... hoje, no Brasil
Jorge Pinheiro
Diante da vergonha de evangélicos corruptos, de votos mercadejados no
púlpito, da Palavra deturpada e enlameada por lobos travestidos de cordeiros,
faço uma pergunta -- afinal, que relação existe entre o presente e o espírito
crítico e transformador do protestantismo?
E exorto homens e mulheres de boa vontade a uma reflexão sobre o que
significa o presente enquanto desafio político para os protestantes
brasileiros.
Bem, falar do presente, em primeiro lugar, significa dizer que vamos de
uma contingência a algo diferente, que pode ser inferior ou superior, mas nunca
igual.
O presente é sempre parte de uma situação mais geral e está enquadrado
no caminhar de um processo. E para fazer a leitura do presente pode-se recorrer
à análise histórica, à avaliação crítica ou à construção filosófica. Algumas
vezes, porém, algum desses elementos falha. Por isso, não basta observar o
presente. Estamos excessivamente ligados a ele, o que pode nos levar a
escorregar num julgamento do aqui e agora e esquecer que devemos estar voltados
para o futuro.
O momento é importante, mas transformar o exame do presente em
apreciação subjetiva é realizar uma redução, é ver a situação como totalidade e
permanência. Olhando assim colocamos a situação num patamar muito elevado e a
perspectiva que temos se torna global, apesar de seu caráter individual e
limitado.
Tal análise do presente pode levar a uma ampla aprovação e tocar
emocionalmente setores expressivos de comunidades inteiras. Esta é uma maneira
de ver, mas é irresponsável,
mesmo quando apresenta análises de conjuntura e perspectivas para o futuro. E
por que irresponsável? Por não aceitar suas responsabilidades. Por não
reconhecer os limites daquele que observa, assim como de seu próprio horizonte.
Mas se existe um nível mais amplo do que este analisado, somos
levados a falar da situação do
presente como possibilidade. Mas é possível chegar a tal patamar de
observação? Caso exista um ponto de vista mais amplo, a partir do qual se
posicione um observador do presente, ele precisa estar livre das amarras do
historicismo.
Busque a justiça
Voltem para Deus todos os humildes deste
país, todos os que obedecem às leis de Deus. Façam o que é direito e sejam humildes.
Talvez assim vocês escapem do castigo no Dia da ira do SENHOR. (Sofonias 2.3).
Pode-se dizer que pessoas, militantes e revolucionários, souberam
interpretar uma época dada. Eis aqui o ponto de intersecção entre o presente e
o espírito crítico e transformador do protestantismo. Seguindo a trilha aberta,
é possível afirmar que o protestantismo radical traduz inquietude e
descontentamento em relação aos acontecimentos sociais concretos.
Há uma busca ética de respostas entre o protestantismo radical e a ação
consciente do intelectual orgânico. Ambos representam determinada comunidade,
têm função superestrutural e, apesar de sua organicidade, precisam exercer
autonomia em relação às pressões sociais que sofrem. É dessa postura que nasce
a força crítica e a compreensão de que diante da realidade há alternativas
diferentes daquelas expressas pelo poder.
O protestantismo radical diante do presente não pode ser apreendido a
partir da leitura do apresentado no passado, porque procura uma compreensão que
não possa ser abalada. E essa interpretação não pode estar pousada sobre
experiência própria e nem mesmo sobre a história da Igreja.
Pratique a justiça
O SENHOR já nos mostrou
o que é bom, ele já disse o que exige de nós. O que ele quer é que façamos o
que é direito, amemos uns aos outros com
dedicação e vivamos em humilde obediência ao nosso Deus. (Miquéias 6.8).
Mas um terceiro elemento deve ser levado em conta: a tendência dialética do protestantismo
radical, que se expressa de forma paradoxal, ao fazer a crítica de pontos de
vista estabelecidos.
Quando analisamos o protestantismo a partir desta problemática, vamos
constatar que ele não testemunha em
benefício do presente, mas profere um não ao presente. Um não amplo, já que não critica cada
detalhe do presente, e também por não discordar inteiramente do presente. Ao
renunciar a um não de cada
detalhe do presente, apresenta um sim
às conquistas e vitórias obtidas no processo.
O individualismo e o criticismo se transformaram, quando analisamos o
presente, em movimentos reacionários. Mas estão, muitas vezes, sob a proteção
de religiosidades cujas essências e mensagens consistem em declarar um não para tudo que está no presente.
O espírito crítico e transformador do protestantismo radical está envolvido
no presente concreto, tem a coragem de decidir e colocar-se sob julgamento, ao
nível do particular. E é a partir dessa compreensão do que significa o espírito
crítico e transformador no tempo, que nos remetemos às três posições que
definem diferentes compreensões do presente. Primeiro, vamos analisar duas: a
concepção conservadora e a concepção progressista, que se apresentam com
variáveis e modulações.
A concepção conservadora admite o surgimento do criativo e da novidade
no tempo, mas considera que isso aconteceu no passado. Por essa razão nega toda
mudança, presente ou futura. A força dessa concepção repousa no fato de que
considera o criativo e a novidade como dados e não como resultados da ação
cultural e social do ser humano.
A concepção conservadora também reconhece necessidade e transformação como componentes do presente, mas também
os situa no passado. Desconsidera que se aconteceu no passado, necessidade e transformação se revelam
em todas as positividades e negatividades do passado, do presente e futuro. Sob
tal visão repousam os conservadorismos. Perderam o sentido de necessidade e transformação.
Faça o bem, repreenda o
opressor
Aprendam a fazer o que é bom.
Tratem os outros com justiça; socorram os que são explorados, defendam os
direitos dos órfãos e protejam as viúvas. (Isaías 1.17).
A concepção progressista considera necessidade e transformação alvos a serem projetados no futuro,
existentes em cada época, mas que não se apresentam enquanto irrupção no
presente. Assim, os tempos tornam-se vazios, sem decisão, sem responsabilidade.
Na concepção progressista existe uma tensão diante do que foi. Mas a
consciência de que o alvo é inacessível aqui e agora a debilita e produz um
compromisso continuado com o passado. A concepção progressista não oferece
nenhuma opção ao que está dado. Transforma-se em progresso mitigado, em crítica
pontual desprovida de tensão, onde não há nenhuma responsabilidade definitiva.
Este progressismo mitigado é a atitude
característica da sociedade burguesa. É um perigo que ameaça constantemente, é a supressão do não e do sim
incondicional às questões concretas. É
o adversário do protestantismo radical.
Conservadorismo e progressismo, reação e progresso, estão entrelaçados
na consciência do presente que surge enquanto necessidade e transformação. E é esse entrelaçamento que leva a
um terceiro caminho.
E o terceiro caminho é a utopia. Sem o espírito utópico não há protesto,
nem crítica radical. A utopia
quer responder às necessidades e
transformar o tempo, mas esquece que criatividade e novidade não abalam todos os tempos e todos
seus conteúdos. É por isso que a utopia leva, necessariamente, à decepção. Assim,
o resultado da utopia desencantada é o deslumbramento
sem compromissos.
Mas a idéia de necessidade e
transformação nasce da discussão com a utopia. Necessidade e transformação clamam pela irrupção de criatividade
e novidade no tempo, cujo caráter é decisivo no instante histórico enquanto
destino. Mas, com a irrupção da criatividade e novidade que respondem às necessidades e transformam o tempo concreto,
é preciso ter consciência de que não existe um estado de perfeição no
tempo, a consciência de que o ideal e perfeito nunca se fixam num presente
eterno.
Assim, toda mudança, toda transformação exige uma compreensão do momento
vivido que vá além do meramente histórico, do aqui e agora. Deve projetar-se no
futuro, deve entender que há na busca permanente da justiça um choque entre necessidade/
transformação e criatividade/ novidade. Tal desafio não pode ser resolvido por
uma pessoa, por mais protestante e radical que seja. O sujeito da transformação
será, em última instância, o sujeito social, as massas em mobilização. Mas o
protestantismo radical, assim como a intelectualidade orgânica têm aí um
importante papel a cumprir, serem voz e ação críticas para que o sonho de Amós
aconteça no presente concreto: que o juízo corra como as águas e a justiça como ribeiro perene.