A vida, uma leitura
radical
Jorge Pinheiro
Um dos temas
centrais da mídia, hoje, é a violência. Tal fato nos leva a pensar e a viver
como se a vida não tivesse a menor importância ou valor. E em nome de
doutrinas, políticas e religiões, gentes são transformadas em bombas humanas,
assassinos seriais, legais ou não, que espalham a dor, o sofrimento e a morte.
Nesse clima de ódio e violência, é importante dizer que a primeira teologia das
Escrituras hebraicas, e posteriormente cristãs, construída para o ser humano no
bojo da teologia da criação, é a teologia da vida.
Deus fez o humano como semelhante, cheio de parecença, para ser como
Ele e com Ele, para curtir o mundão criado, fazer sexo, ter filhos, produzir
criativamente. E Deus contou isso aos humanos e um dia isso foi registrado lá
em Bereshit, o livro primeiro das Escrituras. E é interessante que quem
registrou a história que ouviu dos antepassados disse que Deus curtiu a beça
tudo aquilo. Achou genial o que tinha feito, tanto que deu por terminado o seu
trabalho e foi descansar.
As histórias se multiplicam. Há histórias que falam da importância
da vida nas Escrituras hebraicas, e há histórias sobre a vida e sua
singularidade nas tradições de gentes e povos. Na tradição judaica, conta-se
que quando os escravos fugiram do Egito com os soldados egípcios correndo atrás
deles e já estavam atravessando o Mar Vermelho, anjos resolveram cantar um hino
de gratidão a Deus, mas o Eterno não permitiu e disse: Eu criei o ser humano,
cada um deles é minha criação, como poderei cantar se muitos vão se afogar
neste mar? Eis a universalidade da vida: fomos criados por Deus, todos somos
parecença, quer escravos hebreus ou soldados egípcios. A teologia entende isso:
a vida é direito universal porque Deus ama a pessoa, todas as pessoas -- foram
feitas por Ele e têm o jeitão dele.
Nesse sentido, a partir da teologia da vida podemos dizer que não há
diferença entre judeu e grego, cada pessoa ocupa um lugar especial no coração
de Deus, para Ele é como se todos fôssemos únicos.
O respeito pela
vida de cada um e de todos e a negação do ódio e da violência: direcionam a
teologia da vida. Criar e educar pessoas traduz-se em ensinar, em primeiro
lugar, que quem destrói uma única vida destrói todas e a própria criação. E
quem cuida e salva uma única vida salva o mundo. Cuidar e salvar pessoas é
semear a paz para que ela reine entre os seres humanos. Para que ninguém possa
dizer: o meu pai é maior do que o teu pai.
Voltando ao primeiro livro das Escrituras hebraicas, vemos que ele
se descreve como o livro da história humana. E é interessante o que esse livro
fala da criação e da história do primeiro casal: Da-terra e A-vida. Este é
sentido dos nomes Hadam e Hawah. A construção dessas duas pessoas, Da-terra e
A-vida, ao se dar no final do processo de surgimento do universo, mostra o
valor que têm para Deus: são menores, aparentemente pequenos, mas valem muito,
pesam tanto quanto todo o universo. A história humana é a história de uma
pessoa, de duas pessoas, de todas as pessoas.
E será que eu posso fazer da minha mulher, escrava. Ou, em outras
palavras, posso explorá-la? Não, não posso. Será que posso fazer dos meus pais,
escravos. Ou, em outras palavras, posso explorá-los? Não, não posso. Será que
posso fazer de meus filhos escravos. Ou, em outras palavras, posso explorá-los?
Não, não posso. E por quê? Porque devo amar o humano como semelhante, como
igual. Esteja ele ao lado ou distante, é sempre próximo. Este princípio é
fundamental na teologia da vida. As relações humanas implicam em reciprocidade,
deve levar ao companheirismo, ao fundamento de origem: Da-terra e A-vida estão
por trás de toda a humanidade.
As Escrituras hebraicas nos falam da obrigação de amar o
estrangeiro, ou seja, aquele que nos parece totalmente diferente. Esse é o princípio
da paz entre os povos. Por isso, a teologia da vida propõe que a paz prevaleça,
seja formulada como lei a obrigação de cuidar e proteger os diferentes e as
minorias. Este é o sentido maior da justiça.
Assim, se perguntarem: um homem pode explorar pai, mãe, mulher,
filhos? Sabemos que a resposta é não. E de novo a pergunta: um homem pode
explorar aquele que é diferente dele por credo, raça, sexo ou sob qualquer
outro aspecto? Muitos acharão que sim. Mas quando tenho em minha frente uma
pessoa, tenho um igual e, por mais diferente que seja, é meu irmão. Ser justo é
reconhecer a liberdade dele, seus direitos e cuidar para que tenha uma vida
digna, como humano que é.
O respeito e o cuidado por tudo aquilo que é humano, pelo ser, por
sua terra e vida, é teologia radical, que nasce da compreensão de que somos
semelhantes, cheios de parecença com Deus. A imagem está em um, em dois, em
todas as pessoas.
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