jeudi 2 juin 2011

A violência da globalização


Por Jean Baudrillard

Seria a globalização uma fatalidade? De alguma forma, todas as outras culturas que não a nossa escapavam à fatalidade da troca indiferente. Onde se situará o limiar crítico da passagem ao universal e, depois, ao mundial? Que vertigem será esta que impulsiona o mundo para a abstração da Idéia, e esta outra vertigem que incita à realização incondicional da Idéia?

Porque o universal era uma Idéia. Quando se realiza no mundial, ela se suicida enquanto Idéia, enquanto fim ideal. Como o humano se tornou a única instância de referência e a humanidade imanente a si mesma passou a ocupar o vazio deixado por Deus morto, o humano agora reina sozinho, mas já não tem motivação final. Não tendo mais inimigo, engendra-o do interior e secreta todos os tipos de metástases inumanas.

Conquistas da modernidade e do progresso

Donde a violência do mundial - violência de um sistema que persegue qualquer forma de negatividade, de singularidade, inclusive a forma última de singularidade que é a própria morte - violência de uma sociedade em que estamos virtualmente proibidos de conflito, proibidos de morte - violência que, de certa maneira, põe fim à própria violência e que trabalha para instalar um mundo livre de qualquer ordem natural, seja a do corpo, a do sexo, a do nascimento ou a da morte.

Mais do que de violência, seria necessário falar de virulência. Trata-se de uma violência que é viral - que atua por contágio, por reação em cadeia, e destrói, pouco a pouco, todas as nossas imunidades e nossa capacidade de resistência.

Entretanto, nada está decidido, e a globalização não ganhou por antecipação. Diante desse poder homogeneizante e dissolvente, se vê, em toda parte, levantarem-se forças heterogêneas - não só diferentes, mas também antagônicas. Por trás das resistências cada vez mais intensas à globalização, sociais e políticas, é preciso ver mais do que uma rejeição arcaica: uma espécie de revisionismo dilacerante quanto às conquistas da modernidade e do “progresso”, de recusa não apenas da tecno-estrutura mundial, como também da estrutura mental de equivalência de todas as culturas.

Este ressurgimento assume aspectos violentos, anômalos, irracionais em relação a nosso pensamento esclarecido - formas coletivas étnicas, religiosas, lingüísticas - mas, igualmente, formas individuais de perturbação do caráter ou neuróticas. Seria um erro condenar esses sobressaltos como populistas, arcaicos ou mesmo terroristas. Tudo o que faz um acontecimento hoje o faz contra essa universalidade abstrata - inclusive o antagonismo do islamismo com os valores ocidentais (pelo fato de ser a mais veemente contestação desses valores, é que, hoje, o Islã é seu inimigo número um).

Vingança de culturas singulares

Quem poderia impedir o sucesso do sistema mundial? Certamente não o movimento antiglobalização, que só tem por objetivo frear a desregulamentação. Seu impacto político pode ser considerável, mas o impacto simbólico é nulo. Essa violência é também uma espécie de peripécia interna que o sistema pode superar sem perder o controle da situação.

O que pode impedir o êxito do sistema não são alternativas positivas, são singularidades. Ora, estas não são positivas nem negativas. Não são uma alternativa; são de outra ordem. Não obedecem mais a um juízo de valor nem a um princípio de realidade política. Podem, pois, ser o melhor ou o pior.

Não é possível, portanto, confederá-las numa ação histórica conjunta. Impedem o sucesso de todo pensamento único e dominante, mas não são um contra-pensamento único - elas inventam seu jogo e suas próprias regras do jogo.

As singularidades não são necessariamente violentas, e algumas são sutis, como as da língua, da arte, do corpo ou da cultura. Mas há algumas violentas - como a do terrorismo. É a que vinga todas as culturas singulares que pagaram com seu desaparecimento a instauração desse único poder mundial.

Despeito feroz entre culturas

Não se trata, portanto, de um “choque de civilizações”, mas de um confronto - quase antropológico - entre uma cultura universal indiferenciada e tudo o que, em qualquer área, conserva algo de uma alteridade irredutível.

Para o poder mundial, tão radical quanto a ortodoxia religiosa, todas as formas diferentes e singulares constituem heresias. Por esta razão, estão condenadas a entrar, querendo ou não, na ordem mundial ou a desaparecer. A missão do Ocidente (ou melhor, do ex-Ocidente, visto que há muito deixou de ter valores próprios) é submeter, por todos os meios, as múltiplas culturas à lei da equivalência.

Uma cultura que perdeu seus valores só pode se vingar nos valores das outras. Inclusive as guerras - como a do Afeganistão - visam primeiro, para além das estratégias políticas ou econômicas, a normalizar a barbárie, a obrigar todos os territórios a se alinharem. O objetivo é dominar toda e qualquer região refratária, colonizar e domesticar todos os espaços selvagens, tanto no espaço geográfico quanto no universo mental.

A instalação do sistema mundial resulta de um despeito feroz: o de uma cultura indiferente e de baixa definição em relação a culturas de alta definição; o dos sistemas desencantados, que perderam a intensidade, em relação a culturas de alta intensidade; o das sociedades dessacralizadas em relação a culturas ou formas sacrificiais.

Humilhação contra humilhação

Para tal sistema, qualquer forma refratária é virtualmente terrorista. É o caso ainda do Afeganistão. Que, num território, todas as permissões e liberdades “democráticas” - a música, a televisão, inclusive o rosto das mulheres - possam ser proibidas, e que um país possa tomar o contrapé total do que chamamos de civilização - qualquer que seja o princípio religioso invocado -, tudo isso é insuportável para o resto do mundo “livre”.

Não se considera que a modernidade possa ser renegada em sua pretensão universal. Que ela não seja vista como a evidência do bem e o ideal natural da espécie, que se conteste a universalidade de nossos costumes e de nossos valores - ainda que por algumas mentes imediatamente caracterizadas como fanáticas -, tudo isso é um crime em relação à visão do pensamento único e do horizonte consensual do Ocidente.

Esse confronto só pode ser compreendido à luz da obrigação simbólica. Para compreender o ódio do resto do mundo em relação ao Ocidente, é preciso inverter todas as perspectivas. Não se trata do ódio daqueles de quem se tirou tudo e aos quais nada se retribuiu mas, sim, do ódio daqueles a quem tudo se deu sem que eles pudessem retribuir. Não é, portanto, o ódio da espoliação e da exploração, é o ódio da humilhação.

E é a este que responde o terrorismo do 11 de setembro: humilhação contra humilhação. O pior para a potência mundial não é ser agredida ou destruída, é ser humilhada. E a potência foi humilhada pelo 11 de setembro, porque os terroristas lhe infligiram, então, alguma coisa que ela não pode retribuir. Todas as represálias são apenas um aparelho de coação física, ao passo que ela foi desfeita simbolicamente.

A guerra responde à agressão, mas não ao desafio. O desafio só pode ser aceito humilhando o outro em resposta (mas, de modo algum, esmagando-o sob bombas, nem trancando-o como cães em Guantânamo).

Saturação da existência

A base de qualquer dominação é a ausência de contrapartida - sempre segundo a regra fundamental. O dom unilateral é um ato de poder. E o “império do bem”, a violência do bem, consiste exatamente em dar - sem contrapartida possível. Consiste em ocupar a posição de Deus. Ou do Senhor, que deixa a vida ao escravo em troca de seu trabalho (mas o trabalho não é uma contrapartida simbólica; portanto, as únicas respostas, afinal, são a revolta e a morte). Deus, pelo menos, dava espaço para o sacrifício.

Na ordem tradicional, sempre existe a possibilidade retribuir - a Deus, à natureza ou a qualquer outra instância, sob a forma do sacrifício. É o que garante o equilíbrio simbólico dos seres e das coisas. Não temos, hoje, mais ninguém a quem retribuir, a quem restituir a dívida simbólica - e é essa a maldição de nossa cultura.

Não que nela seja impossível o dom e, sim, que nela o contra-dom é impossível, visto que todas as vias sacrificiais foram neutralizadas e desmontadas (resta apenas uma paródia de sacrifício, visível em todas as formas atuais da condição de vítima).

Estamos, desse modo, na situação implacável de receber, receber sempre, não mais de Deus ou da natureza, mas através de um dispositivo técnico de troca generalizada e de gratificação geral. Tudo nos é virtualmente dado e, queiramos ou não, temos direito a tudo. Estamos na situação de escravos aos quais se deixou a vida e que estão ligados por uma dívida insolúvel.

Tudo isso pode funcionar durante muito tempo graças à inserção na troca e na ordem econômica mas, num dado momento, a regra fundamental a vence, e a essa transferência positiva corresponde, inevitavelmente, uma contratransferência negativa, uma ab-reação violenta a essa vida cativa, a essa existência protegida, a essa saturação da existência. Tal reversão assume a forma de uma violência aberta (o terrorismo faz parte dela), ou da negação impotente, característica de nossa modernidade, do ódio de si e do remorso - todos paixões negativas que são a forma degradada do contra-dom impossível.

Veredicto e condenação da sociedade

Aquilo que detestamos em nós, o obscuro objeto de nosso ressentimento, é esse excesso de realidade, esse excesso de poder e de conforto, essa disponibilidade universal, essa realização definitiva - o destino que, no fundo, o “grande inquisidor” reserva às massas domesticadas em Dostoievski. Ora, é exatamente isso que os terroristas criticam em nossa cultura - donde a repercussão que o terrorismo encontra e o fascínio que exerce.

Tanto quanto no desespero dos humilhados e dos ofendidos, o terrorismo se baseia, por exemplo, no desespero invisível dos privilegiados da globalização, em nossa própria submissão a uma tecnologia integral, a uma realidade virtual esmagadora, a um domínio das redes e dos programas que traça, talvez, o perfil involutivo da espécie inteira, da espécie humana tornada “mundial” (a supremacia da espécie humana sobre o resto do planeta não seria à imagem da supremacia do Ocidente sobre o resto do mundo?). E esse desespero invisível - o nosso - é irremediável, pois decorre da realização de todos os desejos.

Se o terrorismo decorre, pois, desse excesso de realidade e de seu prazo impossível, dessa profusão sem contrapartida e dessa resolução forçada dos conflitos, então a ilusão de extirpá-lo como um mal objetivo é total, dado que, sendo como é, em seu absurdo e em seu contra-senso, ele é o veredicto e a condenação que esta sociedade emite em relação a si mesma.


Tradução: Iraci D. Poleti
Jean Baudrillard é filósofo, autor, dentre outros livros, de “La Guerre du Golfe n’a pas eu Lieu” (1991), “Le Crime Parfait” (1994) e “L’Esprit du Terrorisme” (2002), todos editados pela Galilée. Este texto foi extraído de seu ensaio, “Power Inferno” (ed. Galilée, Paris, 94 páginas).

lundi 30 mai 2011

O governo Dilma e o "kit-homofobia"

Folha de São Paulo, 26/05/2011 - São Paulo SP
Entidades criticam "retrocesso" do governo
DE BRASÍLIA / DE SÃO PAULO
Entidades que defendem os direitos dos homossexuais reagiram com "perplexidade", "consternação" e "indignação" à decisão do governo de suspender a distribuição de vídeos contra a homofobia nas escolas.
Em nota, a ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais), que reúne 237 organizações, e as associações de lésbicas, transexuais e travestis dizem que a ação macula a imagem internacional do país sobre direitos humanos e fere o Estado laico. Em referência velada ao fato de a decisão do governo ser uma reação à possível convocação do ministro
Antonio Palocci (Casa Civil) para depor no Congresso sobre a evolução de seu patrimônio e negócios de sua empresa, o documento diz ainda que os direitos humanos não podem ser "moeda de troca" nas negociações políticas.


O texto também critica a ascendência da bancada religiosa sobre o governo. "Um princípio básico do Estado republicano está sendo ameaçado pela chantagem praticada hoje contra o governo federal pela bancada religiosa fundamentalista e seus apoiadores no Congresso Nacional", diz o texto. Para Julio 
Moreira, do Grupo Arco-Íris, a retirada deveria  ser precedida de maior debate. "É um tremendo retrocesso para as políticas públicas o projeto ser usado como moeda de troca com setores mais conservadores", diz. A entidade planeja um protesto para o fim de semana no posto 9, em Ipanema, no Rio. A socióloga Miriam Abramovay, pesquisadora da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais também viu como um retrocesso o recuo do governo e afirma ser um erro pensar que vídeos podem incentivar jovens a se tornarem homossexuais. (ANGELA PINHO e RICARDO GALLO)
===============
> Folha de São Paulo, 26/05/2011 - São Paulo SP
Bancada religiosa elogia suspensão de kit em escolas
DE BRASÍLIA
A decisão do governo de suspender a distribuição de material anti-homofobia a escolas públicas foi comemorada ontem por congressistas das bancadas católica e evangélica. Bispo da Igreja Universal e integrante da bancada evangélica do Senado, Marcelo Crivella (PRB-RJ) disse que a presidente Dilma tomou uma decisão "sábia" e admitiu que pressionou o Planalto a tomar a medida. Segundo seu relato, a presidente telefonou para ele ontem pela manhã para anunciar sua decisão. Crivella disse que cabe às famílias, e não ao governo, orientar crianças e jovens sobre questões sexuais. O deputado Eros Biondini (PTB-MG), que representou a bancada católica na reunião em que Gilberto Carvalho (Secretaria- Geral) comunicou o recuo do governo, disse que viu nos vídeos apologia a orientação sexual. Como exemplo, ele citou um dos vídeos que seria distribuído, intitulado "Probabilidade". Jair Bolsonaro (PP-RJ) elogiou Dilma. "Apenas lamento que ela tenha tomado essa decisão só depois de um momento difícil para um ministro dela."
================
> Folha de São Paulo, 26/05/2011 - São Paulo SP
Dilma freia ações em temas polêmicos
Presidente decide submeter à consulta pública campanhas com material considerado sensível por grupos religiosos. Reação de católicos e evangélicos e temor pelo futuro político do ministro da Educação influíram na decisão
ANA FLOR DE BRASÍLIA
Após cancelar a produção e distribuição do kit anti-homofobia do Ministério da Educação, a presidente Dilma Rousseff determinou que todo o material do governo que se referir a costumes terá que passar, a partir de agora, pelo crivo do Palácio do Planalto e por processo de consulta à sociedade. A ordem da presidente ocorreu após uma reunião do ministro Gilberto Carvalho, da Secretaria-Geral da Presidência, com as bancadas evangélica e católica do Congresso e integrantes da frente parlamentar da família. O grupo ameaçou propor a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar o Ministério da Educação caso o governo não cancelasse a produção dos materiais. O kit anti-homofobia é formado por uma cartilha e cinco vídeos que o governo planejava distribuir a alunos do ensino médio em escolas públicas. Três vídeos chegaram a ser exibidos à imprensa pelo ministério em janeiro e circularam na internet. Os vídeos desagradaram às bancadas evangélicas e católicas do Congresso, que alegam que os vídeos poderiam estimular o homossexualismo. O MEC diz que o material, produzido por ONGs, não estava pronto. Essas versões preliminares foram aprovadas pela Unesco (órgão da ONU para a educação).


ELEIÇÃO EM SP - Assessores do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva manifestaram preocupação com os efeitos que a controvérsia poderia ter sobre o futuro político do ministro da Educação, Fernando Haddad, que Lula gostaria de ver como candidato do PT a prefeito de São Paulo em 2012. Carvalho
afirmou que não houve toma lá, dá cá na decisão da presidente ontem. Segundo ele, Dilma considerou que o material do MEC era "inadequado" e o vídeo, "impróprio para seu objetivo". A decisão gerou críticas dentro do governo também. "Tempo das trevas!", escreveu a secretária de Educação Básica do Ministério da Educação, Maria do Pilar Lacerda, numa mensagem enviada a seus seguidores no Twitter para comentar notícias do recuo do governo. Em outra mensagem mais tarde, ela afirmou que não tivera a intenção de criticar a decisão de Dilma, mas se referia à "onda conservadora levantada na campanha eleitoral pelo candidato [José] Serra [PSDB]". Na campanha presidencial, Serra e grupos religiosos atacaram Dilma por mudar sua posição sobre a legalização do aborto, que defendeu no passado.

Carta de despedida do Rev. Ricardo Gondim aos leitores da revista Ultimato

Despeço-me da Revista Ultimato
Ricardo Gondim

Após quase vinte anos, fui convidado a “des-continuar” minha coluna na revista Ultimato. Nesta semana, recebi a visita de Elben Lenz Cesar, Marcos Bomtempo e Klênia Fassoni em meu escritório, que me deram a notícia de que não mais escreverei para a Ultimato. Nessa tarde, encerrou-se um relacionamento que, ao longo de todos esses anos, me estimulou a dividir o coração com os leitores desta boa revista. Cada texto que redigi nasceu de minhas entranhas apaixonadas.
Fui devidamente alertado pelo rev. Elben de que meus posicionamentos expostos para a revista Carta Capital trariam ainda maior tensão para a Ultimato. Respeito o corpo editorial da Ultimato por não se sentir confortável com a minha posição sobre os direitos civis dos homossexuais. Todavia, reafirmo minhas palavras: em um estado laico, a lei não pode marginalizar, excluir ou distinguir como devassos, promíscuos ou pecadores, homens e mulheres que se declaram homoafetivos e buscam constituir relacionamentos estáveis. Minhas convicções teológicas ou pessoais não podem intervir no ordenamento das leis.
O reverendo Elben Lenz Cesar, por quem tenho a maior estima, profundo respeito e eterna gratidão, acrescentou que discordava também sobre minha afirmação ao jornalista de que “Deus não está no controle”. Ressalto, jamais escondi minha fé no Deus que é amor e nos corolários que faço: amor e controle se contradizem. De fato, nunca aceitei a doutrina da providência como explicitada pelo calvinismo e não consigo encaixar no decreto divino: Auschwitz, Ruanda ou Realengo. Não há espaço em minhas reflexões para uma “vontade permissiva” de Deus que torne necessário o orgasmo do pedófilo ou a crueldade genocida.
Por último, a Klênia Fassoni advertiu-me de que meus Tweets, somados a outros textos que postei em meu site, deixam a ideia de que sou tempestivo e inconsequente no que comunico. Falou que a minha resposta à Carta Capital sobre a condição das igrejas na Europa passa a sensação de que sou “humanista”. Sobre meu “humanismo”, sequer desejo reagir. Acolho, porém, a recomendação da Klênia sobre minha inconsequência. Peço perdão a todos os que me leram ao longo dos anos. Quaisquer desvarios e irresponsabilidades que tenham brotado de minha pena não foram intencionais. Meu único desejo ao escrever, repito, foi enriquecer, exortar e desafiar possíveis leitores.
Resta-me agradecer à revista Ultimato por todos os anos em que caminhamos juntos. Um pedaço de minha história está amputada. Mas a própria Bíblia avisa que há tempo de plantar e tempo de arrancar o que se plantou. Meu amor e meu respeito pela família do rev. Elben, que compõe o corpo editorial da Ultimato, não diminuíram em nada.
Continuarei a escrever em outros veículos e a pastorear minha igreja com a mesma paixão que me motivou há 34 anos.

Ricardo Gondim
Soli Deo Gloria
20-05-11

Focolares para principiantes


Numa visita ao Brasi, em 1991, Chiara Lubich lançou uma proposta para o pensamento e a práxis econômica: a Economia de Comunhão na Liberdade (EdC). A sua raiz está na prática da comunhão de bens que caracterizou o Movimento dos Focolares desde a sua gênese. Esta comunhão gera uma nova mentalidade, uma nova cultura: a cultura da partilha.

Neste projeto se articulam princípios sociais e econômicos: economia, solidariedade e liberdade, capazes de influir na solução dos desequilíbrios econômicos. O lucro das empresas que aderem à EdC é dividido em três partes: para o reinvestimento na empresa; para ir ao encontro dos necessitados; para a formação de homens novos: pessoas com uma mentalidade aberta à cultura da partilha.

Mais de 800 empresas e atividades produtivas, no mundo inteiro, aderiram à EdC – cerca de cem encontram-se no Brasil.

A quatro km da Mariápolis Ginetta (Grande São Paulo) foi implantado o Pólo Empresarial Spartaco, protótipo da EdC, onde estão instaladas sete empresas. Nas cercanias de Recife e de Belém, dois outros pólos empresariais nos moldes da EdC entraram em atividade.

Como sugiram

Trento (Itália), 1943. Na Segunda Guerra Mundial, Chiara Lubich, uma jovem de 23 anos, descobre no Evangelho os valores que podem dar sentido à vida humana, em todas as situações. Comunica esta descoberta às suas primeiras companheiras. É a descoberta do amor como força capaz de desarmar os corações do ódio, do rancor e de preconceitos. É o início de um caminho de unidade que gera a paz e que suscita a fraternidade universal.

A palavra-chave é unidade: a oração que Jesus dirigiu ao Pai antes de morrer – “Que todos sejam um” (Jo 17.21) – torna-se o objetivo de suas vidas. As palavras do Evangelho revelam-se novas: a descoberta de Deus como Pai, o Mandamento Novo, a presença de Jesus “onde dois ou mais...”, em cada próximo (“Tudo o que fizerdes ao menor dos meus a mim o fareis”... Da experiência de Evangelho vivido no cotidiano, nasce a espiritualidade da unidade. Em poucos meses, mais de 500 pessoas aderiram a essa proposta. Aos poucos, ultrapassou as fronteiras da Itália e da Europa, penetrando nos cinco continentes.

Em 1959 Ginetta Calliari – uma das primeiras companheiras de Chiara Lubich – com Marco Tecilla, Enzo Morandi e outras jovens e rapazes, iniciaram os dois centros do Movimento no Brasil. Hoje o Movimento está presente nos Estados brasileiros, conta com cerca de 280 mil pessoas e 55 centros de difusão.

A proposta

Nestes 65 anos, o Movimento dos Focolares suscitou uma renovação espiritual e social em mais de 2 milhões de pessoas de todas as idades, condições sociais, raças e culturas. Presente em 182 países do mundo, realiza um diálogo a 360°, em todos os níveis sugeridos pelo Concílio Vaticano II: com pessoas dos mais variados credos e confissões, e também com quem, mesmo sem um referencial religioso, está disposto a contribuir para a promoção de valores universais, como a paz, a justiça, a dignidade humana.

Um pouco de história

Em 1956, pela primeira vez um brasileiro teve contato com essa espiritualidade, na Itália: o Pe. João Batista Zattera, do Rio Grande do Sul.

Em 1958, outros dois sacerdotes de Recife participam, também na Itália, de um Congresso anual do Movimento, denominado Mariápolis. Após esse contato, um focolarino e duas focolarinas – pessoas inteiramente doadas à causa dos Focolares, membros consagrados de comunidades femininas ou masculinas – fazem uma viagem ao Brasil, começando por Recife, onde surge a primeira comunidade. Marco Tecilla, Lia Brunet e Ada Ungaro percorrem vários Estados do Brasil e alguns países da América Latina. A semente foi plantada e o terreno preparado.

Em 1959, em resposta a uma carta de dom José Avelino Dantas, então arcebispo de Olinda e Recife, Chiara concorda com a abertura dos dois primeiros centros do Movimento fora da Europa.

Em 26 de novembro de 1959 partem para Recife quatro focolarinas (Ginetta Calliari, Fiore Ungaro, Marisa Cerini e Violetta Sartori) e quatro Focolarinos (Marco Tecilla, Enzo Morandi Rino Chiapperin e Gianni Buselatto). O Movimento se espalha pelos Estados do Nordeste e  por todo o país.

Chiara Lubich esteve no Brasil seis vezes, a primeira delas em 1961.

Em 1962 foi inaugurado o primeiro focolare masculino da região Sudeste, em São Paulo, através do qual teve início também a Editora Cidade Nova. Em 1964 tem início também o focolare feminino.

Em 1965, na terceira viagem de Chiara ao Brasil, foi adquirido o terreno para a construção do Centro Mariápolis (Centro de formação), próximo a Recife, em Benevides.

Em 1967 foi a vez de São Paulo, com a compra do terreno onde surgiria a Mariápolis Araceli, atualmente Mariápolis Ginetta.

Uma das viagens mais significativas de Chiara ao Brasil ocorreu em 1991, quando ela lançou o Projeto Economia de Comunhão (EdC). Já em 1998 ela viu realizado o Pólo empresarial Espartaco, no município de Cotia (SP), nos moldes da EdC e recebeu diversos reconhecimentos de instituições acadêmicas e políticas. No mesmo ano recebeu a comenda da Ordem do Cruzeiro do Sul.

Nos anos seguintes foram implantados no Brasil outros dois pólos empresariais da EdC: em Igarassu (PE) e em Benevides (PA).

Em 2001 foi fundado o Movimento Político pela Unidade também no Brasil, buscando tornar a fraternidade uma categoria política a ser atuada por cidadãos comuns, políticos e pessoas ligadas a esse âmbito.

Hoje o Movimento está presente em todos os Estados brasileiros, conta com cerca de 280 mil pessoas que aderem à sua espiritualidade em mais de 500 cidades, com 55 centros de difusão.


Fonte: 50 anos do Movimento dos Focaloares no Brasil
http://50anos.focolares.org.br/

A ética do solidarismo cristão


A alma da unidade espiritual na comunidade é a religião. O fracionamento espiritual característico de determinadas épocas traduz fracionamento econômico, distanciamento e choque entre classes. E naquelas épocas em que temos um processo cultural de unidade temos também uma base espiritual de unidade e solidariedade social e econômica.

Nesse sentido, há um processo de desenvolvimento que se realiza de forma desigual na história, mas que combina mudanças espirituais e transformações econômicas e sociais.

Seja qual for a opinião ética sobre as relações entre cristianismo, capitalismo e movimentos politicamente divergentes, um fato deve ser ressaltado: é possível e necessário para o cristianismo manter um relacionamento com todas as formações econômicas e sociais.

E se o cristianismo não somente pode, mas deve manter um relacionamento com o pensamento político divergente, devemos nos perguntar se o contrário da premissa é verdadeiro: podem e devem os movimentos com propostas políticas divergentes ter um relacionamento construtivo com o cristianismo?

Quanto à parte das organizações que se opõem ao capitalismo financeiro é necessário ver a atitude que têm em relação ao evangelicalismo protestante e também em relação às igrejas de hierarquia estruturada. A história das igrejas, tanto no que se refere ao catolicismo, como em relação ao protestantismo, é passível de críticas. Suas opções e alianças, ao longo da história, fizeram com que se afastassem e dificultassem seu relacionamento com parte da população excluída de bens e possibilidades.

Tal situação potencializou a crítica da religião instituída. Mas, ao contrário do que parece, o ateísmo e o materialismo são heranças da cultura burguesa crítica e cética. Essas heranças foram adotadas como oposição ao caminho escolhido pelas igrejas européias nos séculos XVIII e XIX. A idéia era extirpar a cosmovisão cristã, medieval e autocrática, a fim de abrir o caminho para um novo mundo, justo e digno.

Embora haja razões históricas para criticar as igrejas, os movimentos de pensamento divergente, à partir da revolução francesa, erraram ao negar a base solidária e comunitária do ideal cristão, tal como pode ser percebida nos Evangelhos. Tal herança errática ainda permanece em movimentos políticos divergentes e está presente em alguns agrupamentos que se mostram hostis ao cristianismo. Hostilidade esta que fere a ética do solidarismo que, na verdade, sempre esteve próxima às propostas das comunidades cristãs dos primeiros séculos.

Assim, se movimentos de pensamento divergente não traduzem oposição essencial com o cristianismo e com as comunidades de fé que vivem o princípio protestante da justiça, os cristãos podem ter uma atitude positiva em relação a esses movimentos.

Aqui, atitude positiva  é a realização dos princípios da solidariedade e da ação cristã a favor da justiça, que entende a necessidade de eliminar as condições que geram miséria e exclusão. Tal atitude traduz a urgência de combater os fundamentos do egoísmo econômico do capitalismo financeiro e de ações para a construção de uma ordem social que, sem deixar de ser globalizada, inclua periféricos e excluídos. Isto porque pensar na contra-corrente do que aí está não é só tarefa de trabalhadores fabris, mas necessidade ética que deve traduzir anseios e esperanças dos mais variados setores da sociedade.

mardi 17 mai 2011

Franz Rosenzweig

Lições de judaísmo

 

Para um diálogo fraterno entre judeus e cristãos é necessário que cada lado conheça não somente o pensamento, mas em especial a cultura e a maneira de sentir do outro. É uma reflexão desse tipo que pretendo fazer aqui, quem sabe em alguns artigos. E hoje vou começar a partir de um filósofo que marcou época: Franz Rosenzweig (1886-1929).

 

Em primeiro lugar é importante olhar o judaísmo não como corpo doutrinário ou estrutura de rituais, mas como experiência que parte do reconhecimento de uma realidade que vai além da existência. Tal vivência para o judeu tem seu momento maior na eleição de Israel, que é visto como pai da experiência com o transcendente para povos e culturas. É claro que há momentos da história em que essa percepção aparentemente se perde, obscurecida pela realidade das nações onde o judeu vive. Mas, mesmo nessas situações, subsiste de forma misteriosa a bênção da presença do povo judeu, que mais tarde brotará abençoando povos e nações e assim cumprindo o mandato que Deus deu ao pai Abraão.

Disse que falaria sobre e a partir de Franz Rosenzweig porque, sem dúvida, temos muito a aprender com ele em matéria de diálogo e fraternidade. Foi um estudioso da teologia protestante liberal de Aldolf Harnack, mas permaneceu judeu porque esta era a religião de seus pais e porque gostava de observar os costumes judaicos e de refletir, à maneira judaica, sobre as histórias bíblicas.

Seu primo, Hans Ehrenberg, se converteu ao cristianismo e foi batizado em 1911. Diante disso, Rosenzweig refletiu sobre sua cultura alemã e escreveu a seus pais dizendo: “Nós somos cristãos em todas as coisas, nós vivemos em um estado cristão, freqüentamos as escolas cristãs, lemos livros cristãos, nossa cultura inteira tem por base uma fundação cristã”, mas isso não fez dele um cristão.

Mais tarde, em 1913, ao discutir a conversão de judeus com Eugen Rosenstock e seus primos Hans e Rudolf Ehrenberg, Rosenzweig disse que até poderia vir a batizar-se, mas colocou uma questão: gostaria de examinar o que significaria aceitar o batismo, o que tal ato representaria diante de seu judaísmo, já que não era um pagão, mas um judeu. Assim, pediu a seus parentes um tempo para reflexão, para pensar e celebrar os dez dias santos que vão do Rosh ha Chanah ao Yom Kippur.

Esses dez dias foram fundamentais para Rosenzweig, pois se transformaram nos dez dias de retorno as suas raízes judaicas. Mais tarde, ele escreveu a Rudolf que a conversão ao cristianismo “parece desnecessária e impossível agora. Eu sou um judeu”.

E fez uma leitura teológica judaica do evento Jesus. Concordou com a presença de Cristo e de sua igreja no mundo, mas afirmou que ninguém vem do Pai, mas através dele. (João 14.6). E que isso é assim em relação ao povo judeu, pois como povo não precisa ir ao Pai, porque já está com ele. Essa é a realidade do povo de Israel, do povo, e não do judeu individual. Assim, Rosenzweig fez uma distinção entre o mundo gentio que precisa conhecer a Deus, e o povo judeu que, em última instância, é a estrela da redenção. Ou como disse:

“Diante de Deus, judeus e cristãos são, por isso, trabalhadores de uma mesma obra. Não se pode prescindir de nenhum dos dois. Entre os dois sempre existiu inimizade, mas ainda assim estão juntos na mais estreita reciprocidade. Assim, a verdade, toda a verdade, pertence tão pouco a eles quanto a nós”. (A Estrela da Redenção, p. 489).

O caráter e a história da sinagoga, para Rosenzweig, são diferentes da igreja, mas não excludentes. Às vezes se chocam, embora estejam juntas na oposição ao paganismo que não tem a revelação por base. Para ele, a revelação é a garantia da vocação permanente, do comissionamento que sustenta e dá sentido tanto à igreja como à sinagoga. Assim, a revelação é a origem objetiva tanto da sinagoga como da igreja, e dá as duas uma orientação firme que, ao mesmo tempo, as diferencia, mas também as une.

Rosenzweig estudou medicina, história e filosofia. Partiu do idealismo alemão e construiu seu próprio pensar teológico. Bebeu em Goethe e Kant, mas seguiu seu próprio caminho. Professor, considerou que só no período do idealismo alemão o professor da filosofia e o filósofo eram um e o mesmo. E de certa forma procurou seguir esta tradição: procurou encontrar sua própria resposta filosófica para as questões da vida e da espiritualidade, sem abandonar suas funções de professor.

Estudou judaísmo com Hermann Cohen (1842-1918), que dava um curso de Filosofia da Religião Judaica na Universidade de Marburg. A partir de Cohen, Rosenzweig passou a utilizar o método da correlação, que mais tarde seria utilizado também por Paul Tillich. Para Rosenzweig a filosofia pecara por ser monista, já que a palavra “e” tinha sido descartada. Assim, a partir da correlação passou a fazer uma nova teologia: Deus e humanidade, humanidade e Deus, Deus e natureza, natureza e Deus.

Repensou seu judaísmo. Reconsiderou as relações em que as coisas se encontram, ampliou seu universo teológico, que antes estava imerso em idéias que se bastavam, presas aos conceitos e às essências. Lançou, assim, bases filosóficas para se olhar o outro como igual, pensamento que mais tarde norteou a ética de Emmanuel Lévinas.

Fontes
Rüdiger Lux, Franz Rosenzweig, 1986. WEB: www.jewishvirtuallibrary.org
N. H. Glatzer, Franz Rosenzweig, His Life and Thought, New York, 1961.
Franz Rosenzweig, The Star of Redemption, tradução William Hallo, University of Notre Dame Press: London, 1985.