O filósofo e escritor esloveno Slavoj Zizek visitou o acampamento do movimento Ocupar Wall Street, no parque Zuccotti, em Nova York, e falou aos manifestantes. “Estamos testemunhando como o sistema está se autodestruindo. Quando criticarem o capitalismo, não se deixem chantagear pelos que vos acusam de ser contra a democracia. O casamento entre a democracia e o capitalismo acabou". Leia a íntegra do pronunciamento de Zizek,
com tradução do meu amigo Luis Leiria para o Esquerda.net
Slavoj Zizek
Durante o crash financeiro de 2008, foi
destruída mais propriedade privada, ganha com dificuldades, do que se todos nós
aqui estivéssemos a destruí-la dia e noite durante semanas. Dizem que somos
sonhadores, mas os verdadeiros sonhadores são aqueles que pensam que as coisas
podem continuar indefinidamente da mesma forma.
Não somos sonhadores. Somos o despertar de um
sonho que está se transformando num pesadelo. Não estamos destruindo coisa
alguma. Estamos apenas testemunhando como o sistema está se autodestruindo.
Todos conhecemos a cena clássica do desenho
animado: o coiote chega à beira do precipício, e continua a andar, ignorando o
fato de que não há nada por baixo dele. Somente quando olha para baixo e toma
consciência de que não há nada, cai. É isto que estamos fazendo aqui.
Estamos a dizer aos rapazes de Wall Street:
“hey, olhem para baixo!”
Em abril de 2011, o governo chinês proibiu, na
TV, nos filmes e em romances, todas as histórias que falassem em realidade
alternativa ou viagens no tempo. É um bom sinal para a China. Significa que as
pessoas ainda sonham com alternativas, e por isso é preciso proibir este sonho.
Aqui, não pensamos em proibições. Porque o sistema dominante tem oprimido até a
nossa capacidade de sonhar.
Vejam os filmes a que assistimos o tempo todo.
É fácil imaginar o fim do mundo, um asteróide destruir toda a vida e assim por
diante. Mas não se pode imaginar o fim do capitalismo. O que estamos, então, a
fazer aqui?
Deixem-me contar uma piada maravilhosa dos
velhos tempos comunistas. Um fulano da Alemanha Oriental foi mandado para
trabalhar na Sibéria. Ele sabia que o seu correio seria lido pelos censores,
por isso disse aos amigos: “Vamos estabelecer um código. Se receberem uma carta
minha escrita em tinta azul, será verdade o que estiver escrito; se estiver
escrita em tinta vermelha, será falso”. Passado um mês, os amigos recebem uma
primeira carta toda escrita em tinta azul. Dizia: “Tudo é maravilhoso aqui, as
lojas estão cheias de boa comida, os cinemas exibem bons filmes do ocidente, os
apartamentos são grandes e luxuosos, a única coisa que não se consegue comprar
é tinta vermelha.”
É assim que vivemos – temos todas as liberdades
que queremos, mas falta-nos a tinta vermelha, a linguagem para articular a
nossa ausência de liberdade. A forma como nos ensinam a falar sobre a guerra, a
liberdade, o terrorismo e assim por diante, falsifica a liberdade. E é isso que
estamos a fazer aqui: dando tinta vermelha a todos nós.
Existe um perigo. Não nos apaixonemos por nós
mesmos. É bom estar aqui, mas lembrem-se, os carnavais são baratos. O que
importa é o dia seguinte, quando voltamos à vida normal. Haverá então novas
oportunidades? Não quero que se lembrem destes dias assim: “Meu deus, como
éramos jovens e foi lindo”.
Lembrem-se que a nossa mensagem principal é:
temos de pensar em alternativas. A regra quebrou-se. Não vivemos no melhor
mundo possível, mas há um longo caminho pela frente – estamos confrontados com
questões realmente difíceis. Sabemos o que não queremos. Mas o que queremos?
Que organização social pode substituir o capitalismo? Que tipo de novos líderes
queremos?
Lembrem-se, o problema não é a corrupção ou a
ganância, o problema é o sistema. Tenham cuidado, não só com os inimigos, mas
também com os falsos amigos que já estão trabalhando para diluir este processo,
do mesmo modo que quando se toma café sem cafeína, cerveja sem álcool, sorvete
sem gordura.
Vão tentar transformar isso num protesto moral
sem coração, um processo descafeinado. Mas o motivo de estarmos aqui é que já
estamos fartos de um mundo onde se reciclam latas de coca-cola ou se toma um
cappuccino italiano no Starbucks, para depois dar 1% às crianças que passam
fome e fazer-nos sentir bem com isso. Depois de fazer outsourcing ao trabalho e
à tortura, depois de as agências matrimoniais fazerem outsourcing da nossa vida
amorosa, permitimos que até o nosso envolvimento político seja alvo de
outsourcing. Queremos ele de volta.
Não somos comunistas, se o comunismo significa
o sistema que entrou em colapso em 1990. Lembrem-se que hoje os comunistas são
os capitalistas mais eficientes e implacáveis. Na China de hoje, temos um
capitalismo que é ainda mais dinâmico do que o vosso capitalismo americano. Mas
ele não precisa de democracia. O que significa que, quando criticarem o
capitalismo, não se deixem chantagear pelos que vos acusam de ser contra a
democracia. O casamento entre a democracia e o capitalismo acabou.
A mudança é possível. O que é que consideramos
possível hoje? Basta seguir os meios de comunicação. Por um lado, na tecnologia
e na sexualidade tudo parece ser possível. É possível viajar para a lua,
tornar-se imortal através da biogenética. Pode-se ter sexo com animais ou
qualquer outra coisa. Mas olhem para os terrenos da sociedade e da economia.
Nestes, quase tudo é considerado impossível. Querem aumentar um pouco os
impostos aos ricos? Eles dizem que é impossível. Perdemos competitividade.
Querem mais dinheiro para a saúde? Eles dizem que é impossível, isso
significaria um Estado totalitário. Algo tem de estar errado num mundo onde vos
prometem ser imortais, mas em que não se pode gastar um pouco mais com cuidados
de saúde.
Talvez devêssemos definir as nossas prioridades
nesta questão. Não queremos um padrão de vida mais alto – queremos um melhor
padrão de vida. O único sentido em que somos comunistas é que nos preocupamos
com os bens comuns. Os bens comuns da natureza, os bens comuns do que é
privatizado pela propriedade intelectual, os bens comuns da biogenética. Por
isto e só por isto devemos lutar.
O comunismo falhou totalmente, mas o problema
dos bens comuns permanece. Eles dizem-nos que não somos americanos, mas temos
de lembrar uma coisa aos fundamentalistas conservadores, que afirmam que eles é
que são realmente americanos. O que é o cristianismo? É o Espírito Santo. O que
é o Espírito Santo? É uma comunidade igualitária de crentes que estão ligados
pelo amor um pelo outro, e que só têm a sua própria liberdade e responsabilidade
para este amor. Neste sentido, o Espírito Santo está aqui, agora, e lá em Wall
Street estão os pagãos que adoram ídolos blasfemos.
Por isso, do que precisamos é de paciência. A
única coisa que eu temo é que algum dia vamos todos voltar para casa, e vamos
voltar a encontrar-nos uma vez por ano, para beber cerveja e recordar
nostalgicamente como foi bom o tempo que passámos aqui. Prometam que não vai
ser assim. Sabem que muitas vezes as pessoas desejam uma coisa, mas realmente
não a querem. Não tenham medo de realmente querer o que desejam. Muito obrigado
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