samedi 12 janvier 2013

Escravidão e negritude na construção da família brasileira

Uma leitura a partir de Gilberto Freyre 
Prof. Dr. Jorge Pinheiro[1], 


"Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, 
traz na alma, quando não na alma e no corpo 
– há muita gente de jenipapo ou mancha mongólica pelo Brasil – 
a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro". 

Gilberto Freyre, Casa-Grande e Senzala. 

Introdução 

Ao percorrer os caminhos da afrobrasilidade ao longo dos últimos três séculos encontramos as raízes que explicam encontros e desencontros do processo civilizatório vividos na formação da nacionalidade. A questão afro é uma das principais delas. E por não ter sido solucionada a contento, as bandeiras da emancipação, da democracia e da justiça social continuam urgentes hoje tanto quanto em épocas passadas. Essas bandeiras, sociais e políticas, traduzem a fragilidade do movimento evangélico no Brasil, que, apesar de ter crescido muito, pouco tem feito em relação aos deserdados e excluídos. 

Negra escrava, foto de Alberto Henschel, 1870

“Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam nossos sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca de influência negra. Da escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos deu de comer, ela própria amolengando na mão o bolão de comida. Da negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de mal-assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho-de-pé de uma coceira tão boa. Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama-de-vento, a primeira sensação completa de homem. Do moleaue que foi nosso primeiro companheiro de brinquedo”.[2]

Em razão da ideologia do ocultamento, é necessáriio entender que as bandeiras emancipatórias são indissociáveis da pregação das boas novas, e precisam ser vividas como tradução do cristianismo que professamos. Assim, ética cristã e democracia não podem ser olhadas como excludentes. Ao contrário, se complementam e precisam ser vivenciadas na Igreja e além-muros, se desejamos fazer com que o significado histórico do projeto protestante evangélico marque nossa presença no futuro da nação. 

2. A presença da mulher negra 

Joaquim Nabuco foi o primeiro brasileiro a apresentar uma visão globalizadora de nossa formação histórica. E o fez numa pequena obra de propaganda: O Abolicionismo. Nela, ele mostrou que a escravidão, que durou três séculos, não constituía um fenômeno a mais, de modo que deveria ser analisado em igualdade de condições com a monocultura e a grande propriedade agrária. 

“Foram essas Minas e Fulas – africanas não só de pele lais clara, como mais próximas, em cultura e ´domesticação´ dos brancos – as mulheres preferidas, em zonas como Minas Gerais, de colonização escoteira, para ´amigas´, ´mancebas´ e ´caseiras´dos brancos. Ilustres famílias daquele Estado, que ainda guardam traços negróides, terão tido o seu começonessa união de brancos e negras Minas, vindas da áfrica como escravas, mas aqui elevadas à condição de, segundo testeminho de Vaía Monteiro, de ´donas de casa´. Outras terão permanecido escravas, ao mesmo tempo que amantes dos senhores brancos: ´preferidas como mucamas e cozinheiras´”.[3]

Para Nabuco, foi a escravidão que formou o Brasil como nação. Ela é a instituição que ilumina a compreensão de nosso passado. E é a partir dela que se definiram entre nós a economia, a organização social, a estrutura de classes, o Estado, o poder político e a própria cultura. 

A escravidão foi a protagonista por excelência da história brasileira. Historiadores, sociólogos e antropólogos começam a entender assim; porém, como representantes da Igreja, nós protestantes, raramente reconhecemos essa dívida intelectual, cultural e social. 

O autoritarismo tão típico de nossa elite, a dificuldade na construção da cidadania e a exclusão social estão intimamente ligadas a esses 370 anos de escravidão e são as heranças trágicas da brasilidade. 

“Não há escravidão sem depravação sexual. É da essência mesma do regime. Em primerio lugar, o próprio interesse econômico favorece a depravação criando nos proprietários de homens imoderado desejo de possuir o maior número de crias. Joaquim Nabuco colheu em uma manifesto escravocrata de fazendeiros as seguintes palavras, tão ricas de significação: ´a parte mais produtiva da propriedade escrava é o ventre gerador´”.[4]

Nossa multicultura é relacional. Isto siginifica que é pouco intervencionista diante de uma sociedade civil incipiente, onde a interação entre o público e o privado se figura flexível e amorfa. Por isso, na multicultura brasileira, as relações dentro das classes e, muitas vezes, entre elas se mostram mais gratificantes do que os motivos e fins que deram origem a essas relações. E os seus códigos devem ser entendidos a partir de uma chave dupla: é necessário partir das matrizes antropológicas. E as matrizes antropológicas foram construídas a partir da polaridade de dois mundos e de duas realidades que têm suas origens com a escravidão: a casa, enquanto dimensão social permeada de valores, de espaços exclusivos e lugar moral, e a rua, enquanto movimento, trabalho, tripalium[5]. Essa situação traduz a relação existente entre senhores e escravos. 

A afirmação antropológica do padre Antonil, nosso primeiro economista, no século XVIII, de que “o Brasil é um inferno para os negros, um purgatório para os brancos e um paraíso para os mulatos” não é uma constatação biológica[6]. Era um inferno para os negros porque para estes não havia esperança a não ser a morte, geralmente prematura. Para os portugueses era o purgatório porque estes acreditavam na possibilidade de fazer fortuna e voltar a Portugal. E era um paraíso para os mulatos porque estes já livres da escravidão: podiam transitar entre brancos e negros, crescendo em importância social pelo papel mediador que lhes era confiado. 

Assim, o paraíso aqui foi definido como resultante de um relacionamento cultural. Locus do mulato ou mulo, animal ambíguo, híbrido, incapaz de reproduzir-se enquanto tal. Apesar da grosseria racista do termo, será ele aquele que rompe a dualidade cultural, tão típica das sociedades protestantes e calvinistas, que opõe bem e mal, deus e diabo. Aqui, ao contrário, com a construção da cultura afrobrasileira e com o mulato, dá-se a síntese que traduz nossa cultura relacional. 

Ótimo exemplo é o nosso Macunaíma, um herói sem nenhum caráter, de Mário de Andrade. Nos países de cultura protestante, o negativo é o que está no meio. Aqui, o que está no meio é a virtude. 

Antonio Manzatto (1994) analisa a antropologia dos personagens amadianos. Para ele, Jorge Amado vai além do regionalismo e realiza uma síntese magistral da identidade do brasileiro, extrapolando os marcos estéticos da literatura, para formalizar as bases da cultura relacional afrobrasileira, embora não faça a crítica do que se esconde atrás e por baixo da aparente cordialidade do brasileiro. 

A cultura relacional esconde a injustiça social[7] e a opressão sexual. Afirmamos que o Brasil foi formado por três matrizes: brancos, índios e negros, o que, filtrado pela cultura relacional, leva a uma ilusão, a uma mentira, como se brancos, índios e negros tivessem optado pela construção do país. A verdade é que portugueses brancos e aristocráticos exterminaram índios e escravizaram negros. 

“A ama negra fez muitas vezes com as palavras o mesmo que com a comida: machucou-as, tirou-lhes as espinhas, os ossos, as durezas, só deixando para a boca do menino as sílabas moles. (...) A linguagem infantil brasileira, e mesmo a portuguesa, tem um sabor quase africano: cacá, pipi, bumbum, tentém, neném, tatá, papato, lili, mimi, au-au, bambanho, cocô, dindinho, bimbinha”.[8]

Claude-Lévi Strauss em O cru e o cozido (1964) nos leva a conhecer, por meio de uma abordagem estruturalista, como foi determinante no desenvolvimento da humanidade a passagem da alimentação crua para a cozida. A partir do título de inspiração culinária, Claude-Lévi Strauss refere-se às exigências do corpo e aos laços elementares que o ser humano mantém com o mundo. Assim, através da oposição aparentemente trivial entre o cru e o cozido, apresenta a força lógica de uma mitologia da cozinha, tal como concebida pelas tribos sul-americanas. Depois, traz a tona as propriedades gerais do pensamento mítico, onde descobrimos uma filosofia da sociedade e do espírito. E é interessante que este pensamento mítico vai empapar a cultura relacional brasileira. 

“No regime alimentar brasileiro, a contribuição africana afirmou-se principalmente pela introdução do azeite-de-dendê e da pimenta-malagueta, tão característicos da cozinha baiana; pela introdução do quiabo; pelo maior uso da banana; pela grande variedade na maneira de preparar a galinha e o peixe”.[9]

No Brasil há um código relacional que traduz uma equivalência entre comida e sexualidade, que tem como fundamento o prazer, e apresenta novos parâmetros para o cru e o cozido, relacionando alimento, comida e sexo. 

“Um dos característicos da cozinha ortodoxamente afro-brasileira é fazer acompanhar de verduras – de quiabo, couve, taioba, jerimum – os seus quitutes de peixe, de carne, de galinha”.[10]

Para a cultura afrobrasileira, alimento é o que mantém os seres vivos, a comida, aquilo que dá prazer, e o sexo é sempre um tipo de comida. O alimento é geral e universal, mas a comida dá identidade e, como conseqüência, quem come tem o controle. O alimento é aquilo que é difícil de engolir, já a comida é arroz com feijão, síntese da afrobrasilidade. Herdeiros que somos das culturas das irmandades de angolanos, benguelas, jejes, nagôs e outras, onde o cuidado pela preservação vida da comunidade cabia à mulher, na cultura afrobrasileira é ela quem faz a mistura e quem dá a comida. E mulher é dona Flor, moquequeira dengosa, articuladora de temperos, de cama e mesa. Ou Gabriela, de cravo e canela. 

3. A presença do homem negro 

Na cultura relacional afrobrasileira, o tempo vivido disputa com tempo lembrado. O tempo vivido é a rua, o movimento, é o tripalium. O tempo lembrado é o sonho, é o que foi e que deveria continua a ser. O tempo vivido é o suor e o cansaço. 

“Notou o abade Étienne aue o islamismo ramificou-se no Brasil em seita poderosa, florescendo no escuro da senzala. Que daáfrica vieram mestres e pregadores a fim de ensinarem a ler no árabe os livros do Corão. Que aqui funcionavam escolas e casas de oreção maometanas”.[11]

A festa é a ruptura do tempo vivido. É o momento em que o corpo deixa de ser gasto pelo tripalium e é gasto pelo prazer. Talvez por isso, o maior acontecimento relacional da afrobrasilidade é o carnaval. É o momento do contrário. Troca-se o dia pela noite, a casa pela rua. A regra é o excesso. Não é uma festa de máscaras mas de fantasias. É uma leitura da liberdade considerada fim das regras e convenções. Vive-se o fim da miséria, o fim da escravidão, o fim do pelourinho. É a utopia socialista em versão brasileira. Todos somos iguais diante da possibilidade do prazer. 

“Os reis do Congo eleitos no Brasil rezam a Nossa Senhora do Rosário e trajam à moda dos brancos; eles e seus súditos conservam, é certo, as danças do seu país: mas nas suas festas admitem escravos africanos de outras regiões, crioulos e mulatos que dançam da mesma maneira; essas danças atualmente são mais danças nacionais do Brasil do que da África”.[12]

Os códigos da afrobrasilidade caminham a par com a questão racial. A solução relacional para a injustiça social é a miscigenação e para a opressão sexual, o sincretismo. A oposição entre cultura latina, cultura indígena e cultura negra não se tornaram irreconciliáveis, mas deram origem a uma síntese, que é a cultura popular afrobrasileira. 

Essa cultura mestiça, essa síntese, é entendida como a maneira de o brasileiro viver a vida, seu gosto pela festa, pela música, pela dança, pela comida e pelo sexo. Mostra uma forma de viver em que a vida não é algo acabado e definido, mas que se vai construindo no concreto do cotidiano vivido. Essa é uma característica muito especial da cultura relacional afrobrasileira, na qual a vida tem de ser reelaborada a cada dia. Não é uma forma cultural fixa, mas vai-se modificando conforme se vai vivendo. 

Esses dados são fundamentais para se entender a questão da identidade do afrobrasileiro. Sua identidade não existe como algo dado. Também a identidade vai sendo construída, e os elementos externos e as pressões mais novas (isto é, globalizantes) vão sendo deglutidos e vividos no hoje que se vive. 

4. A religião dos orixás 

O concreto e imediato da vida do afrobrasileiro o leva a ser um ser relacional. Mais do que estar situado diante das coisas e da natureza, o realizar-se do afrobrasileiro como ser dá-se através do relacionar-se. Assim, não se considera prisioneiro do destino, das forças das coisas ou da natureza. 

“Foi a perícia no preparo dos feitiços sexuais e afrodisíacos que deu tanto prestígio a escravos macumbeiros junto aos senhores brancos já velhos e gastos. Agripino Grieco recolheu no Rio de Janeiro, na região das velhas fazendas de café, a tradição de senhores de 70, 80 anos, que estimulados pelos afrodisíacos dos negros macumbeiros, viviam rodeados de negrinhas ainda impúberes; e estas a lhes proporcionarem as últimas sensações de homem”.[13]

É um ser que procura aliados, quer para a realização de seus prazeres, quer para enfrentar os desafios impostos por elementos ou realidades alheias a seu cotidiano. A essa procura de alianças, o afrobrasileiro chama de amizade e companheirismo. 

“A liberdade do escravo de conservar e até de ostentar em festas públicas – a princípio na véspera de Reis, depois na noite de Natal, na de Ano-Bom, nos três dias de carnaval – formas e acessórios de sua mítica, de sua cultura fetichista e toêmica, dá bem a idéia de aproximação das duas culturas”.[14]

E se ele pode relacionar-se com seus pares, também o pode fazer com a transcendência. Para o brasileiro, o relacionar-se com o transcendente jamais significa uma negação do humano. Daí a intimidade que aparenta ter com a divindade. 

Nas religiões afrobrasileiras, que nasceram do sincretismo, das quais a Umbanda[15] talvez seja o caso mais peculiar, os elementos constitutivos da personalidade dos orixás são traduções antropológicas do afrobrasileiro, inclusive de seus códigos relacionais[16]. 

Tanto o ideal de liberdade como outras características do afrobrasileiro traduzem uma profunda dimensão coletiva. Isso não elimina ou massacra sua pessoalidade, mas, na maioria dos casos, lhe permite reafirmá-la. E o massacre não acontece porque o afrobrasileiro é coletivo e comunitário, mas porque não sobrevaloriza as estruturas sociais. 

Assim, ao desprezar as estruturas, ao negar qualquer redução ao papel de simples engrenagem, reafirma a amizade e a solidariedade como formadoras do coletivo. Para ele, a liberdade, a amizade e a solidariedade acontecem na comunidade. 

É difícil imaginar o afrobrasileiro solitário. Ao contrário, a imagem cultural e social que temos dele, e que toda a cultura popular reflete é a do homem e mulher cercados de amigos, conhecidos e parentes. 

A sua práxis religiosa é sempre coletiva. A religião é sempre um acontecimento comunitário, quer falemos da Umbanda ou do pentecostalismo popular. Para o afrobrasileiro, a religião não pode ser vivida individualmente. A idéia de que a religião é questão de foro íntimo é uma abstração branca, calvinista ou tridentina. Ao contrário, na cultura afrobrasileira todos discutem a religião do outro, opinam e querem vê-lo junto na mesma comunidade. 

E em relação às festas não poderia ser diferente. E festa implica comida, música e dança. Em condições normais, o afrobrasileiro não come, nem bebe sozinho. A comunidade é o espaço onde sua pessoalidade e criatividade atingem os níveis mais altos. 

5. A Criatividade Afrobrasileira 

Um pensamento evangélico que parta da realidade da cultura relacional afrobrasileira não pode desrespeitar a negritude. Não pode negar o mundo negro considerado parte integrante da humanidade criada à imagem e semelhança de Deus. Ao contrário, deve partir da realidade antropológica da criatividade afrobrasileira, que em amplo espectro se traduz numa antropologia da aventura e do risco enquanto fonte da liberdade que busca. 

Razões geográficas, históricas e raciais, nos últimos três séculos, levaram ao mergulho no desconhecido e plasmaram no afrobrasileiro essa atração pela aventura e pelo risco. O afrobrasileiro ama o desafio, não como futuro planejado, mas como espaço para a criatividade. Para ele, desafio é sempre se lançar à aventura da ruptura de regras, é dizer não às convenções e sobreviver pela coragem. 

Quando enfrenta esses desafios, que vai da sobrevivência no trapézio da economia informal ao transformar-se em Mané Garrincha nos gramados do mundo, está de fato modelando sua identidade. Mulato, não teme mergulhar nos desafios da cultura branca e globalizada. 

Aventura implica a possibilidade do fracasso. E fracasso faz parte do risco. Mas ao viver a dialética desse movimento, o afrobrasileiro constrói sua identidade, ainda que a um preço muito alto. Na verdade, é fazendo assim que ele sente-se livre e dá asas à sua criatividade, sem se preocupar com a construção do futuro. E se não fosse assim não estaríamos diante do afrobrasileiro. 

A dificuldade em globalizar o afrobrasileiro repousa aí: na cosmovisão de que a vida humana deve ser entendida como aventura e prazer. Como algo que não pode ser planejado, organizado, dimensionado, mas vivido. Dessa maneira, viver é estar aberto ao novo, ao desafio, ao que ainda não foi vivido, nem mesmo se planejou viver. A ação antropológica do afrobrasileiro nasce da possibilidade de escolher a vida que sonha viver, que ele tem liberdade para escolher viver. Nesse sentido, quer viver a cada dia um novo sonho. E como para ele ficção e realidade se entrelaçam, sua maior construção é o carnaval, já que gira ao redor da festa e do prazer. Comida e sexo, futebol e carnaval surgem como expressões maiores da possibilidade da utopia. 

O pensamento evangélico não pode estar preocupado em adaptar o homo afrobrasiliensis à globalidade banalizadora, mas em entender os elementos da imago Dei que permeiam essa riqueza civilizatória. 

6. A Busca do Transcendente 

A afrobrasilidade é um modo de ser, uma maneira de existir. O afrobrasileiro não se diferencia simplesmente pela sua cor de pele. A pele negra tem uma história, uma história de negações e de resistências. É preciso, pois, compreender que o afrobrasileiro se autocompreende, num primeiro momento, em sua história de negação, e por isso se afirma negro. 

A afrobrasilidade é afirmação deste que é negro e negra: é negação da negação. Este afrobrasileiro, destituído de sua história, vive imerso em si mesmo e numa sociedade que promove a ruptura de seus valores étnicos, sociais e culturais, mas quer iniciar uma outra história, onde não é João ninguém, Maria nenhuma. 

Mas a história do povo negro não começa com a escravidão. Afirmar a afrobrasilidade é afirmar uma proposta teológica em que a afrobrasilidade é mais do que uma evidência, é afirmar uma história que foi excluída. Implica compromisso com a causa de um povo. 

Se a cultura relacional afrobrasileira tem um caráter mágico, fortemente empapado no maravilhoso, isso se dá porque o dia-a-dia desse ser humano está ligado à busca da transcendência. Nesse sentido, o elemento que vai além e ultrapassa o concreto do dia-a-dia do afrobrasileiro é o transcendente. 

Essa presença do maravilhoso caldeia toda a malha relacional, indo do afrobrasileiro simples ao que alcançou o sucesso e a glória. É importante, no entanto, entender que o maravilhoso relacional da cultura afrobrasileira não nasceu de um processo pacífico, mas violento, do choque entre o universo transcendental de brancos e a matriz sacralizadora da natureza da religiosidade negra. A contra-reforma produziu genocídio e escravidão, macerando o universo religioso de povos e nacionalidades. 

A recuperação da história do povo negro como tradição e cultura liga-se à necessidade de conscientização da identidade afrobrasileira. Aquele que esquece nega o esquecido, reprimindo ou suprimindo. A identidade está imbricada à memória. Evocar a memória é provocar e transformar. 

Dessa maneira, reconhecendo os elementos negativos da cultura relacional afrobrasileira, que se traduziu na tentativa de esconder as injustiças sociais sofridas, podemos resgatar o que ela construiu de positivo. Afirmar a cultura à qual pertencemos é o primeiro passo para construir um pensamento evangélico afrobrasileiro, que compreenda a identidade do povo negro em sua busca de felicidade e transcendência. 

A antropologia mostra-nos um afrobrasileiro em busca da felicidade imediata e da transcendência, possibilitando ao pensamento evangélico uma compreensão dos elementos da revelação e da imagem de Deus aí embutidos[17]. Não devemos temer o afrobrasileiro, mas conscientemente reconstruir raízes e memória. Esse caminho dará fundamentos a velhos sonhos, traduzirá a boa notícia do Cristo, como resposta imediata e concreta para a utopia que se desfaz na quarta-feira de cinzas. 

Ser teologicamente negro traduz uma conversão e por isso a afrobrasilidade constitui-se num desafio não só para os negros. A afrobrasilidade deve ser uma postura teológica, uma atitude de resgate diante da história de negação do negro. Desse ponto de vista, colocar para a nova igreja protestante[18] a afrobrasilidade como pensamento teológico implica resgate de uma história de sofrimento e dor e redenção diante das possibilidades que estes sofrimento e dor construíram. 

O lugar fundamental da gestação da afrobrasilidade do ponto de vista do pensamento teológico dá-se no locus da comunidade negra, espaço de formação da identidade negra, como vida resgatada. 

Considerando que o pensamento teológico possui dimensões que transcendem o locus, é importante estabelecer paradigmas que o viabilizem. Paradigmas esses que possibilitem a cada grupo traçar seu caminho de liberdade, de acordo com sua realidade e necessidade, sem perder o vínculo com o conjunto da mensagem de redenção. 

Nesse sentido, não basta construir um pensamento teológico da negação, mas um pensamento teológico da afirmação da afrobrasilidade. Não somente uma teologia do protesto, mas uma teologia da proposta, uma teologia da salvação que permita levar a riqueza dos sonhos ancestrais à sociedade afrobrasileira de conjunto. 

Num primeiro momento, abertura à transcendência é sofrimento e cruz. Motor da liberdade cristã, quando esta se revela no aspecto da supressão do ser humano imediato. É a exigência de romper com o existente aceito. Essa ruptura, no entanto, exige persistência na determinação e no sofrimento em nível imediato, sem a qual não há liberdade dentro da ordem existente (Ballestero, 1970, p.110-111). 

Contudo, abertura à transcendência não se resume a esse primeiro momento. Na verdade, é diametralmente oposto a ele, traduz outra realidade, outra natureza. A unidade transcendência-humilhação-cruz é superficial como realidade imediata. 

Por isso, a emergência da transcendência passa pela morte do mundo, porque a realidade entrou em caducidade. Sofrimento e cruz refletem essa impossibilidade de vida e de eternidade. A transcendência é regeneradora porque acontece no mais fundo da própria raiz humana. É no momento da morte de seu consciente, que o mais profundo da intencionalidade humana se revela. 

A interioridade cristã não é consciência cartesiana. É um tempo de negação de todo objeto possível, tempo de vazio interno que possibilita a abertura ao sagrado. É nesse momento que a transcendência aparece como disponibilidade transparente da consciência. 

Dessa maneira, a transcendência do afrobrasileiro não pode realizar-se a não ser como articulação viva da subjetividade e como sua obra. A morte do afrobrasileiro imediato é o ato que faz possível ressurgir o verdadeiro afrobrasileiro, a partir daquilo que lhe é inalienável e próprio. Fazendo uma releitura de Lutero podemos dizer que o cristão é servo em tudo e está submetido a todo mundo, então... o cristão é senhor de todas as coisas e não está submetido a ninguém (Luther, 1955, p. 225). 

Se entendermos a dialética desse processo, teremos elementos para dar início à construção de um pensamento teológico afrobrasileiro. Um pensamento que parte da condenação daqueles 370 anos de escravidão , mas vai além, transcende, pois fará de todos nós, em Cristo, senhores do Brasil que nos foi entregue. 



"Eu ouço as vozes 
eu vejo as cores 
eu sinto os passos 
de outro Brasil que vem aí 
mais tropical 
mais fraternal 
mais brasileiro". 

"O mapa desse Brasil em vez das cores dos Estados 
terá as cores das produções e dos trabalho. 
Os homens desse Brasil em vez das cores das três raças 
terão as cores das profissões e das regiões. 
As mulheres do Brasil em vez de cores boreais terão as cores variamente tropicais. 
Todo brasileiro poderá dizer: é assim que eu quer o Brasil, 
todo brasileiro e não apenas o bacharel ou o doutor 
o preto, o pardo, o roxo e não apenas o branco e o semibranco". 

Gylberto Freyre, O outro Brasil que vem aí, 1926. 



Referências Bibliográficas 

ANTONIL, André João. Os escravos são os pés e as mãos do senhor do engenho, 1711. 
AZEVEDO, Israel Belo de. A Celebração do Indivíduo. A Formação do Pensamento Batista Brasileiro, Piracicaba: Editora Unimep, São Paulo, Exodus, 1996. 
BALLESTERO, Manuel. La revolución del espíritu (Tres pensamientos de libertad). Madrid: Siglo XXI, 1970. 
BERDYAEV, Nicholas, The Destiny of Man. London: Geoffrey Bles, 1984. 
CAVALCANTI, Robinson. Os Terreiros de Jesus. O Evangelicalismo e a Raça Negra no Brasil, Ultimato, Ano XXI, No. 193. Minas Gerais, Editora Ultimato, 1988. 
FRY, Peter e HOWE, Gary Nigel. “Duas respostas à aflição: umbanda e pentecostalismo”. In: Debate e Crítica, São Paulo, no 6, 1975. 
HEFNER, Phillip J. “A questão do destino humano”. In: Braaten, Carl E. e Jenson, Robert W. Dogmática Cristã. Vol. 1, São Leopoldo: Sinodal, 1990. 
LUTHER, Martin, Les Grands écrits reformateurs. Paris: Aubier, 1955. 
MANZATTO, Antonio, Teologia e literatura, reflexão teológica a partir da antropologia contida nos romances de Jorge Amado. São Paulo, Loyola, 1994. 
MEER, Antonia Leonora Van Der, África, um Continente Maldito?, Ultimato, Ano XXIX, No. 243. Minas Gerais: Editora Ultimato, 1996. 
PINHEIRO, Jorge, Negritude, Projetos Políticos e Nova Ordem Mundial, Apostila. São Paulo, Faculdade Teológica Batista de São Paulo, 1999. 
O'DONOVAN JR., Wilbur, O Cristianismo Bíblico da Perspectiva Africana, Trad. Hans Udo Fuchs. São Paulo, Edições Vida Nova, 1999. 
OLIVEN, Ruben George, A antropologia de grupos urbanos, Petrópolis: Vozes, 1987. 
SANT'ANA, Antônio Olímpio de, O Negro Latino-Americano, Tempo e Presença, Ano 11, No. 242. São Paulo: Centro Ecumênico de Documentação e Informação, 1989. 
STRAUSS, Claude-Lévi, O Cru e o Cozido, Mitológicas, São Paulo, Editora Brasiliense, 1991. 
WILMORE, Gayraud S. e CONE, James H., Teologia negra, São Paulo: Paulinas, 1986. Trad. Euclides Carneiro da Silva. 

[1] Teólogo pela Faculdade Teológica Batista de São Paulo; Pós-Doutorm Doutor e Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (Umesp); Pós-Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. É pastor adjunto da Igreja Batista em Perdizes (SP). 
[2] Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala, São Paulo, Global Editora, 2004, 49ª. Edição, p. 367. 
[3] Gilberto Freyre, obra citada, p. 389. 
[4] Gilberto Freyre, idem, op. cit., p. 399. 
[5] O tripalium dá origem à palavra trabalho. É um instrumento de três piquetes usado para fixar animais quando se pretendia fazer intervenções veterinárias ou marcá-los a ferro. Foi utilizado pelos romanos, depois na Idade Média e posteriormente importado pelos colonizadores portugueses. Era utilizado nas fazendas brasileiras para conter os escravos quando castigados ou marcados a fogo. 
[6] Em obra publicada em 1711, Os escravos são os pés e as mãos do senhor do engenho, o jesuíta André João Antonil, proprietário do maior número de engenhos entre as ordens religiosas, afirmava que sem os escravos “no Brasil não é possível fazer, conservar e aumentar fazenda, nem ter engenho corrente. E do modo, como se há com eles, depende tê-los bons ou maus para o serviço. Por isso é necessário comprar cada ano algumas peças e reparti-las pelos partidos, roças, serrarias e barcas”. 
[7] “Livres para a fome, livres para o inverno e para as chuvas do céu... Livres sem um teto para os cobrir, sem pão para comer, sem terra para cultivar... Nós lhes demos liberdade e fome ao mesmo tempo” (Wilmore e Cone, 1986, p. 42). 
[8] Gilberto Freyre, idem, op. cit., p. 414. 
[9] Gilberto Freyre, idem, op. cit., p. 542. 
[10] Gilberto Freyre, idem, op. cit., p. 549. 
[11] Gilberto Freyre, idem, op. cit., p. 393. 
[12] Gilberto Freyre, idem, op. cit., p. 439.
[13] Gilberto Freyre, idem, op. cit., p. 408. 
[14] Gilberto Freyre, idem, op. cit., p. 439. 
[15] “Mais do que um simples mecanismo de adaptação de migrantes pobres ao meio urbano, uma religião como a Umbanda, que tem crescido não somente entre as classes baixas, mas também entre as médias, deve ser vista como uma síncrese das tradições afrobrasileiras e espíritas. É por isso que a verdadeira chave da compreensão da Umbanda reside na própria sociedade brasileira, já que essa religião é fruto de transformações sociais e econômicas que ocorreram no país” (Fry e Howe, 1975). 
[16] “A adesão das massas urbanas à umbanda e ao pentecostalismo são freqüentemente explicados em termos de exposição às relações de produção nas cidades. Assim, as pessoas que não podem recorrer aos relacionamentos familiares existentes no campo entre camponês ou trabalhador rural e seu patrão (os quais embora extremamente exploradores pelo menos propiciam um tipo mais pessoal de contato e algum tipo de ‘proteção’) buscariam substitutos em cidades onde as relações capitalistas de trabalho deixam menos margem para contatos pessoais e nos quais os empregadores não têm obrigações morais em relação aos seus empregados. (...) Pentecostalismo e umbanda são religiões de massa importantes no Brasil. Para certos setores da população elas têm funções sociais e psicológicas significantes. Elas não só satisfazem aspirações em relação a uma visão espiritual e mágica do mundo, mas também fornecem ao crente uma orientação definitiva em relação à sua conduta, assim proporcionando apoio espiritual” (Oliven, 1987, p. 42). 
[17] O ser humano tem um destino. O termo destino conota vocação, aponta para aquele conteúdo intrínseco que constitui uma dimensão da natureza humana. Destino tem matizes de dom, propósito e alvo. A concepção cristã do ser humano trabalha com a idéia de que todos os seres humanos são chamados à construção de destino pleno de sentido. 
[18] A expressão nova igreja protestante traduz a consciência de que o Cristianismo deve apresentar um evangelho integral, holístico, ao mundo. Esse evangelho não se limita ao privatissimum da salvação individual e nem se fecha entre as quatro paredes do templo, mas está preocupado com o ser humano enquanto totalidade social, política e cultural. Essa consciência vem se estendendo cada vez mais pelo conjunto das igrejas evangélicas no Brasil, sejam elas históricas ou pentecostais.

lundi 7 janvier 2013

Degraus da espiritualidade

Que o Eterno sorria para você em 2013

Um sermão de janeiro de 2012 que pode lhe ajudar na caminhada de 2013

vendredi 4 janvier 2013

A identidade dos batistas

Uma aula sobre os Batistas
dada pelo pastor e professor Israel Belo de Azevedo

Parte 1

Parte 2

Parte 3

Parte 4

jeudi 3 janvier 2013

A comunhão na criação de Deus


A responsabilidade cristã
Jorge Pinheiro

Os relatos bíblicos descrevem a criação do céu e da terra, obra do Eterno, através da indicação “e o Espírito de Deus se movia por cima da água” (Gn 1.2). Isto quer dizer que o Espírito divino é Pessoa criadora e presença do Eterno, tendo sido a criação uma realidade formatada por Ele. E é o mesmo Espírito quem clama pela liberdade redentora da criação escravizada. 

Um dia o próprio Universo ficará livre do poder destruidor que o mantém escravo e tomará parte na gloriosa liberdade dos filhos de Deus. Pois sabemos que até agora o Universo todo geme e sofre como uma mulher que está em trabalho de parto” (Rm 8.21-22).
 Foto de Naira Pinheiro

O Espírito é o poder atuante do Criador e a força de vida das criaturas. O Espírito é a fonte da vida. Por isso, tudo o que existe e vive manifesta a presença dele. Ele transforma a comunhão com o Pai e o Filho na comunhão da criação, na qual todas as criaturas, cada qual a seu modo, se comunicam com Deus. A existência, a vida e os relacionamentos estão firmados no Espírito, “pois nele vivemos, nos movemos e existimos” (At 17.28).

Assim, a partir da comunhão trinitária, o ser humano faz parte da criação e é dependente dela. Vive dentro de um contexto de interdependência com a criação. Desde o início, nosso futuro está ligado ao solo, à água e ao ar. Deus nos coloca junto e com a natureza para trabalhar essa mesma natureza (Gn 2.15). Não haveria falta (2.8-9) se soubermos administrar. Dependemos do solo e dele recebemos o nosso sustento. Pertencemos a este mundo criado e é ele que fornece a base para nossa existência.  A vida começa e se orienta sob o cuidado de Deus.

Ó Senhor, tu tens feito tantas coisas e foi com sabedoria que as fizeste. A terra está cheia das tuas criaturas” (Sl 104.24).

 “Todos esses animais dependem de ti, esperando que lhes dês alimento no tempo certo. Tu dás a comida, e eles comem e ficam satisfeitos. Quando escondes o rosto, ficam com medo; se cortas a respiração que lhes dás, eles morrem e voltam ao pó de onde saíram. Porém, quando lhes dás o sopro de vida, eles nascem; e assim dás vida nova à terra” (Sl 104.27-30).

Hoje, pensamos que o mundo é um objeto para nossa exploração, em vez de sujeito para a glorificação de Deus. Em grande parte, ignoramos as necessidades de outras formas de vida. Essa atitude utilitarista de ver e agir é pecado, é uma falta de respeito para com o Espírito de Deus.

O desafio do cuidado

É Deus quem dá e quem sustenta a vida de todo o universo. Sua preocupação por atender às necessidades básicas (comer, beber e vestir) não se restringe ao ser humano, mas se estende a toda a natureza, refletida nos pássaros e nas flores do campo.

É Deus quem veste a erva do campo, que hoje dá flor e amanhã desaparece, queimada no forno. Então é claro que ele vestirá também vocês, que têm uma fé tão pequena!” (Mt 6.30).

O universo inteiro depende do cuidado amoroso de Deus, que não descuida de nenhuma criatura. Os lírios, por exemplo, caracterizados por sua fragilidade e vida curta, são vestidos de tal modo que nem Salomão usava roupas tão bonitas como essas flores. (Mt 6,29).

Criação significa que tudo é completamente obra de Deus. Deus é o autor de tudo, o Deus pessoal e salvífico, que se revelou como puro amor. Toda a realidade brota da pura iniciativa deste amor divino, puro dom gratuito.
Foto de Naira Pinheiro

Mas, o ser humano faz parte da criação, depende dela e é seu cuidador. O ser humano, como o restante da criação, foi criado “de acordo com a sua espécie” (Gn 1.24 e 25), só que à imagem e semelhança de Deus (Gn 1.26-27). A imagem de Deus é elaborada em termos do domínio administrativo que o ser humano teria sobre o resto da criação. O ser humano foi criado à imagem de Deus, não somente por sua liberdade e direito à escolha, mas também pela postura que assume diante da criação, uma postura de soberania em amor e comunhão, que deve refletir a soberania de Deus (Gn 1.26-28). O ser humano não foi criado apenas para realizar uma administração espiritual, mas foi criado para ordenar a criação.

No entanto, fizeste o ser humano inferior somente a ti mesmo e lhe deste a glória e a honra de um rei. Tu lhe deste poder sobre tudo o que criaste; tu puseste todas as coisas debaixo do domínio dele: as ovelhas e o gado e os animais selvagens também; os pássaros e os peixes e todos os seres que vivem no mar” (Sl 8.5-6).

Essa administração humana sobre a criação nós chamamos de mandato cultural. Ser criado à imagem de Deus é ser responsável pelo planeta e por todas as formas de vida!

A soberania humana implica responsabilidade para preservar a ordem que Deus criou e promover a existência de todos os seus elementos. Tal soberania não implica em liberdade para roubar, matar e destruir. Os seres humanos são mordomos de Deus, responsáveis diante dele e cuja primeira tarefa é assegurar a permanência e equilíbrio da criação.
  
O primeiro ato salvador 

A preocupação divina com a salvação espiritual não é alheia da sua preocupação pelo bem-estar da sua criação material. A criação é o primeiro dos atos salvadores de Deus.

Mas tu, ó Deus, tens sido o nosso Rei desde o princípio e nos salvaste muitas vezes. Com o teu grande poder, dividiste o Mar e esmagaste as cabeças dos monstros marinhos. Esmagaste as cabeças do monstro Leviatã e deste o seu corpo para os animais do deserto comerem. Fizeste com que corressem fontes e riachos e secaste grandes rios. Criaste o dia e a noite, puseste o sol, a lua e as estrelas nos seus lugares. Marcaste os limites da terra e fizeste o verão e o inverno” (Sl 74.12-17).

Não devemos conceber a participação do ser humano no mundo como opcional, nem como secundária sua missão na salvação de vidas. Desde o início, a criação fazia parte do plano salvador de Deus. A conversão de seres humanos não é o último dos atos salvadores de Deus, mas o estabelecimento de novos céus e nova terra, ou seja, uma nova criação (Ap 21.1), a libertação da própria criação em si (Rm 8.20-22).

Até o fim, a criação fará parte do plano salvador de Deus. A mesma graça de Deus que se manifestou em Cristo, também se manifestou na criação.

Deus falou muitas vezes e de muitas maneiras aos nossos antepassados, mas nestes últimos tempos ele nos falou por meio do seu Filho. Foi ele quem Deus escolheu para possuir todas as coisas e foi por meio dele que Deus criou o Universo. O Filho brilha com o brilho da glória de Deus e é a perfeita semelhança do próprio Deus. Ele sustenta o Universo com a sua palavra poderosa. E, depois de ter purificado os seres humanos dos seus pecados, sentou-se no céu, do lado direito de Deus, o Todo-Poderoso” (Hb 1.1-3).

E a graça do Eterno manifesta alcançará o seu propósito de submeter a Cristo todas as coisas.

Por isso Deus deu a Jesus a mais alta honra e pôs nele o nome que é o mais importante de todos os nomes, para que, em homenagem ao nome de Jesus, todas as criaturas no céu, na terra e no mundo dos mortos, caiam de joelhos e declarem abertamente que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus, o Pai”. (Fp 2.9-11).

As Escrituras Sagradas dizem: Deus pôs todas as coisas debaixo do domínio dele. É claro que dentro das palavras “todas as coisas” não está o próprio Deus, que põe tudo debaixo do domínio de Cristo. Mas, quando tudo for dominado por Cristo, então o próprio Cristo, que é o Filho, se colocará debaixo do domínio de Deus, que pôs todas as coisas debaixo do domínio dele. Então Deus reinará completamente sobre tudo” (1Co 15.27-28).

Existe uma eco-teologia bíblica, que envolve o uso responsável e sustentável dos recursos da criação de Deus e a transformação das dimensões culturais, econômicas, morais, intelectuais e políticas da vida. Isto inclui a recuperação de um sentido bíblico de mordomia, que implica em administração e cuidado responsável. Da mesma maneira, o conceito bíblico de descanso semanal recorda que se deve por limites às atividades de produção e ao consumo.

Devemos usar a riqueza e o poder no serviço dos demais. É um compromisso de trabalhar para libertar os ricos da escravidão ao dinheiro e ao poder, e possibilitar aos que têm menos obter acesso à dignidade e às oportunidades de desenvolvimento. A esperança de tesouros no céu nos livra da tirania de Mamon. E fazendo assim estaremos compreendendo o sentido maior do cuidado da natureza e da vida criadas pelo Eterno.

jeudi 27 décembre 2012

Olhar na contramão

Por Jorge Pinheiro


Gnocchi alla crema
Começou pela borda
Olhar fixo
Gorgonzola gratinati


Al forno con olio tartufato
Por onde o pé caminha
Olhava sem tirar o olho
Lasagne al ragù di carne

Alla Toscana, Chianti
Pelo chão da firmeza
Ela picniqueava na dele
Panne artesanal

Casa Sasso di Dante
As pernas abertas
Sem o amasso do peso
Fa caldo, Fiorenza augusta e bella

Tutto che circonda
O vestido não cobria
A calcinha de pois preto
Do barro que cola na sola
Lèvati, Aquilone, e vieni, o Austro!

Ele olhava fixo
Sem a lama que amola o lustro
Ela levantou-se na prontidão do passo
Soffiate sul mio giardino,

Sì che se ne spandano gli aromi!
Ar bravo e chegou-se
Na esteira da linha fixa da montagem
Sem besteira dita alhures

No vão da despreocupação
Por que o senhor não tira
Com respeito, ousadia, direção
Gli occhi del mio giardino?

De quem sabe que a sizânia não se espalha
Ele continuou a olhar o nada
O em cima está aqui na frente,
Ao alcance da mão operosa,

Desculpe senhorita, sou cego!
Coração sábio, o futuro se constrói
Então o senhor não viu nada?
Nada, nadinha? Pobre!



Com os movimentos de hoje
Venga l'amico mio nel suo giardino,
e ne mangi i frutti deliziosi!
E vissero felici e contenti!

mercredi 26 décembre 2012

Por um 2013 radical!


A festa da luz do Eterno entre nós

O povo que andava na escuridão viu uma forte luz: a luz brilhou sobre os que viviam nas trevas (Isaías 9.2).

É comum todos os anos ouvirmos estas palavras do profeta Isaías, nas comemorações do nascimento do menino Jesus. E a cada ano, elas têm um novo sabor e fazem reviver o clima de alegria e esperança, que é típico do Natal.

Foto by Naira Di Giuseppe

Ao povo oprimido e atribulado que andava nas trevas apareceu uma forte luz. Sim, esta luz forte, que irradia da humildade do presépio é a luz da salvação. Se a primeira luz foi a da criação, no início de todas as coisas, conforme nos conta o livro das Origens, muito mais luminosa e forte é a luz que traz a liberdade a todo humano de boa vontade, porque traduz o milagre do próprio Eterno feito gente!

O Natal é a festa da luz do Eterno entre nós. No menino de Belém, a luz primordial volta a resplandecer no céu da humanidade e dissipa as nuvens da alienação. O brilho do triunfo definitivo do Eterno aparece no horizonte da história para propor a homens e mulheres um caminho novo, um futuro de esperança.

Vamos construir, sob esta luz, um 2013 radical!

Do amigo,
Jorge Pinheiro

jeudi 20 décembre 2012

Compósitos universais da eclesiologia batista

Prof. Dr. Jorge Pinheiro

Introdução

Partimos neste trabalho da hipótese de que existem compósitos universais na eclesiologia batista, e que a partir da experiência neo-testamentária e da tradição anabatista temos elementos para explicar tais universalidades desta eclesiologia. Tal entendimento nos leva a traçar um caminhar entre a tradição neo-testamentária e anabatista, teológica e histórica, a fim de explicar essas universalidades.

No início da era cristã, o evangelho de Lucas e o livro de Atos formavam uma só obra em dois volumes, que poderíamos chamar de "História das Origens Cristãs". Esses dois volumes só foram separados por volta dos anos 150. O título "Atos dos Apóstolos" surgiu nessa época, já que a literatura helenística conhecia os "Atos de Aníbal" e os "Atos de Alexandre", entre outros.

Documentação e Linguaguem

A sinopse padrão que delineamos para Atos está intimamente ligada às correntes de informação recolhidas por Lucas. É certo que o valor excepcional do livro se funda no testemunho ocular do autor em relação a uma série de acontecimentos. No entanto, Lucas teve acesso a uma documentação variada, extensa e pormenorizada, conforme ele próprio afirma no prólogo de sua obra (1:1-4).

Segundo o helenista P. Benoit, da Escola Bíblica de Jerusalém, "a despeito de uma atividade literária sempre vigilante, que por toda parte deixou seus traços e assegura a unidade do livro, facilmente se reconhece a utilização de documentos diversos"[1]. Benoit afirma ainda que a própria linguagem de Atos varia de um grego excelente, quando Lucas depende de si mesmo e se inspira nas suas notas de viagem, a um texto semitizante, às vezes incorreto, quando fala sobre os primórdios da comunidade cristã na Palestina. Muito possivelmente porque respeita e corrige o menos possível as informações de textos aramaicos, apesar do livro de Atos e o evangelho de Lucas, (assim como o tratado aos Hebreus) conterem a redação grega mais culta de todo o Novo Testamento.

Assim, temos quatro blocos de informações diferentes, que podemos enumerar da seguinte forma: (a) aquele que se refere à primitiva comunidade de Jerusalém  (do capítulo 1 ao 5); (b) as atividades de personagens como Filipe (8:4-40) e Pedro (9:32-11:18 e 12), que podem ter sido fornecidas pelo próprio Filipe, já que ele se encontrou com Lucas em Cesaréia (21:8); (c) o da comunidade de Antioquia, fornecidos por judeus helenistas (6:1-8:3; 11:19-30; 13:1-3) e, sem dúvida, pelo próprio Paulo, que deve ter passado a Lucas informações sobre sua conversão e sobre suas viagens (9:1-30; 13:4-14; 15:36s; 28); (d) o período final das viagens de missão contou com as notas pessoais de Lucas e muito possivelmente foi daí que transcreveu as seções em que diz "nós". Esses são trechos do livro onde se concentram as particularidades do texto de Lucas (11:28; 16:10-17; 20:5-21; 18; 27:1-28).

Esse material foi organizado num todo, interligado por recursos de estilo, como em 6:7, 9:31, 12:24, entre outros. É interessante ver que as descobertas arqueológicas têm confirmado a exatidão histórica de Lucas. Por exemplo, sabe-se atualmente que o uso que Lucas fez dos títulos de vários escalões de oficiais locais e governamentais de províncias, procuradores, cônsules, pretores, politarcas, asiarcas e outros, mostra-se acuradamente correto, correspondentes às ocasiões e lugares acerca dos quais Lucas estava escrevendo. Assim, o arrazoado lucano forma um texto que pode ser subdividido em doze blocos de acontecimentos e eventos, que seguem uma não muito estrita sequência cronológica, conforme apresentamos abaixo: (1) A fé se implanta em Jerusalém, onde a comunidade cresce em graça e número. Capítulos: 1 a 5. (2) Tem início a expansão fora de Jerusalém, devido à tendência universalista dos convertidos do judaísmo helenista e pela fuga em consequência do martírio de Estevão. Capítulos: 6:1 a 8:3. (3) Atinge-se a Samaria. Capítulo: 8:4-25. (4) A região sul e oeste de Jerusalém até a costa de Cesaréia é evangelizada. Capítulos: 8:26-40; 9:32 a 11:28. (5) Damasco já tem comunidades cristãs e a evangelização segue em direção à Cilícia. Capítulo: 9:1-30. (6) Antioquia recebe a mensagem de Jesus. Capítulo: 11:19-26. (7) Antioquia e Jerusalém estabelecem acordos sobre os principais problemas missionários. Capítulos: 11:27-30; 15:1-35. (8) Pedro, depois da conversão de Cornélio e da prisão em Jerusalém, parte com destino desconhecido. Capítulo: 12:7. (9) Primeira viagem de Paulo a Chipre e a Ásia Menor, antes do Concílio de Jerusalém. Capítulos: 13 e 14. (10) Outras duas viagens de Paulo o levarão até a Macedônia e a Grécia. Capítulos: 15:36 a 18:22; 18:23 a 21:17. (11) Paulo retorna a Jerusalém, é preso e levado cativo a Cesaréia. Capítulos: 21:18 a 26:32. (12) É conduzido preso até Roma, onde acorrentado anuncia a Cristo. Capítulos: 27 e 28.

Uma Abordagem Histórica

Podemos dizer que o texto de Lucas, em seu segundo livro, parte da percepção de que a história tem importante significado teológico. Aliás, o escritor apresenta em seus trabalhos uma visão da continuação dos atos de Deus no testamento antigo: quer no evangelho, como atos de Jesus, quer em seu livro segundo, como atos do Espírito Santo.

Lucas mostra que Deus se revela através dos atos e eventos da história humana, definidos por sua presciência. É fundamental entender que se há negação da realidade dos eventos históricos não há base para a fé. Nesse sentido, o evangelho não é uma mensagem meramente existencial, sem conexão imediata com a história.

A compreensão de Lucas da historicidade do cristianismo parte da própria tradição judaica, que entendia o monoteísmo ético e a esperança escatológica como frutos da intervenção divina na vida do povo judeu. Lucas traz essa tradição teológica, singular em relação à religiosidade do mundo antigo, para a vida do que seria anos mais tarde chamado de novo testamento.

Assim, para o escritor, todos os eventos que se registraram em Atos foram levados a efeito por meio da vontade e do propósito de Deus. E esses fatos surgem na vida da igreja como cumprimento das Escrituras. Dessa maneira, a história que Lucas descreve foi dirigida por Deus. E o poder de Deus revela-se através da ação do Espírito Santo, em sinais e maravilhas operados em nome do Senhor Jeus.

Entendendo que o livro de Atos tem como finalidade transmitir a força da expansão espiritual do cristianismo e o ensinamento teológico vivido pelos cristãos, podemos dizer que há um plano sinóptico claro, traçado por Lucas, que num primeiro momento se nos apresenta como histórico. Mas a história de Lucas não é a história da igreja, e sim aquela que foi possível redigir com os documentos e informações de que dispunha. Não relata, por exemplo, a fundação da igreja de Alexandria, nem a de Roma. E nada fala do apostolado de Pedro fora da Palestina. Mas, esses silêncios e omissões só contam a favor. Estamos diante de um homem que foi profundamente fiel à documentação de que dispunha.

Da mesma maneira, não podemos entender a história de Lucas sem inserir nela toda a contribuição vivenciada pelos primeiros cristãos. A fé em Cristo, base do querigma apostólico, aí está exposta, primeiro pelo triunfo do homem Jesus como kyrios, em grego, pela ressurreição (2:22-36), e depois, pela boca de Paulo, como Filho de Deus (9:20). Vemos ainda, através dos discursos, a formulação da cristologia e a base para a argumentação com os judeus, notadamente os temas referentes ao Servo (3:13-26; 4:27-30; 8:32-33), e a Jesus, com o novo Moisés (3:22s; 7:20s). A ressurreição é comprovada através do salmo 16:8-11 (2:24-32; 13:34-37). Dessa maneira, a história do povo eleito deve colocar os judeus de sobre-aviso contra as resistências à graça (7:2-53; 13:16-41) e aos pagãos invocam-se argumentos de uma teodicéia mais geral (14:15-17; 17:22-31).

O problema crucial da igreja nascente era o do acesso dos gregos à salvação, e o segundo livro de Lucas mostra como os irmãos de Jerusalém, reunidos em torno de Tiago, continuam fiéis à lei judaica (15:1-5; 21:20s), enqunto os helenistas, cujo porta-voz é Estevão, sentem a necessidade de romper com o templo. Pedro e Paulo garantem o triunfo da doutrina da graça no Concílio de Jerusalém (15:1-29), que dispensa os pagãos da circuncisão e das observâncias mosaicas. A verdade, de que a salvação vem de Israel, leva Paulo a pregar sempre, inicialmente, aos judeus, para depois voltar-se aos gentios, quando seus irmãos de raça o rejeitam (13:5+).

Aparentemente, o objetivo de Atos é descrever a missão definida em 1:8: "Sereis minhas testemunhas tanto em Jerusalém, como em toda a Judéia e Samaria, e até aos confins da terra". Acontece que o propósito da igreja é proclamar de Jesus.

Assim, a igreja se posiciona em relação ao reino, ao apresentar os elementos universais da nova aliança e entregar ao mundo as chaves do reino. Essas conclusões estão presentes numa abordagem que cruza o projeto redentivo e a realidade histórica. Ora, nenhuma menção à igreja é feita após as duas referências de Mateus (16 e 18) até depois do evento de Pentecoste em Atos. O Pentecoste foi iniciado com uma assembléia pessoas que perseveraram na doutrina dos apóstolos e na comunhão, no partir do pão e nas orações  (2:42). A primeira referência à igreja é encontrada em 5:11, após o primeiro exercício da função bloqueadora das chaves do Reino, no caso de Ananias e Safira. Sobreveio, então, um grande temor sobre toda a igreja e sobre todos que ouviram a notícia daqueles acontecimentos. Inicialmente, os discípulos foram chamados de irmãos, de santos (9:32), de fiéis (10:45), depois de numerosa multidão (11:26) e de  muitas pessoas (12:12). Somente quando organizados e governados por pastores, eles são designados como igreja (cf. 13:1-3; 14:19-28; 15:1-41). E no final do livro de Atos encontramos referências a igrejas que tinham grupos de crentes batizados, que confessavam uma fé, eram ordenados por pastores, e que se reuniam para adoração, proclamação e missão. E tal igreja, a quem foi confiada as chaves do reino, deveria proclamar a mensagemdo reino, conforme Mt 24:14; 28:18-20.[2]

A missão só pode ser compreendida se inserida na mensagem, que é Jesus. Essa é a tarefa dos apóstolos, que conviveram com o Messias, participaram de seu ministério e estiveram com ele após a ressurreição. E que agora estavam equipados para a proclamação da boa nova oferecida por Deus.

É interessante notar que Lucas coloca o centro de sua mensagem teológica na ressurreição e exaltação de Jesus. Essa postura, no entanto, é uma particularidade do cristianismo nascente e vemos esse pensamento funcionar como pedra angular entre todos os escritores do Novo Testamento. As bençãos provenientes dessa boa nova é o perdão dos pecados e o nascer do Espírito.

A Mensagem é a Missão

O roteiro do trabalho de Lucas é a expansão da mensagem. Lucas produz um texto, cuja história vai num crescendo emocionante, com clímax e anticlímax, até cortar repentinamente a narrativa. Momentos de clímax são a morte de Estevão, a conversão e o naufrágio de Paulo, entre outros. Momentos de anticlímax, que levam à reflexão teológica, são os discursos, o concílio e as defesas de Paulo ante tribunais e governadores. Esse roteiro acontece não somente dentro de uma situação histórica singular, como é histórico em seu próprio desenrolar.

O batismo no Espírito Santo, já anunciado por João Batista (Mt 3:11) e prometido por Jesus (At 1:8), será inaugurado no Pentecostes (2:1-4). A seguir, segundo o mandato de Cristo (Mt 28:19), os discípulos e apóstolos continuarão a administrar o batismo 2:41; 8:12 e 38; 9:18; 10:48; 16:15 e 33; 18:8; 19:5) como ritual de iniciação ao reino messiânico (cf. Mt 3:6+), agora "em nome de Jesus" (2:38+). Pela fé na obra redentora de Cristo (cf. Rm.6:4+), o batismo será não apenas de arrependimento, mas simbolizará a concessão do Espírito Santo (2:38).

O Espírito Santo, tema especialmente caro a Lucas (Lc 4:1+), aparece antes de tudo como um poder (Lc 1:35; 24:49; At 1:8; 10:38), enviado de junto de Deus por Cristo (2:33) para a difusão da boa nova. O Espírito Santo outorga os dons, que autenticam a mensagem: dons de línguas (2:4+), dos milagres (10:38), de profecia (11:27+; 20:23; 21:11), de sabedoria (6:3, 5,10), dá força para anunciar a Jesus Cristo, apesar das perseguições (4:8 e 31; 5:32; 6:10; cf. Fl. 1:19) e dar testemunho dele. Intervém, enfim, nas decisões capitais: na admissão dos gentios na igreja (8:29 e 39; 10:19,44-47; 11:12-16; 15:8) e nas missões de Paulo no mundo gentio (13:2s; 16:6-7; 19:11).

Assim, todo o livro está impregnado, dirigido e impulsionado pela presença irresistível do Espírito Santo. Ele atua na expansão da igreja (1:8) com tal poder que muitos se sentem a vontade para chamar o livro de "Atos do Espírito Santo".

Para Lucas, a organização e a vida da igreja são uma questão teológica. E graças a isso, aprendemos que a presença do Espírito Santo é a base do funcionamento da igreja. Ele guia na escolha dos líderes, na atividade evangelizadora e, inclusive, na estrutura que a igreja vai construindo. Apóstolos, anciãos, profetas e mestres, residentes ou itinerantes, todos tem atividades definidas, e se colocam sob a direção do Espírito Santo.

O Espírito Santo é Deus pleno. Por isso, Lucas vê a igreja como comunidade levantada e dirigida por Deus. Ele acredita no triunfo final do evangelho. Mas essa teologia da glória está mediada pelo sofrimento e pelo martírio, pela teologia da cruz.

Os discípulos de Jesus Cristo que vieram a ser designados pelo nome batista se caracterizavam pela sua fidelidade às Escrituras e por isso só recebiam em suas comunidades, como membros atuantes, pessoas convertidas pelo Espírito Santo de Deus. Somente essas pessoas eram por eles batizadas e não reconheciam como válido o batismo administrado na infância por qualquer grupo cristão, pois, para eles, crianças recém-nascidas não podiam ter consciência de pecado, regeneração, fé e salvação. Para adotarem essas posições eles estavam bem fundamentados nos Evangelhos e nos demais livros do Novo Testamento. A mesma fundamentação tinham todas as outras doutrinas que professavam. Mas sua exigência de batismo só de convertidos é que mais chamou a atenção do povo e das autoridades, daí derivando a designação "batista" que muitos supõem ser uma forma simplificada de "anabatista", "aquele que batiza de novo".

A designação surgiu no século XVII, mas aqueles discípulos de Jesus Cristo estavam espiritualmente ligados a todos os que, através dos séculos, procuraram permanecer fiéis aos ensinamentos das Escrituras, repudiando, mesmo com risco da própria vida, os acréscimos e corrupções de origem humana. Através dos tempos, os batistas se têm notabilizado pela defesa destes princípios:

1º - A aceitação das Escrituras Sagradas como única regra de fé e conduta.
2º - O conceito de igreja como sendo uma comunidade local democrática e autônoma, formada de pessoas regeneradas e, biblicamente, batizadas.
3º - A separação entre igreja e Estado.
4º - A absoluta liberdade de consciência.
5º - A responsabilidade individual diante de Deus.
6º - A autenticidade e apostolicidade das igrejas. 

Caracterizam-se também os batistas pela intensa e ativa cooperação entre suas igrejas. Não havendo nenhum poder que possa constranger a igreja local, a não ser a vontade de Deus, manifestada através de seu Santo Espírito, os batistas, baseados nesse princípio da cooperação voluntária das igrejas, realizam uma obra geral de missões, em que foram pioneiros entre os evangélicos nos tempos modernos; de evangelização, de educação teológica, religiosa e secular; de ação social e de beneficência. Para a execução desses fins, organizam associações regionais e convenções estaduais e nacionais, não tendo estas, no entanto, autoridade sobre as igrejas; devendo suas resoluções ser entendidas como sugestões ou apelos.

Para os batistas, as Escrituras Sagradas, em particular o Novo Testamento, constituem a única regra de fé e conduta, mas, de quando e quando, as circunstâncias exigem que sejam feitas declarações doutrinárias que esclareçam os espíritos, dissipem dúvidas e reafirmem posições. Cremos estar vivendo um momento assim no Brasil, quando uma declaração desse tipo deve ser formulada, com a exigência insubstituível de ser rigorosamente fundamentada na palavra de Deus. 

CONCLUSÃO

Assim, Lucas mostra a diferença entre o cristianismo e a estrutura judaica oficial que entrava numa etapa de caducidade. Aqui, entre os cristãos, a organização não reflete poder pessoal, nem burocratismo. Não há como separar a vida e a estrutura da igreja nascente de sua mensagem e de sua missão. Estamos diante de uma totalidade viva, em expansão, cheia de glória e do poder de seu senhor e mestre: Jesus, juiz dos vivos e dos mortos (10:42).

As comunidades cristãs descritas em Atos fornecem elementos concretos e práticos sobre a ação e atuação ideais para a igreja de nossos dias. E essa é a conclusão que desejamos apresentar, conforme os parâmetros tão bem definidos por Scott Horrel em seu trabalho. Lucas fala de um cristianismo de adoração, de aprendizado, de comunhão e de evangelização. São as atividades primordiais de uma igreja habitada pelo Espírito Santo. Esse cristianismo pode ser descrito assim:

(a) Era uma igreja marcada pelo louvor. E o amor traduzia-se na criatividade das formas de adoração. Assim, ao invés de reduzir a adoração exclusivamente à música e à oração, os primeiros cristãos tinham a liberdade de experimentar formas que criavam condições para a igreja se deleitar no Senhor.

(b) O aprendizado, que pode ser traduzido em ensino, doutrina e teologia, era considerado fundamental para a vida cristã. Era a porta de entrada para conhecer a palavra de Deus.

(c) A comunhão era muito mais do que o mero bom relacionamento entre cristãos. A igreja, através da oração e do planejamento, desenvolveu formas de encorajar a comunhão genuína. Afinal, o relacionamento com Deus é medido mais pela comunhão com outros cristãos do que por qualquer outro fator.

(d) A evangelização era entendida como um ato corporal, não apenas como discurso. Isto porque, ao viverem num clima de adoração, de aprendizado e comunhão, os cristãos exerciam uma poderosa atração sobre aqueles que estavam procurando a verdade.

Dessa maneira, as comunidades cristãs de Atos romperam com a centralização nacional e geográfica de Israel e iniciaram a construção de uma igreja para todos os povos, em todo o lugar, em cada dia. Hoje, da mesma forma que o cristianismo nascente, a igreja local precisa ter claro sua essência, sua função, seu ponto de equilíbrio, sua forma e estilo. Isso significa que o propósito básico da igreja local é encarnar o corpo de Cristo na terra, fazendo a vontade Deus. Suas atividades primárias devem ser aquelas que caracterizavam a igreja no Novo Testamento e isso deve ser construído de forma equilibrada. Não desenvolvendo apenas uma função, mas todas as quatro. E por fim, deve adaptar sua organização ao povo e às novas gerações.

Existe ainda uma questão fundamental que é a responsabilidade diante da igreja como um todo. É necessário aprender a experimentar comunhão entre as denominações. Existem diferenças e muito possivelmente devem ser mantidas, mas as outras igrejas locais, as outras denominações não são inimigas. Representam grupos de pessoas, com experiências e tradições diferentes das nossas. Rejeitar a comunhão com um irmão é, de fato, rejeitar o corpo de Cristo.

E por fim, fica a pergunta: o que seria uma igreja sem templo, sem domingo, sem grande programa de culto e sem clero profissional? Aparentemente, poderia não ser o ideal, mas nem por isso deixaria de ser uma igreja local, se mantivesse a proclamação, o ensino e o serviço. Jesus Cristo instituiu a sua igreja (2), tornando-a real e efetiva (3), revestindo-a de condições para receber todos os povos, fazendo-os família de Deus (4), amando-a e dando-se a si mesmo por ela (5), a fim de torná-la o instrumento perfeito para o testemunho da sua graça e proclamação da sua salvação. 

A igreja é uma congregação local, formada por pessoas regeneradas e biblicamente batizadas, após pública profissão de fé, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Ela cumpre os propósitos de Deus no mundo, sob o senhorio de Jesus Cristo, o qual deseja criar um novo homem, segundo a imagem e semelhança do Deus Triúno, e formar uma nova humanidade, um povo para louvor da glória de sua graça, no tempo presente e na eternidade. 

A igreja cumpre este propósito através do culto, da edificação dos salvos, da proclamação do evangelho, da ação social e da educação, vivendo em amor. No cumprimento destas funções, a igreja coopera com Deus para a consecução do plano divino de redenção. Baseada no princípio da cooperação voluntária entende a igreja que, juntando seus esforços aos de igrejas co-irmãs, pode realizar a obra comum de missões, educação, formação de ministros e de ação social, com mais eficiência e amplitude. A igreja é autônoma, tem governo democrático, pratica a disciplina e rege-se pela Palavra de Deus em todas as questões espirituais, doutrinárias e éticas, sob a orientação do Espírito Santo. Sem dúvida, a questão fundamental para nossas igrejas é saber, precisamente, qual a sua razão de ser e como está usando a liberdade que Cristo lhe deu.

BIBLIOGRAFIA

Baxter, J. Sidlow, Examinai as Escrituras, Período Interbíblico e os Evangelhos, São Paulo, Edições Vida Nova, 1988.
Cruz, Armando Bispo, Os Dons Espirituais, Despertando o Potencial Divino na Igreja Local, in Ultrapassando Barreiras vol 1, São Paulo, Edições Vida Nova, 1955, 91-108.
Getz, Gene A., Igreja: Forma e Essência, São Paulo, Ed. Vida Nova, 1994.
Gundry, Robert H., Panorama do Novo Testamento, São Paulo, Ed. Vida Nova, 1991.
Halley, Henry H., Manual Bíblico, São Paulo, Ed. Vida Nova, 1993.
Horrel, Scott J., A Essência da Igreja, Repensando a Eclesiologia à Luz do Novo Testamento, in Ultrapassando Barreiras vol 1, São Paulo, Edições Vida Nova,1994, pp. 7-28.
Horton, Stanley M., O Livro de Atos, Editora Vida, São Paulo, 1983.
Klooster, Fred H., Aliança, Igreja e Reino no Novo Testamento, in Vox Scripturae, vol V, número 1, São Paulo, 1995.
Marshall, I. Howard, Atos, Introdução e Comentário, São Paulo, Ed. Vida Nova, 1991.
Pollock, John, O Apóstolo, São Paulo, Ed. Vida, 1994.

Citações

[1] Benoit, P., A Bíblia de Jerusalém, Introdução a Atos dos Apóstolos, São Paulo, Ed. Paulinas, 1985, pp. 2041-2045.
[2] Klooster, Fred H., Aliança, Igreja e Reino no Novo Testamento, in Vox Scripturae, vol V, no. I, São Paulo, 1995, pp. 289-41.


mardi 18 décembre 2012

Por que o Cristo


Uma revelação radical
Por Jorge Pinheiro

A revelação de nosso Jesus, o Cristo, oferece à humanidade tudo o que é necessário para a salvação, não necessitando ser completada por qualquer outra ação ou processo, que não seja o arrependimento e a obediência. O evento Jesus, sem deixar de ser revelação universal da vontade de Deus, permanece particular em razão de sua historicidade. Significa que tal evento não diminui a potência salvífica de Deus, pois a ação universal do Cristo e do Espírito Santo não se circunscreve à humanidade de Jesus. Por isso não se pode reduzir Jesus a uma figura salvífica entre outras. A revelação operada em Jesus Cristo é definitiva e insuperável.




Seria um erro entender a ação do Espírito deslocada da economia salvífica universal do Cristo encarnado. Na historicidade da igreja, é fundamental insistir na conjunção da cristologia com a pneumatologia, a fim de preservar a centralidade do evento Cristo. Irineu, pai da igreja, utiliza uma metáfora para nos explicar essa conjunção – que logicamente como qualquer metáfora tem suas limitações. Ele fala das duas mãos de Deus que operam juntas a economia da salvação: a mão do Cristo e a mão do Espírito Santo. Mãos que atuam unidas, mas são distintas e complementares. A presença do Espírito na obra do Cristo encarnado não põe um fim na atuação do Espírito Santo depois do evento-Cristo. O Espírito Santo estava presente e operante antes da glorificação do Cristo e continua presente hoje.

A revelação universal do Cristo não pode nos levar a considerar as religiões do mundo como caminhos complementares ao do corpo do Cristo. Quando muito a universalidade da revelação presente nessas religiões assumem um papel de preparação evangélica para a compreensão do evento Cristo, não podendo ser consideradas caminhos de salvação. Ao longo da história cristã foram comuns injustiças e perseguições aos grupos, denominações e religiões que discordavam do cristianismo hegemônico naquele momento. Ações essas que violentam a imago Dei, o livre-arbítrio e a compreensão da ação salvífica do Cristo.

Grupos, denominações e mesmo religiões não-cristãs não se resumem à mera representação de uma busca humana de Deus, mas traduzem a revelação universal de Deus, através da qual Ele tem se automanifestado à humanidade. São parte do processo de envolvimento pessoal de Deus com a humanidade, que atravessa a história, tendo como centro salvífico o evento Cristo.

Jesus, o Cristo, é aquele que revela o Pai. Quando Deus dá-se a conhecer, de forma direta e especial, o faz através de seu Filho, em carne e osso. E é justamente essa verdade revelada em Cristo, que deve dirigir toda a nossa compreensão do ser humano e da igreja do Cristo.

Jesus Cristo é Deus e homem, consubstancialmente perfeito e pleno. Nesse sentido, entendemos que o Cristo encarnado possibilita uma compreensão do que é a humanidade, traduzindo numa linguagem cheia de vida os conteúdos fundamentais daquilo que está dito em Gênesis sobre o ser humano antes da alienação.

O Cristo revelado é a dimensão mais profunda do humano, a dimensão que traduz aquilo que o cristão é: filho adotado do amor e da graça de Deus, criado para o louvor, honra e glória do Deus eterno.

Neste Natal, adore o Cristo!

Fonte
Jorge Pinheiro, Teologia Bíblica e Sistemática, o ultimato da práxis protestante, Fonte Editorial.