O bonapartismo
militar
Fonte: Jorge Pinheiro. Teologia e Política, Paul Tillich. Enrique Dussel e a Experiência Brasileira, São Paulo, Fonte Editorial, 2006, pp. 170-180.
O estilo personalista
de ditadores, de regimes e governos militares, foi chamado por Karl Marx de
bonapartismo, em sua análise do golpe de estado de Luís Bonaparte, sobrinho de
Napoleão. No 18 Brumário de Luís
Bonaparte,[1] Marx
analisa as intenções e razões do golpe, mostrando como diante da crise de
direção da burguesia, do acirramento das contradições sociais, e da crescente
força do movimento de massas, a única saída para a burguesia era um governo
forte, com base no aparelho militar, que se colocasse acima dos interesses
imediatos de sua própria classe. Ou seja, surgia o governo de arbítrio, acima
do Legislativo e do Judiciário.[2]
O conceito,
enriquecido posteriormente por dois teóricos preocupados com a tendência ao
surgimento de governos fortes no século vinte, Antonio Gramsci e León Trotski,
passou a fazer parte da terminologia da sociologia política. Gramsci para o
mesmo conceito utilizará um sinônimo, cesarismo. Trotski arriscou uma previsão: a de que a tendência nos países dependentes
e semicoloniais era a do surgimento de governos de tipo bonapartista, devido à
própria fraqueza estrutural do capitalismo nesses países.
Um bonapartismo não é igual a outro. Não há dois governos bonapartistas
inteiramente iguais, mas sempre terão características centrais semelhantes; a
sua própria razão de existência será sempre uma aguda contradição e choque de
classes e o debilitamento político da burguesia. Daí o papel das forças
armadas, as restrições às liberdades e o surgimento de um Executivo que exerce
o papel de juiz, de árbitro.[3]
Nesse sentido, a partir de 1964, os governos militares brasileiros foram
bonapartistas. Mas o bonapartismo de Geisel, possivelmente como o de Castelo
Branco, foi o mais típico dos quatro, já que não somente arbitrou, mas
equilibrou-se entre interesses distintos, às vezes fazendo acordos, às vezes
golpeando. Por isso, nos deteremos em seu governo e estilo por considerá-lo
modelo do bonapartismo militar brasileiro e por nos dar condições de analisar o
processo de conjunto do período militar. Assim, entendendo o estilo de Geisel
como uma conseqüência, ao menos em parte, do momento histórico em que governou,
podemos traçar um perfil do “estilo político” do bonapartismo militar
brasileiro, sem perder de vista algo importante: desde o início seu governo
tinha como meta criar as condições para uma abertura política no Brasil, sem,
no entanto, desestabilizar o poder burguês. O presidente Ernesto Geisel foi o
primeiro presidente do movimento de 1964 que exonerou um ministro do Exército.
Também foi o primeiro a punir ostensivamente um general do Exército, Ednardo
D´Ávila Mello,[4]
em janeiro de 1976. E mandou prender em 1978, um general, Hugo Abreu, que
poucos meses antes tinha sido um de seus assessores mais chegados. Estes gestos
sem precedentes indicavam um estilo de governar, que tem desnorteado analistas.
Seu estilo é considerado, em geral, agressivo e personalista, e muitos
militares sempre temeram que esses gestos pudessem colocar em risco a unidade
corporativa das Forças Armadas, ou mesmo o regime de poder vigente no país. Mas essa interpretação era uma
simplificação, já que não levava em conta as condições do momento, e o amplo
leque de significações que cada gesto presidencial contém e produz. Em primeiro
lugar, o general – dentro de sua meta de governo, desenvolvimento com segurança
– sempre agiu em nome da hierarquia e da disciplina militar. Assim, combinando
sua diretriz política de governo (a chamada distenção), as pressões sociais do
momento e a estrutura hierárquica das Forças Armadas, podemos dizer que os
generais Frota e d´Ávila Mello foram punidos por não adotarem a diretriz
política do governo e por não cumprirem à risca, em suas áreas de
responsabilidade, as ordens presidenciais.[5]
Como estamos
falando de um governo bonapartista e de um estilo bonapartista, aqui diretriz
política de governo e diretriz presidencial se combinam. Aliás, esta é uma das
chaves para entender o bonapartismo: ele destrói as estruturas da democracia
burguesa substituindo-as pelo princípio do chefe, que norteia a conduta no
interior das Forças Armadas. Assim, hierarquizada militarmente a sociedade
civil, chega o momento em que governo e executivo, propriamente, se confundem.
Do ponto de vista estritamente político, os gestos do presidente ao punir
homens da própria revolução tinha uma significação mais ampla, pois pretendiam
justamente mostrar que Geisel podia e devia transcender o regime, estar acima
dele, e colocá-lo sob o controle de princípios que supunha desvirtuado na
prática. Nesse sentido, o general Geisel é o primeiro presidente pós-64, desde
Castelo Branco, que pretendeu falar não em nome do regime, apenas, mas da nação
como um todo. Evidentemente, os generais presidentes anteriores também supunham
falar em nome da nação. Mas devido à própria situação histórica, o momento os
levou a esbarrar no jogo pendular entre direita
e esquerda. Tinham limites
estritos determinados, surgidos dos compromissos com setores específicos
burgueses e dos acordos com a linha
dura, o núcleo não castelista que se pretendia portador da legitimidade
e intérprete da pureza revolucionária.
Mas, se o bonapartismo desde os primeiros anos da ditadura “assumira o controle
das chaves dos cárceres e dos cofres, os partidos políticos estavam inertes, a
atividade parlamentar resumira-se ao exercício de investigação dos limites do
Congresso, e os empresários faziam seus negócios no varejo enquanto seus órgãos
de classe banqueteavam o regime no atacado. Concluíra-se o processo de
desmobilização da sociedade brasileira. De todos as instituições de âmbito
nacional e tradição política só uma não coubera inteira no acerto: a Igreja”.[6]
É bem verdade que até 1967 ela marchou ao lado do regime, mas em nenhum momento
entregou sua independência aos novos donos do poder.
“Como instituição a Igreja podia fazer muitas
coisas, menos uma: dar a César sua própria desmobilização. Ao contrário do
empresariado, do funcionalismo público civil e militar, dos partidos políticos
e do Congresso, ela não precisava de remuneração terrena ou licença do governo
para existir. Essa independência decorria de um patrimônio espiritual amarrado
a conceitos de civilização que estavam sendo revogados no Brasil”.[7]
Por isso, o desejo de
aliança com o bonapartismo não traduzia a realidade do conjunto da Igreja
católica no Brasil. Uma mudança tivera início ainda na década de 1950. A
doutrina social da igreja católica, que teve como ponto de partida Leão XIII,
começou a tomar corpo no Brasil nos anos 1950. É dessa época a fundação da
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, CNBB (1952), que teve dom Hélder
Câmara como seu primeiro secretário-geral; a reestruturação da Ação Católica,
que englobava a Juventude Operária Católica (JOC), Juventude Estudantil
Católica (JEC) e a Juventude Universitária Católica (JUC), sob uma ênfase
espiritual e evangelizadora.
“Mas nos anos 60, a JUC engaja-se no processo
político, rebela-se contra os bispos diocesanos e alia-se a organizações de
esquerda não-católicas. Betinho, Herbert José de Souza, homem preocupado com a
fome e a miséria no Brasil, por exemplo, em 1962 era líder da JUC, e no correr
dos anos 60 transformou-se num dos expoentes da Ação Popular, um dos partidos
políticos mais ativos de toda a esquerda, oriundo da JUC e da JOC. É
interessante notar que em abril de 1962, a 5a Assembléia do
Episcopado apoiou as reformas de base de João Goulart e, no ano seguinte, com
base na encíclica Pacem in terris (1963), exigiu a participação das ‘massas
populares’ no processo de desenvolvimento. Nos anos 63/64, três encíclicas eram
discutidas dentro e fora da Igreja, e amplamente analisadas pela imprensa
brasileira: Rerum novarum, de Leão XIII, Mater et magistra e Pacem in terris,
as duas últimas de João XXIII. E foram elas que formaram a primeira base
teórica da moderna esquerda cristã brasileira”.[8]
Desde 1961, o clero católico estava dividido em três tendências:
conservadora, reformista e revolucionária. A ala conservadora era liderada pelo
cardeal dom Jaime Câmara, arcebispo do Rio de Janeiro, por dom Vicente Scherer,
arcebispo de Porto Alegre, e por dom Eugênio Sigaud, autor de Reforma Agrária,
Questão de Consciência.[9]
“A ala reformista estava sob a direção do
cardeal dom Carlos Carmelo Mota, arcebispo de São Paulo, de dom Hélder Câmara,
bispo auxiliar do Rio de Janeiro e depois arcebispo de Olinda e Recife, de dom
José Távora, arcebispo de Aracaju, e de dom Serafim, arcebispo de Natal.
Aliados aos reformistas estavam os dominicanos e uma grande parte do clero
secular, que procurava uma ligação maior com as organizações de classe e os
sindicatos. Junto a eles, atuava a Ação Católica, que englobava a JEC/JUC e a
Juventude Operária Católica. (...) O setor revolucionário era liderado por dom
Jorge Marcos, bispo de Santo André, e por vários padres, entre os quais podemos
citar Francisco Lage, de Belo Horizonte, Ruas, de Manaus, Almery e Senna, do
Recife, Alípio de Freitas, que junto com Julião, dirigiu as Ligas Camponesas,
Aloísio Guerra, autor de A Igreja está ao lado do povo?, frei Josaphat, diretor
do jornal Brasil Urgente e dom Padim, assistente da Ação Católica. (...) Em
1961, quando esteve no Brasil, frei Cardonnel, intelectual dominicano francês,
lançou as bases para a organização da esquerda católica. (...) Depois de oito
meses no Brasil (afirmou Cordonnel), penso que o primeiro problema, o mais
urgente, é a luta contra a miséria (...). Impugnar esta luta em nome do perigo
comunista representa a pior das hipocrisias”.[10]
Por
causa de seu pronunciamento foi mandado de volta à França, mas sua pregação deu
origem à Ação Popular.[11] Em 1964, o golpe contra João Goulart se deu
num momento em que ainda eram pequenas e frágeis as áreas da hierarquia
católica sensibilizadas com as mobilizações populares.
“É consenso entre os historiadores que a
hierarquia da Igreja desempenhou um papel fundamental na criação do clima
ideológico favorável à intervenção militar, engajando-se na campanha
anticomunista sustentada pelas elites conservadoras: contra a Reforma Agrária,
contra os movimentos grevistas, contra as reivindicações dos sargentos, cabos e
soldados das Forças Armadas, contra a aliança de cristãos e marxistas que
começava a ocorrer nas entidades sindicais e estudantis”.[12]
Mas, sem dúvida,
esta não era uma postura monolítica da Igreja católica, pois antes do golpe
militar, bispos, sacerdotes e leigos apoiaram as Reformas de Base. E logo
depois, ainda em 1964, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, CNBB, num
pronunciamento ambíguo, publicado pelo jornal carioca Correio da Manhã,[13]
procurou definir um certo distanciamento do novo regime.
“Não há dúvida que a ação militar deve
consolidar a vitória mediante o expurgo das causas da desordem. Entretanto, o
critério da correção e os métodos a serem empregados na busca e no trato dos
culpados, as medidas saneadoras e as penalidades não são atribuição da força
como tal, mas de outros valores, sem os quais a força não passaria de
arbitrariedade, de violência e tirania. Que os acusados tenham o sagrado
direito de defesa e não se transformem em objeto de ódio ou de vindita. (...)
Cumpre-nos declarar que não podemos concordar com a atitude de certos elementos
que têm promovido mesquinhas hostilidades à Igreja, na pessoa de bispos,
sacerdotes, militantes leigos e fiéis”.[14]
Mas é em 1968
que a Igreja vive o marco de sua virada contra o arbítrio, a repressão militar
e as torturas. Esse foi o ano das grandes mobilizações contra o regime e de
feroz repressão militar. Foi o ano da decretação do Ato Institucional-5, mas ao
mesmo tempo o ano em que tiveram início as primeiras experiências das
Comunidades Eclesiais de Base. E, em fevereiro de 1969, através do documento Presença da Igreja, escrito por D.
Jaime Câmara e aprovado pela CNBB, definitivamente a Igreja católica colocou-se
na oposição ao bonapartismo.
“A situação institucionalizada no mês de
dezembro último [refere-se ao AI-5] possibilita arbitrariedades, entre as quais a violação de direitos
fundamentais, como o de defesa, de legítima expressão do pensamento e de
informação: ameaça à dignidade da pessoa humana, de maneira física ou moral;
institui poder que, em princípio, torna muito difícil o diálogo autêntico entre
governantes e governados, e poderá levar muitos a uma perigosa clandestinidade”.[15]
No correr do
regime bonapartista, dezenas de padres e leigos católicos atuaram na oposição,
quer através de entidades das sociedades civil e religiosas, quer integrados às
organizações e partidos clandestinos de esquerda. Na contra-ofensiva, o regime
sentiu-se livre para prender e torturar padres e leigos católicos.
“Dos dois fenômenos, um era acessório e transitivo,
pois nem todos os terroristas eram padres, muito menos se podia dizer que todos
os padres simpatizassem com a esquerda, quanto mais com a esquerda armada. O
segundo fenômeno era essencial e permanente: o regime fazia da tortura de
presos um instrumento primordial de investigação e não pretendia mudar de
posição”.[16]
Situação esta que
formatou nos anos de chumbo a solidariedade militante entre os cristãos e a
esquerda brasileira. Ou, como mais tarde dirá Philip Potter,
ex-Secretário-Geral do Conselho Mundial de Igrejas no prefácio do livro Brasil: Nunca Mais: “Foi este Jesus que falou aos seus
discípulos, assim como a nós: “Conhecereis a verdade e a verdade vos
libertará”. E aquela verdade é conhecida e praticada quando se é justo e se
afirma a dignidade de cada ser humano”.[17]
Podemos dizer,
comparando o governo Geisel com o de Médici, que embora mantendo seu profundo
conteúdo de classe burguês, o estilo bonapartista de Geisel não foi tão
ideológico no sentido imediato do termo, já que não representou o setor militar
comprometido com prescrições estritas, nem com grupos específicos da sociedade
civil, mas com a estrutura capitalista da sociedade como um todo. Por isso seu
governo foi mais complexo e contraditório e menos definido ideologicamente. Os
gestos autoritários de Geisel não foram aleatórios, nem produto de um
temperamento contraditório. Tudo indica que Geisel, e a inteligência
técnico-militar que o rodeou, tinha metas a cumprir nos cinco anos de governo,
e de acordo a cada momento foi elaborando as táticas aparentemente mais viáveis
a cada situação. Podemos dizer também que Geisel (e Golbery, logicamente) tinha
uma noção aguda do momento de transição vivido no país. E tentou levar a cabo a
reabilitação de um programa político. Implementando-o à maneira bonapartista:
acima dos partidos, das classes sociais e dos próprios grupos funcionais,
militares e tecnocratas, que estiveram na gestão do Estado até aquele momento.
Como toda estratégia bonapartista, a de Geisel visava à unidade nacional sob a
hegemonia não contestada da burguesia. Esta estratégia durante o seu governo
teve uma formulação política mais precisa, que era a de preparar o país para
uma conciliação nacional. Conciliação esta supervisionada por seu sucessor – o
general Figueiredo – e logicamente pelas Forças Armadas. A esta estratégia,
Geisel foi acrescentando em momentos precisos uma tática bastante utilizada
pelo bonapartismo: aquela que consiste em dar a todos a nítida impressão de que
é vítima constante de fortes pressões vindas do interior da sociedade, às quais
precisa antecipar-se ou enfrentar. São
os shows bonapartistas montados especialmente e que permitem ao executivo
manter o autoritarismo. Geisel, o mais político dos presidentes do movimento de
64, obteve certos êxitos com esta tática bonapartista. E a utilizou
intensamente. Podemos citar
alguns exemplos: o show montado ao redor da descoberta da gráfica do Partido
Comunista, logo no início de seu governo (antes de completar um ano); o
massacre da direção do Partido Comunista do Brasil; as cassações de
parlamentares do MDB; o caso do general Sílvio Frota e outros militares e a
repressão ao Movimento de Convergência Socialista.[18]
Mas já no final de seu governo, quando uma nova etapa da história do Brasil se
abria, principalmente a partir das mobilizações operárias e sindicais de 1978,
esta tática começou a desgastar-se. Ela, ao contrário, causava um efeito
inverso na sociedade. Já não atemorizava, mas incentivava. Isto porque o
governo Geisel viveu dois períodos distintos: o antes e o depois de maio de
1978. E nem tudo que valia para março/abril de 1978 podia, por exemplo, ser
aplicado em junho/julho do mesmo ano. Exemplo, a lei antigreve.
Assim, o
bonapartismo de Geisel foi mais rico porque teve que dar respostas a um número
de problemas sociais maiores do que seus antecessores e porque conseguiu
fazê-lo sem ocasionar grandes e bruscas rupturas na estrutura autoritária do
regime.
Por ser
bonapartista o regime, os militares e o governo que se sucederam a partir de
1964 formaram um todo. E nesse sentido, excluindo o governo de Vargas no
período que vai de 1932 a 1943, eles foram os únicos que tentaram elaborar uma
doutrina de conjunto, e para ser cumprida num longo período, para o
desenvolvimento do capitalismo no Brasil. Antes de pensar sobre a viabilidade
desse projeto integrado de desenvolvimento, é importante analisar as bases
sobre as quais se apoiou. A partir do material publicado pelos teóricos da
Escola Superior de Guerra, conforme analisamos no jornal Versus,[19]
é possível tirar algumas conclusões:
• Os militares consideraram que o movimento
de 31 de março teve um caráter de revolução, que implicou num processo
tríplice: a formação uma nova camada dirigente que teria como meta a destruição
do pensamento tradicional, tanto ao nível político, como econômico.[20]
• Tendo em vista a crise anterior a 1964, dos
anos 1961-63, e levando em conta que para derrubar o governo de Goulart
necessitaram do apoio dos setores tradicionais, que em termos estratégicos não
mereciam nenhuma confiança, os militares passaram a se considerar reserva moral
da nação e única alternativa de governo. Tomando sua aliança com os setores
tradicionais ou oligárquicos como tática, tentaram excluí-los do processo
político, sempre que estes se mostravam ousados ou como fator de aglutinação do
descontentamento ou da oposição.
• É um reducionismo afirmar que o movimento
de 31 de março foi a expressão da penetração do capital estrangeiro no Brasil.
Embora o movimento tenha desde o primeiro momento se considerado como parte da
geopolítica ocidental, ele considerou também que era possível o desenvolvimento
a partir de uma acumulação da riqueza. Daí que a visão que teve foi exatamente
inversa à defendida pelas correntes nacionalistas radicais de “que a
dependência aumenta na proporção direta da entrada de divisas e investimentos
transnacionais”.[21]
Aclarando. Uma das teses econômicas defendidas pelos teóricos da Escola
Superior de Guerra-ESG, ao nível da economia, foi que a entrada de capital
estrangeiro pode gerar uma acumulação de riqueza, que se num primeiro momento
apresenta-se como problemática, tende a produzir uma decolagem, ou seja, um
processo gradual de desenvolvimento, a partir de um certo grau de acumulação.
Daí consideraram de secundária importância no processo geral da economia a
questão da dívida externa.
• Levando em conta a impossibilidade de fazer
crescer a economia em todos os seus itens, a política econômica da inteligência
militar procurou criar o que eles chamaram de pólos de desenvolvimento,
começando pelos setores de ponta, já que estes por realizar mais rápido a
mais-valia atraíriam mais investimentos estrangeiros. Já ao nível do Estado
começaram, ou continuaram, esta seria a expressão correta, a dar importância ao
setor de bens de capital, mas desde que estivesse relacionado diretamente com o
resto do parque industrial brasileiro. Ou seja, a política de substituição de
importações nesse setor só passa a ser prioritária quando seus custos são
menores ou iguais aos do competidor estrangeiro. O que pode parecer uma
contradição com um plano geral de desenvolvimento, mas surgiu de um fenômeno
concreto, a descapitalização da economia. Aqui também deve ser levada em
consideração a política de construção de grandes obras, que junto à questão
militar levou alguns economistas a verem características do modo de produção
asiático no projeto militar, que esteve mais ligado à rápida realização da
mais-valia do que à intenção de diminuir as tensões sociais geradas pelo
desemprego, embora seja importante notar que algumas dessas grandes obras
tiveram claro fim estratégico.
• A teoria política desenvolvida pela ESG e
sintetizada na Lei de Segurança Nacional mais do que expressar um fenômeno
conjuntural de repressão mostrou que os militares acreditavam estar enfrentando
de fato uma revolução.[22]
Mas, devido à
internacionalização do capital e à interdependência da economia a nível
mundial, é impossível um processo de desenvolvimento sem desequilíbrio, sem
romper a relação estratificada entre os países industrializados e os países
periféricos, ainda que esse desequilíbrio se dê dentro das margens do
capitalismo. Ou seja, a acumulação do capital e de riqueza terá sempre um
limite, caso se mantenha a sangria que representa o déficit do balanço de
pagamentos e da dívida externa. E mesmo que se dê importância secundária a este
fenômeno, o certo é que a sangria existe e é ela que funciona como um dos
fatores de dependência e que torna impossível o desenvolvimento como meta
integrada. A verdade é que o equilíbrio fracionado da situação mundial
favoreceu naquele momento o projeto hegemônico brasileiro. De forma
conjuntural, mas favoreceu. Em termos mais gerais e históricos, o pensamento
militar, desenvolvido como teoria da ESG a partir principalmente de 1964,
considerou que a liberdade deve estar condicionada aos ditames da razão
segurança.
Esta é a lição
dada por um dos teóricos da ESG, general Meira Matos, em palestra proferida em
1978 na Câmara Americana de Comércio para o Brasil, em Washington. Segundo o
general, o Brasil tinha condições
geopolíticas para emergir entre as grandes nações do mundo e se tornar um dos
países mais importantes, uma potência em condições de influir nas decisões de
ordem mundial.
Nestas poucas
palavras estava sintetizado o projeto político-militar brasileiro. E uma
leitura mais atenta delas nos conduz à certeza de que o projeto de poder
brasileiro incluía a construção de arsenal nuclear.[23]
A noção de potência capaz de “influir nas decisões de ordem mundial” estava
vinculada à posse de armas nucleares e à capacidade de dispará-las. Poder
mundial sem poder nuclear era visto como ficção num mundo dominado pelo
conceito de soberania. Em decorrência, o general Meira Matos e toda a
inteligência militar consideraram que a busca de status de potência conduz a mudanças
e a conflitos nas relações tradicionais.
Mas tudo tem o seu preço. E se no plano sul-americano o projeto do Brasil
potência despertaria receios e reações, corridas ao poder militar pelos regimes
militares, no plano interno o preço era a supressão da liberdade, pré-condição
implícita na predominância da doutrina de segurança, tal como se depreende do
pensamento do general Meira Matos. Ele próprio disse que a segurança é o ônus
que o Brasil tem que pagar para “emergir entre as grandes nações do mundo”.
Diante do
bonapartismo militar, uma parte representativa do protestantismo histórico[24]
não se colocou na oposição ao regime, nem mesmo optou pela neutralidade, ao
contrário, fez-se solidário.
[1] A primeira edição foi publicada na revista Die
Revolution, Nova York, EUA, 1852, sob o título Der Achtzehnte Brumaire
des Louis Bonaparte. Fonte: K. Marx y F. Engels, Obras
escogidas en tres tomos, Editorial Progreso, Moscou, 1981: Tomo I, pp. 404
a 498.
[2] Jorge
Pinheiro, “Um Luís Bonaparte?”, São Paulo, Versus no 29,
02.1979, pp. 4-7.
[3] Jorge
Pinheiro, “Um Luís Bonaparte?”, artigo citado.
[4] “Geisel,
que possuía agudo sentido de autoridade, demitiu o comandante em São Paulo,
general Ednardo D'Ávila Mello, quando da morte sob tortura, em dependência do
Exército, do operário Manuel Fiel Filho”. Roberto Pompeu de Toledo, “Figueiredo
e o cabaré de Aldir Blanc”, Veja, 12.01.2000. Linha dura, o general já tinha se
posicionado outras vezes contra uma possível abertura, conforme conta o
jornalista Cláudio Marques (Coluna Um, Shopping News, 03.08.1975): “Dos meus
arquivos implacáveis: General Ednardo D’Ávila Mello deixando escapar
comentário: ‘Afinal, se o pessoal de comunicação defende a liberdade de opinião
e de expressão, há evidente paradoxo na condenação do jornalista que usou desta
mestria liberdade dias atrás’ (referência ao caso Fausto Rocha)”.
[5] Jorge
Pinheiro, “Um Luís Bonaparte?”, artigo citado.
[6] Elio
Gaspari, A ditadura escancarada, São Paulo, Companhia das Letras, 2002,
p.236.
[7] Elio
Gaspari, A ditadura escancarada, op. cit., p. 236.
[8] Jorge
Pinheiro, Somos a imagem de Deus, São Paulo, Ágape, 2001, p. 127.
[9] Dom Geraldo de Proença Sigaud, Reforma agrária:
questão de consciência, Editora Vera Cruz, 1962.
[10] Paulo
Schilling, “Como se coloca a direita
no poder”, São Paulo, Global, 1979, Vol. 1, pp. 92, 94, 99.
[11] Jorge
Pinheiro, Somos a imagem de Deus, op.
cit., p. 126.
[12] Um
relato para a história, Brasil: nunca mais, prefácio de D. Paulo Evaristo,
Cardeal Arns, Petrópolis, Vozes, 1985, 7a. edição, p. 147.
[13] Correio
da Manhã, 3 de junho de 1964.
[14] Elio Gaspari, A ditadura escancarada, op. cit,
p. 237.
[15]
Fernando Prandini, Victor A. Petrucci, frei Romeu Dale, O. P. (orgs.), As
relações Igreja-Estado no Brasil, vol. 2, p. 120 in Elio Gaspari, A
ditadura escancarada, op. cit, p. 257.
[16] Elio Gaspari, A ditadura escancarada, op.
cit., p. 267.
[17] Brasil:
Nunca Mais, op. cit., p. 19.
[18] Jorge
Pinheiro, “Um Luís Bonaparte?”, artigo citado.
[19] Jorge
Pinheiro, “Figueiredo e o Projeto Militar”, São Paulo, Versus no
30, 03.1979, pp.4-8.
[20] Jorge
Pinheiro, “Figueiredo e o Projeto Militar”, artigo citado.
[21] Jorge
Pinheiro, “Figueiredo e o Projeto Militar”, artigo citado.
[22] Jorge
Pinheiro, “Figueiredo e o Projeto Militar”, artigo citado.
[23] “O Projeto Aramar estava perseguindo a idéia da Bomba
Atômica impetuosamente. Conforme publicado pelo jornal O Estado de São Paulo, ‘a arma nuclear estratégica principal do
Brasil seria um artefato de 20 a 30 quilotons (quatro a seis vezes mais
poderoso do que o usado em Hiroshima), feito com plutônio e lançado por um
imenso míssil de 16 metros de altura, 40 toneladas de peso, classe MRBM (Medium
Range Ballistic Missile), capaz de cobrir cerca de 3 mil quilômetros
transportando uma ogiva de guerra de mais de uma tonelada. É a versão militar
do VLS/Veículo Lançador de Satélite, que o Instituto de Atividades Espaciais,
de São José dos Campos, prepara’”. “O Submarino
Nuclear e a Bomba Brasileira” in Nuclear Tecnologia e Consultoria. Site: www.nuctec.com.br/educacional/submarino
(Acesso em 30.12.2005).
[24]
Protestantismo histórico é o ramo das igrejas cristãs que surgiram como
resultado da Reforma religiosa do século XVI na Europa e que se estabeleceram
no Brasil a partir do século XIX. Diferencia-se do pentecostalismo, que
enfatiza a dimensão extática e a idéia da revelação contínua e direta de Deus
aos crentes, conofrme expõe Joanildo Albuquerque Burity, “A redenção total: a
construção protestante da realidade brasileira”, in Teresa Halliday
(ed./org.), Atos retóricos, mensagens estratégicas de políticos e igrejas,
São Paulo, 1988, p. 30.