo nível dos plebeus. Ou seja, reivindicavam, pela
primeira vez na história, direitos cidadãos universais. Além disso, exigiam o
fim das leis feudais, tais como obrigatoriedade dos serviços pessoais,
tributos, privilégios e nivelamento das escandalosas diferenças no que se
referia à propriedade.
Dessa
maneira, essas reivindicações democráticas levaram às reivindicações pelo
estabelecimento de comunidades onde a propriedade e os bens fossem
comunitários, o que era visto como a realização da promessa do Reino de Deus.
Até
1525-1526, o movimento protestante era mais ou menos informal na Alemanha. Mas
com as guerras camponesas, os conventos foram secularizados, o direito canônico
abandonado e, com a recusa dos bispos de se associarem ao movimento pelas
reformas, as autoridades civis foram empurradas a se tornar favoráveis às novas
orientações e a se envolver na reorganização da igreja.
Estas
ações se inspiraram nas antigas visitas pastorais efetuadas antes pelos bispos.
Os príncipes passaram, então, a visitar as paróquias, com delegações compostas
de juristas e teólogos. A partir de 1530, criaram instituições permanentes com
superintendentes, levando as igrejas a ficarem dependentes do príncipe que, de
fato, substituiu o bispo. Nasceu assim a igreja territorial reformada.
Em
1555, a Dieta de Augsbourg proclamou o princípio do “cujus
regio, ejus religion”
segundo o qual o príncipe ou uma outra autoridade podia
determinar a
religião das pessoas. A legislação e o órgão jurisdicional, em especial
matrimonial, passaram para o poder do príncipe, que o entregava a uma
instância jurídica: e o príncipe ou o magistrado das cidades passaram a ser
a autoridade última em matéria de liturgia, doutrina ou nomeação de sacerdotes.
Os bens eclesiásticos secularizados foram incorporados às possessões
dos príncipes, ou geridos por administradores autônomos, em especial as
escolas. Dessa maneira, passou a existir um controle sobre o comportamento religioso,
e o estado jurídico e financeiro das paróquias, bem como sobre a doutrina
e a vida moral dos pastores.
Thomas
Münzer e outros dissidentes do protestantismo reformado procuraram mobilizar
seus pares e exigir das autoridades políticas liberdade de expressão e de ação
religiosas e criaram comunas autônomas, proibindo os seus adeptos de exerceram
funções políticas no Estado. Entre suas ações, Münzer suprimiu completamente o
uso do latim, em 1522, antes de Lutero. Em Altstadt, nos cultos que dirigia
vinha gente de todas as partes ouvi-lo. Seus ataques voltaram-se em especial
contra o clero católico, chamando os príncipes e o povo à intervenção armada
contra a Igreja católica.
“Não disse Cristo, vim trazer-vos não a paz, porém
a espada? E que deveis fazer com ela? Nada, senão afastar a gente má que se opõe
ao Evangelho. Cristo ordenou com grande severidade (Lucas 19.27): quanto,
porém, a esses meus inimigos, que não quiseram que eu os governasse, trazei-os
aqui e matai-os diante de mim... Não vos valhais do vão pretexto de que o braço
de Deus deve fazê-lo sem ajuda da vossa espada que bem poderia enferrujar-se na
bainha. Os que se oponham à revelação divina que sejam aniquilados sem piedade,
como Ezequiel, Ciro, Josias, Daniel e Elias destruíram os pontífices de Baal;
de outro modo a Igreja cristã não pode retornar à sua origem. Na época da vindima
temos que arrancar a erva daninha das vinhas do Senhor. Deus disse (Deuteronômio
7.5): nem terás piedade dos idólatras;... deitarás abaixo seus altares... e
queimarás a fogo as suas imagens de escultura... Porque tu és um povo santo e
Jeová teu Deus...”
Münzer,
segundo Tillich, foi o mais criativo dos evangélicos radicais e acreditava que
o Espírito podia sempre falar por meio das pessoas. No entanto, para se receber
o Espírito era preciso participar da cruz.
“Lutero, dizia ele, prega um Cristo doce, um
Cristo do perdão. Devemos também pregar o Cristo amargo, o Cristo que nos chama
a carregar sua cruz.”.
Assim,
os anabatistas atacavam a teologia de Lutero a respeito das Escrituras, porque
consideravam que Deus não falara apenas no passado, tornando-se mudo no
presente. Mas que sempre falou e fala nos corações ou nas profundezas de
qualquer ser humano preparado para ouvi-lo por meio de sua própria cruz. O
Espírito habita nas profundezas do coração. A cruz, explica Tillich,
representava a situação limite, era externa e interna.
“Surpreendentemente, Münzer
expressa esta idéia em termos existencialistas modernos. Quando percebemos a
finidade humana, desgostamo-nos com a totalidade do mundo. E nos tornamos
pobres de espírito. O homem é tomado pela ansiedade de sua existência de criatura
e descobre que a coragem é impossível. Nesse momento Deus se manifesta e ele é
transformado. Quando isso acontece, o homem pode receber revelações especiais.
Pode ter visões pessoais não apenas a respeito de teologia como um todo, mas
sobre assuntos de vida diária”.
Nessa
conjuntura de choque, em Zurique, na Suíça, no meio dos seguidores do
reformador Zwinglio, surgiu um grupo de cristãos que rejeitou o poder
eclesiástico, fosse ele católico ou reformado, exigindo a autonomia das comunidades
cristãs. Assim, os anabatistas fundaram sua primeira comunidade no dia 21 de
janeiro de 1525. E eles próprios passaram a escolher seus pastores e a
construir comunidades separadas do estado.
Mas,
no sul da Alemanha, sem dúvida, foi Thomas Münzer quem se levantou como
defensor de uma proposta de revolução social camponesa. Em 1521, liderou um
grupo de anabatistas que se somaram aos camponeses sublevados ao redor da
reivindicação de terra e liberdade. Münzer criou, assim, pela primeira vez na
história um movimento de libertação camponês anabatista. Münzer não foi apenas
um pensador, mas um militante que praticava a fé. Acreditava ser um profeta,
chamado para implantar o Reino de Deus.
Considerava
ser seu dever denunciar e executar as sentenças contra os governantes que
exploravam o povo. Suas pregações estavam impregnadas de conteúdo social e
político: o fim da velha Igreja deveria marcar o inicio de uma nova ordem
social.
Engels,
que junto com Marx foi um dos pais do socialismo científico, considerou as
guerras camponesas lideradas pelos anabatistas como combates sociais. Afirmou
que “se, em termos gerais, a burguesia podia arrogar-se
o direito de representar, em suas lutas com a nobreza, além dos seus interesses,
os das diferentes classes trabalhadoras da época, ao lado de todo
grande movimento burguês que se desatava, eclodiam movimentos independentes
daquela classe que era o precedente mais ou menos desenvolvido
do proletariado moderno. Tal foi na época da Reforma e das
guerras camponesas na Alemanha, a tendência dos anabatistas e de Thomas
Münzer”.
Considerou
que, apesar de terem uma face cristã reformada, as reivindicações anabatistas
iam além da expressão religiosa que apresentavam. Para Engels, a política de
Münzer nasceu de seu pensamento revolucionário, que caminhava adiante da
situação social e política de sua época. Seu programa propunha o estabelecimento
do Reino de Deus, com o milênio de justiça, paz e felicidade, com a supressão
de todas as instituições que se encontravam em contradição com o mandamento do
amor.
Para
Münzer, o céu estava aqui no chão. E, por isso, o cristão deveria construí-lo
na vida. A esse cristão anabatista cabia a missão de estabelecer o Reino de
Deus sobre a terra. Seus sermões eram clamores políticos e estavam dirigidos a
instaurar uma nova ordem social. A partir de Münzer, os anabatistas fizeram dos
sermões proféticos, elaborados a partir da realidade social em que estavam
inseridos, manifestos revolucionários, cujas propostas atemorizavam as
autoridades, governantes eclesiásticos e príncipes de toda a Europa.
A
crise econômica, fruto da exploração agrícola predatória e extensiva; a crise
demográfica, por causa das epidemias e fome; a crise social gerada com o
surgimento da burguesia e dos assalariados; a crise clerical, devido às contradições
e o enfraquecimento da Igreja católica e a crise espiritual ocasionada pelo
surgimento de novas leituras do cristianismo fizeram da baixa Idade Média um
período de alta instabilidade e angústia coletiva.
Milhares
de camponeses sem terra e plebeus desempregados vagavam pelos campos e cidades.
Essa situação levou às propostas de construção de comunidades formadas por
camponeses e plebeus, onde pudessem viver e trabalhar juntos, num sistema de
vida em comum com os bens partilhados, disponíveis segundo as necessidades das
pessoas e famílias. E, de fato, os anabatistas organizaram comunidades com este
formato, organizações baseadas na propriedade social autônoma em relação ao
Estado e aos poderes eclesiásticos e laicos da época, em primeiro lugar
católico e depois reformado.
Dessa
maneira, os anabatistas tiveram a compreensão de que o cristianismo era uma
ferramenta para a mudança da condição social em que se encontravam os
camponeses e deserdados da terra. Partiram de suas próprias experiências de
vida e trabalho e quebraram o paradigma de que a fé devia estar alienada da
vida social e política.
Mais
tarde, em combate, e exército de Münzer foi derrotado e ele foi preso,
torturado e executado. Mas a guerra camponesa na Alemanha se estendeu até 1525,
quando os anabatistas revolucionários foram afogados em sangue. O conflito, que
teve lugar nas áreas do sul, centro e oeste da Alemanha, também afetou regiões
vizinhas na Suíça e Áustria, e envolveu no seu auge, no verão de 1525, cerca de
300 mil camponeses. Estimativas da época situaram o número de mortes em torno
de 100 mil camponeses e plebeus.
O
sonho anabatista, porém, não morreu aí, subsistiu no coração de milhares de
cristãos. Vejamos alguns exemplos. Sete anos depois da morte de Münzer, em
1532, uma insurreição tomou conta da cidade de Münstzer. Ela foi iniciada por
um ex-padre da Catedral de Münstzer, que se tornou luterano, Bernard Rothmann,
e acabou sendo expulso da cidade. Dois anos depois, em 1534, o pastor anabatista
Jan Matthys, junto com outros líderes, entre os quais Jan van Leiden e Gert Tom
Kloster, declarou a cidade de Münstzer livre do domínio dos príncipes e do
poder eclesiástico.
Matthys
iniciou uma revolução social: os proprietários de terras foram expropriados e
suas terras e bens distribuídos entre os camponeses. Dando seqüência à
revolução, ele e um grupo de anabatistas atacaram a guarnição liderada pelo
príncipe Franz von Waldeck, que era bispo de Münstzer e também chefe do
exército. No confronto Matthys foi morto. Foi, então, sucedido por Jan van
Leiden. Após um ano de resistência, Waldeck liderou um exército bem equipado e
assaltou a cidade. Jan van Leiden e seus oficiais foram presos, torturados e
executados. Os combatentes anabatistas foram lançados às prisões e,
posteriormente, deportados para outras regiões da Alemanha e Suíça.
A
partir desse momento as comunidades anabatistas passaram a viver umas isoladas
das outras, de forma clandestina. Seus líderes eram leigos que pregavam em
roupas civis. Adotaram uma disciplina e uma ética rígidas a fim de sobreviverem
na clandestinidade. Essas pequenas comunidades se refugiaram no interior da
Europa e se estruturaram de forma autônoma. Cada comunidade de fé sobrevivia do
compromisso de serviço e financeiro de seus afiliados.
Fonte:
Jorge Pinheiro, extrato do artigo “A Saga Anabatista, eclesiologia e
revolução”, in Theologando/ Eclesiologia, revista teológica, ano II, número 2,
São Paulo, Fonte Editorial, 2008.