Moshe Pinheiro e François
Broussais conversam
Jorge Pinheiro
Moshe Pinheiro, rabino italiano, que viveu em Livorno, no século XVII, foi um dos discípulos mais influentes de Shabbetai Zebi, com quem estudou literatura talmúdica e cabalística (1640-1650). Mas não apoiou as reivindicações messiânicas de Shabbetai Zevi, em 1648. Por volta de 1650, deixou Izmir e se estabeleceu em Livorno, onde se tornou um mestre respeitado.
François Joseph Victor Broussais (1772-1838), médico francês, estudou a relação entre fisiologia e patologia e caracterizou toda patologia como inflamação dos tecidos. Sua noção de fisiologia foi utilizada por Augusto Comte na construção da nascente ciências sociais.
(Paris, 30 de maio de 1830) -- Meu caro Moshe,
a busca da justiça passa por colocarmos no seu devido lugar a questão da
identidade humana. Veja você, será que a existência se reduz a um conjunto de
sensações, de emoções? Não podemos admitir a identidade de uma pessoa se ela
não puder ser percebida pelos sentidos? Se for assim, o cérebro é a causa da
identidade e qualquer outra hipótese é inútil.
Broussais, é gostoso conversar com um gênio da medicina, como você, mas aqui eu
fico com algumas informações de seus colegas. Se no corpo humano existem apenas
fenômenos sucessivos, sem laço que ligue o passado ao presente, como se
explicam o hábito, a associação de idéias e a memória? Ora, é necessário
admitir que existe em nós uma realidade que vai além do cérebro e se liga aos
atos que praticamos. Esta realidade é a própria identidade que expressa a
existência de cada um de nós. E se existe a existência, tenho que
perguntar o que ela é.
Tomando como modelo a complexidade do
mundo, prefiro dizer que devemos ver que existem duas hipóteses: a existência
vai além do corpo ou só existe o corpo e o resto é extensão dele. Mas como
combinar uma indigestão com o arrependimento?
Prefiro dizer: somos substância extensa, divisível e palpável, seguimos e vamos
além do corpo. A existência é essa extensão e cada pessoa tem uma identidade na
existência. Não é uma unidade numérica, mas una por ser simples e indivisível.
Mesmo quando a gente envelhece e o corpo muda, a identidade permanece idêntica
a si mesma. Somos um ao longo do tempo e é esta imutabilidade na existência que
me confere identidade.
Moshe, amigo, você defende o princípio
da coexistência. Você está dizendo que eu sou dois. Um pedaço de mim envelhece,
se desgasta e o outro não muda. Não concordo com isso!
Eu sei muito bem, porque tenho
trabalhado com isso, que o cérebro está ligado à vida mental. Se um paciente
sofre uma lesão cefálica é quase certo que vai sofrer algum tipo de dano
psicológico. Embora ainda não se saiba como, o funcionamento do cérebro, as
emoções e a memória estão relacionados. Embora não possamos correlacionar os
estados psicológicos com os estados cerebrais, sabemos que tal correlação
existe. Por isso eu digo que a vida mental tem origem no cérebro e que a
existência enquanto extensão não existe.
Espera aí, Broussais, me deixa aprofundar os argumentos. A existência está
unida ao corpo e participa da vida do corpo, inclusive para realizar as suas
operações. Mas, também é independente do corpo nas suas funções intelectuais.
Deste modo, a existência pensa e deseja sem a ajuda destes órgãos. Assim, a
existência não está imersa no corpo, é independente sob diversos aspectos.
Lembro-me de que Aristóteles dizia que um ser se conhece por suas operações.
Ora, de onde vêm as idéias? Ser inteligente, pensar são atividades da pessoa ou
da existência? É a existência que trabalha a inteligência. A matéria está presa
às leis da matéria, mas a existência por ser extensiva tem maior liberdade
diante dos impulsos da sensibilidade. A existência goza de livre arbítrio.
A simplicidade que caracteriza os
fenômenos da inteligência impede que afirmemos que o cérebro seja a causa do
pensamento. Mas, é verdade, a inteligência precisa para se expressar de um
cérebro saudável.
Há uma parte do seu argumento que eu
gosto, Moshe, aquela em que você fala da liberdade humana. Só que para falar de
livre arbítrio não é necessário falar de existência. Você disse que a
existência é extensa, una e indivisível, então como ela pensa, como se
relaciona com os cérebros? Além disso, você não explicou o que torna uma
existência a mesma ao longo do tempo.
Bem, amigo Broussais, creio que aqui nossos argumentos se esgotam e explicam os
diferentes caminhos que buscamos para encontrar a justiça. Aqui está a nossa
divergência: para mim, o cérebro é o instrumento de que se vale a existência
para expressar os pensamentos extensos. E tomo como ponto de partida
Aristóteles, quando disse que pensamos sem órgãos, que o entendimento não está
ligado a nenhum órgão, e que pode trabalhar e existir separado do corpo.
Bem, Moshe, já que você citou
Aristóteles, quero terminar esta conversa com um exemplo apresentado por John
Locke. Ele criou uma parábola: um príncipe interrogou-se sobre como seria viver
como um sapateiro. E um sapateiro sonhou em ter uma vida de príncipe. Um dia
eles tiveram a oportunidade de trocar todas as características mentais de
ambos. O corpo do sapateiro passou a ter a memória, conhecimento e atributos
pessoais do príncipe, cujas características mentais migraram para o corpo do
sapateiro.
Depois da troca, a pessoa no corpo do
sapateiro lembrou-se ter sido um príncipe que desejava experimentar a vida de
sapateiro. Ele disse: “Puxa, satisfiz minha curiosidade!” Reconheceu-se como
príncipe e não como sapateiro. E vice-versa. Será isso mesmo?
Mas Locke resolveu complicar um pouco
mais a questão: disse que o príncipe havia cometido um crime horrível, e para
escapar da condenação resolveu recorrer à troca de cérebros. Após a troca, o
crime foi descoberto, e os guardas vieram buscar o culpado. Sem saberem o que
aconteceu, prenderam a pessoa que está no corpo do príncipe, que começou a
gritar se dizendo inocente. A pessoa no corpo do sapateiro, que se reconheceu como
o príncipe criminoso, saltou de alegria por ter escapado da condenação. Ora, se
foi assim, era uma enorme injustiça, pois quem deveria ser condenado era a
pessoa no corpo de sapateiro e não a pessoa no corpo do príncipe.
Com essa parábola, Locke queria mostrar
que a nossa identidade obedece à continuidade do meu cérebro. De acordo com a
teoria proposta por Locke, uma pessoa no passado permanece idêntica a ela mesma
no futuro se forem mantidas a memória e as características individuais dela. A
teoria de Locke afirma que o príncipe no corpo do sapateiro é de fato o
príncipe e, por isso, aquele corpo do sapateiro é culpado pelos crimes do
príncipe, uma vez que lhe é psicologicamente contínuo. E este deveria ser o
veredicto correto: o sapateiro com o cérebro do príncipe é quem deveria ser
condenado.
Locke foi genial, mas eu pergunto: e se
pudéssemos duplicar um cérebro e colocá-lo em corpos diferentes. Esses dois
corpos seriam pessoas iguais ou diferentes? E se fossem diferentes, onde
estaria a base da identidade da pessoa, o que faria dela uma pessoa diferentes
da outra? Logicamente, não o cérebro, mas a existência que cada uma passaria a
viver a partir dos cérebros colocados nos corpos. Com isso, quero dizer que a
identidade de uma pessoa não reside no cérebro apenas, mas na existência que se
vive. Ou seja, é a existência que constrói o nosso cérebro.
É Broussais, talvez aí haja um ponto de
contato entre nós. Talvez essa existência seja a nefeche raiá soprada em nossas narinas, que será construção no
caminhar de nossas experiências, sentimentos, emoções. E se for assim até mesmo
a identidade é uma construção, algo que nos pertence enquanto potência.
A parábola de Lázaro e o homem rico é
uma das passagens mais marcantes referente ao estado do ser humano após a
morte. Aqui se evoca imagens bem ilustrativas de recompensa e juízo. É
interessante notar que o rabino de Nazaré construiu essa parábola para os
fariseus e não para os saduceus. Os saduceus não pensavam existir uma vida
além-túmulo no sentido de céu e inferno, apoiando-se nos conceitos mais
tradicionais do judaísmo do Sheol como o lugar de todos os mortos, sem
diferenciação. A parábola, como todo o texto maior do evangelho de Lucas, discípulo
do nazareno, desde o capítulo quatorze, parece estar bem dirigida aos fariseus,
que tinham expectativas messiânicas e escatológicas desenvolvidas. O ensino,
portanto, tem uma audiência específica. Parece que o tratamento do reino dado pelo
rabino para os saduceus teria uma ótica e ênfase diferente.
Tem sido
comentado que o rabino de Nazaré parece colocar mais ênfase no ensino referente
ao inferno do que propriamente no ensino referente ao céu. Deve-se lembrar,
porém, que o inferno não é o contraponto ou oposto do céu, mas do reino. Nestes
termos, o ensino do rabino é bem dirigido à inclusão dos saduceus. O reinar já
chegou e começa no aqui e no agora. Esta vida no reinar é a “vida das
eternidades”, que começa aqui e continua para sempre. Como a vida do reino é
deixar que o Eterno reine no pessoa e no corpo, o céu é a continuação do reinar
do Eterno, mesmo após a morte.
A morte
não interfere no reinar, apenas modifica a esfera de sua atuação. O ser humano
continua após a morte o seu relacionamento com o Eterno, seja como for o mesmo
-- na intimidade do reinar do Eterno ou na separação do Eterno, o inferno.
Para
tratar a parábola de Lázaro e o homem rico, é necessário ver alguns assuntos do
contexto maior do evangelho do discípulo Lucas, desde o início do capítulo
quatorze. Em geral, uma parábola é dirigida a alguém para evocar uma resposta.
Assim, é necessário compreender o contexto a quem a parábola estava sendo
dirigida e com que motivo foi empregada pelo rabino. Também algumas questões
devem ser colocadas de antemão.
O
contexto maior começa fazendo uma diferenciação entre a prática dos fariseus e
a forma de vida do reinar que o rabino pregava. Desde pelo menos o capítulo
quatorze, o rabino lança uma série de críticas aos religiosos do seu dia. Com
esta crítica, enfatiza o tipo de vida do reinar de Deus, a vida das eternidades,
por sua qualidade.
A
crítica do rabino de Nazaré questiona a confiança de quem tem certeza de que
estará presente no grande banquete escatológico: são os pobres, os coxos e os
cegos que se encaminham ao banquete, porque as pessoas mais óbvias da lista de
convidados estão preocupadas com outros assuntos.
Se um louco pudesse ter transplantado o cérebro lesado por um outro que fosse
são, com certeza pensaria de modo correto. Isto porque a desordem e a
deterioração dos órgãos não lesam a inteligência em si mesma, mas somente a
privam das condições e meios requeridos para o seu funcionamento normal.
Pode-se dizer, então, que o cérebro é a interface entre o espírito e o mundo
material.
Aristóteles, Tomás de Aquino e a maior parte dos espiritualistas não
admitem nas pessoas dois princípios de vida, mas afirmam que além da atividade
consciente e psicológica, a existência inteligente possui também a faculdade de
presidir às funções fisiológicas. Desta maneira, a existência seria o único
princípio de toda a atividade vital do homem, da sua vida vegetativa e
sensitiva e, também, de sua vida propriamente espiritual.
Já vimos que a correlação íntima que existe entre as diversas operações da
existência pensante, sensibilidade, inteligência e vontade, prova a unidade
substancial do princípio de onde elas se originam. Esta mesma correlação se
verifica entre as operações psicológicas e as funções orgânicas.
Uma comoção violenta da existência faz parar a circulação do sangue, o medo
paralisa, e a confiança sustenta as forças físicas, o trabalho intelectual
intenso retarda a digestão, poder-se-ia citar fatos que provam a influência do
físico no moral, e reciprocamente. Demonstrada a união da existência e do
corpo, como se faz esta união? O corpo não existe antes da sua união com a
existência. Da existência, o corpo recebe a sua unidade, a organização, a vida
e atividades próprias, numa palavra, tudo o que faz dele ser humano.
Assim, o corpo apenas se separa da existência pela morte, quando perde todos
estes caracteres, todas as suas determinações específicas, dissolvendo-se nos
elementos químicos de que foi formado. Quanto à existência, sem dúvida que
existirá separadamente do corpo, vivendo a sua vida espiritual mas, sem o
corpo, não mais poderá exercer as faculdades que exigem o concurso dos órgãos
corporais, como a sensibilidade, a percepção externa e a imaginação.
Deste modo se conclui, com Aristóteles, que o corpo é a matéria, e a existência
é a forma, e que a união do corpo com a existência faz um todo verdadeiro e
substancial. É esta união no ser que faz da existência e do corpo um só
princípio de ação, que faz com que não haja ação humana na qual o corpo não
faça a sua parte, nem ação humana tão humilde e material que não repercuta na
existência. É este o princípio que coloca em cheque o racionalismo de
Descartes, expresso na frase: penso, logo, existo.
Com a morte, o corpo se dissolve. Acontecerá o mesmo com a existência e
morreremos inteiramente? O que é a imortalidade?
A imortalidade consiste na sobrevivência substancial e pessoal do eu, na
identidade permanente da existência, que conserva as suas faculdades de
conhecer e amar, sem as quais não há felicidade humana. Após a morte, a
existência mantém a consciência da sua identidade, com as lembranças e
responsabilidades do seu passado, sem as quais não poderia haver nem recompensa
nem castigo: em uma palavra, não existiria o princípio da justiça divina. A
metafísica afirma que a existência é imortal por sua natureza não corruptível.
A razão para a sua sobrevivência após a morte do corpo é demonstrada pelo
argumento moral. Que esta sobrevivência é indefinida e ilimitada, prova-o o
argumento psicológico.
O corpo se desagrega e se dissolve logo que se separa do seu princípio de
unidade, da sua forma substancial que é a existência. A existência ao ser como
é, simples e espiritual, não pode decompor-se nem se desagregar -- não morre,
pois, com o corpo. Este é o argumento metafísico da imortalidade da existência.
Se há o Eterno e lei moral, a justiça exige absolutamente que o crime seja
punido e a virtude seja recompensada. Neste mundo, nem a natureza, nem a
sociedade, nem a própria consciência dispõem de sanções suficientes para
recompensar plenamente a virtude ou punir adequadamente o vício; é necessário,
portanto, que haja outra vida onde a justiça seja plenamente satisfeita, e a
ordem seja estabelecida. Este é o argumento moral, que demonstra a
sobrevivência da existência, mas não prova que esta existência seja ilimitada
na sua duração.
O argumento psicológico, que prova a perseverança da existência humana depois
da morte, assenta sobre o princípio de que o Eterno não se contradiz, por isso
ao dar um fim a um ser, lhe dá também os meios de o atingir. Tudo na natureza
do humano aponta para o fato de que é criado para atingir a felicidade. Mas, se
não pode alcançá-la neste mundo, deve haver outra realidade onde tal projeto se
concretize. E como felicidade pressupõe expansão sem limites, segue-se que a
realidade futura teria esta qualidade.
O ser humano aspira a um objeto infinito, a uma verdade, beleza e bondade
absolutas, cuja posse nos deve fazer felizes. Nossas faculdades superiores
possuem capacidade ilimitada, que não se pode satisfazer fora deste bem
infinito, que não é outro senão o próprio Eterno.
Mas, o que encontramos neste mundo que apague esta sede de felicidade humana,
que preencha o vazio do coração criado para o infinito? A natureza é tão
limitada e o mundo tão pequeno; esta vida é tão curta e a realidade tão
imperfeita! Queremos amar, queremos viver o mais possível, mas encontramos
decepção, dor e morte. Assim, é evidente a desproporção entre os nossos meios e
as nossas necessidades.
O
conceito hades é a expressão grega
utilizada na Bíblia dos setenta para traduzir o termo hebraico sheol,
lugar de continuidade daqueles que deixaram o mundo dos vivos. Na Torá, sheol é
uma expressão de origem incerta, mas que aparece 65 vezes no testamento
hebraico-judaico. O conceito sofreu mudanças ao longo da história da religião
judaica. No rolo de Eclesiastes, por exemplo, nem entra em cogitação a
possibilidade de uma vida além-túmulo. Quando, porém, surge na religião de
Israel a construção do conceito de vida além-túmulo, surge como lugar de
silêncio. O termo sheol, aparece, no entanto, ao lado de outros, como abadon, cujo primeiro significado é
destruição, mas vai ser lido também como reino dos mortos. As duas expressões,
porém, são imprecisas e estão muito vinculadas ao contexto em que estão
inseridas. A idéia geral mais ampla seria de lugar dos que dormem. No rolo do
patriarca Jó, abadon é a
personificação do lugar de destruição. E o tehom, que pode ser traduzido por profundezas, abismo e, inclusive, pela
idéia de deserto são símbolos da religião antiga de Israel para o mundo dos
mortos. E uma das passagens mais ilustrativas do conceito de sheol está no rolo do profeta Isaías.
“O
sheol desde o profundo se turbou por ti, para sair ao teu encontro na tua
vinda; ele despertou por ti os mortos, todos os que eram príncipes da terra, e
fez levantar dos seus tronos todos os que eram reis das nações. Estes todos
responderão, e te dirão: Tu também estás fraco como nós, e te tornaste
semelhante a nós. Está derrubada até o sheol a tua pompa, o som dos teus
alaúdes; os bichinhos debaixo de ti se estendem e os bichos te cobrem. Como
caíste do céu, ó estrela da manhã, filha da alva! Como foste lançado por terra
tu que prostravas as nações! E tu dizias no teu coração: Eu subirei ao céu;
acima das estrelas do Eterno exaltarei o meu trono; e no monte da congregação
me assentarei, nas extremidades do norte; subirei acima das alturas das nuvens,
e serei semelhante ao Altíssimo. Contudo levado serás ao sheol, ao mais
profundo abismo.”
O
contraste entre o desespero que se agarrava às existências dos homens no sheol, e a esperança que surgia pela esperança
da ressurreição, está expressa no apocalipse do profeta Isaías. Ele diz com
respeito aos ímpios: “Os falecidos não
tornarão a viver; os mortos não ressuscitarão; por isso os visitastes e
destruístes, e fizeste perecer toda a sua memória”. E tomado pela esperança
declara que “os teus mortos viverão, os
seus corpos ressuscitarão. Despertai e exultai, vós que habitais no pó, porque
o teu orvalho é orvalho de luz”. O ser levantado para a vida é realidade do
Eterno e do coração reto humano diante do Eterno. No texto cristão do
Apocalipse, a morte e o hades são
jogados no lago de fogo e sua força sobre a existência é aniquilada, de forma
que tais poderes ficam sob o domínio do Eterno.
Ao
retratar o conceito de inferno, com o emprego de termos como sheol e hades, os limites dos conceitos estão determinados pelas conotações
das cosmologias antigas. Na cosmovisão hebraica de universo, o sheol fazia
parte do mundo subterrâneo. O rabino de Nawaré trabalha a partir dessa
cosmovisão, mas sua intenção na parábola não é realçar a dimensão espacial, mas
a realidade relacional. Por isso, inferno não é tanto dimensão espaço-temporal,
mas estado de solidão, separação, do Adon da vida. A leitura hebraico-judaica
realçava o conceito normativo de retribuição. O justo recebia recompensa
material, e o injusto carecia de bens, prazeres e saúde. Ricos eram
naturalmente abençoados pelo Eterno e dignos do reino messiânico. Mas o rabino
de Nazaré desconstrói essa normatização e nomeia o mendigo. É interessante notar
que o pobre tem nome, é Lázaro, mas o rico não.
Lázaro é
Eliezer, aquele a quem o Eterno ajuda. É grego transliterado. Ter nome compõe
identidade, nomeia o quem é quem. Há aí distinção entre o valor da vida do
pobre em relação ao rico. Naquela sociedade o rico tinha destaque, e atuava com
desprezo frente ao mendigo. O Eterno, porém, o socorre. O rabino de Nazaré faz,
assim, críticas às práticas dos fariseus: a negligência para com os
despossuídos de bens e direitos, o fazer bem aos que podem retribuir, o orgulho
e a infidelidade à lei, que exige amor ao próximo. O ensino do rabino nos
últimos capítulos do evangelho do discípulo São Lucas está resumido nesta
parábola.
O rabino
de Nazaré fala da vida e embora trabalhe dentro da cosmologia hebraica antiga,
levanta algumas questões que direcionam o pensar além-túmulo: há consciência do
estado, memória, juízo imediato, mesmo que intermediário, o que implica em
alguma forma de retribuição. Há conforto para os justos oprimidos, não há
mudanças no juízo, e a informação para receber o descanso está na lei e nos
profetas. Assim, o Eterno se preocupa com aqueles descartados pela sociedade.
Não há retorno para esta vida terrestre após a morte. A confiança no Eterno é o
único mérito de Lázaro, que se expressa no nome que tem. A vida neste mundo é
de pouca valia quando se passa à dimensão além-túmulo.
Uma
pergunta que provém do estudo da parábola pode bem ajudar a redefinir as
prioridades do quotidiano. Que diferença faz a presente circunstância ou forma
de atuar em termos de vida daqui a dez mil anos? Em certo sentido, é esta a
pergunta do rabino aos fariseus através desta e outras palavras de ensino. Em
outra passagem se registra as palavras do rabino em reação à preocupação de ter
um corpo inteiro na ressurreição -- para tal queriam guardar qualquer parte do
corpo que fosse amputado para ser incluído com o resto do corpo no sepultamento.
Nesse contexto, o rabino de Nazaré diz que é melhor arrancar e jogar o olho
fora se fizer a diferença no ingressar no reinar de Deus. Muito melhor viver no
reino coxo, cego, ou aleijado do que perder o reino por completo.
Logo, se há um Eterno sábio e justo, esta contradição não pode ser definitiva;
deve haver outra vida onde se restabeleça o equilíbrio entre o que desejamos e
o que podemos, uma vida em que sejamos perfeitamente felizes. A duração
ilimitada da imortalidade constitui o elemento essencial da felicidade
completa; não se pode gozar plenamente um bem quando receamos perdê-lo. A
incerteza dói tanto mais quanto maior é o bem possuído.
Logo, a vida futura da existência, a
imortalidade, não tem fim, é infinita e ilimitada, e a sua tendência natural é
a prática da virtude, em conformidade com os desígnios do seu criador, o Eterno.