Faculdade Teológica Batista
de São Paulo
Apologética cristã
Segundo semestre de 2008.
O mal, uma questão hermenêutica
Professor Dr. Jorge Pinheiro
Na
teologia cristã, teodicéia, termo cunhado por Gottfried Wilhelm Leibniz
(1646-1716), designa a teoria que procura conciliar a bondade e onipotência
divinas diante da presença do mal. E será a partir dessa teoria que vamos
analisar a questão do mal. A palavra mal vem do latim malu
e refere-se aquilo que é nocivo, prejudicial, que fere, que é mórbido, doença,
angústia, sofrimento e desgraça. Temos, então, o mal moral, contrário ao caráter do Criador, produzido por agentes
morais e temos o mal natural,
conseqüência dos desequilíbrios da natureza: furacões, terremotos, epidemias e
as sequências degenerativas, como as epidemias, deformidades congênitas etc.
As
cosmovisões se posicionam diante da questão do mal de diferentes maneiras. Para
alguns pensadores o mal não existe. Jean-Paul Sartre, por exemplo, embora
descartasse o mal, falará sobre o absurdo da existência, e dirá que o inferno
são os outros. Mas, a posição clássica dos ateísmos humanista, positivista, marxista e mesmo
existencialista relativizam o mal, já que é uma visão antropocêntrica, sem,
contudo, negá-lo. Assim para um militante comunista no século vinte, ateu, o
mal era o imperialismo norte-americano.
Já para o panteísmo monista,
como é o caso do hinduísmo e setores do budismo, tudo é deus, então nada é mal.
Para essa cosmovisão, as coisas parecem más, mas isso é ilusão, pois não há
mal.
Para
o teísmo, o mal é uma realidade. Mas o teísmo tem muitas leituras, assim, para
as correntes dualistas, existem duas forças opostas em equilíbrio, o bem e o
mal. Para as correntes teístas finitistas, que negam atributos da divindade,
Deus pode ser bom, mas não onipotente. Essa é a cosmovisão do judaísmo
contemporâneo e do mormonismo. Essa leitura apresenta um Criador que não
controla plenamente o universo, ou seja, as coisas não foram feitas de acordo com um plano
que pode ser desenvolvido.
Outra
afirmação do teísmo finitista é de que Deus pode ser onipotente, mas não é lá
muito bom. Essa cosmovisão foi defendida por John Stuart Mill e R. Roth. Nesse
sentido, tudo que recebemos de bom não vem do Criador e a perfeição não existe nem
nele próprio. Mas há ainda outras
leituras teístas, como a de Irineu e J. Hick que acreditavam que Deus criara o
universo como lugar de provação e aperfeiçoamento. Ou seja, o conceito de que a
criação é boa padece na origem e a própria
redenção do ser humano deixa de ter significado, pois Deus é o único responsável
pela condição do mundo.
Ora, o universo, enquanto criação dinâmica, é bom no
sentido teleológico, tem as qualidades adequadas à sua natureza ou função. O
Criador construiu seres livres que tinham e têm opção de escolha. A
impossibilidade de escolha diante do bem e do mal implicaria na remoção da
liberdade humana relativa e condicionada à existência. O que explica o clamor
de Habacuque, quando pergunta ao Criador como ele pode suportar a traição e as
gentes más?
O
mal tem origem no exercício da liberdade de seres pessoais. Ou como disse o
Criador ao jovem Caim, se ele tivesse feito o que era certo, ele estaria
sorrindo, mas como agiu mal, o pecado estava à porta, à espreita. O pecado
desejava dominá-lo, mas ele precisava vencê-lo. A liberdade de escolha era e é boa, enquanto
liberdade dinâmica e progressiva, pois reflete a própria imagem do Criador. Mas,
tecnicamente, necessidade e liberdade, lei e graça são realidades correlatas na
existência.
Donde o mal moral e o mal natural
são frutos do processo de alienação da imagem de Deus: é o que teologicamente
chamamos de mau encontro, conceito antropológico criado por La Boétie e
mais tarde utilizado por Pierre Clastres, que usamos como categoria que traduz
as disfunções da imago Dei na espécie
humana, ou seja, as alienações espiritual, psicossomática, sociológica e antropo-ecológica.
Assim, o ser humano está alienado do Criador, de si mesmo, dos outros homens,
da natureza, e esta consigo mesma.
Uma grande parte da ciência
no século vinte apresentou-se como materialista. É bom lembrar que cientistas
como Galileu, Francis Bacon, Isaac Newton, B. Pascal, M. Faraday e muitos
outros não eram materialistas. Albert Einstein, por exemplo, afirmou: “Deus não joga dados com o Universo”. Ao
negar a ação de um Criador infinito e pessoal, o materialismo retira a base
para qualquer significado no universo. O ser humano e todos os particulares
passam a ser nada.
As implicações da alienação
Por isso, vamos retomar aqui
a questão do termo dia, yom. A raiz
de yom aparece 2.355 vezes no texto
massorético e pode exprimir um instante de tempo; um período de luz; um período
de vinte e quatro horas; uma época; um período geral e indefinido, sete dias;
ao cabo de dias; um mês inteiro; ano; o dia de Iavé. Não temos um conceito
único para yom. Não há uma posição
unânime na igreja. Agostinho considerou que o tempo surge com o universo. E
Tomás de Aquino disse que o tempo é uma medida humana.
Mas tempo nos remete a outro
conceito o de caos. E aí vem a pergunta: o que é o caos? Na leitura
tradicional, tohu significa apenas
sem forma, caos; e bohu vazia,
desolada. Mas temos outros termos que nos levam a idéia de caos: trevas;
abismo; águas. Na leitura tradicional o caos reflete apenas uma situação sem ordem
e faz parte da criação original.
Porém temos outras teorias,
como as da catástrofe: (a) teoria da criação a partir do caos ou teoria da
recriação. Nela, Gêneses 1:1 é um título ou resumo da perícope 1.2-2.3. Aqui a conjunção vê, em
hebraico, traduz seu sentido mais comum “e”. E céu e terra significam o
universo organizado. Essa seria a primeira criação; (b) e teoria da brecha,
onde Gêneses 1.1 é criação original e a conjunção vê que inicia 1:2 deve
ser traduzida como porém,
simbolizando um lapso de tempo desconhecido, em que houve uma catástrofe entre
os dois períodos. Donde, Gêneses 1.3-21 é uma recriação da terra.
A questão da criação é fundamental para o estudo do
mal, pois posiciona o mal em condições e momentos diferentes. De todas as maneiras, a relação criação versus
mal sublinha o risco calculado do Criador ao fazer o ser humano à sua imagem e
semelhança, que consistiu, entre outras coisas, em conceder liberdade ao ser
humano como pessoa. O ser humano poderia usar essa liberdade para retribuir o
seu amor ao Criador, oferecendo-se a ele em adoração e serviço. Mas no dom da
liberdade estava contida outra possibilidade, a de fazer seu próprio caminho.
A alienação consiste nisso, na decisão do ser humano
de caminhar por conta própria. Esse deslocamento leva ao abuso da dignidade
própria e à distorção da aliança de seu ser à imagem do Criador, colocando-se a
si próprio como centro de seu querer. Ou como disse Etienne La Boétie (Discurso da servidão voluntária, São
Paulo, Brasiliense, 1982, p. 19), “que
mau encontro foi esse que pode desnaturar tanto o ser humano, o único nascido
de verdade para viver francamente, e fazê-lo perder a lembrança de seu primeiro
ser e o desejo de retomá-lo?”.
E Pierre Clastres (Liberdade, Mau Encontro, Inominável, in Etienne La Boétie, Discurso da servidão voluntária, São
Paulo, Brasiliense, 1982, pp. 110-111), analisando o texto desse libertário do
século dezesseis, que influenciou o pensamento huguenote francês, afirma:
“Mau encontro:
acidente trágico, azar inaugural cujos efeitos não cessam de ampliar-se, a tal
ponto que é abolida a memória do antes, a tal ponto que o amor da servidão
substituiu-se ao desejo de liberdade. O que diz La Boétie? Mais do que qualquer
outro clarividente, afirma inicialmente que essa passagem da liberdade à
servidão deu-se sem necessidade, afirma acidental – e, desde então, que
trabalho pensar o impensável mau encontro!”.
Antropologicamente, mau
encontro é descrito como corrupção da liberdade do ser humano por ele
próprio que, por essa corrupção, se coloca em estado de servidão voluntária.
Teologicamente, definimos como a opção do ser humano de não mais depender do
Criador, mas construir sua liberdade e história a partir de interesses próprios.
O entendimento do mau encontro enquanto alienação forma o pilar da antropologia
teológica, já que o problema do mau encontro passa a estar ligado à liberdade
do ser humano e porque essa liberdade é uma expressão da imago Dei. A partir dessa leitura, o mau encontro e a alienação
primordial da liberdade humana, assim como a ativação do humano num sentido de
distanciamento do Criador introduziram a desordem nos processos de
relacionamentos e transmissão da informação no universo.
A alienação humana tem como conseqüência o
entorpecimento da responsabilidade e da materialidade do mundo e cria o primado
da morte. Essa alienação gera distorção no equilíbrio da imago Dei, na relação espiritualidade, psiquismo e materialidade. A
alienação entorpece a liberdade, mas teologicamente leva à compreensão do
Cristo como figura que representa o penhor de redenção do ser humano.
Assim, dois elementos fazem parte da compreensão da
encarnação: o primeiro deles é a absoluta irrepetibilidade do acontecimento e o
segundo é o fato material de que o Criador, ao entrar no tempo, ao fazer-se
humano, membro de uma família, de uma comunidade, entra na corporabilidade, na
materialidade da história da humanidade. E planta na humanidade a semente de
uma radical transformação de todo o modo de ser do humano, o que abrange todas
as esferas da natureza humana, material, psíquica e espiritual.
A questão do destino
Na tradição judaico-cristã essa relação entre liberdade versus
mal sempre foi um tema teológico/ hermenêutico da maior importância. No Antigo
Testamento temos a espiral conceitual aliança/ fidelidade/ constância, cujo
centro epistemológico é a liberdade. No Novo Testamento o vértice é o conceito
de destino.
Paralelamente ao pensamento hebraico, a cultura grega
apresentará uma leitura diferente do conceito de destino, que traduzia a
maneira de pensar e viver do helenismo. Na sua época, por razões apologéticas,
o apóstolo Paulo apresentará um conceito de destino que resgata e transcende o
conceito veterotestamentário de aliança. Entre os gregos, a religião e o culto
de mistérios traduziam uma luta contra o destino, numa tentativa de colocar-se
acima dele. A origem dos cultos de mistério não pode ser entendida quando os
vemos apenas como mitos.
Para o ser humano helênico a luta com o destino era
inevitável porque o destino tinha qualidades demoníacas. Era um poder sagrado e
destrutivo. Envolvia o ser humano numa culpa objetiva. Os cultos de mistério,
dessa forma, ofereciam uma purificação das mãos de deuses que manipulando o
destino excluíam do ser humano qualquer possibilidade de liberdade.
Assim, também a filosofia helênica, através do
conhecimento, procurava elevar o ser humano à transcendência, despojando-o dos
objetivos e formas da vida imediata, para lançá-lo através da abstração em
direção ao ser puro. O mundo helênico era um mundo de culpa objetiva e
castigo trágico e um profundo pessimismo atravessava todo o conhecimento, desde
Anaximandro, passando por Pitágoras, Demócrito, Sócrates, Platão e Aristóteles.
Apesar dessa visão trágica, os gregos eram apaixonados
pela vida e é essa dicotomia que dará riqueza a esta que será uma das mais
expressivas culturas da humanidade. Mas, em última instância, a luta do
filósofo permaneceu inalterada em todo o helenismo: superar o destino. E isso
foi tentado através do domínio do pensamento, como forma de elevar-se acima da
existência, já que no campo da ação e da transformação da existência é
impossível superar o destino. No entanto, nunca essa meta foi alcançada. Necessidade
e liberdade foram conceitos chaves nas discussões do helenismo pós-platônico. O
medo de demônios obscureceu o espírito helênico. O epicurismo tentou, em vão,
libertar seus seguidores do medo, mas ao definir o conceito de possibilidade
absoluta, ou azar, abriu o espaço para o medo em sua argumentação filosófica.
Dessa maneira, a filosofia grega caminhou para o ceticismo,
já que a busca de uma certeza transcendente para a existência humana se mostrou
nula. Ao mesmo tempo, enquanto força sobre-humana do destino, as nações eram
submetidas ao poderio romano. Diante desse destino trágico, o mundo helênico
tinha necessidade da revelação. Ameaçado por um destino demoníaco, o mundo
helênico ansiava por um destino salvador, necessitava não somente de liberdade,
mas também de graça.
O cristianismo é a vitória sobre a idéia da força
resistível da matéria eterna, traduz a idéia de que o mundo é uma criação
divina. É a vitória da crença na perfeição do ser em todos seus aspectos sobre
o medo trágico e a matéria que resiste hostil ao divino. É a negação radical do
caráter demoníaco da existência em si. Dá a existência um valor essencialmente
positivo e valoriza os acontecimentos da ordem temporal. Com o cristianismo, ao
contrário do que pensava Anaximandro, a ordem do tempo não leva apenas ao
transitório e perecível, mas também à possibilidade de algo totalmente novo, um
propósito e um fim que dá pleno significado à vida humana.
No cristianismo o tempo triunfa sobre o espaço. O
caráter irreversível do kairós substitui o tempo cíclico, transitório e
perecível do pensamento helênico. A partir desse momento, destino outorga
graça, que traz salvação no tempo e na história. O mundo helênico e sua
interpretação da vida estão superados e com eles, a filosofia, a religião e os
cultos de mistério.
Antes, a filosofia buscava desesperadamente a
revelação, agora a revelação apodera-se da filosofia dando origem à teologia.
Assim, a teologia jogou fora o destino demoníaco e por extensão a metafísica
helenística e se apropriou de suas formas lógicas e de seus conteúdos
empíricos. O transitório e perecível da filosofia helenística não teve
importância na formação do pensamento ocidental, mas sim a idéia da criação
divina do mundo e a fé numa providência divina, através da salvação que se
constrói historicamente e acontece no kairós. E isso já não é helenismo, mas
antropologia teológica cristã.
O conceito
paulino de destino
Mas voltemos um pouco atrás, para entendermos esse
processo. Dentro da visão paulina, que traduz o pensamento cristão palestino, destino,
no sentido de que os limites estão dados de antemão, é a lei transcendente na
qual está imbricado o conceito de liberdade. Assim, destino também implica numa
trindade conceitual: (1) o destino está sujeito à liberdade; (2) destino significa
que a liberdade também está sujeita à lei; (3) destino significa que liberdade
e lei são interdependentes e complementares.
Analisando o conceito cristão palestino de destino,
exposto por Paulo em sua carta aos romanos (8.31-39; e 9), podemos dizer que a
liberdade humana está ligada às leis universais, de tal forma que liberdade e
leis se encontram intrinsecamente entrelaçadas. Aqui Paulo trabalha com um
conceito judaico, de que lei é imposição de limites, que faz parte da
revelação, que se expressa pela primeira vez como criação de Deus. Mas para
Paulo, se o mal é uma probabilidade que surge da correlação lei/ graça, o
julgamento era inerente a tudo na criação, mas também a liberdade.
Assim, a certeza de que o destino é divino e não
demoníaco e tem um significado realizador e não destruidor é a peça chave do
pensamento paulino, que coloca o logos acima do destino. Ao fazer isso,
Paulo está dizendo que a compreensão do destino não está ao alcance do ser
humano, nem pode ser submetido aos processos do pensamento humano. Mas esse logos eterno se reflete através de
nossos pensamentos, embora não exista um ato do pensamento sem a secreta
premissa de sua verdade incondicional. Mas a verdade incondicional não está ao
nosso alcance. Em nós humanos há sempre um elemento de aventura e risco em cada
enunciado da verdade. Mas, mesmo assim, devemos correr este risco, sabendo que
este é o único modo que a verdade pode ser revelada a seres finitos e
históricos.
Quando mantemos relação com o logos eterno e deixamos de temer a
ameaça do destino demoníaco, aceitamos o lugar que cabe ao destino em nosso
pensamento. Podemos reconhecer que desde o princípio esteve submetido ao
destino e que o nosso pensamento sempre desejou livrar-se dele, mas nunca
conseguiu. Tarefa teológica da maior importância, na análise cristã do destino é
saber relacionar logos e kairós. O logos deve envolver e dominar as
leis universais, a plenitude do tempo, a verdade e o destino da existência. A
separação entre logos e existência chegou ao fim. O logos
alcançou a
existência, penetrou no tempo e no destino. E isso aconteceu não como algo
extrínseco a ele próprio, mas porque é a expressão de seu próprio caráter
intrínseco, sua liberdade.
É necessário, porém, entender que tanto a existência
como o conhecimento humano estão submetidos ao destino e que o imutável e
eterno reino da verdade só é acessível ao conhecimento liberto do destino: a
revelação. Dessa maneira, ao contrário do que pensavam os gregos, todo ser
humano possui uma potencialidade própria, enquanto ser, para realizar seu
destino. Quanto maior a potencialidade do ser – que cresce à medida que é
envolvido e dominado pelo logos – mais profundamente está implicado seu conhecimento
no destino.
Nosso destino, que aqui deve ser entendido como missão,
é servir ao logos, num novo kairós, que emerge das crises e
desafios de nossos dias. Quanto mais profundamente entendermos nosso destino, no
sentido de prokeimai, estar colocado, ser proposto, e o de nossa
sociedade, tanto mais livres seremos. Então, nosso trabalho será pleno de força
e verdade.
A vontade humana não é neutra e a liberdade humana
sempre se dá dentro da existência, enquanto realidade condicionada pela
materialidade. Assim, a liberdade entende-se como correlação entre lei e graça.
Quando Hegel afirmava que a liberdade é a consciência da necessidade, como fez
questão de mostrar Marx, cometia um erro porque descartava a realização da
liberdade. É por isso que Marx dirá que liberdade é práxis. Ora, para Marx,
práxis é consciência da necessidade mais ação transformadora. Ou seja, em
termos teológicos, consciência da lei diante da existência do mal é
arrependimento, e ação transformadora do logos que produz justificação e
mudança de vida, graça.
O mal enquanto
feitura humana
Dentro da visão cristã e exatamente pelo que acabamos
de ver, o mal, ao contrário do que pensavam os gnósticos, não é um ser, mas um
fazer. Em relação ao imediato é um estado e no que se refere à espécie humana é
um domínio. Numa definição teológica, o mal acontece perante aquilo que minha
liberdade é desafiada, quando ele, o mal, é chamado a surgir como feitura
humana. Nesse sentido, o mal não se apresenta sem agente moral, sem liberdade.
Toda vez que realizo minha liberdade a lei está presente, pois o mal é um antítipo
da salvação.
Por isso só podemos responder ao mal reconhecendo que
o mal é feitura minha e de minha espécie, colocando a ruptura desse domínio nas
mãos daquele único que pode fazê-lo, o logos. A partir daí, ao nível do
pensamento, já que é um desafio teológico, o caminho é a reflexão, como aquela
que Agostinho fez frente aos gnósticos, quando esses levantarem a pergunta: Por
que o mal existe? Transformando assim o mal em coisa e mundo,
dando existência e imagem ao mal. Agostinho responde dizendo que
a única pergunta que posso fazer é: O que me leva a fazer o mal? E ao
nível da vontade e do sentimento, crendo em Deus apesar do mal, pois a
cristologia nos ensina que o logos também sofreu. E por fim, ao
nível da ação, pois o mal é o que não devia estar, devemos ter uma ética de
responsabilidade social, de combate a este estado e domínio na
vida de meu próximo e da sociedade.
Mil anos
depois de Agostinho, a questão do mal continuava em discussão e a teodicéia,
ainda em construção, oscilou entre dois imperativos aparentemente excludentes,
o da soberania de Deus e o da liberdade humana. Mas, no início do século vinte,
a partir da teologia dialética, passou-se a ver tais imperativos como correlação.
Assim eleição e oferta aberta foram lidos como termos complementares, e a cruz
como base da salvação e da condenação.
Três leituras da modernidade nascente
Vamos analisar a dialética
de tais imperativos sob um novo ângulo. Em 1970, Manuel Ballestero publicou em
Madri, pela Siglo XXI, La Revolución del
Espíritu (Tres pensamientos de libertad), analisando o caráter radical da liberdade
no pensamento de três gênios da modernidade: Nicolas de Cusa, Lutero e Marx.
Ballestero diz que sua preocupação residiu em analisar o projeto de liberdade
desses três pensadores, sabendo que a autonomia e o ato livre são concebidos de
maneiras diferentes e mesmo antagônicos, embora existam, no contexto da obra
dos três, analogias de fundo. E essas se referem ao fato de que liberdade significa
a abolição da lei, o colapso da determinação exterior, e não o comportamento
que se adequou aos limites da ordem. Assim, segundo Ballestero, Cusa, Lutero e
Marx olham a liberdade como a destruição da ordenação exterior e anterior ao
próprio ato livre.
Os ensaios mostram que a
revolução teórica empreendida por Cusa e Lutero não é gratuita, nem produto de
um simples ato ideal, mas se enraíza no tecido histórico do movimento de
decomposição global da formação social pré-capitalista. Cusa e Lutero clamam
por essa destruição. Sem entrar nos detalhes das mutações vividas no século dezesseis,
com a ruptura do equilíbrio cidade/ campo, o surgimento das manufaturas e a consolidação
do sistema de trabalho assalariado, vemos que a dimensão negativa da condição
humana na incipiente sociedade capitalista será percebida por Cusa e Lutero: a autonomia do sujeito se dá como dor.
Mas ambos consideram essa
subjetividade liberada pelo início da arrancada capitalista como desequilíbrio.
Assim, tanto Cusa quanto Lutero partem da negação dessa subjetividade alienada
do nascente capitalismo, considerando que deve ser superada para que o Espírito
floresça. Aí, então, teríamos o fim da inessencialidade do sujeito alienado e a
inserção deste na totalidade objetiva. Mas isso não pode acontecer sem a
transformação dessa realidade objetiva em realidade espiritual, que sustém o
ser humano. Dessa maneira, para os dois pensadores, o Espírito constrói num
nível superior o universo anteriormente negado.
O jovem Marx, seguindo os passos de Hegel, partirá dessa discussão. Para
ele, a religião é a realização imaginária da essência do ser humano, mas essa
essência não tem realidade alguma. De todas as maneiras, há um ponto de
interligação nessa perspectiva, quando vê, assim como Cusa e Lutero, a
liberdade como abolição da legalidade, como coincidência do momento subjetivo
com o momento objetivo, e como responsabilidade suprema do ser humano. Para
entender esse ponto de partida de Marx é bom ler seus manuscritos econômicos e
filosóficos, mas também sua Introdução à
Crítica da Economia Política (Marx, São Paulo, Abril Cultural, 1982), texto
que só foi descoberto em 1902 e publicado por Kautsky em 1903.
“O cristão é senhor de todas as coisas e não
está submetido a ninguém. O cristão é servo em tudo e está submetido a todo
mundo” (Lutero, Les grands écrits
reformateurs, Paris, Aubier, 1955, p. 225). Para Lutero, o ser humano
existe como estrutura ontológica dual. Sua conceituação traduz a ansiedade
teórica do século dezesseis, mas traduz-se em superação da subjetividade
alienada. O cristão é senhor de todas as coisas, não está submetido a ninguém e
esse senhorio radical é produto da graça. Sua liberdade é fruto da fé que
transforma a subjetividade alienada em realidade objetiva. Nesse sentido, o
caráter espiritual da autonomia do cristão se dá como processo. Morre o
imediato, o alienado, e tem início a construção de uma segunda natureza.
A liberdade surge como deslocamento do ser humano
natural, como distanciamento crítico daquilo que foi naturalmente dado. O
primeiro momento da liberdade parte de uma concepção trágica, porque o senhorio
num primeiro momento implica em servidão, criando tensão e luta... “É necessário desesperar-se por você mesmo,
fazer com que você saia de dentro de você e escape de sua prisão” (Lutero, Les grands écrits, p. 259). Mas superada a tensão, temos a liberdade enquanto
espiritualidade, uma dimensão de combate.
O ser humano, que em Cristo vive essa metamorfose,
tem a liberdade que vai além, a liberdade que é fonte de realidade e ação.
Assim, o cristão transforma-se em receptáculo da fé, em intencionalidade aberta
ao Absoluto.