O desafio maior para quem lê é o próprio
exercício da leitura. O desejo de conservar o texto em sua aparente
literalidade geralmente leva a um caminho oposto àquele que se pretende. Ou
seja, é necessário atravessar o texto por diferentes caminhos. É necessário,
sem dúvida, lê-lo a partir de sua literalidade, que é nossa primeira leitura.
Mas a literalidade nos leva ao símbolo, às imagens que são trasmitidas pelas
palavras ou conjunto de palavras. Por isso, o que parece simples e claro,
geralmente não é, já que as palavras são imagens e símbolos.
Necessitamos a hermenêutica da
complexidade para melhor compreender as relações entre a simbologia da revelação
e a interpretação e suas expressões estruturais e organizacionais. Essas
estruturas são sistemas complexos constituídos por agentes interativos com uma
tendência aparente para a auto-organização, pois os crentes nas religiosidades
judaico-cristãs são adaptativos, de modo que as regras de seus comportamentos
mudam à medida que eles aprendem. Na verdade, esse mundo religioso
judaico-cristão não é aquele representado pela metáfora de uma máquina. As
coisas são mais do que a soma de suas partes: equilíbrio é morte, causas são
efeitos e efeitos são causas, desordem e paradoxo estão em toda a simbologia da
revelação.
Vejamos um exemplo simples, durante séculos os cientistas
descreveram o mundo como semelhante a uma máquina, governando o mundo estavam
os princípios de regularidade e ordem. Todas as coisas pareciam a soma das
partes: as causas e efeitos estavam ligados linearmente e os sistemas se moviam
de modo determinista e previsível. Mas, com o passar do tempo, os cientistas viram
que existiam fenômenos que contradiziam a lógica linear: as formas espirais das
chamas de fogo, os redemoinhos em correntes e as formações de nuvens, por
exemplo, não podiam ser representadas por simples equações lineares.
E
a travessia dos textos bíblicos nos mostraram que, para além da linearidade do
texto, existe a leitura simbólica que nos remete às construções teológicas.
Assim, se existe a realidade imediata do “deserto” como lugar árido, seco e de
difícil sobrevivência, a imagem “deserto” nos remete ao conceito teológico de
que espiritualmente e, mesmo existencialmente, muitas vezes, somos desafiados a
através o “deserto” que não é literal, é simbólico, mas que também existe.
Por
isso, falamos de travessias do texto bíblico. Essas travessias fazem diferentes percursos: o literal, o simbólico, o ecológico, o ético, o estético, entre outros, e o do futuro.
Ora, quando lemos o texto numa primeira vez, sem dúvida, somos obrigados a
partir da literalidade dele. E para mergulhar nessa literalidade devemos
utilizar recursos de análise e intepretação como, por exemplo, pesquisar as
condições e época em que foi escrito, a quem foi dirigido e com que finalidade.
Mas também os recursos literários que foram utilizados na sua construção, ou
seja, verbos, substantivos, adjetivos, e expressões idiomáticas, por exemplo. E
palavras-chave que se destacam no texto serão importantes na compreensão dessas travessias, porque podem e devem ser cruzadas com outras presentes em diferentes textos, o que nos remeterá às imagens e aos símbolos
construtores de um conceito teológico -- como vimos no caso de
“deserto”.
O
conceito teológico, porém, vai apontar para outros caminhos. O que essa proposta
teológica está sugerindo que eu faça? Esse caminho aponta paras as travessias ecológica, ética, estética, que
me exortam a viver de determinada maneira, a partir da travessia teológica. E se
eu vivo de determinada maneira, a partir das travessias ecológica, ética, estética propostas pela travessia
teológica, esse caminhar ecológico, ético, estético apontam para um futuro. Esses são algumas travessias possíveis do texto
bíblico. São vias que remetem ao meu futuro e da minha comunidade, que brotam da teologia, que por sua vez nascem da literalidade do texto.
A
esse conjunto de travessias, que fazem a riqueza da leitura e compreensão não
linear do texto escriturístico é a complexidade hermenêutica. Essa expressão encerra elementos, conjunto de informações, fatos e
circunstâncias que têm nexo entre si, mas que navegam num mar aparentemnete
caótico, que pode ser entendido como o vazio obscuro e ilimitado que precede e
propicia a geração das compreensões do texto para a vida de uma pessoa ou de
uma comunidade. Na construção das leituras complexa do texto, partindo da literalidade,
podemos ir mais fundo ainda nesta construção dessas compreensões se vermos
complexidade e caos como aqueles comportamentos imprevisíveis que aparecem em
sistemas regidos por leis. Assim, determinadas questões teológicas são
praticamente impossíveis de serem compreendidas numa abordagem tradicional de
causa-efeito, por exemplo, o sistema ecológico presente no sexto dia da criação, em Gênesis, ou as propostas sanitárias de Deuteronômio. Mas as dificuldades, às vezes, são atribuídas à impossibilidade
de se isolar os ruídos externos ao sistema teológico como, por exemplo, a presença dos dogmas
confessionais que, muitas vezes, levam às distorções de compreensão.
As compreensões, então, para questões
teológicas nem sempre estão na procura de mais informações para tentar encontrar
uma relação de causa-efeito, mas em entender quais regras básicas regem o
comportamento do sistema simbólico de nossa religiosidade judaico-cristã, que
tipo de retroalimentação existe, de que forma esta retroalimentação atua no
sistema e o tipo e duração dos ciclos de retroalimentação. Isso é o que chamamos
de hermenêutica da dinâmica não-linear ou hermenêutica da complexidade para uso
na teologia, onde o caos se refere às áreas de instabilidade de fronteira, o
que para nós significa, em termos teológicos, que se move entre o equilíbrio de
um lado, em especial a revelação, e a complexa situação randômica da
construção da realidade.
Por isso, dizemos que uma hermenêutica da
complexidade deve levar em conta que se antes, na modernidade, a
interpretação foi entendida como aparato de retroalimentação negativo, que
possibilitou a construção de dogmáticas confessionais e encaminhou fiéis na
direção da correção de seus desvios do plano traçado, à luz da hermenêutica da
complexidade o quadro é mais rico. As interpretações de origem iluminista não estão
corretas, hoje, nem para leituras ligadas às rotinas do viver diário e, muito menos, no que tange às construções de conhecimentos que respondam às necessidades das confissões
judaico-cristãs no mundo da alta modernidade -- elas se encontram em crise. Os
resultados de suas ações não podem ser definidos porque as estruturas dos sistemas religiosos tornam o futuro impossível de ser controlado. O corolário é que o
dogma viável não é mais o resultado de um intento prévio de um intérprete
visionário, mas emerge das múltiplas possibilidades lançadas por várias
dinâmicas em colisão entre a vida humana e o texto. Assim, nós leitores deveríamos
pensar como jardineiros e, em vez de deliberar, deveríamos trabalhar
possibilidades.
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